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O xadrez do bolsonarismo

Durante o governo Bolsonaro, a ruptura institucional foi lenta,


progressiva, sem golpe de força. Após a derrota eleitoral, ela veio como
uma última jogada desesperada. Um movimento fraco e até com
aspectos delirantes de uma “realidade paralela”; mas o potencial de
escalada desse fanatismo não pode ser subestimado.

Publicado em 17/01/2023 // 1 comentário

IMAGEM: WILTON JUNIOR/ESTADÃO CONTEÚDO

Por Marcos Barreira

Poucos ainda duvidam que o movimento de 8 de janeiro foi uma tentativa de


golpe. Tratou-se não de uma simples manifestação, como insistem setores
minoritários na imprensa, mas da última e desesperada jogada para desestabilizar o
novo governo, que dá seus primeiros passos. Os acontecimentos em Brasília
também expõem o caráter golpista do conjunto das manifestações pró-Bolsonaro ao
longo dos últimos quatro anos. Cada uma delas representava uma jogada, ora
ofensiva, ora de defesa, de uma estratégia que culminaria no golpe.

O governo Bolsonaro pode ser dividido em duas fases: a primeira vai da eleição
até o ato de 7 de setembro de 2021, com o governo na ofensiva populista contra o
“sistema” e a “política”; a segunda é a da conciliação provisória com o
establishment político, que resulta dos desgastes acumulados pela radicalização no
auge da pandemia. Isso corresponde a uma mudança de natureza do movimento
bolsonarista. No aspecto ideológico, ele começa como uma revolta populista
superficial e se transforma em um fenômeno quase sectário; quanto à composição
social, ele perde apoio relevante das camadas médias dos grandes centros e passa a
se concentrar em camadas populares de base evangélica.

Nessas duas fases do governo e do movimento liderados por Bolsonaro há um


elemento unificador: a escalada golpista. Já em 2019, em 25 de maio, ocorre o
primeiro ato do bolsonarismo “puro” contra o “sistema”, isto é, os dois poderes
rivais, Legislativo e Judiciário. No final do primeiro ano de governo, Bolsonaro
rompe com o seu próprio partido e lança a construção da Aliança pelo Brasil, que
jamais se concretizou. Em abril de 2020, Bolsonaro participa de uma manifestação
pró-intervenção militar em frente ao QG do Exército no DF. O discurso populista
de Bolsonaro aponta claramente para a ruptura: “Nós não queremos negociar nada;
o que queremos é uma ação pelo Brasil. O que tinha de velho ficou para trás. E
temos um novo Brasil pela frente. Acabou a época da patifaria. Agora é o povo no
poder”. A escalada continua dois meses depois, com o movimento extremista dos
“300 de Brasília”, que permanece acampado na Praça dos Três Poderes, em uma
mobilização contra o STF. Ao mesmo tempo, crescia a participação de militares da
ativa em diversas áreas do governo. Bolsonaro começou a pressionar os
comandantes militares para criar um alinhamento das Forças Armadas com a
escalada golpista. Isso provocou uma tensão que resultaria na inédita renúncia dos
comandantes das três Forças, na véspera do 31 de março (a data simbólica em que
a extrema-direita militar comemora o golpe de 1964). Dois meses depois, com a
popularidade em queda na “classe média” devido à gestão desastrosa durante a
pandemia, Bolsonaro participa de um ato com o general Pazuello, também da ativa,
que executava fielmente a sua orientação no Ministério da Saúde. Esse ato já era
uma reação à criação da CPI da covid-19, mas também consistia em uma tentativa
de criar uma crise militar. O ponto culminante da escalada ocorreu, finalmente, no
feriado nacional de 7 de setembro de 2021, com um ataque direto de Bolsonaro ao
STF e ao ministro Alexandre de Moraes, que autorizou os inquéritos sobre as
manifestações contra o Congresso e o Supremo.

As manifestações de 7 de setembro mostraram que Bolsonaro contava com uma


base sólida de apoiadores. Os grupos fanáticos “intervencionistas”, antes
minoritários, transformaram-se em pequenas multidões. Mesmo assim, foram
insuficientes para sustentar uma ruptura. Bolsonaro pretendia que os atos fossem
uma demonstração de força incontestável, mas isso não ocorreu. O movimento
falhou também em obter a adesão das Polícias Militares e da cúpula das Forças
Armadas. Em vez de inflamar o país, as manifestações colocaram na ordem do dia
o impeachment de Bolsonaro. A posição dos principais grupos de mídia mostrava
o ponto de inflexão: a pauta desde então parecia dominada pelo avanço das
investigações contra aliados do presidente. A primeira reação de Bolsonaro ao revés
do dia 7 foi um gesto apaziguador em sua “Declaração à Nação”, no dia 9 daquele
mês. Em novembro de 2021, Bolsonaro se filia a um novo partido, o PL, e concede
amplos poderes informais (sobretudo o controle de parte do orçamento) às
lideranças do Congresso, para continuar a governar. Essa guinada, que transforma
a “antipolítica” reacionária de Bolsonaro em uma capitulação ao sistema de partidos
tradicionais, fez com que ele se concentrasse no questionamento do processo
eleitoral. O movimento de oposição também foi esvaziado pela estratégia da
esquerda, liderada pelo PT, que apostou tudo na vitória eleitoral de Lula.
Rapidamente, perderam força as denúncias da escalada golpista e da
responsabilidade direta do governo pelo número elevado de mortes, além de crimes
comuns, conforme apontou a CPI da covid-19. Esse duplo movimento assegurou a
continuidade do governo e ajudou a normalizar o bolsonarismo.

O fim do último ano do governo foi marcado por mais um ato, novamente no 7
de setembro, mais vazio que o anterior. Parcialmente recuperado em sua
popularidade, após a normalização do governo e as novas alianças, Bolsonaro se
concentrou nas denúncias falsas que desacreditavam as urnas eletrônicas e na
formação de uma sólida base de apoio parlamentar. Ele também negociou com os
candidatos aos governos estaduais o aparelhamento das Polícias Militares.
Derrotado, não reconheceu a eleição de Lula e se isolou. O clã Bolsonaro, sempre
ativo nas redes sociais, ficou calado. Nas redes bolsonaristas havia rumores de que
“algo” estava sendo preparado. Esse foi o estímulo para o movimento golpista
iniciado em novembro, com acampamentos em frente aos quartéis, bloqueios de
estradas e tentativas de invasão de prédios públicos no DF. Investigações da Polícia
Federal apontam agora que, nos últimos dias do governo, o então presidente,
recluso, tramava com seu Ministro da Justiça uma intervenção no tribunal eleitoral
para impugnar o resultado da eleição presidencial. Mais uma vez, a situação
produziu atrito entre o presidente e Alto Comando do Exército. Terminado o ano, a
transição ocorreu com aparente normalidade, mas sem a desmobilização dos
golpistas que continuavam a pedir uma intervenção militar.

Esse final do governo desmente duas teses que tentavam compreender o


golpismo de Bolsonaro: que o ex-presidente era uma espécie de marionete de um
projeto militar e que a sublevação “antipolítica” podia ser levada a cabo “a partir de
baixo”, sem as elites econômica e militar. A primeira tese reproduz um padrão
típico de teoria da conspiração, para a qual todos os lances desse jogo já foram
antecipados por um aparato de inteligência oculto que tutela secretamente a
sociedade; a segunda tese parte de elementos mais concretos, mas exagera a
autonomia do bolsonarismo e não acentua a sua dependência em relação ao “fator
militar”.

Os acontecimentos do dia 8 de janeiro revelam uma estratégia de mobilização


contínua e de aparelhamento das polícias. Mostram também que Bolsonaro
cooptou, instrumentalizou e polarizou o setor militar, mas não o suficiente para a
ruptura que ele desejava. Bolsonaro nunca teve um programa de governo,
ocupando-se apenas do desmantelamento da esfera política, incluindo a
desregulação do uso das armas de fogo, que desafia abertamente o monopólio
estatal da violência.1 O golpe, a “guerra civil”, a defesa armada da liberdade eram
suas ideias fixas – e suas únicas ideias. Por isso, foi contido pelos setores militares
menos ideológicos, i.e., menos extremistas, que enxergavam o risco da
ideologização das tropas, da quebra de hierarquia e do agravamento da instabilidade
social.

Durante o governo Bolsonaro, a ruptura institucional foi lenta, progressiva, sem


golpe de força. Após a derrota eleitoral, ela veio como uma última jogada
desesperada. Um movimento fraco e até com aspectos delirantes de uma “realidade
paralela”; mas o potencial de escalada desse fanatismo não pode ser subestimado.
Ele foi pensado como uma centelha que desencadearia manifestações idênticas e
bloqueios em todo o país. A ideia era criar uma crise institucional e, a partir dela,
impor o recurso final à força militar na forma da “Garantia da Lei e da Ordem”. Um
movimento assim teria condições de emparedar Lula, impondo os militares como
um fator de poder imediato, limitando as ações contra os crimes do governo anterior
e, no limite, poderia até mesmo colocar em xeque o novo governo ainda em
formação. O excesso de violência e de fanatismo, no entanto, permitiram uma
resposta imediata e fizeram com que o ato fosse revertido em favor de Lula e das
demais instâncias de poder. Criou-se, assim, uma frente ampla contra o
bolsonarismo, com extensa base social e institucional, como já havia ocorrido em
2021. Os vínculos evidentes de Bolsonaro com o movimento do dia 8 de janeiro
também o colocam na mira da justiça – incluindo a eleitoral, que deve torná-lo
inelegível. Isso não apenas joga o populismo de extrema-direita na defensiva, mas
tende a fazer com que se acentue a fragmentação desse campo agora na oposição.
A margem de ação para o novo governo também é limitada: cadeias de comando
rompidas, posição minoritária no Congresso e dependência muito direta de medidas
de emergência que concentram poder no Judiciário. O enfraquecimento do
bolsonarismo e uma possível prisão de Bolsonaro, que já é debatida nas “esferas do
poder”, não significa um retorno ao rumo da democratização.

Publicado em Jungle World (Berlim), nº 2023/02 em 15 de janeiro de 2023.

1
Sobre isso ver, Marcos Barreira, “Brasil em tempos de declínio social: comentários
a pós-política no governo Bolsonaro“, Margem Esquerda, n. 35, Boitempo, 2020

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