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SERRES, Michel. Les Origines de la gómetrie. Paris: Flammarion, 1993.

Parte II (Natureza), capítulo 2: Primeiro em filosofia: o menino escravo ignorante, de Pitágoras a


Zenão: origem algorítmica.

Trad: anônimo do séc XX

Serres começa o capítulo com um trecho do Menon de Platão (81e-85c. Trad de Léon Robin).
Para consulta em português: https://pensamentosnomadas.files.wordpress.com/2012/04/14-
mc3aanon.pdf

Memória negra
É preciso acreditar que o escravo posto em cena no Menon de Platão testemunhe um mundo
esquecido do qual ele se lembra diante de nós, por meio de um exercício de reminiscência, mas é
preciso acreditar e pensar que também Sócrates e Platão se lembram muito adequadamente dos
ritmos inspirados dos poetas que os levam de volta a estes tempos perdidos. Mas, além disso, é
preciso descrever com precisão estes mundos e estes tempos que reaparecem no curso da
demonstração.
Quando os historiadores das ciências retornam sobre o problema da duplicação do quadrado
que é aqui tratado, eles buscam, nesta passagem do Menon e sobre a figura, traços ou testemunhos
da geometria grega do séc.V, hoje esquecida de todos, senão deles, porque dela só conservamos
raros fragmentos, tais como esse. Reconstruir o esquema e demonstrar a relação do lado com a
diagonal permite reconstituir o saber perdido e o passado que se foi.
Ora, a história das ciências geralmente faz tão pouca referência à teoria em favor da qual
Sócrates chama um ignorante e apresenta para ele o problema, quanto a história da filosofia,
tratando da reminiscência, faz referência à duplicação do quadrado. E se por acaso as duas
memórias se identificassem? Sócrates e o escravo se aplicam no mesmo esforço que o nosso
voltado para a retomada de um saber esquecido? Quais relações podemos definir entre ciência e
memória?
Seja um quadrado do qual tentamos duplicar a superfície. Quantos pés medirá o lado do
novo quadrado? Qualquer que seja a resposta, temos que prolongar os dois lados do antigo.
Encontraremos a velha forma do esquadro

cujo vazio faz ver o quadrado inicial e cuja aparelho realiza, em madeira ou ferro, o
suplemento a ele acrescido. Duplicar a superfície dada consiste em construir o esquadro: eis, mais
uma vez, o problema do gnomon.
Podemos resolvê-lo assim? Ao menos o escravo começa, com Sócrates, a figurá-lo deste
modo: não há nenhuma dúvida de que ele se engana por conta de um tal desenho, já que a
verdadeira solução começa quando ele o abandona. Portanto, seu erro surge por ele ter posto
inicialmente a questão do gnomon. É preciso chamar assim, diz Heron de Alexandria, tudo o que,
acrescido a um número ou figura chega a um todo semelhante àquilo a que ele foi acrescido. A
duplicação fornece um caso particular, trivial de uma tal semelhança.
O erro ocorre duas vezes e nas duas vezes por excesso. Por que? Partindo de um lado AB de
dois pés, portanto de uma superfície de quatro, o escravo prolonga o lado pelo dobro e lhe atribui
quatro pés, cai numa superfície de dezesseis, enquanto lhe pediam uma de oito, o dobro de quatro.
Ele, então, volta atrás e escolhe um lado de três pés para um quadrado de nove. Os tiros longos
demais se explicam, de novo, pelo problema do gnomon. Esta palavra significa esquadro e também,
digamos novamente, a tabela pitagórica que exibe os quadrados perfeitos, os números ímpares e a
sequência dos inteiros: os primeiros sobre a diagonal, os últimos sobre os lados. Os ímpares se
distribuem no que sobra do esquadro.
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O jovem ignorante salta de dois para quatro e retorna de quatro para três: ele segue,
portanto, os lados do quadrado em números inteiros no sentido da álgebra geométrica dos antigos
pitagóricos. Dito de outra maneira, o antigo problema o precede.
Ele se lembra. Ele se lembra, em primeiro lugar, das tentativas de definição no diálogo: ele
deve ter escutado, escondido em algum recanto. Lembremos que o exercício paralelo à definição da
virtude consistiu no da figura e que houve acordo em recusar os dois primeiros resultados: a figura
não se reduz nem à forma nem à cor; mas que houve aceitação em dizer que ela é o limite em que
um sólido termina. A linha faz a borda da figura como esta faz a de um corpo. Portanto, o escravo se
engana quando ele segue a borda, a do quadrado desenhado por Sócrates ou o do esquema numeral.
Mas, da linha à área como desta ao volume, ou seja, do limite à variedade que ela envolve ou
define, a consequência não vale. Ele segue o limite ou uma única e primeira dimensão para resolver
um problema de duas dimensões; lembramos que, ao contrário, Dédalo e Platão quiseram voar para
o volume a fim de se livrarem dos problemas planares: em cada caso é preciso achar uma fronteira.
O escravo se engana porque ele se lembra da definição pela borda. Memória imediata.
Ele se lembra, em segundo lugar, do estado em que se encontrava a geometria grega antes da
descoberta da diagonal, de um mundo esquecido, da álgebra geométrica, dos velhos pitagóricos, do
reino dos números inteiros. O mundo matemático de Platão, Teodoro, Eudoxo se separou
completamente deste. Naquele tempo confiava-se no gnomon, encarregado de conhecer. A nova
escola perdeu este conhecimento que se tornou desprezível e bom para escravos. E o jovem homem
o sabe, o diz, o representa. Ele conhece a tabela e o velho esquadro.
Verdadeiramente? Nós testemunhamos, nós que ouvimos e lemos o diálogo, há dois
milênios de distância, que ele sabe sua tabela de multiplicação, uma vez que, sem hesitar, ele
responde: quatro à questão: quanto é duas vezes dois? e que ele confirma facilmente que quatro
vezes quatro são dezesseis e que três vezes três são nove. Mas para Sócrates e sua escola, este saber
tabular e numeral remete à ignorância. Conhecer seus números equivale a não conhecer nada. Mas
lemos que o escravo recita sua tabuada.
Algoritmo
O que é verdadeiramente uma tabela se não uma memória, a mais fácil de encontrar? O
escravo segue a tabela, o quadro e o gnomon: então, ele se lembra. Ele se lembra de um saber que o
platonismo esconde e despreza. Isto é, por trás da geometria, aquela precisamente que determina um
duplo quadrado pela diagonal do quadrado simples de saída, se escondem no esquecimento a
aritmética e a álgebra geométrica que aquele que desprezamos se lembra. Imediatamente, ele
testemunha por seu corpo, sua língua e sobretudo por seu estado, da posição em que a antiga ciência
cai: na ordem da infância, da ignorância, da servidão, no campo do concreto em relação ao abstrato.
O filósofo se reserva a metalinguagem na qual se define a nova relação do puro e do concreto;
portanto, o filósofo pode, de agora em diante, julgar, à vontade, o saber e a história deste saber
fazendo com que ambos comecem por ele.
Mas Sócrates se lembra também quando diz que não sabe; permanece verdadeiro que ele
não sabe; ele duvida, procura e questiona. E, sobretudo, corta em elementos e pedaços as grandes
frases rapsódicas e as seções da enciclopédia. Soldado de infantaria, à pé, ele quer marchar passo a
passo. Em primeiro lugar isso, depois aquilo. Coloquemos primeiro isto fora de contestação antes
de passar àquilo que examinaremos do mesmo modo. Cortemos em dois, procedamos por
dicotomias. Sócrates só conhece esses procedimentos, método ou caminho prudente e circunspecto.
Levemos a sério a teoria divina que ele acaba de tomar emprestada de Píndaro: e se ele também se
lembra de um antigo saber?
Sócrates se lembra dos procedimentos passo a passo do pensamento algorítmico e ele o
representa pelo seu personagem e pelo estado de homem que fala e não escreve. Desde a noite dos
tempos no crescente fértil, a divisão por dois, privilegiada, permite calcular de cabeça mais
facilmente. O pequeno escravo e Sócrates caminham juntos e a passo lento em direção ao mundo
desaparecido do qual são as prosopopeias: o velho mestre falador interroga o ignorante que não
sabe ler nem escrever, em conformidade com os antigos e exatos saberes que este não ignora, sem
jamais deixar escapar da vista a cadeia precedente quando passa à cadeia seguinte e voltando
imediatamente para trás se acontecer de saltar uma, retornando, portanto, à casa três após o brusco
intervalo de dois a quatro.
De modo algum o jogo se joga a dois, mas a três: não Sócrates, Menon e o escravo, uma vez
que os dois últimos se substituem um ao outro, mas Platão, Sócrates e o ignorante. A Paideia,
educação e história, passa por três estágios: o filósofo-rei, o soldado à pé e o empregado ou
trabalhador dos campos, segundo a antiga partilha. Platão pensa no universo da geometria, espaço
puro, métrica rigorosa, irracionalidade dominada; eis aqui a chegada da diagonal, o alogos aliado ao
logos e misturado com ele, eis a chegada do Tecelão real cujo retrato fecha o Político; o escravo,
por sua vez, conta de cabeça os números inteiros no algoritmo tradicional, logística desprezível dos
mercadores e produtores, enquanto Sócrates, sempre raciocinado no modo antigo, sem escrever,
descobre o novo mundo do quadrado tendo a diagonal atravessada. Ele faz a ligação entre os dois
reinos, como um mensageiro.
Platão obceca nossos pensamentos dos quais não podemos nos desfazer, ou melhor,
habitamos os que ele concebe enquanto o jovem escravo não saiu dos antigos pitagóricos ainda
ligados às tábuas babilônicas: Sócrates não sabe nada, assim como a criança, não escreve, assim
como o escravo, ambos guardam o antigo modo que, por meio deles, Platão e nós nos lembramos,
antigo momento mergulhado nos métodos orais e nos procedimentos passo a passo, mas eles
atingem repentinamente, maravilhados, se dando as mãos, um novo mundo abstrato.
O pensamento algoritmo é engolido pelo esquecimento e somente constitui, por suas
cantigas, a pré-história da ciência. O jovem escravo se lembra do gnomon e de suas leis tabulares
porque este funciona como uma memória, como a tabela de multiplicação. Artificializável, o
pensamento algorítmico se reduzia, sem dúvida, a tais memórias. Não digamos novamente:
inteligência artificial, mas sim: memória artificial.
Antigamente, lembremos disso, o saber se reduzia, talvez, à lembrança.
Geometria
Mas a nova geometria revela as lacunas deste saber: não encontramos no gnomon, nenhum
número entre 3 e 4 sobre os lados nem entre 4, 9 e 16 ao longo da diagonal. A geometria completa
essas falhas, anula um saber ligado à reminiscência. Ela inventa um outro mundo pululante de
números dos quais rapidamente perdemos a conta e a lembrança. Não é mais uma memória. Fim
temporário da luta que opõe a abstração à memória, ambas consideradas como economias de
pensamento: aqui a primeira ganha, a segunda foge.
Mas se esta é derrotada na batalha grega, ela, no entanto, continua a guerra, pelas bandas
árabes na Idade Média, entre os maiores matemáticos clássicos, como Pascal e Leibniz, arquitetos
de algoritmos mais do que geômetras, enfim hoje quando aprendemos a economizar o pensamento
sobre dois quadros: aquele em que ainda brilha a luz do sol platônico, a matemática pura, mas
também aquele em que a lembrança se serve da velocidade desta mesma luz. Escravos objetivos
trabalham no seio dos computadores: todo o antigo diálogo segue procedimentos fáceis de se
inscreverem nos softwares.
A conduta da discussão bifurca, repentinamente, da aritmética para a geometria: se você
prefere não fazer cálculos, mostre então! Sócrates, evidentemente, trapaceia. Ele perguntou pelo
comprimento do lado. O escravo leal responde quatro ou três pés. É-lhe requerida uma medida, ele
dá uma quantidade. Mas quando surge a diagonal como lado do quadrado duplicado, só se fala de
qualidade: sobre qual linha o quadrado de superfície dobrada é construído? Sobre esta.
Interrogativos e demonstrativos, de agora em diante, deixaram a quantificação para qualificar o que
é mostrado. Ninguém pergunta ao questionador: qual comprimento? Ele questiona o ignorante sobre
um conteúdo a respeito do qual ninguém, em troca, o perturba. Ele encontrou o lado, mas não o
mediu. Sócrates trapaceia: sabe que não encontrará o comprimento exato.
Os dois erros por excesso ocorreram quando os lados do quadrado foram medidos com
números inteiros: o escravo conta quatro e encontra dezesseis, volta para três e chega a nove.
Primeira tentativa sobre par e segunda pelo ímpar, dois tiros longos demais. O número procurado
não será, portanto, nem este par nem este ímpar.
Narcóticos
Impasse, embaraço, o diálogo para e Sócrates, intermediando, lembra a Menon sua
comparação com o poraquê1. A metáfora exprime a contradição e a perturbação em que se encontra,
neste momento, o interlocutor do filósofo.
Mas, mesmo nós, nada compreendemos antes de nos lembrarmos da origem da poraquê: este
peixe se chama assim porque ele nos mergulha não no estupor, mas no torpor. Ao tocá-lo,
desfalecemos ou parecemos adormecidos. Mas, novamente, nada compreendemos se além da
origem latina (em francês o peixe se chama torpille) não nos lembramos que poraquê tem, em
grego, o nome de narkè, que o aparenta à narcose e aos nossos narcóticos. Eis uma estranha
farmácia.
O choque que advém do contato com o animal nos parece, hoje, eletro-químico.
Clarificamos esta experiência por meio de muitas ciências, eletrostática, bioquímica, neurologia,
todo um refinado desdobramento do leque. Ora, nossa farmácia de narcóticos nos leva ao poraquê
como se a língua, por sua história, tivesse seguido o mesmo caminho que a ciência que há pelo
menos dois séculos acumula experiências sobre este peixe espantoso. Como se houvesse duas
histórias paralelas das ciências: a que conta as manipulações da fisiologia e a que se lembra da
1 O termo indígena funciona bem para o propósito do texto, uma vez que quer dizer “aquele que faz dormir, que
entorpece, narcotiza” (NT)
torpille latina e da narcose grega, do sono narcótico e do estranho torpor em que nos mergulha a
descarga. Compreendemos, por nossa ciência, algo que diz respeito à eletricidade que Platão
conhece mal, mas Platão nomeia um animal de modo que compreendemos algo que diz respeito à
nossa química, à nossa farmácia, mas também à dele. O poraquê faz adormecer como um narcótico.
Narciso, enfim, se fascina até adormecer no fechamento total em si, diante da própria
imagem que as águas lisas da fonte lhe enviam. Narciso-narcose leva o nome do peixe, ou leva em
si o animal e se implode como um pharmakon totalmente solitário sem sociedade nem meio. A
narcose mantem com o indivíduo só a mesma relação que a vítima arcaica expulsa, chamada
farmacêutico, tinha com o coletivo. Eis o que se passa no momento lógico da contradição quando,
justamente, é preciso excluir o terceiro: terceiro termo, ou terceiro homem? A metáfora do peixe
poraquê revela a origem trágica do princípio do terceiro excluído.
Às vezes, a história das ciências só requer uma memória: aquela, artificial, da língua.

Logos indizível
Vamos resumir a demonstração dada acima em detalhes e mais abstratamente.
Seja um quadrado de lado 1 e b sua diagonal. Pelo teorema de Pitagóras, b² = 1²+1² = 2
donde b = raiz quadrada de 2. já que 1² = 1 e 2² = 4, o valor de b está entre 1 e 2. Vamos escrever
este valor m/n supondo esta “fração” reduzida à sua mais simples expressão. Portanto: raiz de 2 =
m/n donde tiramos: m² = 2n².
Então, m² é par e m também. Portanto n é ímpar.
Ora, um quadrado par é divisível por 4, é o caso de m²; portanto, 2n² também é divisível por
4.
Então, n² é par; portanto n é par.
Consequentemente n é ímpar e par, coisa impossível.
Raiz de 2 não pode, portanto, ser colocada sob a forma m/n.
A primeira prova por absurdo, ou demonstração apagógica, põe em xeque a aritmética
pitagórica primitiva que só admitia os inteiros ou, a rigor, os racionais.
Repentinamente, o espaço apresenta comprimentos que o cálculo não compreende mais. Se
você não pode calcular, mostre, então: esta palavra de Sócrates, mais hábil e profundo do que
parece, indica exatamente a bifurcação.
A prova demonstra que os números tornam impossível o que o espaço, evidentemente, torna
possível, a de Sócrates que o espaço torna possível o que os números tornam impossível: ambas
passam pelo par e pelo ímpar.
O diálogo se lembra da demonstração apagógica e a remonta, se ouso dizer, em outro
sentido. E o poraquê atinge como um raio por contradição ou por absurdo. Apagógico também
significa conduzido fora do caminho reto, desviado: eu tinha falado de bifurcação, ou seduzido:
fascinado pelo torpor.
Ora, o esquema se desenha por números inteiros, ímpares e pares: o pequeno escravo os
seguiu. Agora, não conte mais, mostre a diagonal! Aí está ela: passa por 1, 4, 9, 16... pelos números
que chamamos de quadrados perfeitos. Vamos, mostre, então a diagonal-lado de um quadrado de
área oito pés! Falha: não mostrável, indemonstrável.
O gnomon só conhece quadrados perfeitos: ciência perfeita do logos, ignorando os
irracionalistas, ciência arcaica e bastante imperfeita da relação perfeita.
Em sua autenticidade demonstrativa, uma nova matemática nasce fora do logos, quando ela
se afasta dele e pode medir rigorosamente este desvio. Portanto, o gnomon não conhece tudo.
Podemos pedir, ou inventar conhecimentos desconhecidos desta memória, que leva o nome
daquele que conhece. Eis o golpe atordoante saído do poraquê. Que existam conhecimentos fora do
gnomon autoriza que pesquisemos o que não conhecemos – o que o conhecimento não conhece, o
que a memória não registrou. Torpedeamento de velhas práticas, da lembrança delas: da conta pelo
espaço, do logos pelo alogos, do dizível pelo indizível, da linguagem pela ciência, torpedeamento
do artificie, da memória linguageira e artificial, do pensamento algorítmico.
Antigamente juiz, experimentador e pedra de toque, o gnomon não decide nem conhece
mais: ignorante como um jovem escravo, duas vezes tolo, contraditório, excluído. Liberação!
Existem conhecimentos fora da memória.
Não há demonstração antes dos gregos, antes da demonstração apagógica, antes da
geometria, antes do irracional. Certamente. Só há contas. Se você prefere não fazer cálculos,
mostre, então! Eis uma frase de origem. Mostre, você demonstrará! Inventar a geometria consiste
em preencher as lacunas do gnomon, as do conhecimento, da inteligência artificial, do pensamento
algorítmico. Este não demonstra. Somente contava.
Emergência da figuras ideais
Tão fiel e refinada quanto se apresenta a reconstrução pelos algoritmos da matemática grega
em seus começos, permanece o fato de que esta última se retira destas contas pela emergência de
linhas, de volumes, do espaço abstrato, dos objetos ideais: de um outro mundo infinitamente
retirado.
O pensamento, ou a prática algorítmica dá conta da teoria dos números, da medida, dos
pensamentos variáveis e profundos sobre os racionais e os irracionais advindos da duplicação do
quadrado ou do cubo, mas supõe, aí, cubo e quadrado, lados sem espessura e sólidos rigorosos,
transparentes ou perfeitos, inexistentes antes da aurora grega. Agora é preciso compreender a
emergência destas idealidades.
Formalmente falando, o pensamento algorítmico pode, no entanto, ir mais longe do que a
aritmética, pois seus procedimentos passo a passo testemunham com constância em favor da
segurança desejada e controlada de sua conduta. Ele não vai a um lugar qualquer e não passa de
modo algum por etapas quaisquer. Portanto, podemos imaginar um método, no sentido etimológico
de caminho desenhado, que estende seu processo a regras mais complexas e mais gerais que
permitiriam antecipar o que seria previsto num programa dado previamente somente sobre o que
encontraríamos excluindo toda outra coisa. O procedimento algorítmico apresentaria, então, um
primeiro brilho ingênuo do que se tornaria, na sequência, uma demonstração formal.
Do processo passo a passo para a interdição de não fazer nenhum passo não previsto de
antemão, a distância não parece intransponível. Dito de outro modo, a teoria e a prática da
demonstração supõem um algoritmo. Este, na história, prepara aquela.
Passagem avassaladora do algoritmo à abstração
A escola eleata contribuiu de maneira decisiva para preencher o fosso que parecia separar
entre a receita de rigor e o espaço usual da extensão ideal em que os novos objetos manifestam suas
aparições.
Os célebres paradoxos de Zenão favorecem o esquecimento de sua encenação em proveito
de sua formação. E se eles nos conduzissem infinitamente de uma para outra? A flecha que voa para
o alvo ou Aquiles cuja corrida se consagra a alcançar a tartaruga, assim como faz a lebre na fábula
de Esopo, mas sem esperança de sucesso, cada um tomando uma via, isto é, um método.
Observemos com que precisão se localizam todos os elementos de um algoritmo: caminho
ou método para atingir uma meta, finalidade prática e simples de um dispositivo, medida exata do
segmento percorrido, decomposição do processo em elementos, procedimento passo a passo, é bem
o caso de dizer, repetição que retoma, na figura e na forma, na cena e pelo número, o mesmo gesto a
fazer depois do mesmo gesto feito, derivação muito provável a partir de uma fábula.
Observemos, ainda, certa imitação da antifairese ou subtração algorítmica alternativa, vinda
da tradição, e que subtrai aqui a metade do todo, em seguida subtrai a metade do resto, depois a
metade do resto e assim por diante, como se Aquiles ou a flecha operassem a subtração ao se
moverem.
Observemos, enfim, no outro sentido do tempo, quanto o algoritmo infinitesimal ainda por
nascer – ou do lado de Abdera ou na era clássica passados dois milênios – inovará pouco em
relação a seus predecessores. Toda a encenação portanto, a forma inicialmente, revela um
pensamento algorítmico.
Um algoritmo travado
Aquiles corre ou caminha, a flecha parte e voa, toda receita fracassa. Nem o corredor
campeão nem a ponta sagital atingem sua meta. Pela primeira vez, um procedimento certo de seu
resultado, uma boa receita de medida, trava justamente em virtude da própria perfeição de seu
funcionamento e sobre um exemplo luminoso e excelente.
A repetição só engendra a repetição, o passo a passo patina sem parada possível. Riremos do
herói corajoso, imagem derrisória do animal covarde, a velocidade de nada serve para eles. De
modo canônico, Zenão mata a metrologia tradicional: o algoritmo milenar do crescente fértil se
apaga em Eleia.
Limites
O percurso da flecha, ou de Aquilies, não tende mais à meta prescrita, mas bifurca,
repentinamente tomado por uma finalidade muito nova. Correndo, voando, os dois vetores atolam
no lamaçal estreito, mas abissal do segmento, ligados ao algoritmo grudento, mas juntos tendem
para um ponto único no limite de todos os pontos efetivamente percorridos ou possíveis, filtrado
por todas as estações ultrapassadas.
Isso significa que eliminamos ou subtraímos os lugares por onde passamos ou podemos
passar, desqualificamos aqueles em que chegamos ou podemos chegar, desacreditamos todos em
que permanecemos ou habitamos, em proveito do único para o qual nos dirigimos sem atingi-lo. Já
ouvimos aí acentos platônicos?
O procedimento, simples no fim das contas, discriminando este ponto entre todos os outros,
divide o segmento por uma única dicotomia, em suma: todos os pontos e esse. De um lado,
podemos ver e tocar, pisotear lugares concretos, atual ou virtualmente, aí permanecer, chegar,
passar, partir, o mundo ou o caminho destes lugares permanecendo aberto à corrida ou ao voo. Do
outro lado, um ponto emerge intangível, inultrapassável, inacessível, Aquiles nunca o verá, a ponta
da flecha nunca o atravessará, ninguém nele habitará. Ele emerge do mar imenso dos outros.
Tanto quanto queiramos, ao mundo mensurável por meio de algoritmo, aproximação,
exatidão, se avizinha imediatamente um outro mundo infinitamente distante, sem dimensão já que a
métrica se esgota ao atingi-lo: buraco ausente sobre o desenho.
Tracem, portanto, sobre a arena a trajetória do herói ou o voo do vetor, vocês jamais
marcarão sobre suas órbitas o lugar em direção ao qual todos se apressam: ninguém pode escrevê-lo
nem desenhá-lo. Se vocês o furarem sobre a folha ou sobre a areia e Aquiles ou a ponta por ele
passarem, este não poderia ser ele. Vocês têm nas mão a caneta, ou seja, o próprio dardo, o traço
que voa com o qual vocês escrevem sobre a página, mas ela não pode inscrever o ponto em direção
ao qual sempre corre.
Este é o primeiro lugar inteligível, atópico, no final deste curto caminho igual ao mais longo
caminho possível. A abstração geométrica se torna o limite da soma infinita das subtrações
algorítmicas.
Série infinita de terceiros
Eis aí alguém, de tal aspecto ou de tal idade, vivo e individuado, com centenas de signos
característicos; para pensar nele, diz Platão, é preciso conceber num outro mundo completamente
separado deste, uma ideia de homem ou o homem ideal. Aquele participa deste. Como conceber
todos os dois, o teórico e o concreto juntos, responde Aristóteles, sem formar a ideia abstrata de um
terceiro do qual os dois participariam? E como, novamente, conceber os três, o homem deste
mundo, o da primeira teoria e o da segunda teoria sem um quarto que... este argumento ao infinito,
chamado de terceiro homem, muto longe de criticar ou de destruir o lugar abstrato inteligível das
ideias ou das formas, contribui para descrevê-lo e fundá-lo, assim como a encenação de Zenão
conduz infinitamente da representação concreta ou da recita métrica à vizinhança, ao limite da
idealidade não representável e que não podemos desenhar nem escrever, subtraída até o
esgotamento de toda apreensão: dos pontos visitados ou visitáveis à meta invisível e inacessível.
O abstrato jaz no fundo deste abismo, infinitamente distante, mas infinitamente vizinho.
Uma classe de problemas chamados de terceiro homem
Eis aqui, vivo, o jovem escravo ignorante que sob o torpedo (torpille) de Sócrates demonstra
a duplicação do quadrado construindo a diagonal irracional. Platão tem a pretensão de que o escravo
se lembra de um mundo esquecido, já que ele sabe sem ter aprendido. Sem que Aristóteles
intervenha, nós colocamos em cena o escravo do outro mundo calculando a área de um outro
quadrado, cena que, por sua vez, sustenta em abismo, em seu quadrado retomado, uma implicação
infinita de diagonais, de lados ou de Sócrates envenenantes.
Acabamos de nos lembrar, ao inventá-lo, do conjunto de questões e problemas, matemáticos
e filosóficos, que entram na classe do terceiro homem. Interminavelmente, sobre uma figura que se
desdobra ou se encaixota sem parar, de mundos em mundos fugindo para a montante e de
esquecimentos recomeçados em lembranças falhas, um jovem escravo renascendo de sua ignorância
calcula, conta, redobra um comprimento, depois dele subtrai uma parte, incapaz de chegar sozinho à
diagonal que podemos e não podemos traçar, aí presente, mas irracional. O escravo pensa
algoritmicamente, o mestre não esquece a geometria.
A definição do abstrato geométrico, modelo do abstrato teórico requisitado por Platão para
pensar ou existir ou perceber, emerge de um método ou via infinita sobre a qual Aquiles e a flecha
nos precedem e nos guiam, deixando indefinidamente atrás deles os algoritmos travados.
Generalização
O raciocínio de Zenão se repete: antes de chegar ao alvo, ele deve passar pelo meio do
segmento, mas antes deve atingir a quarta parte e, ainda antes, aceder à oitava parte, e assim
indefinidamente, de modo que Aquiles não pode começar. O ponto inicial se reveste, portanto, do
mesmo estatuto que o terminal.
Pelos mesmos processos passo a passo, o paradoxo toca no ponto médio e depois em
qualquer outro ponto: então todo o segmento se torna ideal.
O conjunto dessas demonstrações parece paradoxal porque os elementos que daí saltam se
afastam muito da opinião comum.
Esta é a última, ou a primeira caixa branca, esvaziada de todo obstáculo pela corrida do
campeão ou pelo percurso da flecha ruim: nada permanece aí, como no tetraedro de Tales, como no
intervalo diante do olhar de Diógenes, como na Terra, soma de todas as formas.
A exclusão purgou tudo. O escoamento de uma enorme narrativa pode começar.

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