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Charles conseguirá manter o reino unido sob a

monarquia?
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Em pouco mais de uma semana de novo reinado, os súditos britânicos já são


mestres em cantar “God Save the King” pela primeira vez em 70 anos.

Advogados graduados com o título Queen’s Counsel (QC) migraram


instantaneamente de “QC” para “KC”. Voltou a ser de bom tom usar o “inglês do rei”, e
“não perturbar o sossego do rei”, principalmente ao “trafegar na estrada do rei”. E o
Teatro de Sua Majestade, a Rainha, no West End de Londres, seguirá sua própria
tradição de realizar trocas de gênero, como fez em 1837, 1901 e 1952. Essas são algumas
das agradáveis pequenas modificações que decorrem de se ter uma monarquia
constitucional.

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Temos de saborear tudo isso porque é pouco provável que haja alguma mudança de rumo
na vida de qualquer adulto atual.

As bruxas de “Macbeth” invocam aparições para atormentar o vilão com uma linha de
sucessão de oito reis, todos eles evidentemente descendentes do assassinado Banquo. A
linha de sucessão de Charles III já tem dois supostos reis — seu filho William e seu
neto George. Não há nenhuma rainha à vista.

Isso aconteceu apesar de a lei ter mudado, nove anos atrás, para se adequar ao
pensamento contemporâneo e para tornar a linha de sucessão indiferente ao gênero. Se a
irmã de George, Charlotte, tivesse chegado primeiro, teria precedência. Isso não valeu
para a rainha Elizabeth II. Se seu pai, George VI, tivesse tido um filho legítimo, ela
teria sido imediatamente excluída.

Apesar de a ideia de monarquia masculina ser atualmente uma novidade, é também, em


certo sentido, obsoleta. Os reis, antigamente, conquistavam poder, respeito e gratidão por
meio de suas habilidades na arte da guerra. No século 18, quando George II insistiu em
levar seus soldados à guerra contra os franceses em Dettingen em 1743, fizeram-se
apostas nas casas de café de Londres sobre se aquele tolo pateta de meia-idade acabaria
morto ou não. Nenhum rei tentou fazer isso desde então, embora a tradição do serviço
militar tenha se mantido e os homens da realeza sejam os únicos homens ainda alistados,
efetivamente.

— Foto: Andrew Matthews/AP

Essa continua sendo uma maneira valiosa de infundir muitas virtudes em príncipes
mimados. Mas uma das grandes mudanças promovidas por Elizabeth II foi a
desmilitarização nacional. As forças armadas tinham um corpo de 872 mil pessoas em
1952; esse número é hoje de menos de 150 mil, e nem chega a se equiparar ao muito
ridicularizado eleitorado dos membros do Partido Conservador que nomeou Liz Truss
premiê.

“A monarquia não tem mais nada a ver com cruzar espadas”, diz o especialista
constitucional Lord Peter Hennessy. “É uma monarquia do bem-estar. É o tinir das
tesouras cortando a fita na inauguração de alguma nova unidade da National Health (o
sistema de saúde britânico). É renovar as forças de pessoas que têm de ter suas forças
renovadas. E toda a família é boa nisso.”

No entanto, essas são habilidades de prestar cuidado e proteção, tradicionalmente


associadas a mulheres, e há outras provas, muito próximas, de que podem ser valiosas em
um chefe de Estado. A Presidência da República da Irlanda foi dominada por políticos do
sexo masculino já idosos demais para trabalhar antes de Mary Robinson — cheia de vida,
carismática e progressista – ter sido eleita, em 1990, para ser seguida por Mary McAleese,
que apresentava as mesmas características. Elas transformaram o cargo e fizeram
milagres pela imagem internacional da Irlanda.

É verdade que uma das qualidades menos conhecidas da falecida rainha era a da
coragem, tradicionalmente associada aos homens. Por várias ocasiões ela desprezou as
preocupações dos cortesãos e ministros e foi aos países que eles consideravam
potencialmente pouco seguros.

Assim como diziam que sua homônima Elizabeth I teria declarado aos soldados que
içavam velas, sob o comando do almirante Francis Drake, para combater a Armada da
Espanha em 1589, em guerra da qual a Espanha saiu vencedora: “Sei que tenho o corpo
de uma mulher fraca, débil; mas tenho o coração e a disposição de um rei e de um rei da
Inglaterra também”.

Em sua primeira semana, Charles demonstrou mais sinais públicos de impaciência,


normalmente envolvendo canetas, do que os revelados por sua mãe em uma década média.

É preciso dar um desconto. Ele tem 73 anos, enfrenta repentinamente o maior desafio de
sua vida imediatamente após a morte de sua mãe, teve de suportar uma semana
incrivelmente exaustiva sob o olhar crítico da população e da mídia.

E teve de lidar com os parentes atingidos por vários graus de descrédito ou de


distanciamento em termos de relações sociais, chegando até a ter de decidir sobre que
uniformes os príncipes Andrew e Harry podem vestir, e em que ocasiões. (Na maioria dos
funerais de 2020 até agora ninguém se importou sequer se os homens estavam ou não
usando uma gravata).

Tem-se como certo que lhe será concedido ficar um pouco mais na cama na manhã de
terça-feira, quando o cerimonial imediato tiver acabado. Posteriormente ocorrerá sua
coroação, presumivelmente no próximo verão (de junho a setembro no hemisfério Norte).
Mas tudo isso é a parte fácil. Além das crises diárias que atulham a mesa de sua
igualmente neófita premiê, o Reino Unido enfrenta uma ameaça existencial não vivida
desde 1940, e essa é, decididamente, assunto do rei.

Em primeiro lugar, há inquietação há muito tempo na Escócia, um movimento que, se


acabar se traduzindo em independência, deverá ser conduzido com cortesia inabalável,
mesmo que não com muita boa vontade. Mas o dragão adormecido da Irlanda do Norte
também está se mexendo.

Isso não diz respeito apenas ao Protocol, o documento assinado por Boris Johnson (mas
talvez nunca lido) na tentativa de permitir que o Brexit acontecesse sem restabelecer uma
fronteira plenamente constituída na Irlanda.

Dados iminentes do censo revelarão se a população católica da Irlanda do Norte


finalmente superou a dos protestantes, o que criaria a possibilidade de um plebiscito
sobre a possibilidade de a província se integrar a uma Irlanda unida. Há muitas
consequências possíveis disso, entre as quais uma volta à violência.

Uma Escócia independente provavelmente mantenha a monarquia — a população que fez


fila nos acostamentos das estradas nesta semana é a do tipo das que votam sempre. Mas
uma Irlanda unida enfaticamente não votaria sempre. E, de qualquer forma, a Escócia se
tornaria um domínio distinto. O título principal de Charles seria “Rei da Inglaterra e de
Gales.” a depender da possibilidade de os galeses caírem fora também, e tudo isso seria
um legado bastante lastimável para ele deixar para William.

À distância, as outras 14 nações independentes que mantêm o monarca britânico como


chefe de Estado flertam com a mudança. Barbados, um criador de tendências improvável
nesses assuntos, desertou para o republicanismo no ano passado. Charles, então príncipe,
corajosamente compareceu a essa cerimônia e desejou-lhes felicidades. Espera-se que a
Jamaica e Antígua venham a seguir, um produto da atenção agora dedicada ao histórico
do Reino Unido em relação à escravidão.

O que costumava ser chamado de “domínios brancos” — Canadá, Austrália e Nova


Zelândia — estão mais cautelosos. Todos os três têm governos de centro-esquerda e uma
população cada vez mais heterogênea sem vínculos com o Reino Unido. Mas, mesmo na
Austrália, onde o republicanismo é forte e até certo ponto bipartidário, os líderes ficam
felizes em manter as coisas como estão.

Nem Austrália nem Nova Zelândia conseguem encontrar um consenso sobre uma
maneira de remover a Union Jack de suas bandeiras. O Canadá adotou com sucesso a
folha da árvore bordo há quase 60 anos, mas lá a chama republicana queima quase tão
fracamente quanto no Reino Unido. Um jornalista canadense me contou sobre uma
reunião republicana, da qual ele participou em Toronto alguns anos atrás, que atraiu uma
multidão de quatro pessoas.
Isso não é devido a um enorme entusiasmo pela monarquia. Mas, por um lado, a
Constituição canadense é muito difícil de alterar e qualquer discussão sobre o assunto
criaria todo tipo de problemas. Moradores de Quebec e povos indígenas originários cada
vez mais assertivos gostariam de impor suas próprias prioridades.

E manter o rei tem um apelo especial ao frágil ego nacional dos canadenses,
perpetuamente atenuado por seu vizinho mais poderoso e mais autoritário. Como
Stephen Bates, autor de Royalty Inc, coloca: “A monarquia é uma coisa que os americanos
não têm”.

Mas mesmo no Reino Unido os antimonarquistas agora têm o momento pelo qual
esperaram quase tanto quanto Charles. Graham Smith, chefe do grupo Republic, diz:
“Fizemos uma pausa por alguns dias, mas coletamos milhares de libras esterlinas em
novos fundos e muito engajamento nas mídias sociais.

"É em parte por causa da bagagem pesada que Charles traz, mas principalmente porque
ele não é a rainha, o escudo que desviou todas as críticas”, diz Smith. “As pessoas ficavam
indignadas se você dissesse algo ruim sobre ela.”

O Republic encomendou uma pesquisa do YouGov em maio, mostrando que a aprovação


de mais de 70% da monarquia havia caído para 60%. Isso foi antes da excitação do jubileu
de platina e, claro, dos eventos deste setembro tenebroso. Os primeiros sinais mostram
que isso poderia funcionar em favor da monarquia. O YouGov informou que esta semana
44% de seus entrevistados admitiram ter chorado em reação à à morte da rainha. Isso
significa uma pequena maioria a olho nu, mas é um número surpreendente, no entanto,
em uma nação que já foi notória por sua pouca sensibilidade.

Em seus primeiros momentos de dor, o novo rei causou uma excelente impressão,
tocando todos os botões certos. Fazia um forte contraste com a nova premiê, que soava
como uma estudante do sexto ano discursando em uma assembleia escolar depois de uma
rápida leitura de “Elogios para Leigos”. Para ser justo, Charles teve muito mais tempo
para se preparar.

Ele tem uma capacidade de longa data para estragar tudo. Diante de uma escolha quase
infinita de parceiros conjugais, fez a escolha mais desastrosa que se possa imaginar em
Diana, sem nem sequer ter a desculpa de que a amava. As consequências de seu
rompimento sensacional na década de 90 deixaram uma mancha que desbotou após sua
morte, mas nunca desapareceu.

Charles sempre se mostrou formal, desajeitado, até anacrônico, como se fosse mais velho
que a própria mãe: seus entusiasmos não são os de seu povo, e suas opiniões passadas
muito livremente expressas ainda podem impedir sua capacidade de cumprir seu dever
constitucional de “aconselhar”, encorajar e advertir” seus ministros tão efetivamente
quanto sua mãe o fez, com sua estudada neutralidade pública e seu domínio da
sobrancelha erguida.
Há muito tempo existem histórias sobre seu senso de direito. E mesmo nesta semana, o
escritório que administrava seus negócios como príncipe conseguiu se desonrar ao enviar
comunicados de demissão à equipe em meio aos serviços fúnebres de Edimburgo na
segunda-feira.

Contrariamente a isso, ele é inteligente, diligente, altruísta, idealista, preocupado. E tudo


indica que seu segundo casamento é um triunfo. Camilla, humana e bem-humorada, foi
recebida na família com aquele elogio britânico para todos os fins: “um bom ovo”,
percebido como um excelente antídoto para a congestão do marido.

Charles III ainda tem de lidar com os membros rebeldes da família — Andrew, com a
mancha de suspeitas sexuais, e Harry e Meghan, que às vezes deram a impressão de se
terem se tornado republicanos. Mas é preciso lembrar que parte do sucesso da família
real britânica é como a novela mais longa do mundo. Com a ressalva de que o
entretenimento nunca deve se desviar da falsa santidade que cerca o trono, parte do
trabalho da realeza é não ser chato.

A monarquia constitucional, pondera Lord Hennessy, é como o críquete. “Pode parecer


maluca, mas o importante é que fuciona.”

Não é coincidência que Suécia, Dinamarca, Noruega e Holanda — quatro países há muito
admirados por sua governança estável — operem com princípios semelhantes aos do
Reino Unido. Depois que os nazistas ocuparam Copenhague, o rei Christian X andava a
cavalo regularmente pela cidade, sozinho, como um sinal para que seu povo não se
desesperasse. Na década de 70, foi o rei Juan Carlos I que levou a Espanha de volta à
democracia após a ditadura do general Franco.

O Reino Unido não é uma exceção na medida em que não possui nenhum documento que
possa ser descrito como uma Constituição. Depende, portanto, do que Hennessy chama
de “teoria do homem bom”, na qual o monarca e o primeiro-ministro entendem os limites
de sua autoridade e se comportam de acordo com eles.

Hennessy acredita que o país está sob estresse desde o Brexit. E está confiante de que
Charles, após o aprendizado mais longo da história, está tão imerso nas sutilezas de tudo
isso que não falhará. Na verdade, todos nós sabemos praticamente tudo sobre ele — um
pouco demais quando se trata de alguns aspectos de sua vida sexual. Isso não seria o
mesmo, caso se tratasse de um presidente eleito.

“Se você não pudesse considerar a decência do chefe de Estado como um dom inato, a
prerrogativa real teria de dar a ele uma limitação precisa”, diz Hennessy. “Mas sabemos
que isso não será necessário com Charles.”

Por mais terrível que possa ser a situação financeira e política do Reino Unido, seu
sistema constitucional fundamental está se regenerando diante de nossos olhos. Olhe
para os EUA, onde um ex-presidente megalomaníaco se transformou no centro de um
culto idólatra, o Legislativo foi em grande parte paralisado e a Suprema Corte se
transformou em um grupo dominado por políticos e estudiosos bíblicos, buscando
justificativas religiosas do século 18 para o resultado que eles preferem.

Um presidente eleito, mas essencialmente impotente? Quem no Reino Unido se


qualificaria para isso? Alguma figura muito amada na TV, inexperiente nas artes políticas,
sem credibilidade para atuar como árbitro de última instância? Ou um dos políticos de
ontem — Tony Blair ou John Major — que sempre seria desconfiado por pelo menos
metade da país?

A monarquia pode até nunca mais funcionar tão bem quanto sob Elizabeth II. Mas é a
melhor opção para continuar a proporcionar dignidade, estabilidade e um senso de
autoestima para o que resta do Reino Unido — assim como agitação, fofoca e
entretenimento. Então Deus Salve o Rei, e a linha de reis programada para parte do
século.

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