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Um antídoto
contra a bestialização
republicana
C ARLOS H AAG
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‘ A reforma política
não é panacéia ‘
e não pode ser feita
à custa da participação
democrática
de entre os meios acadêmicos, envolvi- nha geração sofreu em 1964 com o — O Brasil, de 1881 a 1945, deu para
dos em discussões sobre as classes po- golpe e o estabelecimento do governo trás em matéria de incorporação po-
pulares. Para os colegas, tinha virado militar se devia, em parte pelo menos, lítica da população via processo elei-
“elitista”. ao descuido dos intelectuais no estudo toral. A Primeira República foi, lite-
Mas o engano era só de desafetos de um ator político muito relevante ralmente, um regime sem povo, pois
desinformados. Num tempo em que desde 1889. Agora tivemos outra gran- votava menos de 5% da população. Pa-
não se pensava nas elites, José Murilo de surpresa desagradável, também para ralelamente, a educação fundamental
teve coragem de estudar aqueles que dizer o mínimo, relativa às denúncias continuou a ser negligenciada. Incor-
mais influenciavam a vida das massas de corrupção no governo do PT. Mas poração significativa só começou em
empobrecidas. Depois da tese, mudou hoje não se pode atribuir a causa da 1945. A partir daí, seu ritmo foi inten-
seu foco de atuação. “Em Os bestializa- surpresa à ausência de estudos sobre so. Em 1930 votou 5,6% da população,
dos (1987), à preocupação com a cons- esse ator, pois há muitos deles. A per- a metade de 1881. Em 1945 já votou
trução do Estado agregou-se o proble- gunta perturbadora para cientistas so- 13% e, em 1960, 18%. O ritmo de cres-
ma da construção da nação. Quando se ciais é se sua pesquisa é inútil, se não cimento, peculiaridade brasileira, não se
percebeu, com a mudança de regime, serve para fazer previsões. Em outros abateu durante o regime militar, quan-
que não houve muitas alterações nas termos, se sua pesquisa não é ciência. do cerca de 60 milhões de cidadãos co-
práticas políticas e eleitorais, muitos Uma coisa é certa, nos domínios do meçaram a votar, número maior do
autores começaram a trabalhar com humano, onde reina a liberdade, a pre- que a população total do país em 1950.
uma idéia mais ampla de construção da visão é, de fato, sempre precária. Com- Ao mesmo tempo, a educação funda-
nação”, explica. Em Os bestializados, o te considerava as leis sociais equiva- mental cresceu, mas em ritmo muito
historiador dissecou a atitude da popu- lentes às da astronomia no poder de mais lento. Só no final do século 20 é
lação diante do poder, enfocando a per- previsão. Um positivista, claro. As pre- que ela se generalizou, mesmo assim
plexidade geral com o advento, da noi- visões no campo das ciências sociais padecendo de má qualidade. Tivemos
te para o dia, da República. A partir de são no máximo probabilísticas, sempre assim três fatores negativos: entrada
A formação das almas, a inflexão se res- sujeitas a surpresas, agradáveis ou não. tardia do povo no processo eleitoral;
salta: “Nele, falo sobre a tentativa do No caso atual, operaram outros fatores entrada em boa parte sob regime de di-
novo governo de recriar o imaginário perturbadores da análise. Os alertas em tadura, quando o sentido do voto era
nacional e da reação popular à tentati- relação ao que se passava dentro do PT deturpado pelo estupro de outras insti-
va”. Inquieto, agora não é mais a idéia não faltaram. Críticos pertencentes a tuições democráticas; lento avanço da
de nação ou Estado que mobiliza seus correntes discordantes do Campo Ma- educação fundamental. Até hoje 60%
neurônios, mas a construção do cida- joritário já tinham alertado para os dos eleitores não completaram o pri-
dão, da cidadania. “Meus trabalhos co- descaminhos em curso, tanto os refe- meiro grau.
meçaram com a questão da construção rentes à política econômica como à po-
do Estado e passou para a construção lítica de alianças. Mas os alertas eram ■A incorporação das massas, com maio-
do Estado-nação”, diz. Como os quiróp- atribuídos à disputa ideológica e blo- res demandas, algumas quase impossí-
teros, José Murilo está atento a qual- queados, também ideologicamente, pe- veis de ser atendidas, é vista por alguns
quer novo movimento. Daí os comen- lo campo hegemônico. Observadores como fonte de problemas para a chama-
tários preciosos sobre o momento atual, externos deixaram-se levar. Quanto aos da governabilidade nacional. Daí o dese-
suas raízes e conseqüências, expostos riscos atuais para a manutenção do go- jo de uma reforma política, que deixe par-
na entrevista a seguir. verno civil, mencionei alguns em meu tidos mais fortes etc. mas que, no fundo,
livro, mas não me ocorreu o que desa- deixa o eleitor mais distante do processo
■ Na apresentação e na conclusão de seu bou sobre nossas cabeças, mesmo ten- decisório. Como o senhor vê essa situação
último livro, Forças Armadas e política do escrito a conclusão há meses. Há, e qual a sua compreensão de uma refor-
no Brasil, percebe-se que o senhor vê na sem dúvida, inquietação entre os co- ma política: precisamos de uma e de que
desigualdade social nacional a grande mandantes das Forças Armadas com tipo, em especial diante do contexto atual,
ameaça para a democracia. No último relação ao que se passa. Mas não creio em que ela é vista como panacéia para
parágrafo, aliás, o senhor observa que que a inquietação evolua para qualquer qualquer crise?
“corremos o risco de ser surpreendidos co- inclinação à intervenção, a não ser que — O sistema político entrou em colap-
mo em 1964”. A situação atual de pro- a crise assuma dimensões catastróficas, so em 1964 porque não foi capaz de ab-
funda crise o surpreendeu? Como avalia o que é pouco provável. sorver o rápido crescimento da partici-
os desdobramentos dessa nova surpresa, pação, eleitoral e não-eleitoral. Culpa
seja em termos do que esperar no futuro, ■ O senhor já afirmou que houve uma da participação ou do sistema que só a
seja na incapacidade de prever que isso estranha evolução no Brasil e, até 1881, admitiu tão tarde? No debate de 1881, a
poderia ocorrer? Como entender que, o país estava à frente mesmo da Inglater- reforma apresentada pelos liberais pre-
apesar de tão estudado, o PT ainda pôde ra em termos de direito de voto. Ao lon- tendia combater a manipulação do
surpreender a sociedade? go do tempo, as massas foram incorpora- eleitor pelo governo. A solução adotada
— Touché! Comecei a estudar os mili- das ao processo. Por que, então, temos foi reduzir drasticamente o número dos
tares porque achei que a surpresa desa- essa cidadania tão incipiente, sempre que podiam votar. Os críticos diziam
gradável, para dizer o mínimo, que mi- ameaçada ou não totalmente exercida? que se cometia um erro de sintaxe polí-
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isto é, um regime representativo sem
povo. A conseqüência do erro foi dura-
O povão ainda
doura e desastrosa. A engenharia políti-
ca deve cuidar sem dúvida da governa- sobrevive no mundo
bilidade, mas não o pode fazer à custa da necessidades,
da democracia política. Esta só se con-
solida na prática. Nenhum eleitorado
amadurece na exclusão. Não posso dis-
cutir aqui as reformas que seriam, a
meu ver, necessárias e adequadas. É te-
‘
e democracia
política, para
ele, ainda é
um luxo
ma muito controvertido. Proponho
apenas dois parâmetros: a reforma po-
lítica não é panacéia; a reforma política
não pode ser feita à custa da participa-
ção democrática.
presenta um obstáculo à democracia. irão, aos poucos reduzir o nível escan- duz os recursos do Estado; ao ter os re-
Um dos bons resultados que podem so- daloso da corrupção, embora não aca- cursos reduzidos, o Estado aumenta os
brevir da crise atual será exatamente de- bem com ela. impostos; ao ver os impostos aumen-
sacreditar os salvadores da pátria e re- tados, o contribuinte sonega mais.
forçar a convicção de que só a ação do ■ Quais as origens históricas dessa pro-
cidadão constrói a cidadania. Edenis- miscuidade entre público e privado no ■ Qual a percepção que o brasileiro tem
mo é outra coisa. Ele não atribui à na- governo brasileiro e quais as conseqüên- das leis? Aqui tudo parece querer ser re-
tureza o papel de salvador. Mas é tam- cias disso? Como mudar? O governo “rou- solvido com uma nova lei, como se bas-
bém uma forma de escapismo porque ba” e a população também não obedece às tasse legislar no papel para o problema
coloca fora do âmbito da construção leis. Ou, nas palavras do presidente Lula: acabar na realidade. Quais as origens
humana os motivos de orgulho nacio- “O brasileiro quer cadeia para os outros, desse bacharelismo e quais os problemas
nal. Ele tem a mesma origem do mes- não para ele. Quer que todos sejam hones- que ele traz? Pode-se mudar essa cultura
sianismo: a ausência do sentido do in- tos, não ele”, e assim por diante. De que ancestral?
divíduo como agente da sociedade e do forma esse mal institucional também se — Já no século 19 foi feito o diagnósti-
cidadão como construtor da política. repete na esfera individual, no cotidiano co da distância entre o Brasil legal e o
nacional, e de que forma uma corrupção Brasil real. Guerreiro Ramos achava
■ A corrupção parece ser vista no Brasil se liga à outra? que no Brasil a função da lei é pedagó-
como parte de nossa cultura e não erra- — As origens e possíveis remédios fo- gica, e não coercitiva. Ela é inaplicável,
dicável. O próprio presidente afirmou na ram discutidos acima. O problema da mas aponta para um ideal de civiliza-
celebrada entrevista parisiense que “isso relação entre o comportamento indi- ção. Oliveira Viana achava o contrário.
de caixa dois sempre houve”, com total vidual e o público é complexo. Em pri- A distância entre a lei e a realidade era,
normalidade? Quais as origens dessa cor- meiro lugar, é preciso distinguir a moral segundo ele, a própria corrupção do
rupção endêmica e quando e por que ela privada da ética pública. O comporta- sistema. Análises mais recentes, como
se transforma, como o senhor preconizou mento privado não precisa necessaria- as de Roberto da Matta, mostram o jei-
em uma entrevista, em corrupção epidê- mente, certamente não em nosso mundo to como estratégia brasileira de aceitar
mica? Como mudar esse quadro desola- liberal, condicionar o comportamento a lei sem cumpri-la. Seja como for, nos-
dor que traz tanto cinismo político à na arena pública. Um cafajeste na vida so bacharelismo vem de longa data.
população? privada pode ser um bom estadista. Há Nosso sistema jurídico é tributário da
— A corrupção está enraizada e não é exemplos abundantes. Pode acontecer tradição romano-germânica do direito
erradicável. Mas é redutível a níveis também que o que é positivo na moral codificado, e não da tradição do direito
compatíveis com a prática de países de- privada se torne negativo quando costumeiro anglo-saxônico. Nossa elite
mocráticos. Ela atinge altos níveis no transferido para o mundo público. Por política, desde a independência, é com-
Brasil (e em outros países) em boa par- exemplo, ajudar parentes e amigos é posta predominantemente de bacharéis.
te devido a nossas origens patrimoniais. norma básica de nossa moral privada. São os bacharéis que fazem as leis como
O patrimonialismo significa pelo me- Quando aplicada essa norma ao mun- parlamentares e as aplicam como dele-
nos três coisas: a predominância do Es- do público, transforma-se em cliente- gados, advogados, juízes. A conseqüên-
tado e de sua burocracia; a tendência lismo e nepotismo. Pesquisa que fize- cia disso é a convicção de que tudo se
das pessoas de buscar o Estado como mos no Rio de Janeiro há algum tempo pode resolver a golpes de leis, sem preo-
fonte de emprego (nepotismo, cliente- revelou que muitos entrevistados cupação com as condições de sua apli-
lismo) e de favorecimentos (contratos, achavam que deputados tinham que cação. Dois exemplos recentes foram o
benesses, mensalões), o que uma vez ajudar parentes e amigos. Outra coisa código de trânsito e a lei de doação de
chamei de estadania; e a indistinção en- é o comportamento individual diante órgãos. No primeiro caso, fez-se uma lei
tre o público e o privado, isto é, a au- da lei. Aqui funciona entre nós o mes- para cidadãos e estradas da Suécia. O
sência da noção da coisa pública, subs- mo mecanismo do patrimonialismo, fracasso era previsível. No segundo, a
tituída pela da coisa estatal. A endemia da indistinção entre o estatal, o públi- lei previa o transplante de órgãos sem
pode transformar-se em epidemia por co e o privado. Se não existe o público, consulta à família. Desrespeitou-se uma
circunstâncias fortuitas, como a ação se o estatal é da sogra, não há obriga- das poucas instituições ainda respeita-
de pessoas e grupos mais afoitos. Mas ções cívicas. Paga-se imposto a contra- das no país. A reação foi imediata e pelo
não estamos condenados à corrupção. gosto, quando não se pode sonegar, e menos houve bom senso suficiente pa-
A história não condena nenhum país a aproveita-se o quanto possível do Esta- ra se fazer a correção. Outro exemplo
penas perpétuas. Ela é dinamismo. As- do. Outra pesquisa no Rio de Janeiro, clássico foi a lei da vacinação obrigató-
sim é que a intolerância à corrupção feita em 1997, mostrou que 41% dos ria que provocou uma das maiores re-
tem crescido muito à medida que o ca- entrevistados achavam que em alguns voltas urbanas do país. Aqui também se
ráter injusto da distribuição ilegal de casos era justificável sonegar imposto. gera um círculo vicioso: o Estado faz leis
benefícios públicos se torna óbvia para O que é mais grave é que a porcenta- rigorosas; o cidadão desrespeita as leis;
os muitos que são dela excluídos. Rea- gem crescia com o aumento da escola- o Estado faz leis mais rigorosas para evi-
ções como a que se dá hoje, mudanças ridade. Gera-se aí um círculo vicioso: o tar o desrespeito; o cidadão desrespeita
nas leis e em sua aplicação, alterações contribuinte sonega porque não vê o mais as leis mais rigorosas (ou aperfei-
nas instituições, podem, e creio que Estado como público; ao sonegar, re- çoa o jeito de burlá-las).
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■ Desde 1985 houve um incremento nas ção, seja econômica (Inglaterra), seja
liberdades individuais e na participação política (França), seja social (Rússia).
política da sociedade. Esperava-se que Revoluções não são feitas por elites.
isso fosse ajudar a acabar com as desi- Nós não tivemos revolução alguma e
gualdades sociais, o que não ocorreu. O não creio que a culpa seja apenas das
que houve e as razões históricas para is- elites que, obviamente, em todos os
so? Qual é o nível atual de nossa demo- países defendem seus interesses. Trata-
cracia? Ela é resolução de problemas? O se de um processo histórico em que o
senhor já sugeriu em um de seus livros Estado nacional que aqui se construiu
que é preciso encontrar um outro cami- – liberal, note-se – não cumpriu a tare-
nho para a cidadania no Brasil. Qual se- fa executada por outros Estados nacio-
ria esse novo caminho e as razões dessa nais de reduzir a desigualdade a níveis
peculiaridade nacional? toleráveis. Não me parece realista espe-
— A cidadania política não produziu rar que, no mundo de hoje, ainda pos-
até agora cidadania social, a liberdade samos fazer a mudança por métodos
não produziu igualdade. Isso significa revolucionários. Tampouco é realista es-
que o sistema representativo não tem perar que as elites o façam espontanea-
‘
funcionado adequadamente. Algumas mente. Ela só pode ser realizada por
razões do mau funcionamento já foram A cidadania política pressão de baixo sobre o Estado no sen-
apontadas: entrada recente do povo na não produziu até tido de forçá-lo a alterar políticas pú-
política, curto período de prática re-
presentativa, interrupções autoritárias,
baixa escolaridade, altos níveis de po-
breza. A tentação é dizer que o modelo
faliu e que se devem buscar alternati-
agora cidadania
Não há direitos políticos e civis envolvi- profissionais de baixa qualidade. Nesse conspiração das elites. Em nossa histó-
dos nesse pacto, apenas direitos sociais, último caso, apenas se adiará a discri- ria, quando o pobre se revoltou, ele o
que são passivos. Essa visão é também minação para o momento de entrada fez fora do sistema político, sem gerar
corroborada por pesquisas de opinião no mercado de trabalho. As cotas são mudanças institucionais. Voltamos ao
pública que indicam o predomínio to- modalidade inadequada de ação afir- problema da representatividade do sis-
tal dos direitos sociais na percepção mativa. Elas são rígidas, artificiais, ame- tema. Perspectivas? O único movimen-
que os brasileiros possuem de direitos. açam a qualidade do ensino, e são equi- to popular eficaz que temos hoje é o
O lado paternalista da ação do Estado é vocadas quando adotam classificações MST. Mas o MST mobiliza uma parce-
bem conhecido pelo público. A grande raciais que equiparam o Brasil à África la da população cujo peso demográfico
busca da Justiça do trabalho, dos postos do Sul. decresce sistematicamente. A população
do INSS e de saúde é uma prova disso. pobre das cidades, em constante cresci-
Ficam de fora do pacto os direitos de ■ Como o senhor vê a atuação da mídia, mento, continua politicamente desmo-
briga, os civis e políticos que definem o em especial a política e a econômica. bilizada. Pior ainda. Em cidades como o
cidadão ativo. A grande pergunta que Após o affair Collor, a imprensa passou a Rio de Janeiro, sua mobilização se vê
me faço é se o ingresso no sistema pela ser vista como fonte de revelações e uma bloqueada pela ação dos traficantes de
porta do direito social fortalece ou en- espécie de mecanismo de controle da Re- drogas. Nem mesmo as associações de
fraquece ainda mais os direitos civis e pública. Por um lado, isso é bom, porque moradores podem funcionar sem o be-
políticos. é uma das funções sociais da mídia. Por neplácito dos traficantes. Por outro la-
outro, há o problema do “believe in do, se é verdade que a desigualdade,
■ O senhor defendeu em artigo recente, everything you read in papers”: o que medida pela renda, não se tem reduzido
escrito para o jornal O Globo, a univer- está escrito é verdadeiro. Há, no momen- de maneira significativa, há outras mu-
sidade pública das acusações de elitismo. to, uma onda de denuncismo, parte real, danças em curso. Os indicadores so-
Como é isso? O que acha da situação mas parte sem fundamentos, para ven- ciais como escolaridade, esperança de
atual da universidade? Qual sua opinião der jornal ou atacar o governo. Como vê vida, mortalidade infantil, coleta de li-
sobre a polêmica reforma universitária isso? A mídia não é diferente de uma em- xo, abastecimento de água e outros têm
proposta? Concorda com o sistema de co- presa qualquer, no geral, e “vende” um melhorado muito nos últimos dez anos.
tas para minorias? produto chamado notícia. Qual o perigo Está havendo, por assim dizer, uma dis-
— Chamei a atenção para simplifica- disso num país em que se tem pouca re- tribuição indireta de renda. É aí que
ções na condenação da universidade flexão crítica sobre o que se é divulgado? está, creio, parte da explicação da tole-
pública como elitista. Creio ter ficado — Admitindo todos os problemas cita- rância dos pobres: a renda não aumenta,
demonstrado com estatísticas que o eli- dos, que são reais, creio que o balanço mas a vida melhora. Isso é positivo, in-
tismo se prende, sobretudo, a certos da atuação da mídia tem sido positivo. dica adequada ação social do Estado.
cursos e à ausência de horário noturno. A análise de seu impacto, no entanto, Mas veja nosso dilema: a ação social re-
Na maioria dos cursos, sobretudo no deve distinguir os tipos de mídia. Devi- força a visão paternalista do Estado,
turno da noite, a população universitá- do ao grande número de semi-analfa- além de alimentar o clientelismo.
ria corresponde razoavelmente ao todo betos, a televisão possui um peso ex-
da população. O que me preocupa no traordinário sobre as classes D e E, para ■ Numa entrevista à Folha, logo após a
debate são posições demagógicas que usar a classificação das pesquisas de eleição de Lula, o senhor afirmou: “As di-
querem abrir indiscriminadamente a marketing. Por outro lado, há um enor- ficuldades são proporcionais às esperanças
universidade passando por cima de me avanço na comunicação via inter- que sua candidatura despertou. Terá que
qualquer preocupação com qualidade. net nas classes A e B. A internet é um evitar o perigo do abraço mortal do apoio
A universidade pública – falo, sobretu- domínio livre do controle dos donos da conservador que, ao lhe dar base de go-
do, das federais – está cheia de mazelas, mídia. O estudo de sua influência na verno, pode lhe descaracterizar o progra-
e, entre outras coisas, tem a obrigação presente crise está por ser feito. ma. Terá que lidar com a cobrança de se-
de fazer um grande esforço para incor- tores mais militantes que o apóiam, que
porar alunos pobres. Trata-se de ação ■ O país, em especial as elites, rejeita a exigirão mudanças rápidas. Terá que ha-
afirmativa legítima e necessária. Mas a reforma agrária e demoniza o MST. Co- ver-se com armadilha criada pela grande
incorporação não pode ser demagógi- mo entender um país em que os pobres expectativa de mudança que gerou na po-
ca, nem comprometer a qualidade do toleram a desigualdade? Qual a origem pulação, desproporcional em relação às
ensino. Para incorporar corretamente histórica disso e o que se pode esperar no possibilidades de atendimento. Esses se-
alunos pobres, a universidade deve in- futuro: uma onda de violência ou apenas rão os fantasmas a perseguir o governo”.
vestir pesadamente na preparação dos mais tolerância com a miséria crescente? O senhor foi preciso no diagnóstico. Como
candidatos para que não entrem à — Por que a tolerância dos pobres à avalia essa percepção diante do desenvol-
custa de rebaixamento dos critérios desigualdade? Por que os pobres brasi- vimento real do governo Lula? Havia ou-
de qualificação. Além disso, terá que leiros não se revoltam? O verdadeiro tro caminho a ser seguido? O que ele ain-
acompanhá-los e lhes dar assistência milagre brasileiro não seria a honesti- da pode fazer para mudar a situação?
durante todo o curso, inclusive auxílio dade dos pobres? São questões pertur- Lula é, palavras suas, ainda o “estranho
financeiro. Do contrário, teremos de- badoras, que não podem ser respon- no ninho da elite” e vítima dessa situa-
sistências, frustrações, ou formação de didas apenas pelo recurso a teorias de ção, como ele mesmo quer fazer crer?
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que a avaliação fosse evidente para
quem, embora simpático aos resultados
eleitorais, não se tivesse deixado levar O papel dos
por romantismos. Creio que a previsão intelectuais nessa
se realizou. Acuado pela necessidade de conjuntura é não
não causar pânico na economia e nos se acovardar e
mercados internacionais, o governo
enfrentar
manteve religiosamente a política eco-
nômica anterior, alienando boa parte
de seu partido e de seus eleitores. Não
tenho competência para dizer se havia
alternativa viável. Mas creio que o cál-
que eles
possam ser
‘
os fatos, por mais
desconcertantes