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A hipermassificação e a destruição do indivíduo

Bernard Stiegler (*)

Será que o “tempo livre” é realmente livre? O facto é que este suposto tempo
livre, repleto de ofertas culturais, torna impossível que cada um se diferencie pelas
suas próprias escolhas, e destrói a sua energia vital. Conduzindo a uma perda
generalizada da individuação, ele engendra rebanhos de seres que vivem num
permanente e angustiante mal-estar, rebanhos que se assemelham cada vez mais a
hordas furiosas.

As últimas décadas foram dominadas por uma fábula que iludiu uma boa parte
do pensamento político e da própria filosofia, proclamando que, desde 1968,
havíamos alcançado finalmente a era do “tempo livre”, da permissividade e da
flexibilidade das estruturas sociais, a sociedade individualista e do lazer. Este conto
de fadas, teorizado sob a designação de sociedade post-industrial, influenciou e
fragilizou toda a filosofia pós moderna. Inspirou os sociais-democratas fazendo crer
que havíamos ultrapassado a época das massas laboriosas, típicas da era industrial
e chegado ao tempo das classes médias. De acordo com esta efabulação, o
proletariado estaria em vias de desaparição.

Acontece, porém, que o proletariado não só não desapareceu como continua a


ser numericamente significativo, crescendo inclusivamente com a ampla
proletarização dos empregados, submetidos a um dispositivo maquínico que os
priva de iniciativa e dos seus saberes profissionais. Quanto às classes médias foram,
entretanto submetidas a um processo de pauperização. Falar de crescimento do lazer
– no sentido de um tempo liberto de toda a coacção, o tempo da “disponibilidade
absoluta”, como diz o dicionário – é tudo menos evidente, porque o lazer não tem
por função libertar o tempo individual, mas, pelo contrário, controlá-lo e super-
massificá-lo, pondo-o ao serviço de uma nova servidão voluntária. Produzido e
organizado pelas indústrias culturais e de entretimento o lazer faz parte integrante
daquilo a que Giles Deleuze (1) chamou “sociedades de controlo”. Este tipo de
sociedades desenvolvem uma nova forma de capitalismo cultural e de serviços que
fabrica modos e estilos de vida, transformando a vida de todos os dias segundo os
seus interesses imediatos, padronizando as existências individuais pela via do
“marketing” e dos seus conceitos como o de “life time Value” que calcula o valor
económico do tempo de vida de um indivíduo cujo valor humano foi
dessingularizado e desindividualizado.

O “marketing”, como o entendeu Deleuze, transformou-se num instrumento de


“controlo social” (2). A sociedade pretensamente “pós-industrial” tornou-se, pelo
contrário, hiper-industrial (3). Longe de se caracterizar pelo domínio do
individualismo, a época actual aproxima-se muito mais de um devir gregário dos
comportamentos e de uma perda generalizada da individuação.

O conceito de perda de individuação introduzido por Gilbert Simondon (4),


exprimia o que acontecera ao operário com a sua submissão à máquina ferramenta
no século XIX; ao perder os seus saberes técnicos e com isso, a sua individualidade,
o operário foi reduzido à condição de proletário. Hoje, é o consumidor que é
proletarizado, através da padronização do seu comportamento e pela formatação e
fabricação artificial dos seus desejos. Além da perda dos saberes técnicos, perdeu
igualmente o seu “saber viver” que foi substituído pela normalização editada pelas
marcas.

“Racionalmente” promovidas pelo “marketing”, as marcas assemelham-se ao


contratos de adesão que regem o funcionamento dos “franchizing” do “fast food”
que os concessionário são obrigado a cumprir à letra, sob pena de ruptura do
contrato ou processo judicial. Esta privação da individuação, pode traduzir-se numa
perda da própria existência, o que é extremamente perigoso; Richard Dunn, o
assassino de oito membros do Conselho Municipal de Nanterre escreveu no seu
diário que precisou “fazer o mal. Para, ao menos uma vez na vida experimentar o
sentimento de existir” (5).

Em 1930, Freud escreveu que, mesmo dotado pelas tecnologias industriais dos
atributos do divino e por mais que se assemelhe a um Deus, “o homem de hoje não
se sente feliz” (6). Ao privar os seres humano da individualidade, a sociedade actual
engendra rebanhos de membros que vivem num angustiante e permanente mal-
estar: seres sem vir-a-ser, destituídos de porvir. Estes rebanhos desumanos terão
uma tendência cada vez mais acentuada para se tornarem hordas em fúria. Em A
Psicologia das massas e a análise do eu, escrita em 1920, Freud esboçava já a
análise destas multidões que sofrem a tentação de regredir ao estado de horda,
dominadas pela pulsão de morte, descrita em Além do princípio do prazer e que O
mal-estar na Civilização veio a retomar dez anos mais tarde, quando o anti-
semitismo, o totalitarismo e o nazismo alastravam pela Europa.

Ainda que já se tenha referido à fotografia, ao gramofone e ao telefone, Freud


não mencionou a rádio e, ainda mais estranhamente, o cinema, esse cinema tão
profusamente utilizado por Mussolini, Hitler e Estaline e a respeito do qual, já em
1912, um senador americano observava, “trade follows films” (o mercado
acompanha os filmes) (7). Tão pouco mencionou a Televisão, cuja primeira emissão
pública os nazis ensaiaram em Abril de1935. Nessa mesma época, Walter
Benjamim (8) analisava o que designou por “narcisismo de massa” e o controlo dos
meios de comunicação pelos sistemas totalitários. Mas, tão pouco Benjamim
pareceu dar conta, melhor do que Freud, da importância da função que as indústrias
culturais nascentes poderiam vir a assumir em todos os países, incluindo os
democráticos.

Pelo contrário, Edward Bernays, duplo sobrinho de Freud veio a tornar-se o


grande teórico da exploração possível, para fins de controlo, daquilo a que o seu tio
chamara “economia libidinal”. Foi ele o criador da teoria das “relações públicas”,
técnicas de persuasão, inspiradas pelas teorias do inconsciente psicanalítico, que
pôs inicialmente ao serviço do fabricante de cigarros Philip Morris, por volta de
1930, no momento em quem, na Europa, Feud tomava consciência da ascensão da
pulsão de morte contra a civilização.

Nesse momento, Freud não se interessava pelo que se passava dos Estados
Unidos, senão no que se refere a uma observação que, ao tempo, poderia até parecer
bizarra. Freud observa em primeiro lugar que é obrigado a “vislumbrar o perigo que
representa um estádio que pode designar-se por «miséria psicológica de massa» e
que é principalmente criada pela identificação dos membros de uma sociedade uns
com os outros, enquanto algumas personalidades com temperamento de chefes não
se preparam para assumir o papel que deveria caber-lhes na educação das massas”.
Para logo em seguida afirmar: “O estado actual da América forneceria uma boa
ocasião para estudar o terrível prejuízo trazido à civilização; resisto à tentação de
me lançar numa crítica da civilização americana, para não dar a impressão de querer
usar métodos americanos” (9).

Foi preciso esperar que Theodor Adorno e Max Horkheimer (10) denunciassem
o “o modo de vida americano” para que a função das indústrias culturais fosse
verdadeiramente analisada, depois da crítica dos meio de comunicação surgida em
1910 com Karl Kraus (11).

Apesar da insuficiência das suas análises (12), estes autores compreenderam que
as indústrias culturais fazem parte do sistema da indústria em geral - sistema cuja
função consiste em fabricar comportamentos de consumo e massificar os modos de
vida. Trata-se de garantir o escoamento dos produtos sempre novos engendrados
pela actividade económica independentemente de qualquer necessidade sentida
pelos consumidores. Possível resistência dos consumidores origina um risco
endémico de sobreprodução e consequentemente de crise económica que só se pode
combater – a não ser que haja um questionamento geral do sistema – com o avanço
daquilo que constituía, aos olhos de Adorno e Horkheimer, a própria barbárie.

Após a 2ª Guerra Mundial, a linha avançada das relações públicas foi ocupada
pela “investigação motivacional”, destinada a permitir a absorção do excedente da
produção (avaliado em 40%) aquando do regresso da paz. Em 1955, uma agência
de publicidade americana escrevia o seguinte: “o que faz a grandeza da América do
Norte é a criação de necessidade e de desejos e a criação da repulsa por tudo aquilo
que é antigo e ultrapassado”. Promover um gosto supõe realmente provocar um
desgosto. Trata-se de apelar ao subconsciente para ultrapassar as dificuldades
encontradas pela indústria no escoamento dos seus produtos de consumo (13).

Em França, já desde o século XIX diversos órgãos de comunicação se


preocupavam em facilitar o escoamento de produtos industriais que transformavam
por completo o modo de vida, lutando activamente contra as resistências suscitadas
por tais transformações: assim se verificou a invenção do “reclame” por Emile de
Girardin. Mas foi preciso esperar o surgimento das indústrias culturais (do cinema
e do disco) e principalmente das indústrias de programa (da rádio e da televisão)
para que fossem desenvolvidos os objectos industriais temporais que permitem um
controlo íntimo dos comportamentos individuais, convertendo-os em
comportamentos de massa – muito embora o telespectador, sentado em frente do
seu aparelho, conserve a ilusão de um lazer solitário.
É igualmente o caso da actividade chamada de “tempos livres” que, na era
hiperindusrtial, alarga a todas as acções humanas o comportamento mimético e
compulsivo do consumidor: tudo deve tornar-se consumível, desde o sabão em pó
até à pastilha elástica, passando pela saúde, pela educação e a cultura. Mas a mentira
que é necessário oferecer até chegar a esse ponto só pode provocar frustrações,
descrença e instintos de destruição. Só, em minha casa, sentado diante do televisor,
posso sempre pensar que me comporto como um indivíduo, mas a verdade é que
me comporto exactamente como o fazem milhões de espectadores que assistem ao
mesmo programa nesse preciso instante.

As actividades industriais, tornadas planetárias, realizam gigantescas economias


de escala e, por meio de tecnologias apropriadas, podem controlar e homogeneizar
os comportamentos individuais; essa é a missão das indústrias de programa que
difundem todo o género de diversão, afim de captar o tempo de cérebro disponível
das suas audiências que vendem aos seus anunciantes.

Um objecto temporal – melodia, filme, emissão de rádio ou de televisão – é


constituído pelo tempo em que se desenrola aquilo a que Edmund Husserl chamou
“um fluxo”. É um objecto que passa e que, tal como as consciências que ele afecta,
se caracteriza pelo facto de desaparecer à medida que aparece. Com o nascimento
da rádio civil (1920) e, mais tarde, os primeiros programas de televisão (1947), as
indústrias de programa passaram a produzir objectos temporais cujo “fluxo”
coincide com o desenrolar do tempo das consciências de que são objecto. O que faz
com que a consciência adopte o tempo desses objectos temporais.

Ora, uma consciência é essencialmente uma consciência de si: uma


singularidade. Só posso dizer “eu”, na medida em que de dou a mim mesmo o meu
próprio tempo. Enormes dispositivos de sincronização, as indústrias culturais,
particularmente a televisão, são máquinas de liquidação deste si-mesmo. Quando
dezenas ou centenas de milhões de telespectadores assistem simultaneamente à
mesma emissão ao vivo, essas consciências do mundo inteiro interiorizam o mesmo
objecto temporal. E se, todos os dias, eles repetem, à mesma hora, idêntico
comportamento de consumo áudio visual, é exactamente porque tudo os conduz
nesse sentido, a essas consciências da mesma pessoa, ou seja, de ninguém. O
inconsciente do rebanho é constituído por um fundo pulsional que já não se vincula
ao desejo, porque este é sempre e só pode ser singular. Durante a década de 1940,
a indústria americana desenvolveu técnicas de “marketing” que jamais deixaram de
se intensificar, produzindo uma miséria simbólica, libidinal e afectiva. Conducente
à liquidação daquilo a que chamei o “narcisismo primordial (14).

A fábula da sociedade pós-industrial não compreende que a força do capitalismo


contemporâneo repousa sobre o controlo simultâneo da produção e do consumo,
através da regulação da actividade das massas. Essa análise falaciosa propaga a
ideia de que o indivíduo e a sociedade são opostos, que o indivíduo é aquilo que se
opõe ao grupo. Simondon demonstrou que, pelo contrário, o indivíduo é um
processo; que o indivíduo se transforma constantemente e que só podemos
individualizar-nos colectivamente. O que torna possível essa individuação, tanto do
indivíduo como do grupo, é o facto de que a individuação de uns e outros resulta da
apropriação por cada singularidade daquilo a que Simondon chamou o fundo pré-
individual comum a todas as singularidades.
Herança oriunda da experiência acumulada das gerações, o fundo pré-individual
sobrevive apenas enquanto é apropriado singularmente e assim transformado pela
participação dos indivíduos que o compartilham. Mas, por outro lado, só é
compartilhado aquilo que é sucessivamente individuado. E só é individuado o que
é singularizado. O grupo social constitui-se como composição de uma sincronia, na
medida em que se reconhece numa herança comum, e de uma diacronia na medida
em que possibilita e legitima a apropriação singular por cada um dos seus membros
desse fundo pré-individual (15).

As indústrias de programa tendem, pelo contrário, a opor sincronia e diacronia,


visando produzir uma hipersincronização que impossibilita a apropriação singular
do fundo pré-individual. A grelha desses programas substitui aquilo que André
Leroy-Gourhan denominou programas sócio-étnicos: ela é concebida a fim de que
o meu passado próprio se torne idêntico ao passado dos meus vizinhos, que os
comportamentos se gregarizem.

Um “eu” é uma consciência que consiste num fluxo temporal daquilo a que
Husserl chamou “retenções primárias”, isto é, o que uma consciência retém, no
momento presente, do fluxo que a constitui. O som de uma nota, no momento em
que é ouvido, apresenta-se à minha consciência como o ponto de passagem de uma
melodia: a nota anterior continua presente e liga-se à nota sequente, constituindo
um intervalo. Como fenómenos que produzo ou recebo (uma melodia que escuto
ou canto, uma frase que pronuncio ou escuto, um gesto que executo ou me atinge)
a minha vida consciente consiste essencialmente nestas retenções.

Estas retenções são selectivas; não retemos tudo aquilo que poderia ser retido
(16). No fluxo daquilo que aparece, a consciência opera selecções entre as
retenções: se oiço a mesma melodia duas vezes seguidas, a minha consciência do
objecto altera-se; estas alterações operaram-se através dos filtros em que consistem
as retenções secundárias, reminiscências de retenções primárias anteriores que a
memória conserva e vão constituindo a experiência.

A vida da consciência consiste nesses agrupamentos de retenções primárias,


filtradas por retenções secundárias, sendo que as relações entre as retenções
primárias e secundárias vêem a ser sobredeterminadas pelas retenções terciárias: as
que funcionam como suportes da memória e as menomotécnicas, que permitam
preservar signos, designadamente, fotogramas, fonogramas, cinematogramas,
videogramas e tecnologias digitais que formam a infra-estrutura tecnológica das
sociedades de controlo na época hiperindustrial.

São as retenções terciárias, como o alfabeto, por exemplo, que constituem a base
do acesso aos fundos pré-individuais de toda a individuação psíquica e colectiva.
Elas existem em todas as sociedades humanas; condicionam a individuação como
partilha simbólica que permite a exteriorização da experiência individual por meio
de sinais. Quando se tornam industriais, as retenções terciárias podem vir a ser a
base de tecnologias de controlo que modificam profundamente as condições da
troca simbólica: assentando na separação entre produtores e consumidores, elas
possibilitam a hipersincronização dos tempos das consciências.
As consciências acabam por ser cada vez mais entretecidas pelas mesmas
retenções secundárias e tendem, do mesmo passo, a seleccionar as mesmas
retenções primárias; entendem, então, que muito pouco têm que dizer umas às
outras, pelo que se encontram com cada vez menos frequência. Ficam remetidas à
sua solidão diante dos ecrãs a que consagram a quase tonalidade do seu tempo de
lazer, o tempo livre de qualquer coerção.

Tamanha miséria simbólica conduz à destruição do narcisismo primordial e à


debandada económica e política. Longe de ser uma patologia, o narcisismo
condiciona a psique, o desejo e a singularidade (17). Se com o “marketing” já não
se trata apenas de assegurar a reprodução do produtor, mas de controlar a
reprodução, a diversificação e a segmentação das necessidades do consumidor,
então, são esta energias existenciais que garantem o funcionamento do sistema e
tanto o trabalho como o consumo passam a representar a líbido, captada e
canalizada. O trabalho é, em termos gerais, sublimação do princípio de realidade,
mas o trabalho industrialmente dividido e fragmentado traz cada vez menos
satisfação sublimatória e narcísica e o consumidor, cuja líbido é assim captada,
encontra cada vez menor prazer em consumir e entra em debandada.

Nas sociedades de modulação que são hoje as sociedades de controlo, trata-se de


condicionar, por meio das tecnologias audiovisuais e digitais da aisthesis (18), não
só os tempos de consciência, como o inconsciente dos corpos e das mentes. Na era
hiperindustrial, a estética - como dimensão do simbólico transformada a um só
tempo em arma e teatro da guerra económica – substitui a experiência sensível dos
indivíduos psíquicos e sociais pelo condicionamento das hiper massas. A
hipersincronização conduz à perda da individuação pela homogeneização dos
passados individuais, arruinando o narcisismo primordial e o processo de
individuação psíquica e colectiva, que permitia a distinção do eu e do nós, ora
confundidos na enfermidade simbólica de um amorfo e indefinido “alguém”. Não
chegámos ainda a um estádio em que a totalidade dos indivíduos está integralmente
submetida a um controlo estrito. Há hoje como que uma fractura estética, como se
houvesse dois tipos de sensibilidade em que se divide a colectividade. Mas todos
nós, e os nossos filhos e netos ainda mais, estamos como que condenados a este
destino sombrio se nada for feito para o ultrapassar.

O século XX levou ao extremo a articulação das condições da produção e do


consumo com as técnicas de cálculo e da informação, com vista ao controlo do
consumo e dos comportamentos sociais, incluindo os políticos. Essas duas esferas
estão integradas. A grande ilusão já nem é a da sociedade do lazer mas a
“personalização” das necessidades individuais. Felix Guattari (19) falava da
produção de “dividuais” para exprimir a particularização da singularidade através
da submissão às tecnologias cognitivas.

Estas permitem, pelas técnicas de identificação dos consumidores (users


profiling) e outros métodos de controlo, um condicionamento subtil que conjuga as
lições de Freud e de Pavlov. É assim que funcionam os serviços que incitam os
leitores de um livro a ler outros livros lidos pelos outros leitores do mesmo livro;
ou o motores de busca que valorizam as referências mais consultadas, reforçando a
consulta das mesmas referências.
Hoje, idênticas máquinas digitais dirigem através das mesmas normas e dos
mesmos padrões os processos por meio de um controlo remoto e a robótica
industrial transformou-se essencialmente numa mnemotecnologia de produção.
Colocadas ao serviço do “marketing”, idênticas tecnologias organizam igualmente
o consumo. Contrariamente ao que pensava Benjamim, não se trata do
desenvolvimento de um narcisismo de massa mas, inversamente, de uma destruição
massiva do narcisismo individual e colectivo através da constituição de hiper
massas. Há que liquidar as excepções, ou seja, promover a gregarização
generalizada induzida pela eliminação do narcisismo primordial.

Os objectos produzidos em massa tomam o lugar das histórias individuais e dos


imaginários colectivos, tecidos no seio do processo de individuação psíquica e
colectiva, pois os padrões massivamente padronizados tendem a reduzir as
singularidades das práticas individuais, as suas características de excepcionalidade.
A excepção também é uma regra, mas uma regra que não é formalizável; não é
calculável nem formalizável por um aparelho aplicável a todos os casos que são
ocorrências de regra. Por isso, durante muito tempo a regra foi referida a Deus, que
constituía o irregular absoluto como regra de incomparabilidade das singularidades.
O papel do “marketing” é o de tornar as singularidades comparáveis e
categorizáveis, transformando-as em particularidades vazias, reguláveis através da
captação simultaneamente hiper-massificada e hiper-segmentada das energias
libidinais.

Trata-se como que de uma ecónoma anti-libidinal: só pode desejar-se aquilo que
é singular e, por isso, excepcional: só é desejável aquilo que se me apresenta como
excepcional. Não se pode desejar a banalidade, que só pode apresentar-se como
desejável por uma compulsão de repetição.

A psique é constituída por Eros e Tanatos, duas tendências opostas que


constantemente se compõem. A indústria cultural e o “marketing” têm por objectivo
impulsionar o desejo de consumo, mas o que de facto reforçam é a pulsão de morte,
porque exploram o fenómeno da repetição compulsiva. São o contrário da pulsão
de vida; na medida em que o desejo é essencial ao consumo, esse processo é auto-
destruidor ou, como diria Jacques Derrida, auto-imunisante.

A razão pela qual só posso desejar a singularidade de algo é que o objecto do


desejo só pode ser o espelho da singularidade que eu sou e ignoro enquanto não me
é revelada por esse algo que desejo. No entanto, na medida em que o capital precisa
de hiper-massificar os comportamentos, precisa igualmente de hiper-massificar os
desejos e gregarizar os indivíduos, A partir daí, a excepção torna-se aquilo que deve
ser combatido – o que Nietzsche antecipara ao afirmar que a democracia industrial
só poderia engendrar uma sociedade de rebanho. Esta é a verdadeira aporia da
política industrial. O controlo das superfícies de projecção do desejo de excepção
implica uma tendência tanatológica, ou seja, entrópica. Tanatos é a submissão da
ordem à desordem. Tanatos tende para a equalização de tudo e conduz à tendência
para negar toda a excepção.

O problema não se resume ao que se chama comumente “cultura”: a existência


quotidiana, sob todos os aspectos, é submetida ao condicionamento hiper-industrial
dos modos de vida. Trata-se de um inquietante problema de ecologia industrial: as
capacidades mentais, afectivas e estéticas da humanidade encontram-se
massivamente ameaçadas, no preciso momento em que os grupos humanos dispõem
de meios de destruição sem precedentes.

A debandada que a ruína da líbido provoca é também política. Na medida em


que os responsáveis políticos, também eles, adoptam técnicas de “marketing” para
se transformarem eles próprios em produtos, os eleitores acabam por demonstrar
para com eles o memo nojo que mostram para com os outros produtos de consumo.

Já seria tempo para que os cidadãos e os seus representantes despertassem: a


questão da singularidade tornou-se crucial e não haverá política futura que não seja
uma politica de singularidades, a menos que, em lugar da política floresçam os mais
extremos nacionalismos e os fundamentalismos de todo o jaez.

(*) Bernard Stiegler (n. 1952) é um escritor e académico francês, actualmente


director do Departamento de Desenvolvimento Cultural do Centro Pompidou,
depois de uma já larga carreira de direcção de institutos culturais públicos. Na sua
juventude cumpriu uma pesada pena de prisão por assalto à mão armada. É autor
de uma já vasta bibliografia, publicada a partir de meados dos anos 1990, com
destaque para ‘La Technique et le Temps’ (3 vols., 1994-2001), ‘De la Misère
Symbolique’ (2 vols., 2004) e ‘Mécréance et Discrédit’ (3 vols., 2004-2006). É
animador de um grupo de reflexão política intitulado Ars Industrialis. Tradução de
João Esteves da Silva.

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NOTAS:

(1) Giles Deleuze (1925-1985) filósofo.

(2) Pourparlers, Editions de Minuit, Paris, 2003.

(3) Cf. De la Misère symbolique 1. Epoque Hyperindustrielle, Galilée, Pars,


2004.

(4) Gilbert Simondon,(1924-1989), filósofo.

(5) Le Monde, 10 de Abril de 2002. Cf. também Aimer, s’aimer, nous aimer. Du
11 Septembre au 21 Avril, Galilée, Paris, 2003.

(6) Sigmund Freud, O mal-estar na Civilização, Rio de Janeiro, Imago, 1997.

(7) Jean-Michel Frodon, La Projection nationale. Cinéma et Nation, Paris, Odile


Jacob, 1998.
(8) Walter Benjamim,(1892-1940), filósofo alemão.

(9) Sigmund Freud, op,cit.

(10) Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkeimer ( 1895-1973) filósofos


alemães fundadores da Escola de Frankfurt.

(11) Karl Kraus (1874-193) escritor austríaco, crítico dos meios de comunicação.

(12) Em La Technique et le Temps 3. Le temps du cinéma et la question du mal-


être (Galilée, 2001, capítulo I), tentei demonstrar porque razão essa análise
permanece insuficiente: os autores retomam o pensamento kantiano do
esquematismo, sem se dar conta de que análise da indústrias culturais requer
justamente a crítica do Kantismo.

(13) Vance Packard, La persuasion clandestine, Paris, Calman-Levy, 1958.

(14) Aimer, s’aimer…op.cit..

(15) A sincronia designa aqui o estado da cultura, num momento dado, no seu
conjunto e a diacronia, as mudanças, os saltos, as evoluções que os indivíduos lhe
introduzem.

(16) As retenções primárias formam relações, Numa melodia, por exemplo, entre
as notas de um arpejo ou, numa frase, as ligações semânticas e sintácticas.

(17) Esta desgnação aplica-se “à descoberta de que o eu é, também ele, investido


pela libido. Ele seria mesmo o seu local de origem e, em certa medida, continuaria
sempre a ser o seu quartel general”( Freud, O mal-estar na civilização, op.cit, ).

(18) Vocábulo grego de onde provém a palavra “estética” e que significa


“faculdade de sentir”.

(19) Félix Guattari (1930- 1992) psicanalista, pioneiro da anti-psiquiatria.

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