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ENTREVISTA: JOSÉ MURILO DE CARVALHO

Um antídoto
contra a bestialização
republicana
C ARLOS H AAG

T ranqüilo com sua imortalidade (ele foi eleito


no ano passado para a Academia Brasileira de
Letras), José Murilo de Carvalho, que completa
66 anos neste mês, é um historiador com tem-
po e energia para escarafunchar o passado, ana-
lisar o presente e pensar o futuro. Como bom
mineiro, tem até uma anedota verídica para explicar a sua profissão de
fé acadêmica, cuja ambição é a produção de conhecimento novo. Ele
conta que, numa palestra em São João del Rei, alguns morcegos se pu-
seram a dar rasantes sobre o conferencista e seu público. “Só mais tar-
de, revivendo a emoção com calma, como aconselhava Wordsworth
aos poetas, conselho extensível aos historiadores, é que me dei conta
que se tratava de gentileza da cidade colonial”, lembra. “Os morcegos
queriam ilustrar minha palestra. O historiador tem que possuir a agili-
dade, a leveza e a sensibilidade ultra-sônica dos morcegos para detec-
tar, configurar e decifrar seu objeto.”
Professor titular de História do Brasil, ligado ao Núcleo de Pesqui-
sas e Estudos Históricos da UFRJ, José Murilo começou seus estudos
na Universidade Federal de Minas Gerais, mas como economista. Foi,
longe do Brasil, nos Estados Unidos, quando foi tirar o seu Ph.D. na
Universidade de Stanford, que se descobriu um apaixonado pelas
evoluções políticas e sociais de seu país. “Chegando lá, passei a me
preocupar com o Brasil como um todo. Foi lá que enfrentei o meu
primeiro tema maior: como se construiu o Estado nacional do ponto
de vista da estratégia dos grupos no poder.” Daí resultaram os livros A
construção da ordem (1980) e Teatro de sombras (1990). Mas falar em
elites no Brasil dos anos 1970 não angariou a ele grande popularida-

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FOTOS LÉO RAMOS

‘ A reforma política
não é panacéia ‘
e não pode ser feita
à custa da participação
democrática

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de entre os meios acadêmicos, envolvi- nha geração sofreu em 1964 com o — O Brasil, de 1881 a 1945, deu para
dos em discussões sobre as classes po- golpe e o estabelecimento do governo trás em matéria de incorporação po-
pulares. Para os colegas, tinha virado militar se devia, em parte pelo menos, lítica da população via processo elei-
“elitista”. ao descuido dos intelectuais no estudo toral. A Primeira República foi, lite-
Mas o engano era só de desafetos de um ator político muito relevante ralmente, um regime sem povo, pois
desinformados. Num tempo em que desde 1889. Agora tivemos outra gran- votava menos de 5% da população. Pa-
não se pensava nas elites, José Murilo de surpresa desagradável, também para ralelamente, a educação fundamental
teve coragem de estudar aqueles que dizer o mínimo, relativa às denúncias continuou a ser negligenciada. Incor-
mais influenciavam a vida das massas de corrupção no governo do PT. Mas poração significativa só começou em
empobrecidas. Depois da tese, mudou hoje não se pode atribuir a causa da 1945. A partir daí, seu ritmo foi inten-
seu foco de atuação. “Em Os bestializa- surpresa à ausência de estudos sobre so. Em 1930 votou 5,6% da população,
dos (1987), à preocupação com a cons- esse ator, pois há muitos deles. A per- a metade de 1881. Em 1945 já votou
trução do Estado agregou-se o proble- gunta perturbadora para cientistas so- 13% e, em 1960, 18%. O ritmo de cres-
ma da construção da nação. Quando se ciais é se sua pesquisa é inútil, se não cimento, peculiaridade brasileira, não se
percebeu, com a mudança de regime, serve para fazer previsões. Em outros abateu durante o regime militar, quan-
que não houve muitas alterações nas termos, se sua pesquisa não é ciência. do cerca de 60 milhões de cidadãos co-
práticas políticas e eleitorais, muitos Uma coisa é certa, nos domínios do meçaram a votar, número maior do
autores começaram a trabalhar com humano, onde reina a liberdade, a pre- que a população total do país em 1950.
uma idéia mais ampla de construção da visão é, de fato, sempre precária. Com- Ao mesmo tempo, a educação funda-
nação”, explica. Em Os bestializados, o te considerava as leis sociais equiva- mental cresceu, mas em ritmo muito
historiador dissecou a atitude da popu- lentes às da astronomia no poder de mais lento. Só no final do século 20 é
lação diante do poder, enfocando a per- previsão. Um positivista, claro. As pre- que ela se generalizou, mesmo assim
plexidade geral com o advento, da noi- visões no campo das ciências sociais padecendo de má qualidade. Tivemos
te para o dia, da República. A partir de são no máximo probabilísticas, sempre assim três fatores negativos: entrada
A formação das almas, a inflexão se res- sujeitas a surpresas, agradáveis ou não. tardia do povo no processo eleitoral;
salta: “Nele, falo sobre a tentativa do No caso atual, operaram outros fatores entrada em boa parte sob regime de di-
novo governo de recriar o imaginário perturbadores da análise. Os alertas em tadura, quando o sentido do voto era
nacional e da reação popular à tentati- relação ao que se passava dentro do PT deturpado pelo estupro de outras insti-
va”. Inquieto, agora não é mais a idéia não faltaram. Críticos pertencentes a tuições democráticas; lento avanço da
de nação ou Estado que mobiliza seus correntes discordantes do Campo Ma- educação fundamental. Até hoje 60%
neurônios, mas a construção do cida- joritário já tinham alertado para os dos eleitores não completaram o pri-
dão, da cidadania. “Meus trabalhos co- descaminhos em curso, tanto os refe- meiro grau.
meçaram com a questão da construção rentes à política econômica como à po-
do Estado e passou para a construção lítica de alianças. Mas os alertas eram ■A incorporação das massas, com maio-
do Estado-nação”, diz. Como os quiróp- atribuídos à disputa ideológica e blo- res demandas, algumas quase impossí-
teros, José Murilo está atento a qual- queados, também ideologicamente, pe- veis de ser atendidas, é vista por alguns
quer novo movimento. Daí os comen- lo campo hegemônico. Observadores como fonte de problemas para a chama-
tários preciosos sobre o momento atual, externos deixaram-se levar. Quanto aos da governabilidade nacional. Daí o dese-
suas raízes e conseqüências, expostos riscos atuais para a manutenção do go- jo de uma reforma política, que deixe par-
na entrevista a seguir. verno civil, mencionei alguns em meu tidos mais fortes etc. mas que, no fundo,
livro, mas não me ocorreu o que desa- deixa o eleitor mais distante do processo
■ Na apresentação e na conclusão de seu bou sobre nossas cabeças, mesmo ten- decisório. Como o senhor vê essa situação
último livro, Forças Armadas e política do escrito a conclusão há meses. Há, e qual a sua compreensão de uma refor-
no Brasil, percebe-se que o senhor vê na sem dúvida, inquietação entre os co- ma política: precisamos de uma e de que
desigualdade social nacional a grande mandantes das Forças Armadas com tipo, em especial diante do contexto atual,
ameaça para a democracia. No último relação ao que se passa. Mas não creio em que ela é vista como panacéia para
parágrafo, aliás, o senhor observa que que a inquietação evolua para qualquer qualquer crise?
“corremos o risco de ser surpreendidos co- inclinação à intervenção, a não ser que — O sistema político entrou em colap-
mo em 1964”. A situação atual de pro- a crise assuma dimensões catastróficas, so em 1964 porque não foi capaz de ab-
funda crise o surpreendeu? Como avalia o que é pouco provável. sorver o rápido crescimento da partici-
os desdobramentos dessa nova surpresa, pação, eleitoral e não-eleitoral. Culpa
seja em termos do que esperar no futuro, ■ O senhor já afirmou que houve uma da participação ou do sistema que só a
seja na incapacidade de prever que isso estranha evolução no Brasil e, até 1881, admitiu tão tarde? No debate de 1881, a
poderia ocorrer? Como entender que, o país estava à frente mesmo da Inglater- reforma apresentada pelos liberais pre-
apesar de tão estudado, o PT ainda pôde ra em termos de direito de voto. Ao lon- tendia combater a manipulação do
surpreender a sociedade? go do tempo, as massas foram incorpora- eleitor pelo governo. A solução adotada
— Touché! Comecei a estudar os mili- das ao processo. Por que, então, temos foi reduzir drasticamente o número dos
tares porque achei que a surpresa desa- essa cidadania tão incipiente, sempre que podiam votar. Os críticos diziam
gradável, para dizer o mínimo, que mi- ameaçada ou não totalmente exercida? que se cometia um erro de sintaxe polí-

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tica, criava-se uma oração sem sujeito,


isto é, um regime representativo sem
povo. A conseqüência do erro foi dura-
O povão ainda
doura e desastrosa. A engenharia políti-
ca deve cuidar sem dúvida da governa- sobrevive no mundo
bilidade, mas não o pode fazer à custa da necessidades,
da democracia política. Esta só se con-
solida na prática. Nenhum eleitorado
amadurece na exclusão. Não posso dis-
cutir aqui as reformas que seriam, a
meu ver, necessárias e adequadas. É te-

e democracia
política, para
ele, ainda é
um luxo
ma muito controvertido. Proponho
apenas dois parâmetros: a reforma po-
lítica não é panacéia; a reforma política
não pode ser feita à custa da participa-
ção democrática.

■ Toda a crise de hoje parece passar ao


largo da população, vista, como no artigo isolou geograficamente o governo, Exe- digo persistirem até hoje as conseqüên-
recente do professor Bresser Pereira, em cutivo e Legislativo. O controle direto cias da experiência colonial e escravista.
oposição à chamada sociedade civil, essa, que sobre ambos era exercido pela po- Não gosto de jogar a culpa nas elites ex-
sim, que leva o país. Como o senhor ava- pulação da antiga capital, com passea- clusivamente. Essa atitude equivale a
lia essa dicotomia e esse distanciamento tas, vaias e aplausos nos plenários da desqualificar o povo, pois o coloca em
do povo? Antes, com a capital no Rio de Câmara e Senado, desapareceu na soli- posição de vítima indefesa. Como já di-
Janeiro, as massas podiam mobilizar-se dão do Planalto, onde o povo político zia Nabuco, o grande mal da escravidão
diante do poder, mas Brasília parece es- se reduziu ao empregado público e seu no Brasil foi que seus valores permea-
tar “fora do Brasil”e dessa forma o povo estreito horizonte corporativo. Esse ram a sociedade de alto a baixo e que o
parece ainda mais alijado da participa- ambiente é terreno fértil para o cultivo cidadão brasileiro traz dentro de si a dia-
ção e do poder de pressão junto aos gover- de intrigas de corte, conchavos, expec- lética do senhor e do escravo.
nantes e aos políticos. Como vê isso? tativas de impunidade. É terreno fértil,
— São dois pontos relacionados, o da em resumo, para medrar a bandalheira ■ O povo sempre parece acalentar, por
distinção entre sociedade civil e povo e do andar de cima, para usar expressão um lado, a esperança de um líder mes-
o do efeito Brasília. Acho correta a dis- de Elio Gaspari. siânico que resolva todos os problemas da
tinção. Em artigo sobre a Primeira Re- nação, ao mesmo tempo que tende a ser
pública, falei sobre a existência, então, ■ O senhor já afirmou que temos grandes tomado por um pessimismo em tempos
de três povos, o povo do Censo, o povo dificuldades em acertar contas com o de crise, achando que estamos “num mar
das eleições e o povo da rua. Os dois passado escravista e colonial. De que for- de lama”. Como o senhor vê essa “pai-
últimos povos constituíam parcela mí- ma as mazelas do presente têm a ver com xão” de extremos e quais os fatores posi-
nima do primeiro. Apesar de todos os esse não enfrentamento do nosso passa- tivos e negativos que decorrem desse sen-
avanços na urbanização, na educação, do? Sentimos que o povo brasileiro mu- timento “edênico” do Brasil (o país visto
nos meios de comunicação de massa, dou ao longo do processo histórico. O como Éden)?
ainda temos hoje a distinção entre um mesmo pode ser dito das chamadas elites: — A expectativa do messias e a frustra-
povo político, que se pode pedante- elas mudaram na sua essência? ção são lados da mesma moeda. Reve-
mente chamar de pólis, organizado ou — Quatro séculos de prática escravista lam ambas a ausência de um senso de
não, mas bem-informado e alerta, e ou- e três séculos de colônia não passam eficácia política, isto é, a ausência da
tro povo que, com o mesmo pedantis- em vão. Não se trata de dizer que so- convicção da capacidade do cidadão de
mo, se pode chamar de demos, ou, sem mos prisioneiros do passado, que o se autogovernar. Espera-se a salvação
pedantismo, de povão. O povão ainda passado nos condena e que, portanto, de fora, do messias, chame-se ele Antô-
tem baixa escolaridade e sobrevive no não temos responsabilidade pelo pre- nio Conselheiro, Padre Cícero, Getúlio
mundo da necessidade. Para ele, demo- sente. Trata-se de reconhecer a força de Vargas, Fernando Collor, Lula. Diante
cracia política ainda é um luxo. A crise tradições, a persistência de valores, a re- do inevitável fracasso do esperado, so-
atual revela os dois povos. A pólis fica produção de práticas de sociabilidade. brevém a frustração. Escapam da con-
indignada e se revolta com as denúncias Essas tradições, valores e práticas so- denação histórica apenas os messias que
de corrupção. O demos talvez o faça em brevivem até mesmo a mudanças es- expiam seu fracasso com um destino
menor escala, pois tem que se preocu- truturais na demografia, na economia, trágico, destino esse que lhes é imposto
par com o destino do Bolsa Escola. na educação. Ou, o que é mais grave, ou que elegem por vontade própria. Foi
Brasília trouxe benefícios, sobretudo o afetam a natureza mesma dessas mu- o caso de Tiradentes, do Conselheiro,
da ocupação efetiva do território nacio- danças no sentido de desvirtuar seu efei- de Getúlio. Não vejo nada positivo nes-
nal. Mas gerou um grande mal político: to transformador. É nesse sentido que sa tradição messiânica. Até hoje ela re-

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presenta um obstáculo à democracia. irão, aos poucos reduzir o nível escan- duz os recursos do Estado; ao ter os re-
Um dos bons resultados que podem so- daloso da corrupção, embora não aca- cursos reduzidos, o Estado aumenta os
brevir da crise atual será exatamente de- bem com ela. impostos; ao ver os impostos aumen-
sacreditar os salvadores da pátria e re- tados, o contribuinte sonega mais.
forçar a convicção de que só a ação do ■ Quais as origens históricas dessa pro-
cidadão constrói a cidadania. Edenis- miscuidade entre público e privado no ■ Qual a percepção que o brasileiro tem
mo é outra coisa. Ele não atribui à na- governo brasileiro e quais as conseqüên- das leis? Aqui tudo parece querer ser re-
tureza o papel de salvador. Mas é tam- cias disso? Como mudar? O governo “rou- solvido com uma nova lei, como se bas-
bém uma forma de escapismo porque ba” e a população também não obedece às tasse legislar no papel para o problema
coloca fora do âmbito da construção leis. Ou, nas palavras do presidente Lula: acabar na realidade. Quais as origens
humana os motivos de orgulho nacio- “O brasileiro quer cadeia para os outros, desse bacharelismo e quais os problemas
nal. Ele tem a mesma origem do mes- não para ele. Quer que todos sejam hones- que ele traz? Pode-se mudar essa cultura
sianismo: a ausência do sentido do in- tos, não ele”, e assim por diante. De que ancestral?
divíduo como agente da sociedade e do forma esse mal institucional também se — Já no século 19 foi feito o diagnósti-
cidadão como construtor da política. repete na esfera individual, no cotidiano co da distância entre o Brasil legal e o
nacional, e de que forma uma corrupção Brasil real. Guerreiro Ramos achava
■ A corrupção parece ser vista no Brasil se liga à outra? que no Brasil a função da lei é pedagó-
como parte de nossa cultura e não erra- — As origens e possíveis remédios fo- gica, e não coercitiva. Ela é inaplicável,
dicável. O próprio presidente afirmou na ram discutidos acima. O problema da mas aponta para um ideal de civiliza-
celebrada entrevista parisiense que “isso relação entre o comportamento indi- ção. Oliveira Viana achava o contrário.
de caixa dois sempre houve”, com total vidual e o público é complexo. Em pri- A distância entre a lei e a realidade era,
normalidade? Quais as origens dessa cor- meiro lugar, é preciso distinguir a moral segundo ele, a própria corrupção do
rupção endêmica e quando e por que ela privada da ética pública. O comporta- sistema. Análises mais recentes, como
se transforma, como o senhor preconizou mento privado não precisa necessaria- as de Roberto da Matta, mostram o jei-
em uma entrevista, em corrupção epidê- mente, certamente não em nosso mundo to como estratégia brasileira de aceitar
mica? Como mudar esse quadro desola- liberal, condicionar o comportamento a lei sem cumpri-la. Seja como for, nos-
dor que traz tanto cinismo político à na arena pública. Um cafajeste na vida so bacharelismo vem de longa data.
população? privada pode ser um bom estadista. Há Nosso sistema jurídico é tributário da
— A corrupção está enraizada e não é exemplos abundantes. Pode acontecer tradição romano-germânica do direito
erradicável. Mas é redutível a níveis também que o que é positivo na moral codificado, e não da tradição do direito
compatíveis com a prática de países de- privada se torne negativo quando costumeiro anglo-saxônico. Nossa elite
mocráticos. Ela atinge altos níveis no transferido para o mundo público. Por política, desde a independência, é com-
Brasil (e em outros países) em boa par- exemplo, ajudar parentes e amigos é posta predominantemente de bacharéis.
te devido a nossas origens patrimoniais. norma básica de nossa moral privada. São os bacharéis que fazem as leis como
O patrimonialismo significa pelo me- Quando aplicada essa norma ao mun- parlamentares e as aplicam como dele-
nos três coisas: a predominância do Es- do público, transforma-se em cliente- gados, advogados, juízes. A conseqüên-
tado e de sua burocracia; a tendência lismo e nepotismo. Pesquisa que fize- cia disso é a convicção de que tudo se
das pessoas de buscar o Estado como mos no Rio de Janeiro há algum tempo pode resolver a golpes de leis, sem preo-
fonte de emprego (nepotismo, cliente- revelou que muitos entrevistados cupação com as condições de sua apli-
lismo) e de favorecimentos (contratos, achavam que deputados tinham que cação. Dois exemplos recentes foram o
benesses, mensalões), o que uma vez ajudar parentes e amigos. Outra coisa código de trânsito e a lei de doação de
chamei de estadania; e a indistinção en- é o comportamento individual diante órgãos. No primeiro caso, fez-se uma lei
tre o público e o privado, isto é, a au- da lei. Aqui funciona entre nós o mes- para cidadãos e estradas da Suécia. O
sência da noção da coisa pública, subs- mo mecanismo do patrimonialismo, fracasso era previsível. No segundo, a
tituída pela da coisa estatal. A endemia da indistinção entre o estatal, o públi- lei previa o transplante de órgãos sem
pode transformar-se em epidemia por co e o privado. Se não existe o público, consulta à família. Desrespeitou-se uma
circunstâncias fortuitas, como a ação se o estatal é da sogra, não há obriga- das poucas instituições ainda respeita-
de pessoas e grupos mais afoitos. Mas ções cívicas. Paga-se imposto a contra- das no país. A reação foi imediata e pelo
não estamos condenados à corrupção. gosto, quando não se pode sonegar, e menos houve bom senso suficiente pa-
A história não condena nenhum país a aproveita-se o quanto possível do Esta- ra se fazer a correção. Outro exemplo
penas perpétuas. Ela é dinamismo. As- do. Outra pesquisa no Rio de Janeiro, clássico foi a lei da vacinação obrigató-
sim é que a intolerância à corrupção feita em 1997, mostrou que 41% dos ria que provocou uma das maiores re-
tem crescido muito à medida que o ca- entrevistados achavam que em alguns voltas urbanas do país. Aqui também se
ráter injusto da distribuição ilegal de casos era justificável sonegar imposto. gera um círculo vicioso: o Estado faz leis
benefícios públicos se torna óbvia para O que é mais grave é que a porcenta- rigorosas; o cidadão desrespeita as leis;
os muitos que são dela excluídos. Rea- gem crescia com o aumento da escola- o Estado faz leis mais rigorosas para evi-
ções como a que se dá hoje, mudanças ridade. Gera-se aí um círculo vicioso: o tar o desrespeito; o cidadão desrespeita
nas leis e em sua aplicação, alterações contribuinte sonega porque não vê o mais as leis mais rigorosas (ou aperfei-
nas instituições, podem, e creio que Estado como público; ao sonegar, re- çoa o jeito de burlá-las).

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■ Desde 1985 houve um incremento nas ção, seja econômica (Inglaterra), seja
liberdades individuais e na participação política (França), seja social (Rússia).
política da sociedade. Esperava-se que Revoluções não são feitas por elites.
isso fosse ajudar a acabar com as desi- Nós não tivemos revolução alguma e
gualdades sociais, o que não ocorreu. O não creio que a culpa seja apenas das
que houve e as razões históricas para is- elites que, obviamente, em todos os
so? Qual é o nível atual de nossa demo- países defendem seus interesses. Trata-
cracia? Ela é resolução de problemas? O se de um processo histórico em que o
senhor já sugeriu em um de seus livros Estado nacional que aqui se construiu
que é preciso encontrar um outro cami- – liberal, note-se – não cumpriu a tare-
nho para a cidadania no Brasil. Qual se- fa executada por outros Estados nacio-
ria esse novo caminho e as razões dessa nais de reduzir a desigualdade a níveis
peculiaridade nacional? toleráveis. Não me parece realista espe-
— A cidadania política não produziu rar que, no mundo de hoje, ainda pos-
até agora cidadania social, a liberdade samos fazer a mudança por métodos
não produziu igualdade. Isso significa revolucionários. Tampouco é realista es-
que o sistema representativo não tem perar que as elites o façam espontanea-


funcionado adequadamente. Algumas mente. Ela só pode ser realizada por
razões do mau funcionamento já foram A cidadania política pressão de baixo sobre o Estado no sen-
apontadas: entrada recente do povo na não produziu até tido de forçá-lo a alterar políticas pú-
política, curto período de prática re-
presentativa, interrupções autoritárias,
baixa escolaridade, altos níveis de po-
breza. A tentação é dizer que o modelo
faliu e que se devem buscar alternati-
agora cidadania

ainda não produziu


igualdade

social e a liberdade
blicas, usando, se necessário, seu poder
constitucional e legal de coerção, inclu-
sive sobre as elites.

■ Vivemos na chamada “Estadodania”: o


vas. De fato, cheguei a mencionar a ne- Estado é visto como fonte de tudo. Por
cessidade de se pensar em alternativas. quê? Qual a história disso e os enganos
Mas nunca tentei formulá-las porque dessa visão? Ao mesmo tempo que as eli-
no fundo não tinha e não tenho certeza tes exigem que o Estado controle a desi-
sobre se é o modelo que não presta ou gualdade e a violência, quer o Estado
se não tivemos tempo de colocá-lo ade- de e da exclusão e que seria necessária a longe da economia: essa dicotomia tem
quadamente em prática. Lembre-se de participação das elites num processo de solução? O povo sabe o que é e como fun-
que ele demandou séculos para se im- distribuição de riquezas. As elites, por ciona o Estado: é comum se reclamar do
plantar no Ocidente. Daí que talvez fos- sua vez, colocam todo o ônus do processo governo federal a falta de polícia nas
se mais eficaz fazer ajustes tópicos em no Estado e não querem modelos em que ruas, atributos dos governos estaduais ou
vez de tentar mudanças radicais. Dou percam sua soberania. Como resolver municipais, só para citar um exemplo. Se
um exemplo simples, tendo em vista a esse dilema da desigualdade nesses ter- pode ser cidadão se não se conhece o Es-
crise atual. Acabar com o privilégio de mos? Qual a real parte que cabe ao Esta- tado?
prisão especial para portadores de di- do e qual cabe às elites? As elites de outros — A pergunta me permite ampliar a
plomas universitários levaria os senhores países desenvolvidos perceberam no pas- resposta anterior sobre patrimonialis-
doutores a pensarem duas vezes antes sado que era necessário reformas: agrá- mo. O impacto do patrimonialismo na
de praticar qualquer crime. No campo ria, distributiva etc. para a implementa- sociedade não se limita à visão do Esta-
político, a introdução da possibilidade ção de um Estado de bem-estar social. A do como alheio ao cidadão. Em nossa
de revogação de mandatos pelos eleito- nossa elite ainda não percebeu isso e vive tradição ibérica há uma justificativa
res, na vigência do mandato, também com medo da violência: como entender mais elaborada do papel do Estado. Ele
poderia melhorar o comportamento de esse caráter “suicida” ou “predatório” das se justificaria como promotor da felici-
parlamentares. Pode-se também, e deve- elites? O que esperar no futuro? dade dos súditos e seria visto pelos súdi-
se, ampliar a participação política para — Pesquisas indicam que a educação é tos como um benfeitor. Nosso patrimo-
além do ato de votar. Há dispositivos o fator que mais afeta positivamente a nialismo é também um paternalismo.
constitucionais importantes que são consciência cívica e a mobilização polí- Exame de dezenas de cartas enviadas a
pouco usados, como a ação civil públi- tica. Enquanto a escolaridade no Brasil governantes em vários momentos de
ca, a ação popular, o mandado de in- não atingir níveis decentes (universali- nossa história, desde o Império até os
junção. São armas poderosas que, se zação do ensino médio e uns 30% da governos militares, confirma esse ponto.
mobilizadas, aperfeiçoariam o sistema população com educação superior), A concepção de contrato social embu-
representativo. não cabe falar em insuficiência da edu- tida nessas cartas é a seguinte: o cidadão
cação. Não cabe também, creio eu, es- (na realidade, o súdito) deve cumprir
■ Alguns estudos sugerem que crescimen- perar das elites a solução do problema sua obrigação de trabalhar e cuidar da
to e melhor educação não são suficientes da desigualdade. Nos países que o re- família. Em contrapartida, o Estado de-
para resolver o problema da desigualda- solveram houve algum tipo de revolu- ve cuidar do cidadão (ou do súdito).

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Não há direitos políticos e civis envolvi- profissionais de baixa qualidade. Nesse conspiração das elites. Em nossa histó-
dos nesse pacto, apenas direitos sociais, último caso, apenas se adiará a discri- ria, quando o pobre se revoltou, ele o
que são passivos. Essa visão é também minação para o momento de entrada fez fora do sistema político, sem gerar
corroborada por pesquisas de opinião no mercado de trabalho. As cotas são mudanças institucionais. Voltamos ao
pública que indicam o predomínio to- modalidade inadequada de ação afir- problema da representatividade do sis-
tal dos direitos sociais na percepção mativa. Elas são rígidas, artificiais, ame- tema. Perspectivas? O único movimen-
que os brasileiros possuem de direitos. açam a qualidade do ensino, e são equi- to popular eficaz que temos hoje é o
O lado paternalista da ação do Estado é vocadas quando adotam classificações MST. Mas o MST mobiliza uma parce-
bem conhecido pelo público. A grande raciais que equiparam o Brasil à África la da população cujo peso demográfico
busca da Justiça do trabalho, dos postos do Sul. decresce sistematicamente. A população
do INSS e de saúde é uma prova disso. pobre das cidades, em constante cresci-
Ficam de fora do pacto os direitos de ■ Como o senhor vê a atuação da mídia, mento, continua politicamente desmo-
briga, os civis e políticos que definem o em especial a política e a econômica. bilizada. Pior ainda. Em cidades como o
cidadão ativo. A grande pergunta que Após o affair Collor, a imprensa passou a Rio de Janeiro, sua mobilização se vê
me faço é se o ingresso no sistema pela ser vista como fonte de revelações e uma bloqueada pela ação dos traficantes de
porta do direito social fortalece ou en- espécie de mecanismo de controle da Re- drogas. Nem mesmo as associações de
fraquece ainda mais os direitos civis e pública. Por um lado, isso é bom, porque moradores podem funcionar sem o be-
políticos. é uma das funções sociais da mídia. Por neplácito dos traficantes. Por outro la-
outro, há o problema do “believe in do, se é verdade que a desigualdade,
■ O senhor defendeu em artigo recente, everything you read in papers”: o que medida pela renda, não se tem reduzido
escrito para o jornal O Globo, a univer- está escrito é verdadeiro. Há, no momen- de maneira significativa, há outras mu-
sidade pública das acusações de elitismo. to, uma onda de denuncismo, parte real, danças em curso. Os indicadores so-
Como é isso? O que acha da situação mas parte sem fundamentos, para ven- ciais como escolaridade, esperança de
atual da universidade? Qual sua opinião der jornal ou atacar o governo. Como vê vida, mortalidade infantil, coleta de li-
sobre a polêmica reforma universitária isso? A mídia não é diferente de uma em- xo, abastecimento de água e outros têm
proposta? Concorda com o sistema de co- presa qualquer, no geral, e “vende” um melhorado muito nos últimos dez anos.
tas para minorias? produto chamado notícia. Qual o perigo Está havendo, por assim dizer, uma dis-
— Chamei a atenção para simplifica- disso num país em que se tem pouca re- tribuição indireta de renda. É aí que
ções na condenação da universidade flexão crítica sobre o que se é divulgado? está, creio, parte da explicação da tole-
pública como elitista. Creio ter ficado — Admitindo todos os problemas cita- rância dos pobres: a renda não aumenta,
demonstrado com estatísticas que o eli- dos, que são reais, creio que o balanço mas a vida melhora. Isso é positivo, in-
tismo se prende, sobretudo, a certos da atuação da mídia tem sido positivo. dica adequada ação social do Estado.
cursos e à ausência de horário noturno. A análise de seu impacto, no entanto, Mas veja nosso dilema: a ação social re-
Na maioria dos cursos, sobretudo no deve distinguir os tipos de mídia. Devi- força a visão paternalista do Estado,
turno da noite, a população universitá- do ao grande número de semi-analfa- além de alimentar o clientelismo.
ria corresponde razoavelmente ao todo betos, a televisão possui um peso ex-
da população. O que me preocupa no traordinário sobre as classes D e E, para ■ Numa entrevista à Folha, logo após a
debate são posições demagógicas que usar a classificação das pesquisas de eleição de Lula, o senhor afirmou: “As di-
querem abrir indiscriminadamente a marketing. Por outro lado, há um enor- ficuldades são proporcionais às esperanças
universidade passando por cima de me avanço na comunicação via inter- que sua candidatura despertou. Terá que
qualquer preocupação com qualidade. net nas classes A e B. A internet é um evitar o perigo do abraço mortal do apoio
A universidade pública – falo, sobretu- domínio livre do controle dos donos da conservador que, ao lhe dar base de go-
do, das federais – está cheia de mazelas, mídia. O estudo de sua influência na verno, pode lhe descaracterizar o progra-
e, entre outras coisas, tem a obrigação presente crise está por ser feito. ma. Terá que lidar com a cobrança de se-
de fazer um grande esforço para incor- tores mais militantes que o apóiam, que
porar alunos pobres. Trata-se de ação ■ O país, em especial as elites, rejeita a exigirão mudanças rápidas. Terá que ha-
afirmativa legítima e necessária. Mas a reforma agrária e demoniza o MST. Co- ver-se com armadilha criada pela grande
incorporação não pode ser demagógi- mo entender um país em que os pobres expectativa de mudança que gerou na po-
ca, nem comprometer a qualidade do toleram a desigualdade? Qual a origem pulação, desproporcional em relação às
ensino. Para incorporar corretamente histórica disso e o que se pode esperar no possibilidades de atendimento. Esses se-
alunos pobres, a universidade deve in- futuro: uma onda de violência ou apenas rão os fantasmas a perseguir o governo”.
vestir pesadamente na preparação dos mais tolerância com a miséria crescente? O senhor foi preciso no diagnóstico. Como
candidatos para que não entrem à — Por que a tolerância dos pobres à avalia essa percepção diante do desenvol-
custa de rebaixamento dos critérios desigualdade? Por que os pobres brasi- vimento real do governo Lula? Havia ou-
de qualificação. Além disso, terá que leiros não se revoltam? O verdadeiro tro caminho a ser seguido? O que ele ain-
acompanhá-los e lhes dar assistência milagre brasileiro não seria a honesti- da pode fazer para mudar a situação?
durante todo o curso, inclusive auxílio dade dos pobres? São questões pertur- Lula é, palavras suas, ainda o “estranho
financeiro. Do contrário, teremos de- badoras, que não podem ser respon- no ninho da elite” e vítima dessa situa-
sistências, frustrações, ou formação de didas apenas pelo recurso a teorias de ção, como ele mesmo quer fazer crer?

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SETEMBRO DE 2005 PESQUISA FAPESP 115

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— Eu disse isso? Não está mal, ainda


que a avaliação fosse evidente para
quem, embora simpático aos resultados
eleitorais, não se tivesse deixado levar O papel dos
por romantismos. Creio que a previsão intelectuais nessa
se realizou. Acuado pela necessidade de conjuntura é não
não causar pânico na economia e nos se acovardar e
mercados internacionais, o governo
enfrentar
manteve religiosamente a política eco-
nômica anterior, alienando boa parte
de seu partido e de seus eleitores. Não
tenho competência para dizer se havia
alternativa viável. Mas creio que o cál-
que eles
possam ser

os fatos, por mais
desconcertantes

culo dos estrategistas do governo era


fazer mudanças no segundo mandato,
quando a confiança do mercado se ti-
vesse consolidado. Aí veio o que nem
eu nem ninguém mais previu: a emer-
gência dos fantasmas do Marcos Valé- sários ou da elite, mas do próprio po- que interpelava o povo, que dizia defen-
rio e do Delúbio Soares. Ironicamente, der, e outro que, em parte já fora do der os interesses do povo contra os inte-
Fernando Henrique parece ter feito o partido, quer manter a pureza dos prin- resses das elites, brasileiras e estrangeiras.
mesmo cálculo e foi atropelado entre cípios, ao custo de renunciar ao poder. É uma recuperação arriscada porque
um mandato e outro por uma crise vin- O primeiro grupo, enfraquecido, po- Vargas, com a tática da confrontação,
da de fora. Lula foi atropelado por uma derá recompor-se reconstruindo o par- cavou sua própria ruína política e, na
crise interna, quando o cenário externo tido sem a arrogância de antes, em ba- medida em que levada à frente, a com-
é muito amigável. Uma crise causada ses mais próximas do estilo dos outros paração poderá dar de cara com o mar
pela cúpula do partido e na qual ele não partidos. O segundo continuará repre- de lama que jorrou de dentro do Palá-
é exatamente uma vítima. É artificial e sentando a consciência cívica, sem alter- cio do Catete. É também uma recupe-
inútil buscar culpados em outro lugar. nativa de poder. O dano para a demo- ração infeliz, pois retoma uma postura
A elite social deve ter ficado feliz com a cracia brasileira foi grande, sobretudo populista contra a qual o PT se insurgiu
desgraça do presidente-operário, um es- pelo desencanto provocado pelo este- desde o início. Equivale a uma renúncia
tranho no ninho. Mas a elite econômi- lionato eleitoral do PT no que se refere a outro marco do PT, é outro passo
ca, sobretudo seu setor financeiro, está à moralidade pública, vendida como atrás. A tentativa só se justifica pela per-
feliz com os lucros propiciados pelas produto de campanha. A frustração dos sistência no país das amplas camadas
políticas ortodoxas do Banco Central. 53 milhões de eleitores entusiastas foi populares mencionadas acima, ainda
Perspectivas? Minha hipótese otimista grande e poderá estender-se ao sistema prisioneiras do reino da necessidade.
não é muito otimista. O presidente que, representativo como um todo. O papel
em suas reações, não se mostrou à altu- dos intelectuais nessa conjuntura é, a ■ A corrupção pode provocar rupturas
ra da crise conseguirá levar o governo meu ver, não se acovardar e enfrentar reais? Pode ser benéfica ao ser revelada
até o final do mandato e transmitir o os fatos, por mais desconcertantes e em sua extensão? Qual é a relação entre
cargo ao sucessor, seja ele quem for. constrangedores que sejam. Para alguns corrupção e desigualdade?
a tarefa poderá ser mais dolorosa e é — Não creio que corrupção provoque
■ O que restará da esquerda após essa compreensível que prefiram o silêncio. ruptura. A ser assim o Brasil seria um
crise do PT, que, deixando de lado o exa- Mas se alguém tem obrigação profis- país de rupturas, quando é um país de
gero, parece o desalento que tomou conta sional de falar, sobretudo em momen- continuidades, um país sem revolução.
dos admiradores de Stalin após a Prima- tos de crise, são os intelectuais. Muitos De positivo, o que crises como a atual,
vera de Praga? Como vê o papel dos inte- deles são pagos pelos cofres públicos gerada pela revelação de um esquema
lectuais nessa situação de crise: os inte- para isso. amplo e elaborado de práticas ilegais,
lectuais de esquerda sumiram do cenário podem fazer é provocar reações que le-
do PT com corrupção. É o fim de um ci- ■ Lula vem falando muito em Vargas, vem ao amadurecimento cívico da so-
clo de esquerdas no Brasil? O desmonte em elites etc. Essa retomada de um es- ciedade e ao aperfeiçoamento institu-
do PT: como ficará o cenário com o par- pírito nacionalista, desenvolvimentista, cional de mecanismos de controle e de
tido enfraquecido? clientelista, é bom ou necessário? Que redução da impunidade. Assim como
— A esquerda irá se reconstituir de al- outro modelo seria melhor ao Brasil? nunca acreditei na eleição de Lula co-
gum modo. O PT também, de algum — Há várias coisas envolvidas aí. Co- mo possibilidade de recriação do país,
modo, se refará. Ele se partiu em dois meçaria substituindo clientelista por também não vejo a crise atual como ca-
grupos, o dos que quiseram fazer do populista, para dar mais coerência à lis- tástrofe, como o fim do mundo. O mun-
partido um instrumento de governo e ta de adjetivos. Lula quer recuperar o do continuará, o Brasil continuará, tal-
caíram na armadilha, não dos adver- Vargas do segundo governo, o Vargas vez mais sábio e mais maduro. •
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