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Será que o “tempo livre” é realmente livre? O facto é que este suposto tempo
livre, repleto de ofertas culturais, torna impossível que cada um se diferencie pelas
suas próprias escolhas, e destrói a sua energia vital. Conduzindo a uma perda
generalizada da individuação, ele engendra rebanhos de seres que vivem num
permanente e angustiante mal-estar, rebanhos que se assemelham cada vez mais a
hordas furiosas.
As últimas décadas foram dominadas por uma fábula que iludiu uma boa parte
do pensamento político e da própria filosofia, proclamando que, desde 1968,
havíamos alcançado finalmente a era do “tempo livre”, da permissividade e da
flexibilidade das estruturas sociais, a sociedade individualista e do lazer. Este conto
de fadas, teorizado sob a designação de sociedade post-industrial, influenciou e
fragilizou toda a filosofia pós moderna. Inspirou os sociais-democratas fazendo crer
que havíamos ultrapassado a época das massas laboriosas, típicas da era industrial
e chegado ao tempo das classes médias. De acordo com esta efabulação, o
proletariado estaria em vias de desaparição.
Em 1930, Freud escreveu que, mesmo dotado pelas tecnologias industriais dos
atributos do divino e por mais que se assemelhe a um Deus, “o homem de hoje não
se sente feliz” (6). Ao privar os seres humano da individualidade, a sociedade actual
engendra rebanhos de membros que vivem num angustiante e permanente mal-
estar: seres sem vir-a-ser, destituídos de porvir. Estes rebanhos desumanos terão
uma tendência cada vez mais acentuada para se tornarem hordas em fúria. Em A
Psicologia das massas e a análise do eu, escrita em 1920, Freud esboçava já a
análise destas multidões que sofrem a tentação de regredir ao estado de horda,
dominadas pela pulsão de morte, descrita em Além do princípio do prazer e que O
mal-estar na Civilização veio a retomar dez anos mais tarde, quando o anti-
semitismo, o totalitarismo e o nazismo alastravam pela Europa.
Nesse momento, Freud não se interessava pelo que se passava dos Estados
Unidos, senão no que se refere a uma observação que, ao tempo, poderia até parecer
bizarra. Freud observa em primeiro lugar que é obrigado a “vislumbrar o perigo que
representa um estádio que pode designar-se por «miséria psicológica de massa» e
que é principalmente criada pela identificação dos membros de uma sociedade uns
com os outros, enquanto algumas personalidades com temperamento de chefes não
se preparam para assumir o papel que deveria caber-lhes na educação das massas”.
Para logo em seguida afirmar: “O estado actual da América forneceria uma boa
ocasião para estudar o terrível prejuízo trazido à civilização; resisto à tentação de
me lançar numa crítica da civilização americana, para não dar a impressão de querer
usar métodos americanos” (9).
Foi preciso esperar que Theodor Adorno e Max Horkheimer (10) denunciassem
o “o modo de vida americano” para que a função das indústrias culturais fosse
verdadeiramente analisada, depois da crítica dos meio de comunicação surgida em
1910 com Karl Kraus (11).
Apesar da insuficiência das suas análises (12), estes autores compreenderam que
as indústrias culturais fazem parte do sistema da indústria em geral - sistema cuja
função consiste em fabricar comportamentos de consumo e massificar os modos de
vida. Trata-se de garantir o escoamento dos produtos sempre novos engendrados
pela actividade económica independentemente de qualquer necessidade sentida
pelos consumidores. Possível resistência dos consumidores origina um risco
endémico de sobreprodução e consequentemente de crise económica que só se pode
combater – a não ser que haja um questionamento geral do sistema – com o avanço
daquilo que constituía, aos olhos de Adorno e Horkheimer, a própria barbárie.
Após a 2ª Guerra Mundial, a linha avançada das relações públicas foi ocupada
pela “investigação motivacional”, destinada a permitir a absorção do excedente da
produção (avaliado em 40%) aquando do regresso da paz. Em 1955, uma agência
de publicidade americana escrevia o seguinte: “o que faz a grandeza da América do
Norte é a criação de necessidade e de desejos e a criação da repulsa por tudo aquilo
que é antigo e ultrapassado”. Promover um gosto supõe realmente provocar um
desgosto. Trata-se de apelar ao subconsciente para ultrapassar as dificuldades
encontradas pela indústria no escoamento dos seus produtos de consumo (13).
Um “eu” é uma consciência que consiste num fluxo temporal daquilo a que
Husserl chamou “retenções primárias”, isto é, o que uma consciência retém, no
momento presente, do fluxo que a constitui. O som de uma nota, no momento em
que é ouvido, apresenta-se à minha consciência como o ponto de passagem de uma
melodia: a nota anterior continua presente e liga-se à nota sequente, constituindo
um intervalo. Como fenómenos que produzo ou recebo (uma melodia que escuto
ou canto, uma frase que pronuncio ou escuto, um gesto que executo ou me atinge)
a minha vida consciente consiste essencialmente nestas retenções.
Estas retenções são selectivas; não retemos tudo aquilo que poderia ser retido
(16). No fluxo daquilo que aparece, a consciência opera selecções entre as
retenções: se oiço a mesma melodia duas vezes seguidas, a minha consciência do
objecto altera-se; estas alterações operaram-se através dos filtros em que consistem
as retenções secundárias, reminiscências de retenções primárias anteriores que a
memória conserva e vão constituindo a experiência.
São as retenções terciárias, como o alfabeto, por exemplo, que constituem a base
do acesso aos fundos pré-individuais de toda a individuação psíquica e colectiva.
Elas existem em todas as sociedades humanas; condicionam a individuação como
partilha simbólica que permite a exteriorização da experiência individual por meio
de sinais. Quando se tornam industriais, as retenções terciárias podem vir a ser a
base de tecnologias de controlo que modificam profundamente as condições da
troca simbólica: assentando na separação entre produtores e consumidores, elas
possibilitam a hipersincronização dos tempos das consciências.
As consciências acabam por ser cada vez mais entretecidas pelas mesmas
retenções secundárias e tendem, do mesmo passo, a seleccionar as mesmas
retenções primárias; entendem, então, que muito pouco têm que dizer umas às
outras, pelo que se encontram com cada vez menos frequência. Ficam remetidas à
sua solidão diante dos ecrãs a que consagram a quase tonalidade do seu tempo de
lazer, o tempo livre de qualquer coerção.
Trata-se como que de uma ecónoma anti-libidinal: só pode desejar-se aquilo que
é singular e, por isso, excepcional: só é desejável aquilo que se me apresenta como
excepcional. Não se pode desejar a banalidade, que só pode apresentar-se como
desejável por uma compulsão de repetição.
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NOTAS:
(5) Le Monde, 10 de Abril de 2002. Cf. também Aimer, s’aimer, nous aimer. Du
11 Septembre au 21 Avril, Galilée, Paris, 2003.
(11) Karl Kraus (1874-193) escritor austríaco, crítico dos meios de comunicação.
(15) A sincronia designa aqui o estado da cultura, num momento dado, no seu
conjunto e a diacronia, as mudanças, os saltos, as evoluções que os indivíduos lhe
introduzem.
(16) As retenções primárias formam relações, Numa melodia, por exemplo, entre
as notas de um arpejo ou, numa frase, as ligações semânticas e sintácticas.