Você está na página 1de 5

Universidade Federal do Rio de Janeiro

História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia


Mestrado – 2022-2
Maria Veronica Silva Vilariño Aguilera

Caminhando com Platão


Sobre a leitura introdutória de Platão: Timeu-Crítias
nos estudos de
Astronomia Cultural na América Latina
Professor Dr. Rundsthen Vasques de Nader e Professor Dr. Walmir Thomazi Cardoso

Rio de Janeiro, Setembro de 2022


Caminhando com Platão
Ler Platão é como tomar um vinho bom. Intenso, belo, reconfortante, mas
traiçoeiro. Exige cuidado na degustação, assim como a palavra dos poetas. Podem
embriagar...
Portanto, é recomendável seguir o conselho do instigante personagem platônico,
em diálogo com Sócrates, antes mesmo de começar o seu discurso em Platão: Timeu-
Crítias, em edição de 2011, traduzida do grego para o português por Rodolfo Lopes, e
nossa leitura de aula em Astronomia Cultural1.
Timeu: É bem certo, ó Sócrates, que todos quantos partilhem o mínimo de
bom-senso, sempre que iniciam algum empreendimento, pequeno ou grande,
invocam sempre, de algum modo, um deus. Quanto a nós, que nos
preparamos para produzir discursos sobre o universo – sobre como deveio ou
se de facto nem o toca o devir–, caso não tenhamos perdido por completo o
discernimento, é inevitável que invoquemos deuses e deusas, bem como
roguemos que tudo o que dissermos seja conforme ao seu intelecto e esteja
em concordância com o nosso. E no que respeita aos deuses, seja esta a nossa
invocação. (LOPES, 92)

Síntese precisa (no duplo sentido do termo) a um texto onde as afirmações o


mais das vezes se contradizem e instigam todo o tempo, e não apenas quanto àquilo que
é sempre ou que nunca chega a ser: do cerne da dicotomia platônica entre o mundo das
ideias e o mundo das sensações, passando pela relação ambígua de adaptação e ruptura
com o pensamento dos pré-socráticos; aos movimentos contrários de entidades
contrárias, o Mesmo e o Outro; ao dualismo cosmológico do mundo, criado pelo
Intelecto (princípio de racionalidade) ou pela Necessidade, até a duplicidade desse
mundo como imitação e representação.
Lopes, em preciosa Introdução ao livro, e analisando a natureza compósita da
narrativa, que é também discurso, como registro histórico e/ou ficcional (notadamente
marcada na fala de Crítias), acentua a presença de um “forte componente poético-
mitológica”, observando que, “de um modo algo irônico, esta natureza está latente no
próprio texto”.
São quatro os personagens do livro: Timeu, Crítias, Sócrates e Hermócrates,
sendo estes dois últimos de comprovada origem histórica, biografável, e os dois
primeiros, protagonistas principais, sem evidência concreta de existência verdadeira.
Lopes informa as datas dramática (época da ação narrada) e real (de quando teria sido
escrita efetivamente) da obra, respectivamente 420 ou 421 a.C e entre 430 e 425 a.C.,

1
Disciplina Astronomia Cultural na América Latina. Professores Rundsthen V. de Nader e Walmir T.
Cardoso. Mestrado em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (Universidade Federal do
Rio de Janeiro, 2022-2)
nos últimos anos de vida de Platão ou pouco antes. Atribui-se mesmo o pouco espaço
físico ocupado pelo personagem Crítias, muito menor que o volume de páginas
dedicadas a Timeu, ao fato de Platão ter morrido antes de concluir esse discurso.
É em Timeu que se configura o eixo temático do livro: “a constituição do mundo
sensível e posteriormente dos seres que o habitam com particular evidência para o
Homem”, como ressalta Lopes (2011), apontando para a contextualização do diálogo
num movimento que começara nos filósofos pré-socráticos e que Platão ora abraça, ora
rejeita. “ O exemplo mais claro desta dupla relação – adaptação e ruptura – é justamente
o caso do Intelecto; ... sua concepção enquanto princípio de racionalidade será um dos
elementos centrais da cosmologia platônica.”
O Intelecto, como dito antes, forma, pela boca de Timeu, um dos pares
opositivos do filósofo ateniense, no caso, com a Necessidade: a vertente inteligente X a
vertente mecânica e corpórea da criação; o princípio de racionalidade teleológica X uma
causa errante, sem finalidade (as partes mortais da alma e o próprio Homem).
Lopes ressalta a clara e absoluta distinção entre uma dimensão pré-cósmica e
outra pós-criação como um dos pressupostos mais importantes do diálogo de Timeu.
Mas o mundo visível, tangível e dotado de um corpo(sensível, pois) que Timeu
apresenta não teria sido exatamente criado, porém fabricado por uma divindade, o
demiurgo, a partir de um arquétipo.
Mas ainda quanto ao mundo, temos que apurar o seguinte: aquele que o
fabricou produziu-o a partir de qual dos dois arquétipos: daquele que é
imutável e inalterável ou do que devém. Ora, se o mundo é belo e o demiurgo
é bom, é evidente que pôs os olhos no que é eterno; se fosse ao contrário – o
que nem é correto supor –, teria posto os olhos no que devém. Portanto, é
evidente para todos que pôs os olhos no que é eterno, pois o mundo é a mais
bela das coisas devenientes e o demiurgo é a mais perfeita das causas.
(LOPES, 2011)

Atentemos à função do demiurgo (mais de educador que de criador) de ordenar,


organizar e impor medida e proporção ao substrato pré-cósmico do caos anterior.
Pinceladas de um pensamento complexo cuja análise vai muito além destas breves
reflexões de caráter introdutório a que não pode faltar, todavia, o fio de prumo decisivo
da influência pitagórica:
“...é por intermédio de Pitágoras que Platão tem acesso às ferramentas
teóricas órficas que lhe permitirão sondar os procedimentos divinos pelos
quais o mundo e o Homem foram constituídos e partir do que tem diante dos
olhos para chegar regressivamente à sua criação” (LOPES, 2011).
Essas ferramentas, como enuncia Lopes, são: a Matemática – sobretudo as suas
vertentes geométrica e estereométrica2 –, a Música e a Astronomia. Com formas e
números, Timeu configura os elementos da natureza, atribuindo a cada um a figura
correspondente de acordo com as suas propriedades: o cubo à terra ; o icosaedro à água;
o octaedro ao ar; a pirâmide ao fogo, dando corpo, como ressalta Lopes, à mensagem
teológica tornada uma física filosófica, “pois permite representar aquilo que não pode
ser alcançado pelos olhos; trata-se de uma matemática teológica.”
É assim também pela harmonia da música que se pode conceber ̶ ainda na
análise do tradutor ̶ a harmonia dos corpos celestes, “na medida em que ambas
obedecem a um mesmo princípio cinético”:
Os astros, tal como os sons, circulam juntos a diferentes distâncias uns dos
outros – os astros em espaço, os sons em tempo, mas de acordo com uma
mesma relação numérica que determina a harmonia do conjunto... raciocínio
que, segundo Aristóteles (Sobre o Céu, 291a10-11), os Pitagóricos
chamavam “a música das esferas”, cuja adaptação é evidente no sistema que
propõe o Timeu.

O vinho transluz rubro diante de uma natureza metafórica (consoante Timeu, o


que nela ̶ a natureza de todos os corpos ̶ entra e dela sai são imitações do que é
sempre) e de um mundo que é um ser vivo com alma e pensamento.
E eis que me vejo caminhando pelas alamedas da Academia de Platão, nos
arredores de Atenas, com seus discípulos. Ou, quase três mil anos a frente, numa praia
ao lado do poeta Neruda, pensativo diante da questão inusitada há pouco lançada por
Mario, o carteiro semianalfabeto, a quem transmitira o poder das metáforas:
̶ O senhor acha que todo o mundo, quero dizer todo o mundo, com o vento,
os mares, as árvores, as montanhas, o fogo, os animais, as casas, os desertos,
as chuvas, ...
̶ ... agora, já pode dizer “etcétera”
̶ ... os etcéteras! O senhor acha que o mundo inteiro é a metáfora de
alguma coisa? (SKÁRMETA, 1996)

Platão via o mundo com sua mente brilhante, sua curiosidade efervescente diante
da natureza, mas o via também como um grego de Atenas do século V a.C; Pablo
Neruda via com sua alma poeta e seu engajamento político de um Chile de início e
meados do século XX; Antonio Skármeta, também chileno, autor do livro O Carteiro e
o Poeta (lançado em 1985) e Michael Radford, diretor e autor do roteiro adaptado dessa
mesma obra para o filme de 1994, criaram cada um, à maneira do seu olhar, texto,
ambiente e personagens que também mesclam realidade e ficção, na reinvenção da arte.

2
Parte da Geometria que trata da medição do volume dos sólidos.
O olhar da filosofia clássica que, afinal, sedimentou o caminho rumo às
descobertas e avanços da Física, da Astrofísica e da Cosmologia, introduz este estudo da
Astronomia Cultural na América Latina e prepara nossa viagem ao encontro de outros
mundos e outros céus.

Referências:
PLATÃO. Platão: Timeu-Crítias. Tradução, Introdução, Notas e Índices:
Rodolfo Lopes. 1 ed. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos-
Universidade de Coimbra, 2011.
SKÁRMETA, Antonio. O carteiro e o poeta. Trad. BeATRIZ Sidou. 2 ed. Rio
de Janeiro: Record, 1996.

Você também pode gostar