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O MITO

CLÍNIAS: Bem, senhor, não pensais que a existência dos deuses é uma
verdade fácil de explicar?
ATENIENSE: Como?
CLÍNIAS: Bem, apenas olha para a terra e o sol e as estrelas e o universo
em geral; observa a procissão maravilhosa das estações e o seu arranjo em
anos e meses!

Platão, Cratilo1

Esse fragmento do diálogo escrito pelo filósofo grego nos dá uma pista da
origem da primeira experiência do homem com o sagrado. A ordem silenciosa da
Roda de Prata e o curso das estrelas que a seguem representam tanto os elementos
mais elevados da criação quanto sua base mais fundamental e mais segura. A
regularidade do giro da roda é reconfortante para os seres vivos apanhados no caos
da Vida e submetidos à ira imprevisível do Altíssimo. As diferentes peças que se
repetem diante dos olhos do homem podem ser vistas como um sinal que guia sua
caminhada no tempo: o passar dos dias, dos meses e dos anos oferece-lhe a visão de
uma cena da peça que se desenrola no palco da natureza. A observação dessa peça
é, no entanto, desconcertante. É somente através de uma longa reflexão, quando
cada uma de suas cenas foi vista inúmeras vezes e cada um de seus detalhes foi
aprendido, que ele pode começar a interpretá-la e ver seu significado.

Os movimentos dos céus parecem ser o produto de um design, ao invés de


manifestações aleatórias. Se o curso dos maiores elementos da criação e seus efeitos
na terra, como as estações ou as marés, já foram determinados, seria lógico pensar
que o destino dos homens também pode ter sido fixado antecipadamente. Como nos
diz o filósofo grego:

Os seres humanos devem admitir como evidência da inteligência dos


astros e de todo esse movimento deles o fato de que sempre fazem as
mesmas coisas, porque estão fazendo o que foi decidido muito tempo
atrás e não mudam sua decisão a todo momento, às vezes fazendo uma
coisa e outras fazendo outra, vagando e mudando suas órbitas. 2

O curso dos corpos celestes pode, assim, refletir a caminhada da vida do


homem, e um homem sábio deve, portanto, estar atento a eles. Platão também nos
diz que: “Um verdadeiro capitão deve prestar atenção às estações do ano, ao céu, às
estrelas, aos ventos e a tudo o que pertence a seu ofício, se realmente quer ser o

1 Tradução em português: Platão, “Leis”, X, 885e-886a); original grego: “Κλεινίας: οὐκοῦν, ὦ ξένε,
δοκεῖ ῥᾴδιον εἶναι ἀληθεύοντας λέγειν ὡς εἰσὶν θεοί; Ἀθηναῖος: πῶς; Κλεινίας: πρῶτον μὲν γῆ καὶ
ἥλιος ἄστρα τε καὶ τὰ σύμπαντα, καὶ τὰ τῶν ὡρῶν διακεκοσμημένα καλῶς οὕτως, ἐνιαυτοῖς τε καὶ
μησὶν διειλημμένα: καὶ ὅτι πάντες Ἕλληνές τε καὶ βάρβαροι νομίζουσιν εἶναι θεούς.”
2 Tradução em português: Platão, “Epinomis”, 982c-d; original grego: “τοῖς δὲ ἀνθρώποις ἐχρῆν

τεκμήριον εἶναι τοῦ νοῦν ἔχειν ἄστρα τε καὶ σύμπασαν ταύτην τὴν διαπορείαν, ὅτι τὰ αὐτὰ ἀεὶ
πράττει διὰ τὸ βεβουλευμένα πάλαι πράττειν θαυμαστόν τινα χρόνον ὅσον, ἀλλ᾽ οὐ
μεταβουλευόμενον ἄνω καὶ κάτω, τοτὲ μὲν ἕτερα, ἄλλοτε δὲ ἄλλα πρᾶττον, πλανᾶσθαί τε καὶ
μετακυκλεῖσθαι.”
comandante de um navio”.3 O que é verdade para o capitão é, no entanto, também
verdade para todo homem, cuja vida está presa no fluxo do tempo, no girar da roda.

As forças em jogo nos céus são as mais visíveis e, portanto, as primeiras a ser
reconhecidas pelo homem. Vistas de qualquer parte da terra, por todo homem,
durante toda a vida, e apesar disso, ainda inacessíveis, as forças celestes são as
primeiras a ser identificadas como sendo maiores que o próprio homem. Essas
forças naturalmente passam a estar ligadas à origem e ao destino do homem, fato já
conhecido pelo filósofo grego: “Parece-me que os primeiros habitantes da Grécia
acreditavam apenas naqueles deuses em que muitos estrangeiros ainda acreditam
hoje – Sol, Lua, Terra, Estrelas e Céu”. As forças da natureza passam assim a ser
identificadas como “deuses”, mas isso não implica que esses deuses fossem os da
mitologia grega. Ao dar um nome a diferentes partes da natureza, o homem rompe
sua unidade para compreendê-la e trazê-la para seu mundo. O aparecimento do
primeiro “deus” marca o início da luta do homem para compreender a essência da
natureza e a essência de seu próprio ser. Quando criou a palavra “deus”, ele não
sabia o que essa palavra realmente designava, e milhares de anos de uso dessa
palavra podem ter levado os homens mais longe de uma resposta. Concentrando sua
reflexão na própria palavra, os homens tendem a esquecer o impulso que os levou a
criá-la. A criação do primeiro “deus” foi de fato uma pergunta e não uma resposta:
uma maneira de o homem cristalizar o temor fugaz experimentado enquanto
contemplava a grandeza da natureza e da essência do ser.

Uma vez que os “deuses” tenham adentrado no mundo do homem, seu


esplendor eclipsa as forças da natureza presentes em sua origem. A atenção do
homem é irremediavelmente atraída para essas representações feitas pelo homem,
e ele começa a ignorar a própria natureza, a negligenciar a experiência direta do
sagrado. Quando isso ocorre, a peça da natureza é substituída pela encenação dos
deuses: a grande experiência começa a ser substituída por uma mitologia. Como
apontado pelo filósofo alemão Friedrich Schelling, a própria natureza da linguagem
do homem convida a tal substituição:

Quando o alemão diz: O céu masculino [der Himmel]. A terra feminina [die
Erde]. O espaço masculino [der Raum]. O tempo feminino [die Zeit]. Quão
longe então se está realmente para, a partir disso, expressar conceitos
espirituais através de divindades masculinas e femininas? Fica-se quase
tentado a dizer: a própria linguagem é apenas mitologia desbotada; o que
a mitologia ainda conserva em diferenças vivas e concretas só se conserva
na linguagem nas diferenças abstratas e formais. 4

3 Tradução em português: Platão, “República”, 488d; original grego: “τοῦ δὲ ἀληθινοῦ κυβερνήτου
πέρι μηδ᾽ ἐπαΐοντες, ὅτι ἀνάγκη αὐτῷ τὴν ἐπιμέλειαν ποιεῖσθαι ἐνιαυτοῦ καὶ ὡρῶν καὶ οὐρανοῦ καὶ
ἄστρων καὶ πνευμάτων καὶ πάντων τῶν τῇ τέχνῃ προσηκόντων, εἰ μέλλει τῷ ὄντι νεὼς ἀρχικὸς
ἔσεσθαι, ὅπως δὲ κυβερνήσει”.
4 Schelling, “Historical-Critical Introduction to the Philosophy of Mythology”, p. 40; original alemão:

“Wenn die deutsche sagt : der Himmel, de Erde ; der Raum, die Zeit : wie weit ist es von da noch bis
zu dem Ausdruck geistiger Begriffe durch männliche und weibliche Gottheiten. Beinahe ist man
versucht zu sagen : die Sprache selbst sei nur die Verblichene Mythologie, in ihr sei nur in abstrakten
und formellen Unterschieden bewahrt, was die Mythologie noch in lebendigen und concreten
bewahre.” De: Schelling, “Sämmtliche Werke: Bd. Einleitung in Die Philosophie Der Mythologie”, p.
52.
A linguagem inicia o transporte dos deuses, das partes mais altas do céu e das
partes mais profundas da terra até a vizinhança dos homens. A imaginação do
homem, no entanto, logo assume a liderança na criação de uma mitologia. O jogo da
natureza, com seu arranjo harmonioso de forças frouxamente definidas, é
lentamente substituído por um teatro, onde deuses antropomórficos são os atores
de uma peça que espelha a vida do homem.

O nascimento da mitologia não deve, contudo, ser reduzido a uma decadência


da busca do homem por uma compreensão de sua experiência da natureza e do ser.
A criação de uma mitologia também contribui para a compreensão da experiência
da natureza que se encontra em sua fonte. Ela constrói uma ponte entre o homem e
as forças superiores (ou mais profundas), trazendo essas forças para a terra, para
fazê-las habitar no Mundo Humano. Os reinos da natureza são reconfigurados como
figuras antropomórficas, e a grande luta torna-se uma peça em que essas figuras são
os atores de um drama. O homem não tem uma experiência direta do que significa
ser a terra, os ventos e as nuvens, o sol ou as estrelas. Ele só sabe o que é ser humano.
Portanto, o jogo mitológico dos deuses é para o homem um meio de aproximar a
essência incompreensível da natureza de sua própria experiência. Ele transforma a
filosofia em psicologia, que é mais acessível.

A questão da acessibilidade da compreensão da natureza é uma das razões


que explicam o surgimento da mitologia. A observação da natureza e a tentativa de
trazer a admiração que ela inspira ao mundo do homem é obra do filósofo e do poeta.
Poucos responderão ao chamado da natureza, convidando os homens a desenvolver
seu vínculo com ela, mas aqueles que receberam o anseio e os meios para trazer a
essência da natureza e do ser ao mundo também receberam uma responsabilidade
para com a teutā: eles são chamados a conduzir aqueles que são cegos à essência da
natureza para mais perto dela. Insensível ao espetáculo da natureza que se
descortina cotidianamente diante de seus olhos, oferece-se ao povo de olhos
desatentos uma visão de algo mais acessível, algo que não requer nenhuma
sensibilidade a nada filosófico ou poético: a encenação dos deuses, uma mitologia
que retrata a essência da natureza e a luta de suas forças como uma batalha entre
deuses antropomórficos, cuja vida se assemelha notavelmente à dos membros do
povo.

A maior força da mitologia certamente é sua resiliência, e pode ser


precisamente essa uma das razões pelas quais as mitologias foram criadas em
primeiro lugar. As doutrinas filosóficas e o conhecimento dos Druidas foram
completamente perdidos. As canções dos Bardos da Gália caíram no esquecimento.
No entanto, vestígios da antiga sabedoria gaulesa permanecem: fragmentos de
conhecimento encapsulados nos mitos que atravessaram os séculos e milênios,
passaram de boca em boca ou registrados em manuscritos, obras de arte ou
inscrições. Resquícios da encenação dos deuses da Gália nos permitem percorrer o
caminho dos pensadores celtas para reencontrar a filosofia que formou o núcleo de
seu mundo. A mitologia, portanto, é mais do que um meio para explicar a filosofia da
natureza: é também um meio para reconduzir os homens à natureza, para convidá-
los a encontrar o caminho para uma experiência direta da majestade da criação e do
esplendor do sagrado.
A mitologia, no entanto, não é uma panaceia. É uma faca de dois gumes, que
pode levar os homens a fortalecer seu vínculo com a natureza, mas também pode
desviá-los. A mitologia surge da combinação de poesia e filosofia, mas como
Schelling nos diz: “Assim que uma mitologia está presente e preenche
completamente a consciência, ambas [mitologia por um lado, poesia e filosofia por
outro] inicialmente se afastam uma da outra em direções diferentes”. A mitologia
criada pelo filósofo e pelo poeta, uma vez confiada ao povo, começa a ser apropriada
por seus membros. Os homens que desconhecem a essência poética do mito, ou seja,
seu vínculo com a realidade da experiência da natureza, começam a transformá-lo,
alterando a encenação dos deuses para que reflita os dramas das vidas dos homens
de seu tempo. Assim, o mito perde progressivamente seu vínculo com a natureza.
Com a âncora cortada, torna-se um navio abandonado, sujeito à vontade de
inúmeros homens, empurrando-o em diferentes direções. Como nos diz Schelling, o
processo pode, no entanto, se estender por séculos, como foi o caso dos gregos: “Se
o primeiro traço de separação entre a filosofia e a mitologia já está em Hesíodo,
então demora todo o tempo de Hesíodo até Aristóteles antes de a filosofia separar-
se de tudo o que é mítico e, portanto, também de tudo o que é poético”. A conclusão
dessa ruptura do vínculo entre o mito poético e a filosofia não apenas diminuiu o
valor do mito: também enfraqueceu a própria filosofia, que se afastou da poética à
medida que os filósofos se refugiaram na escolástica, que lhes permite acreditar que
a natureza pode ser modelada de forma confiável como um maquinário complexo.

Quando o mito é desprezado e a poética ignorada, a própria linguagem torna-


se um ídolo, e o homem perde de vista a natureza do ser. A linguagem, no entanto,
está enraizada no mito, como está enraizada na poesia. Um homem só se ilude se
pensa que a busca da “verdade” pode acabar com o poético. Como nos diz Nietzsche:

O que é então a verdade? Um exército móvel de metáforas, metonímias,


antropomorfismos: enfim, uma soma de relações humanas que se
intensificaram poética e retoricamente, metamorfosearam-se,
adornaram-se e, depois de longo uso, parecem fixas a uma nação,
canônicas e vinculantes; as verdades são ilusões das quais se esqueceu
que são ilusões; metáforas gastas que se tornaram impotentes para afetar
os sentidos [die abgenutzt und sinnlich kraftlos geworden sind], moedas
que tiveram seu anverso [Bild] apagado e agora não são mais
consideradas moedas, mas apenas metal.5

O mito está sempre conosco. Nossa linguagem encontra suas raízes em mitos
antigos, representações poéticas da natureza que surgiram do assombro inspirado
pelo céu, a terra, o sol, as estrelas, os animais e os mares.

Ao ler Hesíodo ou Homero, a ligação entre os mitos e a natureza não seria


claramente aparente. Se sua escrita já representava uma alegoria da essência da
natureza, séculos de mudanças erodiram em grande parte seu vínculo com o
impulso poético que levou à sua criação. Essa decadência natural do mito, cuja
dimensão alegórica logo se perde, ocorre na maioria das culturas. Os celtas, no
entanto, representam uma notável exceção a essa regra. Mesmo sem nenhum texto
escrito, ou talvez por causa dessa ausência, o mito central do mundo celta parece
estar profundamente entrelaçado com a experiência da natureza. A dimensão

5 Tradução portuguesa de: Derrida and Moore, “White Mythology”.


alegórica desse mito parece ter permanecido aparente durante os séculos da
independência dos gauleses, desde o final do período Hallstatt (séc. V AEC) até à
época da conquista romana (séc. I AEC), embora uma separação entre o mito e a
filosofia da qual ele se origina já possa ser testemunhada desde cedo. Um milênio
depois, na Irlanda e no País de Gales, restará apenas um substrato muito fraco, que
seria facilmente ignorado sem as pistas deixadas por seus ancestrais continentais
dos celtas insulares.

A singularidade do mito gaulês reside nessa preservação de seu vínculo com


a poesia e a filosofia. Representa mais do que uma história destinada a entreter ou
mesmo a apresentar uma resposta imaginária às grandes questões que ocupam a
mente do homem: a origem e o propósito da criação, o próprio homem em
particular. Ele oferece uma representação direta do jogo das forças da natureza que
podem ser contempladas a cada dia. Está diretamente ligada a esses diferentes ciclos
da natureza: a história que conta é a que se mostra nos céus e na terra ao longo dos
dias, dos meses e dos anos, de modo a tornar prontamente perceptível seu vínculo
com a natureza. O crescimento e a perda dos chifres do gamo ou a migração anual
da garça representam partes importantes do mito, pois ocupavam um lugar
importante na vida dos antigos celtas. Com essa ligação entre mito e natureza,
história e realidade, mantida intacta, o povo celta pôde desfrutar plenamente dos
benefícios da sabedoria de seus pensadores. O povo como um todo, por meio dos
rituais e festas religiosas associadas ao mito, pôde desfrutar de uma proximidade
com a essência da natureza, fortalecendo sua relação com os “deuses”. Mesmo
aqueles que estavam cegos para essa essência da própria natureza, tão próxima do
homem que muitas vezes desaparece de seu campo de visão, tiveram a chance de
viver em harmonia com ela, com o ritmo de sua vida sendo feito para corresponder
aos ciclos da natureza por intermédio dos construtores de mitos: os poetas e os
filósofos, ou, se preferirem, os bardos e os druidas.

Vivendo em harmonia com as forças da natureza ao seguir a orientação do


mito, o homem pode viver próximo aos deuses. A natureza antropomórfica do mito
obscurece a linha entre o homem e os deuses: os seres superiores são assim trazidos
à superfície da terra, de cima ou de baixo, enquanto o homem pode se projetar como
desempenhando o papel de uma das forças da natureza em ação na grande luta. Esse
tipo de antropomorfismo ligados ao mito tem sido muitas vezes denunciado, mesmo
pelos próprios gauleses. É sabido por muitos que o rei Brennos de fato ridicularizou
os gregos por representarem os deuses como figuras humanas feitas de madeira ou
pedra! Os gauleses raramente usavam tais representações antes da conquista
romana, mas, como mostram o Caldeirão de Gundestrup e outros artefatos, imagens
desse tipo tiveram um lugar na vida espiritual dos gauleses, dentro da elite que
encomendou essas preciosas obras de arte. A capacidade de se projetar no mito
permite, de fato, um fortalecimento do vínculo do homem com a natureza, pois ele
pode ver mais claramente sua própria relação com essas forças, e a relação entre a
grande luta e as lutas que ele mesmo vivencia em sua vida cotidiana: amor, amizade,
traições, ódio ou desejos de vingança. Os temas do drama de qualquer vida humana
encontram eco no mais alto dos céus e nas profundezas da terra: o próprio homem
é parte da luta dos reinos cósmicos, mas também há inúmeras lutas imbricadas umas
nas outras, espelhando o grande conflito dos reinos em diferentes escalas.
Conforme argumenta o historiador belga Claude Sterckx, os antigos celtas
teriam dado grande importância à relação entre a natureza do universo e a natureza
dos numerosos elementos encontrados em seu meio: “cada elemento do universo
(microcosmo) funciona de acordo com às mesmas leis do universo como um todo
(macrocosmo) e cada descrição de uma delas pode ser aplicada às outras”6 algo que
pode ser relacionado ao conceito matemático de “autossemelhança”, como exibido
em fractais por exemplo. A vida dos homens, portanto, reflete a grande luta entre os
reinos. O ciclo anual é espelhado dentro do mensal, com uma alternância de poder
entre Escuro e Claro, e o ciclo mensal é espelhado a cada dia quando a luz do sol e a
noite lutam para dominar a terra e os céus.

A autossemelhança do universo aumenta consideravelmente o poder do


mito, se este se fundamentar na essência da natureza, pois implica que a história que
retrata não é apenas uma caricatura antropomórfica da grande luta oferecida a um
povo incapaz de apreender a essência filosófica da criação, mas que retrata tanto a
essência interior da humanidade quanto a essência da natureza ao mesmo tempo,
pois ambas “funcionam de acordo com as mesmas leis”, para emprestar as palavras
do historiador belga. Aliado à consciência de sua ligação com a essência da natureza,
o mito tem o potencial de solidificar o vínculo entre o homem e a essência do ser.
Caminhando no limite entre o mito poético e a observação científica da natureza, ele
tem a chance de realizar seu próprio destino, tornando-se uma manifestação viva e
consciente da tensão entre o Escuro e o Claro, o homem e a unidade da natureza.

Os vestígios deixados pelos primeiros deuses no solo da Gália permitem-nos,


portanto, redescobrir o que se perdeu quando o mito foi desvinculado da filosofia,
quando os filósofos abandonaram a comunhão com a essência da natureza, um
abandono selado por Aristóteles e que foi seguido por quase dois milênios de
tradição escolástica grega, romana e então cristã. Esses vestígios nos oferecem uma
chance, não de retornar a um “paganismo” vulgar, mas sim uma chance de mostrar
nossa prontidão para a chegada do surpreendente “último deus” mencionado por
Heidegger. Esse “último deus” só virá quando o homem voltar atrás no caminho a
fim de redescobrir os primeiros deuses, e tirá-los de seu esconderijo. O último deus,
no entanto, difere dos primeiros deuses, embora ambos sejam descobertos perto do
mesmo local. Como nos diz Heidegger:

O último deus tem sua própria peculiar singularidade e está fora da


determinação calculista expressa nos rótulos “monoteísmo”, “panteísmo”
e “ateísmo”. . . A multiplicidade dos deuses não está sujeita à enumeração,
mas, ao contrário, à riqueza interior dos terrenos e abismos no local do
momento para a iluminação e ocultação da antevisão do último deus.7

6 Original francês: “chaque élément du monde (microcosme) fonctionne selon les mêmes lois que
l’univers entier (macrocosme) et toute description de l’un s’applique aussi aux autres.” De: Sterckx,
“La mythologie du monde celte”, p. 135.
7 Tradução em português de: Heidegger, “Contributions to Philosophy”, pp. 325-326; original alemão:

“Der letzte Gott hat seine einzigste Einzigkeit und steht außerhalb jener verrechnenden Bestimmung,
was die Titel ‘Monotheismus’, ‘Pantheismus’ und ‘Atheismus’ meinen . . . Die Vielheit der Götter ist
keiner Zahl unterstellt, sondern dem inneren Reichtum der Gründe und Abgründe in der
Augenblicksstätte des Aufleuchtens und der Verbergung des Winkes des letzten Gottes.” De:
Heidegger, “Beiträge zur Philosophie”, p. 411.
É através da apropriação da tensão entre Escuro e Claro que o último deus
pode ser chamado, e sua antevisão percebida. Quando o homem tiver feito sua
grande luta, ele poderá então começar a se apropriar da essência de seu próprio ser
e do ser em si mesmo. Só então ele poderá pavimentar o caminho para a chegada do
último deus, cujo advento dependerá da capacidade do homem de propagar o evento
da apropriação do ser entre sua própria espécie.

O mito dos primeiros deuses representa o resultado do pensamento dos


antigos sábios, o fim de sua filosofia e o início da transmissão de seus
conhecimentos, dados como herança aos seus descendentes e à humanidade como
um todo. No entanto, também constitui um trampolim para nós, filhos distantes
desses antigos, que pode nos guiar de volta aos primeiros deuses e nos libertar das
cadeias da metafísica e da teologia. O caminho para o último deus nos leva antes aos
primeiros deuses para que o impulso poético que levou à sua criação possa ser
redescoberto e reencenado, não para criar novos deuses, mas apenas para nos
preparar para acolher o último deus, cuja vinda não pode ser forçada.

A narração do mito central da Gália que virá a seguir deve, portanto, ser
tomada como um convite a levantar o véu sobre a ligação entre a vida humana e a
essência da natureza, o giro da roda que nos leva em sua rotação. O que importa não
é se esse mito representa ou não uma reconstrução fiel daquele que foi contado
pelos Druidas da Gália: o que importa é que essa (re)construção pode nos ajudar a
reapropriar a essência da poesia e, em última análise, nos ajudar preparar-nos para
a chegada do último deus. Esta releitura do mito se abre com o que provavelmente
seria seu mais importante pilar: a história que espelha o ciclo anual.

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