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O ENEAGRAMA

J. G. Bennett

Gurdjieff ensinou a ciência do eneagrama de uma forma


fragmentária. Ele afirmava que esse esquema de nove linhas era o símbolo
da Fraternidade Sarmaun, uma ordem mística de homens sábios que
descobriram o segredo cósmico da autorrenovação perpetua e o
transmitiram através de muitas gerações.
Esse segredo foi conservado durante muitos séculos até que, há
2.500 anos, foi revelado a Zoroastro, a Pitágoras e a outros grandes sábios
que se congregaram em Babilônia na época de Cambises.
No momento atual do mundo, existe uma grande força que, de novo,
aponta para o eneagrama no sentido de que seja revelada alguma coisa
mais de seu segredo, com vistas aos novos tempos que hão de vir.
É o que fazem J. G. Bennett e alguns de seus discípulos neste livro,
que se dedica à decifração dos mistérios do eneagrama, considerado como
“um instrumento para se chegar à compreensão da estrutura de todos os
tipos de situações possíveis”.
Com explicações lúcidas e aplicações exaustivas, o autor apresenta
as linhas do eneagrama, não como um esquema artificial ou arbitrário,
mas como a maneira mais simples e natural de considerar os
acontecimentos e o modo como eles ocorrem, a chave para a compreensão
da verdadeira estrutura da inteligência humana.
EDITORA PENSAMENTO
J. G. BENNETT

O ENEAGRAMA

Um estudo pormenorizado do eneagrama


usado por Gurdjieff para
simbolizar o trabalho da consciência
tanto na vida diária como nos níveis esotéricos.
Tradução
DANIEL CAMARINHA DA SILVA

EDITORA PENSAMENTO
São Paulo
Título do original:
Enneagram Studies

Copyright © Espólio de J. G. Bennett

Edição Ano

-3-4-5-6-7-8-9 •93

EDITORA PENSAMENTO
Rua Dr. Mário Vicente, 374 - 04270 São Paulo, SP
Impresso em nossas oficinas gráficas.
Sumário

Agradecimentos
Prefácio
Introdução à Primeira Edição (inglesa)
A Visão do Todo
O Triunfo Sobre o Acaso
Uma Cozinha em Funcionamento
O Processo Industrial
O Homem Como Transformador de Energia
A Realização da Beleza
A Transformação do Homem
A Simbiose Biosférica
O Eneagrama Planetário
Apêndice I: Processo Estruturado na Experiência Científica
Apêndice II: O Sermão da Montanha
Agradecimentos

Sou muito grato a Elizabeth Bennett por me haver permitido utilizar


o seguinte material da obra de J. G. Bennett: The Enneagram (que aparece,
nesta obra, nos Capítulos 1, 3, 5, 7 e 9); The Dramatic Universe, Vol. III
(Coombe Springs Press, 1976), pp. 64-9 (Capítulo 2), pp. 109-14 (Capítulo
6), pp. 276-86 (Capítulo 8); Needs of a New Age Community (Coombe
Springs Press, 1977), pp. 81-93 (Apêndice II).
Quero agradecer igualmente ao Conselho do Instituto para o Estudo
Comparativo de História, Filosofia e Ciências, pela permissão de usar a
seguinte matéria do jornal Systematics: “A Sistemática de um Processo
Industrial”, Vol. I, n. 2, 1963 (Capítulo 4); “Processo Estruturado na
Experiência Científica", Vol. III, n. 4, 1966 (Apêndice I).
Preparei os originais para que se inserissem harmoniosamente na
presente obra, sendo de minha inteira responsabilidade as modificações
feitas, bem como as opiniões emitidas no prefácio e os erros cometidos.

A. G. E. Blake
Prefácio

O princípio do eneagrama é um grande segredo. Somente através


deste princípio poderemos penetrar na realidade. Onde houver um trabalho
que não esteja fadado ao fracasso, ele será o padrão do esforço útil, eficaz
e transformador. É o caminho através do qual um verdadeiro valor é
acrescentado ou realizado. Ele é Deus, o guru e os discípulos unidos em
harmonia.
Embora tudo que chegue à realidade o faça por essa via inteligente,
sua natureza é mal conhecida. Mesmo quando minúsculos aspectos dela
reluzem em nossa consciência, surpreende-nos que as coisas se disponham
desse modo. Cada exemplo que dela experimentamos tende a confundir-se
com aquilo sobre o que ela é — arte, ciência, organismos vivos,
desenvolvimento de si — e perde-se a essência. Aparecerá um entendido e
fará maravilhas, ou um guia virá depois e conduzirá as pessoas no
progresso de sua transformação. Depois, no entanto, aplaude-se o
entendido e glorifica-se o guia, enquanto a realidade do que toma a
realização possível permanece invisível e inexplorada.
Estudar o eneagrama é como tentar interpretar o vácuo. A cada
momento, o que está realmente ali se desfaz em nada. Entretanto, deriva
dele o poder de criar universos. As explicações e os exemplos
apresentados aqui são um mero alimento a ser transformado. É necessário
um estômago forte e sucos digestivos adequados.
J. G. Bennett passou muito tempo trabalhando na compreensão
do eneagrama. Do que, desde a sua morte, chegou até nós, começamos
a perceber que ele mal arranhou a superfície, como sempre dizia. Até
mesmo as explicações dadas pelo próprio Gurdjieff não passaram de
traços fragmentários do grande segredo. No presente momento, talvez
haja no mundo um grande poder desejando que mais desse segredo
seja revelado aos que estão ávidos por conhecê-lo.
O essencial deste livro foi originariamente publicado em 1974 e
consiste nos Capítulos 1, 3, 5, 7 e 9. Acrescentamos material tirado de
O Dramático Universo e de Necessidades de uma Comunidade da
Nova Era. de Bennett, e também do jornal Systematics, a fim de
concentrar num livro o que tomamos a liberdade de publicar. Os
artigos de King e de Pledge constituem contribuição muito valiosa.
Gostaríamos de ter incluído o material elaborado por grupos não
ligados a Bennett, mas o momento ainda não é propício. Isso é um
contratempo, visto que o que foi publicado sobre o eneagrama
representa apenas uma fração do seu campo de interesse.
O conhecimento do eneagrama tem origem numa fonte muito
elevada e não é exclusivo de Gurdjieff e de seus seguidores. Um novo
conhecimento foi divulgado a umas poucas pessoas no Ocidente; mas
a sua transmissão tem que ser feita de forma prática, através de um
trabalho interior real. Basta dizer que todos os que têm vontade de
compreender terão acesso ao material de que necessitam, e o que está
incluso nesta obra poderá servir de degrau para alguns.

A. G. B. Blake Daglingworth,
dezembro, 1979.
Introdução à Primeira Edição

Vivemos num mundo de corpos e energias. Os corpos celestes,


tais como os planetas, as estrelas e as nebulosas, são enormes,
comparados aos nossos próprios corpos, mas todos eles são
igualmente corpos. Os átomos são minúsculos, mas também são
corpos com dimensão, forma, duração no tempo e localização
espacial. Todos esses corpos estão constantemente intercambiando e
transformando energias, mas o fazem de modos muito diferentes.
Uma distinção evidente que se pode fazer é entre corpos vivos e
corpos sem vida. As coisas sem vida estão num estado de declínio e de
dissolução contínua. As coisas vivas estão num estado de
autorrenovação e equilíbrio de fluxo. As coisas sem vida podem durar
muito tempo, mas têm o destino selado no momento em que surgem:
mais cedo ou mais tarde deixarão de existir. As coisas vivas não duram
para sempre e sua vida pode ser até muito curta e precária, mas,
enquanto estão vivas, têm o poder de se manter num nível de energia
superior ao do seu ambiente.
Nós, os seres humanos, pertencemos ao mundo da vida, mas não
estamos satisfeitos com essa existência curta e precária. Queremos
durar. Uns querem a imortalidade e uma vida infindável além-túmulo.
Outros querem se perpetuar através dos filhos e descendentes.
Muitos desejam viver na memória da posterioridade e nas obras
que criaram. Alguns querem simplesmente adiar o instante da
morte.
Parece que os homens sempre estiveram em busca do
segredo da perpétua renovação de si mesmos. Vemos isso numa
das mais antigas lendas preservadas pelo homem: a história de
Gilgamesh, o herói sumeriano, e sua peregrinação em busca do
segredo da imortalidade. Mais ou menos na época em que o
poema épico de Gilgamesh foi compilado a partir de uma
canção mais antiga, há uns 4.500 anos, apareceu na
Mesopotâmia uma fraternidade de homens sábios que
descobriram o segredo cósmico da autorrenovação perpétua e o
transmitiram através das gerações. Durante muito tempo, esse
segredo foi preservado na Babilônia: há 2.500 anos foi revelado
a Zoroastro, a Pitágoras e a outros grandes sábios que se
congregaram na Babilônia, na época de Cambises (o rei persa
que conquistou o Egito em 524 a.C.). Em seguida, os guardiães
da tradição migraram para o Norte e, cerca de mil anos atrás,
alcançaram Bukhara através do rio Óxus (atual Amu Daria).
No século XV, alguns matemáticos, pesquisando em suas
escolas, descobriram a importância do número zero e criaram o
sistema numérico decimal, que hoje todos nós utilizamos.
Observou-se, na época, que, quando se dividia a unidade por três
ou por sete, surgia uma nova espécie de número. Chamamos
hoje esse número de dízima periódica.
Quando dividimos a unidade por três, obtemos uma
sucessão infinita de três; assim:
1/3 = .33333..., que se escreve .3

A soma de outra terça parte a esta gera uma sucessão


infinita de seis; assim:

1/3 + 1/3 = 2/3 = .66666... ou .6

Também quando somamos a terça parte final, resulta uma


sucessão infinita de noves; assim:

1/3 + 1/3 + 1/3 = 1 = .99999... ou .9

A partir daí, obtemos um simbolismo para a unidade como uma


interminável recorrência do número nove.
Quando dividimos a unidade por sete, no entanto, outro padrão
numérico, mais complexo, aparece; este não contém nenhum
algarismo três, seis ou nove. Assim:

1/7 = .142857142857... ou .142857

e as somas sucessivas de sétimos reproduzem esse padrão, mas


começando de algarismos diferentes, deste modo:

2/7 = .285714
3/7 = .42857Í
4/7 = .571428
5/7 = .714285
6/7 = .857142

Quando somamos a sétima parte final, essa sequência


desaparece, dando lugar, de novo, ao algarismo recorrente nove,
assim:
7/7 = 9

Essas propriedades foram combinadas num símbolo, que deu


provas de ter espantosa significação. Este símbolo podia ser usado
para representar qualquer processo que se mantém por autorrenovação,
inclusive, naturalmente, a própria vida. Ele consiste em nove linhas e,
por isso, é chamado eneagrama.
Seis dessas linhas derivam da unidade dividida por sete e as
outras, da unidade dividida por três. Os pontos onde essas linhas tocam o
círculo são numerados de 1 a 9, como no diagrama da figura 1. O próprio
círculo simboliza o zero.

Fig. 1 — O símbolo do eneagrama

Todos os que entraram em contato com as ideias de


Gurdjieff viram uma representação desse símbolo, que foi
adotado como emblema de muitíssimas instituições e
fraternidades, inclusive o nosso próprio Instituto para o Estudo
Comparativo.
Em certas partes da Ásia, ele é utilizado como
instrumento de adivinhação, isto é, para interpretar a forma dos
eventos futuros. Gurdjieff disse que, em certa Fraternidade
Universal, o eneagrama é o repositório do seu mais importante
conhecimento secreto e que os membros da fraternidade podem
não só se reconhecer pelo eneagrama, como verificar, através de
perguntas e respostas, qual deles está mais adiantado e, desse
modo, qual deles deve assumir o papel de mestre.
O eneagrama também pode ser utilizado para representar
o processo vital de qualquer espécie vegetal ou animal, inclusive
do homem. Pode, além disso, ser aplicado a qualquer
organização como um teste da sua capacidade de manutenção de
sua própria existência e para identificar pontos fracos e defeitos.
Estamos, no momento, dirigindo uma pesquisa dos diferentes
modos como as pessoas realizam tarefas que envolvam
liderança, cooperação, subordinação, previsão e engenhosidade.
Essas várias qualidades requeridas para uma ação bem-sucedida
podem ser representadas pelas linhas do eneagrama, o que nos
permite relacioná-las com as necessidades da tarefa como um
todo.
Temos de relembrar aqui a utilização que Gurdjieff fazia da escala
musical de sete tons como um símbolo do processo de transformação.
Começando pela propriedade das vibrações, que consiste na repetição do
mesmo tom ou qualidade de som todas as vezes que a velocidade da
vibração se reduz à metade ou se duplica, temos o diapasão (em grego,
através de todas as cordas} ou a oitava. Há uns 2.500 anos, foi descoberto
que o som intermediário produzido pela adição de um quarto, de um terço
ou de um meio de tom dá, corno resultado, sons aceitáveis pelo ouvido.
Desse modo, Pitágoras e outros estabeleceram o que chamamos hoje
escala de sete tons, cujas notas foram denominadas por Guido d'Arezzo há
quinhentos anos: dó, si, lá, sol, fá, mi, ré. Notou-se, num estágio muito
inicial, que os intervalos entre dó e si e entre fá e mi são diferentes dos
outros cinco, na medida em que mudam a intensidade apenas de cerca da
metade. Esses intervalos são chamados semitons. Os gregos não
atribuíram importância especial a essas propriedades, mas, na Ásia
Central, deu-se-lhes uma significação cósmica. Gurdjieff encontrou
casualmente a tradição e a desenvolveu como uma característica central do
seu sistema. Em Beelzebub's Tales,{1} os intervalos dó-ré, ré-mi, fá-sol,
sol-lá e lá-si, são chamados Harnel-Miatznel e diz-se que se ajustam ao
seguinte princípio: “O superior se mistura com o inferior para dar origem
ao intermediário e se torna, assim, ou superior para o inferior precedente,
ou inferior para o superior subsequente”. (Beelzebub's..., p. 751)
Os intervalos mi-fá e si-dó são chamados Mdnel-In e são os
lugares em que o processo deve receber “ajuda exterior”. Isso é mostrado
no eneagrama, onde os pontos 6 e 9 são Mdnel-In para as três oitavas
precedentes. O ponto sol. o mais afastado em relação aos dois dós. é
chamado Harnel Aoot. Nesse lugar diz-se que o processo está
“desarmonizado”.
Para uma descrição mais completa da “Lei de Sete” deve-
se consultar minha obra Gurdjieff — Making a New World.{2}
Somente a partir da experiência é que podemos nos convencer de
que os “intervalos” de Gurdjieff dão uma explicação satisfatória
do modo como as coisas correm bem ou mal num processo
autorregulador.
Este livro baseia-se em palestras realizadas em 1973 e
1974, em Sherborne House, para estudantes já familiarizados com
as ideias de Gurdjieff, e foram revisadas para se tomarem
apropriadas aos leitores interessados em compreender a tradição
esotérica.
As ideias da parte referente ao eneagrama planetário têm
muito em comum com o pensamento da Nova Era, mas encerram
uma mensagem especial para aqueles grupos que estão buscando
se preparar para os futuros tempos de perturbações. Por mais
diferentes que sejam os modos como tais grupos veem a situação
e por mais conflitantes que possam parecer suas devoções
específicas, é necessário que eles se conheçam mutuamente e
partilhem, tanto quanto possível, sua experiência e compreensão.
Não há caminho exclusivo na direção da verdade, nem mesmo um
caminho melhor, embora cada um de nós pense assim. O
Trabalho, como a Natureza, produz uma quantidade enorme de
sementes e as espalha por toda parte para garantir que, embora
muitas possam cair à beira da estrada, no seu devido tempo a
colheita virá. Devemos fecundar as nossas próprias sementes, mas
nem por isso desprezar as dos outros.
J. G. Bennett, 1974.
A Visão do Todo

Gurdjieff disse certa vez: “Conhecer é conhecer tudo; não conhecer


tudo é não conhecer. Para conhecer tudo é preciso conhecer muito pouco,
mas, para conhecer esse pouco, é preciso primeiro conhecer muito.” O
eneagrama é uma experiência desse pouco, mas, para compreendê-lo,
precisamos de muita experiência. Ele pode se tomar para cada um de nós
uma fonte inesgotável de compreensão e inspiração, porque permite que os
nossos processos de pensamento se ajustem tanto à forma do mundo como
à do nosso próprio ser. Ele é um instrumento que nos permite ver quando e
de que modo os eventos se ajustam às leis cósmicas e reconhecer, assim, o
que é possível e o que não é possível nos empreendimentos humanos.
O eneagrama é um instrumento que nos ajuda a adquirir uma
percepção e uma ação mental triádicas. Enquanto nossos processos
mentais comuns são lineares e sequenciais, o mundo em que vivemos é
tríplice. Segundo Gurdjieff, a triplicidade é uma das “Leis Cósmicas
Sagradas fundamentais” e deve ser estudada por todo aquele que quer
compreender-se a si mesmo e compreender o mundo no qual vive.
Achamos difícil ver o conjunto do que está ocorrendo dentro de
nós e à nossa volta, porque nosso pensamento é linear, o que significa
pensar ao longo de uma só linha ou por associação. Deixamos escapar
episódios importantes e não podemos compreender como é que os
processos seguem o caminho que seguem. Quando as coisas vão mal, é
raro sabermos onde ou como corrigi-las. Isso não é uma desvantagem
séria, quando pensamos nos processos que são por si mesmos lineares, tais
como a maioria dos que ocorrem no mundo material. No entanto, é um
fracasso, quando tentamos pensar no homem e nas suas ações, porque
essas coisas não são lineares. O homem é muito complexo e sua vida é
sempre constituída de diferentes processos que não podem ser separados
sem deturpação. Para pensar de maneira satisfatória sobre o homem temos
que ir além do pensamento linear a fim de ver a coesão interior. O mundo
espiritual é absolutamente não-linear; por isso não podemos, de forma
alguma, pensar nele de maneira comum. Temos, portanto, que encontrar
uma nova maneira de pensar. Para mudar nossa maneira de pensar,
devemos reconhecer, antes de tudo, que não se trata de olhar a um só
tempo várias linhas diferentes, mas de reconhecer que há uma estrutura no
que se está olhando. A estrutura pode ser imperfeita mas, se não estivesse
presente de algum modo, não poderíamos compreender nada.
Como ilustração disso, tomemos o exemplo de uma refeição
que está sendo preparada na nossa cozinha em Sherborne. O fato
evidente é olhar para o alimento e dizer que o processo de
preparação de uma refeição é um processo de transformação do
alimento. Isso é absolutamente verdadeiro, mas não é a história
toda, pois algo está ocorrendo também na própria cozinha. A
cozinha deve estar num certo estado de preparação e as coisas vão
mudar nela. Seu estado tem de ser mantido. Não basta ter
cozinheiros; algumas pessoas devem desempenhar o papel de
auxiliares de cozinha e de lavadores, cujas tarefas são as de manter
as condições que permitam a preparação da comida. É necessário
ajuda na preparação dos legumes ou de outros alimentos crus.
Normalmente temos tudo isso como certo e não percebemos a sua
importância, porque nossos pensamentos fluem numa só linha. Só
nos damos conta quando as coisas andam mal e, nesse caso, o
cozinheiro começa a se preocupar com a função do auxiliar de
cozinha e este com o processo de cozinhar.
O pensamento linear só admitirá como importante o trabalho de
cozinhar e não fará caso da necessidade de manter a ordem na cozinha, da
limpeza dos utensílios e do abastecimento do que é necessário. No entanto,
o processo completo de fazer uma refeição não se restringe sequer a essas
séries totalmente distintas de eventos, sendo uma série as mudanças que
estão ocorrendo na própria cozinha e outra as mudanças que o alimento
está sofrendo. Há algo também que está acontecendo com as pessoas, e é
preciso que isso também seja levado em consideração. Quando se está
preparando uma refeição, sobretudo numa escala muito grande, o que toma
essas distinções significativas, muitas pessoas devem ser levadas em
conta: as que cozinham, as auxiliares, as que põem a mesa e todas as que
vão comer a refeição. O que está acontecendo com elas é também parte
essencial de todo o processo; elas devem poder se comunicar entre si para
que compreendam as necessidades umas das outras e, sendo necessário,
trocarem de papéis. Os que estão cozinhando se tornarão depois aqueles
que comem. Ora, podemos ver que isso é obviamente necessário e não
atribuímos importância especial a tudo isso, a menos que algo esteja indo
mal; nesse ponto, podemos dizer que há um “mau relacionamento” entre
os cozinheiros e os auxiliares e assim tudo se descontrola ou talvez as
pessoas não se deem ao trabalho de saber o que vai acontecer com a
refeição; quem pode comer o quê, quem estará presente ou não, de modo
que se esteja preparando comida de mais ou de menos. Algo está indo mal,
mas não associamos o fato de que “algo está indo mal” com a preparação
da refeição. Se considerarmos agora a preparação da refeição caseira como
um evento completo, poderemos ver que se pode pensar linearmente em
cada um desses três processos, embora cada um deles seja de caráter
essencialmente diferente dos outros. Eles não podem se substituir
reciprocamente. Considerando as coisas desse modo, se perguntarmos:
“Será possível preparar uma refeição sem cozinha, sem utensílios e sem
fogo?”, a resposta será: “Não, não haverá nenhuma preparação de comida,
se não houver, de uma forma ou de outra, todas essas coisas.” Mesmo que
estejamos acampando ao ar livre, necessitamos de certas condições e
apetrechos que tomem isso possível. É evidente que não se pode cozinhai
sem alimentos, assim como não se pode ou não se poderia preparar comida
sem ter quem cozinhe. Assim, a comida e os convidados são ambos
independentes entre si e também mutuamente necessários. Não há evento
algum como a preparação de uma refeição a menos que estejam presentes
a cozinha, o alimento e os convidados. Eles são rigorosamente
interdependentes. O modo como um age determinará o modo como agem
os outros. Mas o modo como eles se afetam mutuamente não é algo de
todo evidente e, em geral, só por experiência é que aprendemos aos poucos
o que é necessário.
Com experiência é possível ver que há diferentes ritmos. A
ordem da cozinha e dos seus utensílios segue um ciclo que se
completa. Quando tudo está convenientemente organizado, a cozinha
começa limpa, com todos os seus apetrechos limpos e em seus
respectivos lugares, e, pronta a comida, ela é posta novamente na sua
situação inicial. Completou um ciclo. Aconteceu algo na cozinha,
mas esta voltou ao seu estado inicial. Com o alimento ocorreu coisa
diferente, pois mudou a sua condição de alimento cru para a de
alimento cozido. Não voltou ao seu primitivo estado, mas, em vez
disso, passou por uma variedade de processos irreversíveis.
Com as pessoas não se passa nem uma coisa nem outra. Elas
não passam por um ciclo nem sofrem uma mudança irreversível. Se
tudo corre bem, sabem e desempenham os seus papéis e, desta forma,
permanecem livres. Se se identificam ou se perdem dentro do
processo, então algo de integridade e de perfeição se perde.
Desempenhando seus papéis sem perder a própria liberdade, as
pessoas podem se manter independentes do processo e, apesar disso,
são elas que o tornam possível. Tudo depende da atividade delas, mas
estas não passam, ou não deveriam passar, pelo mesmo tipo de
processos pelos quais passam a cozinha ou a comida. Elas podem ser
envolvidas se, por exemplo, a cozinha entrai em desordem e, neste
caso, as próprias pessoas se identificam emocionalmente com o que
anda mal. Se se mantiveram imunes, o processo se desenvolveu bem.
Se, ao acabar de fazer a comida, ficaram exaustas ou de mau humor,
ou se estão excitadas ou algo ocorreu como consequência da
preparação da comida, novamente se perdeu energia, alguma coisa
foi desperdiçada. Elas foram, por assim dizer, cozidas com o
alimento.
Tudo isso serve para ilustrar o que eu disse no início, que há
diferentes espécies de processos e, em geral, que os eventos dependem da
ação conjunta de eventos de espécies ou naturezas diferentes. É raro nos
depararmos com processos que sejam de tal modo completos em si
mesmos que possamos reconhecer essa estrutura ou o modo como atuam
juntos. Vivemos, de modo geral, num nexo ou numa rede complexa de
processos parcialmente completos, que, juntos, confundem todo o mundo.
Mas onde encontramos um processo que precisa ser completado, vemos
então que essa estrutura que acabamos de descrever, no caso da cozinha e
da preparação de uma refeição, realmente sobressai. Isso, naturalmente,
não é acidental; é a ação de leis cósmicas exemplificadas em cada escala,
grande ou pequena.
Tomemos outro exemplo da nossa vida como pessoas. O homem
tem três naturezas diferentes a serem completadas: há a sua natureza
corporal, a sua vontade ou natureza espiritual e o seu ser ou natureza
anímica. É certo, embora raramente compreendido de modo correto, que o
homem tem três partes — o corpo, a alma e o espírito. No Homem
verdadeiro, o corpo, a alma e o espírito estão presentes juntos, como as
três partes da preparação de uma refeição. O corpo é comparável à
cozinha, a alma à refeição, o espírito ou vontade às pessoas que fazem a
comida sob a direção do cozinheiro-chefe. Utilizo as palavras vontade e
espírito com a mesma significação. Essas três naturezas absolutamente
diferentes que existem no Homem estão envolvidas em três processos
diferentes dentro da vida. O corpo passa por um ciclo que vai do
nascimento à morte. Geralmente não vemos como esse ciclo se renova ou
que a nossa vida, como a conhecemos, é de fato exatamente como a
preparação de uma refeição. A refeição que está sendo preparada nas
nossas vidas é a alma. A matéria-prima dessa refeição é toda a nossa
experiência. De um modo mais geral, pode-se dizer que há o mundo como
um palco, o teatro ou a cena dentro da qual ocorrem os eventos e este
mundo é como o corpo ou a cozinha. Há sempre essa semelhança. Dentro
dele, há um processo em curso, no qual algo está sendo formado. A ideia
da alma do mundo, anima mundi, é uma noção antiga. Há também o poder
ou a vontade que está procurando se prover da alma do mundo. Do mesmo
modo, há nesta terra este planeta, que é também como a cozinha, e há a
vida na terra. Essa vida está sendo transformada gradualmente até que
possa finalmente ser incluída num processo maior. Numa grande escala,
que dura milhares de milhões de anos, há um grande cozimento ocorrendo
nesta terra. Há também uma Vontade ocupada em realizar o grande evento
da produção, a partir desta terra, de um todo vivo para servir algum grande
propósito ou banquete cósmico.
A primeira coisa a se compreender em relação ao eneagrama
é a semelhança universal dos eventos. Onde não estiver presente o
caráter tríplice dos eventos haverá algo irreal; estará faltando uma
dimensão. Como eu disse no início, cometemos um erro, quando
tentamos compreender e interpretar os eventos em termos de uma
ou de outra das dimensões. Considerando, por exemplo, a atual
situação do mundo em que nós, seres humanos, estamos vitalmente
envolvidos, inicialmente sem termos a figura do eneagrama nas
nossas mentes e depois com essa figura (que não se pode deixar de
perceber que deve corresponder à realidade), podíamos perguntar,
usando a analogia da cozinha: “Que estão fazendo os auxiliares de
cozinha? Que é que está ocorrendo com essa cozinha? Parece que
os cozinheiros não estão trabalhando. A comida está ficando mal
preparada em alguns pontos e queimada noutros. As coisas não
estão indo bem.” Se não encararmos as coisas dessa maneira, que
tipo de imagem teremos da situação da humanidade? Admitimos
que a comida está sendo feita por si mesma, mais ou menos no
vácuo. Mas, uma vez que apreendemos a semelhança e vemos
como deve ser, percebemos que a coisa não pode ocorrer num
vácuo. Podemos ser seres vivos inteligentes, mas, quanto ao
processo mundial, somos apenas alimento malcozido.
Temos o exemplo no nosso próprio corpo, que geralmente se
toma para ilustrar esse assunto, das três espécies de alimento do
Homem, chamados comida, ar e impressões. Cometemos o erro de
julgar que só o alimento comum que comemos é que nos está
alimentando, porque ele entra na nossa experiência sensorial. O
alimento comum tem relação com a condição do organismo corporal;
não é alimento da nossa alma. A resposta de Jesus a Satanás: “Nem só
de pão vive o homem, mas de toda palavra que vem da boca de Deus”
nos dá essa ideia. Não é o pão, mas a respiração, que alimenta a alma.
Gurdjieff expressa isso quando chama o ar que respiramos de
“segundo alimento do nosso ser”. Somos alimentados também, num
sentido ainda mais profundo, pela nossa experiência. O nosso alimento
espiritual é extraído da nossa experiência de vida. Nossa
transformação depende de como assimilamos as energias que derivam
desses três alimentos. Para os que não conhecem as ideias de
Gurdjieff, chamar de “alimentos” essas três fontes é enganoso, porque
elas são alimentos em sentidos diferentes e isso faz as pessoas
pensarem na transformação do homem de modo bastante inadequado.
O que ocorre com essas três fontes é totalmente diferente. O alimento
que comemos, o nosso alimento comum, se movimenta num ciclo.
Circula e nada mais faz do que manter a condição do corpo. Como
numa cozinha com os seus apetrechos, que devem ser mantidos em
ordem, e o fogo, que deve ser fornecido para cozinhar, esse alimento é
a fonte da energia básica da transformação futura, mas não é o
alimento mesmo. O alimento, o que nutre a alma do homem, é o ar que
ele respira; mas, se começarmos a considerar o ar e a esperar dele a
mesma espécie de mudanças que vemos na comida comum, então nada
compreenderemos, porque é coisa absolutamente diferente.
Durante muito tempo, essa compreensão e conhecimento
da transformação do ar pelo homem desapareceu por alguma
razão. Temos apenas os restos de um antigo conhecimento que nos
fala disso, porque, em várias línguas, há palavras que ficaram e
que ligam o ar à alma. Em latim, a palavra anima é tanto
respiração como alma; o árabe Ruh ou o hebraico Rokh significam
também respiração e alma. Em sânscrito, a raiz TMA, que se
refere à respiração, dá Atman, o eu ou alma. A raiz NFS dá, em
árabe, Nefes, que é respiração ou eu, e, em hebraico, Nefesh, com
aproximadamente o mesmo significado. Na língua turaniana, a
raiz Tang entra em palavras que designam o ar, o céu e as nuvens
e aparece também na palavra que designa o Grande Espirito,
Tangri.
Os nômades da Ásia Central, cujas migrações para leste,
sul, sudoeste e oeste transformaram toda a oikoumene{3} desde o
Atlântico até o Pacífico, veneravam o Ar e a Respiração como o
Poder do Espírito, a fonte de toda a vida e da sabedoria. Quanto
mais recuamos no tempo, maior é a evidência de uma crença
universal na correlação entre a respiração, princípio da vida, e a
alma do homem. Perdemos o contato com a crença de que o
controle da respiração tem algum significado especial para a
transformação do homem. Essa crença existe principalmente nas
tradições antigas, que quase se perderam no Ocidente e têm sido,
nos últimos séculos, trazidas de volta do Oriente. As pessoas
ouvem falar de palavras como prana e sabem que este tem algo
que ver com a vida interior da alma do Homem, mas isso é quase
tudo. Não é, pois, surpreendente que se compreenda muito pouco
sobre como a alma surge no homem, que o que ocorre com o ar
que respiramos é comparável ao processo de cozinhar: algo tem
que acontecer para que ele possa se tomar perfeito.
Há depois a terceira espécie de ação, que se relaciona com
a nossa experiência. Reconhecemos que a maneira como vemos,
ouvimos, pensamos e sentimos e tudo aquilo que nos acontece nos
nossos modos de experimentar são, de certa forma, importante
para nós. O que não é tão fácil de ver é que o que importa é onde a
nossa vontade está na nossa maneira de perceber. Até que ponto
estamos separados e somos livres em toda essa experiência? Até
que ponto podemos ser os nossos próprios cozinheiros? Esse
processo está ligado à nossa transformação como um todo. Não
basta tratar o ar, a comida e as impressões como se fossem
matérias-primas que sofrem transformações semelhantes às da
comida quando cozida. Três processos verdadeiramente distintos
são indispensáveis a nós e às nossas relações recíprocas. Só
poderemos compreendê-los, se captarmos o modo como atuam
simultaneamente. Gurdjieff disse — e isso se encontra em muitas
tradições, como no Rig Veda, por exemplo — que é pela
respiração que a alma do Homem nasce. Aqui está dito algo
absolutamente digno de nota, mas infelizmente está bastante fora
do nosso alcance, porque, ao considerarmos nossa própria
transformação, não podemos ter o necessário distanciamento para
podei ocupar a posição do cozinheiro na cozinha.
É necessário insistir no fato de que o eneagrama não pode sequer
começar a ter qualquer significação enquanto não se tiver percebido a
distinção dos três processos e sua interdependência. Refletindo sobre
isso, começa-se a ver como a estrutura é universal e está entrelaçada
com a própria estrutura do universo; a razão disso é que a natureza da
criação da qual somos parte é a junção do que está acontecendo, com
quem está acontecendo e como está acontecendo. Esses três
componentes, que chamamos Junção, ser e vontade, entram em tudo.
Não são redutíveis entre si. Obedecem todos a leis semelhantes, mas,
para cada um deles, estas leis operam de modo diferente.
O aspecto funcional de cada evento é geralmente rítmico. Tudo
acontece em ciclos. Todo o funcionamento do nosso organismo, por
exemplo, é em ciclos: nossa respiração, a batida do coração, a atividade
e o repouso, o nascimento e a morte. Tudo é um processo que retoma a
si mesmo e se renova. Onde a função não parece ser cíclica é porque o
processo é truncado ou interrompido, ou aquilo que estamos vendo é
uma pequena parte de um ciclo maior e parece ser duradouro, porque
vemos muito pouco para reconhecer o seu ritmo.
O ser não é assim. O ser não retoma a si mesmo, nem sofre
essa espécie de progressão de transformação cíclica. Está sempre
em integração ou desintegração, em evolução ou involução,
movimentando-se no sentido da unidade ou da multiplicidade.
Com o terceiro componente — a vontade —, há a grande
dificuldade de estarmos sempre diante do que toma tão difícil
saber o que dizer. É impossível dizer se há ou não vontade.
Mesmo perguntas simples como “A vontade existe ou não?” ou
“Ela muda ou permanece a mesma?” ou “É uma ou muitas?” se
tornam sem sentido, porque estamos considerando algo a que não
é aplicável esse tipo de distinção. Perguntas que nos parecem
aplicáveis a tudo mais não se aplicam aqui. É muito confuso e
difícil para nós. Dizemos que “se ela existe, deve estar em algum
lugar. Se é uma realidade, então deve pelo menos existir.” Se
perguntamos: “Se temos vontade, temos uma vontade ou
várias?”, nos respondem: “Não, não é essa a maneira de falar,
pois não existe nenhuma distinção entre uma e várias. Unidade e
multiplicidade só existem no nosso ser, não na nossa vontade.” É
fácil ilustrar isso. A água na terra é uma só e a mesma em toda
parte e, apesar disso, assume várias formas que dependem das
condições da existência exterior. Os rios, os mares e os oceanos,
as nuvens e a chuva, a água de um reservatório, de um recipiente
ou do orvalho numa folha são todas a mesma água. A ação
fundamental da água é sempre a mesma: é um fluido neutro que
toma possível uma infinita variedade de transformações, mas
que, em si mesma, não é transformada. A água volta eternamente
a ser água. Podíamos dizer, embora com palavras diferentes,
exatamente a mesma coisa sobre a vontade.
Uma forma possível de falar é que há uma vontade que se
fragmenta em muitas e muitas vontades que se integram no
sentido de uma única vontade. Dizendo isso não estamos
realmente falando da vontade em si, mas apenas da maneira pela
qual ela se manifesta através do ser. Embora possamos dizer que
temos muitos eus diferentes em nós, que podem se integrar ou se
fragmentar, tomando-nos assim mais ou menos divididos, isso
não se aplica à vontade.
Os três processos — função, ser e vontade — surgem em diferentes
formas; às vezes, é mais fácil ter uma imagem mental deles, outras é
muito mais difícil. No homem, falamos de corpo, de alma e de espírito e,
na cozinha, temos a própria cozinha, o alimento e as pessoas que vão
comer. De modo geral, há algo que podemos chamar de circunstâncias,
condições ou lugar, há algo que sofre a transformação e há algo que realiza
essa transformação ou que utiliza o que é transformado.
O Triunfo Sobre o Acaso

Ninguém que tenha observado a vida e a história dos homens pode


duvidar de que a incerteza e o acaso sejam tão reais quanto a ordem e a
perfeição. Nenhuma descrição do homem e do seu mundo teria muito
valor se não desse plena importância à realidade da incerteza e não
mostrasse a maneira de superá-la,
A chave do problema do acaso reside na combinação de dinamismo
e coalescência, que resulta da junção das propriedades da tríade e da
héxade. Isso é obtido ligando-se uma tríade de transformação à héxade,
para se chegar ao símbolo conhecido como eneagrama.

Fig. 2 — Combinação da tríade com a héxade

Traça-se comumente o símbolo na forma de um círculo que


representa a serpente Cronos devorando a si mesma pela cauda.
O sistema de nove termos tem a característica sistemática de
harmonização e os termos são de duas espécies: há três pontos de partida
e seis etapas. No diagrama da figura 3, os pontos de partida são numerados
3, 6 e 9 as etapas, 1, 4, 2, 8, 5 e 7. Há uma dupla progressão: em volta do
círculo, de 1 a 9, e em torno da héxade na ordem 1-4-2-8-5-7.

Fig. 3 — A serpente Cronos

Pode-se compreender melhor o eneagrama, se se considerar uma


falha amplamente reconhecida no princípio de causalidade. Para ter
sentido, um efeito tem que se relacionar exclusivamente com a sua causa
para que seja possível traçai uma linha da causa A até o seu efeito B,
representando P, o caminho ou sequência de eventos.

Fig. 4 — Causalidade ideal

O processo P, iniciado em A, tem que enfrentar condições


ambientais que destroem a simples correspondência uma a uma AB. Não
será mais possível, conhecendo-se A, predizer com certeza B. O processo P
se desviará do caminho esperado e será levado a um efeito modificado B1.
Fig. 5 — Desvio das sequências causais

O nexo causal AB se desfez e foi substituído pela ligação


indeterminada AEB1, na qual E representa as condições ambientais. Dessa
forma, uma pessoa sai de A para ir ao destino B, mas encontra um amigo E
muda o seu plano e vai para B1. Na prática, desvios dessa ordem ocorrem
em todos os processos sujeitos às leis da existência e disso resulta o
caráter incerto e ocasional dos eventos tanto na vida humana como no
mundo em geral. É possível dispor as coisas de modo que a linha P, ao ser
desviada por E, seja reorientada na sua direção original, por meio de um
segundo impulso causal S, que toma possível, desse modo, chegar
finalmente a B. A pessoa que encontra um amigo pode também receber um
lembrete de que ela é necessária em B e assim voltar ao seu caminho
primitivo. Trata-se aqui de uma simplificação muito grande, pois as
tendências ao desvio são tão variadas que se tomam imprevisíveis, exceto
onde estiver sendo realizada uma experiência planejada de maneira
artificial. Isso é feito na pesquisa científica, que procura compensar os
impulsos imprevisíveis e mediante condições experimentais
cuidadosamente ajustadas. Quando a experiência de laboratório tem que
ser modificada em escala e transposta para as condições da vida prática,
surgem novos problemas de compensação e de ajustamento. Cuidar deles é
o domínio da tecnologia e isso exige um discernimento das estruturas que
só vem com muita experiência.

Fig. 6 — Correção do desvio


Mesmo quando todos os ajustamentos possíveis são feitos, as
incertezas permanecem e o resultado de um processo não corresponde
nunca, de maneira exata, ao plano inicial A. Descobrimos que isso é assim
em todos os empreendimentos humanos, e devemos esperar que ocorra o
mesmo com todos os processos dirigidos, sujeitos às condições de tempo e
espaço.{4} Se considerarmos A como o nexo causal completo e B como o
propósito ou meta, a inevitabilidade do desvio se manterá. A não pode
abranger todas as influências que podem afetar o processo, uma vez que
ele tenha começado, nem B pode conter todas as condições futuras que
determinarão o sucesso ou fracasso viável da empresa. A pessoa pode, na
sua jornada, conseguir chegar a B e depois achar que uma mudança
inesperada de piano, fora do seu controle, tomou a sua jornada inútil.

Generalizando essas considerações, podemos reformular a


proposição referente ao acaso universal da seguinte forma:

A Estrutura do Universo é tal que nenhum processo, causai ou


intencional, ou ambos, poderá chegar ao seu termo, exceto em
condições ambientais planejadas artificialmente.

Todas as experiências demonstram essa proposição, que é a


consequência quase evidente do caráter das condições determinantes de
espaço e tempo. Contudo, ela é geralmente negligenciada tanto no estudo
da natureza como nas questões práticas da vida humana. Se a aceitarmos, o
sentido da expressão “condições ambientais planejadas artificialmente”
adquirirá enorme importância e se apresentará como a chave para a
compreensão da própria vida.
Não é difícil ver que as condições exigidas devem implicar pelo
menos duas linhas independentes de realização: uma para dar uma direção
inicial e outra para efetuar o ajustamento e a adaptação necessários. Um
automóvel, por exemplo, para chegar ao seu destino, necessita tanto de um
motor como de um motorista: o primeiro o faz andar e o segundo assegura
que ele vai na direção certa. Nos tempos modernos, começaram a inventar
mecanismos autorreguladores. O “mecanismo primário” e o feed-back que
toma possível o ajustamento deles às condições ambientais variáveis são
construídos independentemente. A teoria cibernética leva em conta a
possibilidade de modificar os terminais para que o mecanismo seja não
apenas autorregulador, mas auto aperfeiçoador. Nesse caso, há uma
terceira operação independente: a de verificar a condição final e compará-
la com o ideal. O feedback operacional e o produto final auto
aperfeiçoador constituem, com a construção primária, os três termos de
uma tríade. É digno de nota o fato de que, quando uma fábrica produtora
de dispositivos mecânicos como um automóvel se aproxima dessas
condições, verifica-se que a sua estrutura organizacional se aproxima da
estrutura do eneagrama.{5} O estudo dos organismos vivos mostra que
essas estruturas, que são não apenas autorreguladoras e autorrenovadoras,
mas também finalistas, sempre se amoldam ao mesmo padrão. Parece, por
conseguinte, que, embora a existência, na sua própria essência, deva ser
permeada de incerteza e acaso, há inserida nela um meio de triunfar sobre
os dois. Dificilmente se pode exagerar a importância dessa suposição. Se
ela puder ser confirmada, nos dará a chave do Drama Universal: o Deus ex
machina por meio do qual a tragédia aparentemente inevitável é
compensada e se toma um triunfo.
Nesse ponto, só nos resta desenvolver a sistemática formal do
eneagrama. Começaremos estabelecendo algumas afirmações mais ou
menos evidentes:

1. Todo processo, que leva de um estado inicial A a um estado


final B, deve sofrer desvio e distorção devidos às
perturbações ambientais.
2. Só com um sistema construído artificialmente para
compensação do processo se pode fazer este continuar num
curso predeterminado.
3. Pode-se identificar um momento de acaso, no qual um
processo pode ser corrigido do desvio pelo impacto de um
segundo processo correlato e independente, CD, iniciado
nesse momento.
4. Mesmo o segundo processo exige um ajustamento do
mesmo modo que o primeiro. Quando esse segundo
ajustamento EF é corretamente utilizado, o sistema é levado
a um estado de harmonia dinâmica que pode prosseguir
indefinidamente enquanto a construção se mantiver unida.
5. Os três processos devem ser de tal ordem, que se combinem
e se reforcem reciprocamente após cada momento de
impacto mútuo.
6. A construção deve ser de tal ordem, que haja uma interação
dos ajustamentos à parte dos próprios processos. O mais
recente produz o resultado e o anterior impede que a
construção entre em colapso ou degenere.

Essas várias exigências podem ser representadas pelo símbolo do


eneagrama.
Os três processos AB, CD e EF correspondem aos três ângulos do
triângulo 9-3-6. Eles são o dinamismo da estrutura.
A construção interna corresponde à figura de seis pontas 1-4-2-8-5-
7, que indica o modo pelo qual os processos se corrigem e reforçam
mutuamente para obter autorrenovação.

Fig. 7 — Três processos que se corrigem mutuamente

O primeiro processo AB inicia a construção no ponto 1. Alcança o


seu momento de acaso em 3, onde encontra o processo CD e os dois
prosseguem pelos pontos 4 e 5. Em 6 o segundo acaso é corrigido pelo
início do processo EF, A completação de X5 ocorre no ponto 9, onde o
acaso final deve ser ultrapassado.
As setas da figura 1-4-2-8-5-7 indicam a direção do fluxo das
influências dentro da estrutura.
Uma Cozinha em Funcionamento

O eneagrama não é um esquema artificial ou arbitrário, mas a


maneira mais simples e natural de considerar os acontecimentos e o modo
como os mesmos ocorrem. Podemos começar mais uma vez com o
exemplo da cozinha.
A cozinha deve estar pronta para ser usada: limpa, o equipamento
em condições de uso e os utensílios nos seus respectivos lugares. Ela foi
posta nessas condições antes do cozinheiro entrar. A próxima coisa
necessária é que se conheça a comida que deve ser preparada, quais são os
utensílios com que se vai trabalhar, em que ordem tudo será feito e quem
será responsável pelas diversas atividades. Uma vez ou outra, todas essas
coisas devem ser fixadas de antemão; mas, para o processo metódico,
todas elas devem ser levadas em conta. Se, como cozinheiro-chefe, formos
incumbidos de preparar uma refeição, entraremos na cozinha de um modo
diferente de quem não é cozinheiro. Examinaremos cada coisa da cozinha
e, embora nada provavelmente tenha sido mexido, as veremos de maneira
diferente. Decidiremos que tal utensílio será usado e que outro não o será,
mas deverá ser deixado na prateleira. Talvez algumas coisas não estejam
realmente no lugar e prontas para serem utilizadas, mas, nessa altura, é
possível determinar as coisas da cozinha que serão ou poderão ser
utilizadas e as que não o serão.
Algo que poderemos chamar de “plano invisível” se instala nesse
momento na cozinha. Já se pode discernir a futura sucessão dos eventos.
Na primeira etapa, não se podia fazer distinção entre o que era necessário
e o que não era; agora, é possível. Os que estão relacionados com a
cozinha olham tudo com uma visão diferente, percebem as coisas que
serão necessárias e deixam de notar as que não serão; mas nada começou,
nada ocorreu a não ser, talvez, que algumas coisas foram destacadas.
Sabemos todos o que deve acontecer agora: os mantimentos devem dar
entrada e, em seguida, começa a primeira etapa, o início do processo de
cozimento, que é a preparação dos mantimentos.
Podemos imaginar o processo de preparação, ainda que, na prática,
todo ele não ocorra antes que se comece a cozinhar: mas tudo deve estar
na cozinha antes do cozimento. A mudança efetiva começa quando algum
tipo de energia é empregada, particularmente o fogo» nesse caso. Isso é a
característica do cozinhar. É possível que se faça de outras maneiras: algo
tem que ser cortado em pedaços, triturado ou batido, mas, para
transformar os mantimentos numa refeição» é necessário que haja algum
tipo de entrada de energia. É então que se chega à etapa irreversível. Uma
vez que essa energia tenha sido introduzida no processo,
caracteristicamente na forma de calor, o alimento não pode voltar mais ao
seu estado inicial.

Em seguida, os mantimentos cozidos devem ser transformados na


refeição a ser servida; a refeição é apresentada aos convidados, àqueles
que a comerão. Várias coisas ocorrem nesse momento. Há molhos e
guarnições, os trabalhos de trinchar e fazer os arranjos, o serviço de
garçom e o transporte dos pratos; tudo isso dá como resultado o fato de o
alimento sair da cozinha na forma de uma refeição. As várias partes das
travessas são combinadas e apresentadas por um processo diferente do de
cozinhar. Quando tudo é bem feito e como deve ser, o processo passa a ter
uma qualidade estética adicional. O propósito não é mais transformar os
mantimentos em algo comestível, mas tomá-los apetitosos. Antes de se
chegar a esse ponto, a preocupação era com as necessidades do corpo.
Agora o interesse é pela sensação das pessoas que vão comer. O molho
deve ser provado, a comida deve ser bem apresentada, a sua aparência
deve ser agradável e deve ter harmonia. O potencial da sensação está
sendo posto em relevo. Por que é assim? Porque, nessa etapa, o que
importa não é tanto o que se está fazendo com os mantimentos, mas o que
se passará com as pessoas que vão comer a comida: como a aceitarão,
como irão saboreá-la e como a sensação de comer será aumentada nelas.
Evidentemente há outra etapa, a de comer a comida, e agora se
toma claro todo o propósito e significado da operação: a refeição foi
preparada para ser comida.
Em cada uma dessas etapas, a perspectiva que o cozinheiro-chefe
tem da cozinha muda, projetada na sua imaginação. Ele sabe o que é
indispensável para que cada etapa corra bem. Tendo adquirido
experiência em cozinhar, ele se tomou mais sensível às necessidades de
cada uma dessas seis etapas. Ora, o que nesse caso é muito claro, tão
evidente que seria impossível pensar de outra forma, é que o processo
não pode ser realizado apenas por um único componente. Não importa o
que façamos na cozinha; não se terá uma refeição a não ser que se
ponha mantimentos nela. Não se pode do mesmo modo falar numa
refeição sem levar em conta as pessoas que vão comê-la. A palavra
refeição não terá significado algum, se se restringir às pessoas que
comem a comida ou ao fato de que há pessoas presentes para comê-la;
pode-se empregar outra palavra, mas não refeição. É claro que essas três
coisas — a cozinha, os mantimentos e a refeição — são todas
necessárias e se combinam entre si, levando o processo num sentido
único e definido. Não podemos inverter a ordem de nenhuma dessas
coisas, salvo se estivermos vivendo num mundo às avessas. Não
podemos comer os mantimentos antes de cozinhá-los, não podemos
cozinhá-los antes de prepará-los e não podemos servir a comida até que
esteja pronta. Desse modo, a estrutura é inerente a um processo desse
tipo, mas não é linear. Há conexões cruzadas e uma coerência interna
que devem ser vistas e levadas em conta.
Nesse ponto, temos que ver se há alguma coisa universal,
se essa ilustração do funcionamento de uma cozinha é apenas
uma coisa especial, muito interessante em si mesma e nada mais,
ou se ela ilustra um processo universal, exigido em cada escala
por tudo que tenha que chegar a um fim.
Tomemos essa questão da mudança que se opera na
cozinha quando o ato de cozinhar está começando. Todas as
coisas adquirem um sentido que se baseia naquilo que é
necessário, mas como sabemos disso? Para que coisa olhamos?
Não podemos dizer olhando para a cozinha, porque esta é
universal, e pode ser usada para preparar qualquer tipo de
refeição. Para preparar uma determinada espécie de refeição,
precisamos saber o que vamos cozinhar. Se forem batatas, deve
haver uma decisão no sentido de saber se serão cozidas, fritas ou
assadas. Só quando decidimos qual a maneira apropriada de
cozinhar as batatas é que podemos escolher o utensílio que vamos
usar: uma frigideira, uma caçarola ou um forno. Isso quer dizer
que temos que antecipar uma etapa antes de podermos ver como
chegar a outra. Temos que voltar a atenção para os mantimentos a
fim de decidir o que fazer com a cozinha. Não olhamos para a
cozinha para decidir o que fazer com os mantimentos. Há dois
procedimentos aqui: o que se passa na cozinha e como ela
funciona. O modo como ela funciona exige às vezes uma olhada
para trás e outras, uma olhada para a frente, mas o que se passa
nela, se passa por etapas.
Vamos pôr agora essa cena no eneagrama. Chamamos
ponto 1 “cozinha pronta para funcionar”. Chamamos o ponto 2 “a
cozinha em funcionamento”. Para ver o que é necessário fazer
para que a cozinha funcione, voltamos a atenção para o ponto 4,
onde os mantimentos já foram introduzidos. Se dissermos que o
ponto 3 é onde os mantimentos são introduzidos e o ponto 1 é a
cozinha, então o movimento de 1 a 2 será chamado “início do
funcionamento1'. Podemos ver facilmente que temos de visualizar
o ponto 4 para chegar ao 2. É o ponto 4 que nos informa o que
será necessário e o que não será utilizado ou deixado na
prateleira.

Fig. 8 — A cozinha como um cosmo

Chamamos isso de “preparação da comida”. Podemos dizer tudo


isso, quando sabemos que refeição será preparada e quais os mantimentos
que serão cozidos. Para onde olhamos em seguida? Devemos voltar a
atenção para a situação concreta "comer a refeição”. O planejamento da
refeição não se faz em relação apenas aos mantimentos ou ao processo de
preparação da comida, mas em relação ao ponto 8, isto é, à própria
refeição. Temos de pular do ponto 2 para 8. A menos que se faça isso, o
planejamento da refeição será artificial ou não terá a combinação justa ou
talvez não seja dieteticamente equilibrado. Tudo isso depende de se
considerar o que vai ocorrer, quando a refeição for comida. Por isso, o
ponto 2 fica entre 4 e 8. O ponto 2 tem que levarem conta o que se tem
disponível para cozinhar e o que vamos comer no fim. Só levando em
conta essas coisas é que o planejamento da refeição pode ser judicioso, e,
se pararmos para pensar um minuto, estas são as duas únicas coisas que
consideramos, quando estamos preparando uma refeição: "Que tenho para
cozinhar?” e "O que ocorrerá às pessoas que vão comê-la?” Supondo que a
cozinha esteja devidamente equipada e apresente todas as condições
exigidas para cozinhar, de modo que possamos fazer o que seja possível
com os mantimentos, temos a liberdade de levar em consideração como
será em relação às pessoas. Quando estamos no ponto 2, voltamos a
atenção para o 4, que nos diz o que vamos cozinhar, e para a própria
refeição, que é o ponto 8.
Considerando os lados direito e esquerdo do eneagrama, podemos
ver que são totalmente diferentes. Todas as coisas do lado direito estão
cruas, todas as do lado esquerdo cozidas. Outra forma de dizer isso é que
todas as coisas do lado direito ocorrem do lado de fora, atuando na parte
exterior dos mantimentos e das pessoas. Tudo o que acontece no lado
esquerdo é no interior. Esse lado começa no ponto 5, ‘‘cozinhar os
alimentos”. As alterações nos mantimentos, a transformação dos amidos e
a decomposição das proteínas, são necessárias para tornar o alimento
comestível, e elas ocorrem no lado esquerdo. O fogo opera no interior de
todos os outros processos pelos quais tornamos a comida aceitável e
facilmente digerível. Tudo o que se refere à sensação ocorre do lado
esquerdo com a apresentação da comida e seu atrativo visual e olfativo,
quando é posta na mesa. Quando a comida passou do processo de
preparação ao processo digestivo, tal fato dá início a outro eneagrama ou
ciclo. Isso ocorre quando o ponto 8 passou ao 9 de outro ciclo diferente, o
da digestão, mas que tem exatamente a mesma estrutura. Se olharmos
novamente para o ponto 5, que é o ato concreto de cozinhar, veremos duas
coisas importantes quanto ao modo de cozinhar. Uma é que o alimento
deve ser cozido e comestível, outra é que deve ser apresentável. A
preocupação é com a sensação, com o efeito psicológico ou sensível da
comida, com o que as pessoas veem, tocam, com o sabor e o cheiro que
sentem, e com o seu desenvolvimento posterior, a digestão e a
assimilação. Quando estamos no ponto 5, temos que considerar essas duas
coisas. A atitude em relação à comida muda completamente entre os
pontos 4 e 5. Numa cozinha ampla e muito bem organizada, pessoas
diferentes se ocupam com o lado direito e com o esquerdo do diagrama. A
perícia no cozinhar, a preparação do molho, o serviço e a apresentação dos
pratos, pertencem inteiramente ao lado esquerdo deste. O trabalho manual,
o manuseio dos utensílios, a limpeza da cozinha, o transporte dos
mantimentos, o seu corte e preparação pertencem ao direito.
Nesse processo, o ponto 6 é sempre uma posição difícil de
compreender. Qual é o papel dos comensais? É certo que eles são a razão
de tudo que está sendo feito. É para que as pessoas tenham uma refeição
que lhes seja totalmente aceitável em função das suas necessidades
corporais, das suas impressões, dos seus sentimentos e da sua inteligência
que empreendemos tal tarefa. Se considerarmos isso como uma oitava, as
pessoas representarão o dó final, mas o que significam os comensais, visto
que estão colocados no ponto 6? Isso se toma bem claro, quando se trata
do processo da preparação de uma refeição, porque é evidente que os
comensais entram no lugar onde a refeição vai ser servida. É por causa
deles que a refeição sai da cozinha. Os comensais introduzem uma nova
significação. A comida não é mais considerada em si mesma, mas no que
pode dar às pessoas e no que ocorre nelas. A sua disposição de comer, todo
o seu sistema digestivo é posto em funcionamento pela visão e pelo cheiro
da comida no ponto 7, que chamamos “servir a refeição”. O que ocorre a
elas é análogo ao que acontece aos mantimentos que estão sendo
preparados e à cozinha quando está sendo posta em condições. Assim, os
pontos 1, 4 e 7 são todos semelhantes. Cada um representa uma
preparação, a preparação da cozinha, do alimento e dos comensais. Do
mesmo modo, os pontos 2, 5 e 8 também são semelhantes, porque cada um
representa uma ação, aquilo que está acontecendo com esse processo
específico. A cozinha, ao entrar em funcionamento como um lugar de
cozinhar, é representada pelo ponto 2. É a comida sendo preparada que é
representada pelo ponto 5. As pessoas comendo são representadas pelo
ponto 8. Assim, 1, 2, 4-5, 7-8 representam transformações semelhantes,
mas que ocorrem em meios totalmente diferentes. Só o fato da
transformação é que é semelhante. O meio é totalmente diferente e a
própria transformação que ocorre efetivamente é de natureza diferente.
Se considerarmos a última ligação, a de 7 com 1, veremos que
ocorre dessa forma, porque a restauração da condição primitiva da cozinha
se dá assim que a refeição é servida. O ponto 8, “comer a refeição’1, nada
tem que ver com isso. Logo que a refeição é servida, a atenção das pessoas
que trabalham na cozinha se volta novamente para a própria cozinha. Tudo
é recolocado em ordem, pronto para o ciclo que vai começar em seguida.
Não podemos fazer isso logo que a refeição esteja preparada, pois ela
também tem que ser servida. Depois que a refeição é servida, no ponto 7, é
que a cozinha retoma ao ponto 1. Desse modo, vemos que esse diagrama
representa com muita exatidão o processo de uma forma que não
poderíamos alterar, porque ele não é artificial. É a expressão exata de
“como as coisas são”. Mostrei isso muitas vezes a chefes de cozinha que
não tinham qualquer conhecimento dessas ideias e eles sempre disseram:
“Sim, é isso mesmo.” Podemos ver, por este exemplo, como o
funcionamento de três diferentes processos é necessário para que algo
ocorra realmente.

•••
Os tópicos seguintes são respostas dadas a perguntas dos alunos. O
ponto 6 é o dos comensais, as pessoas que comem a refeição. Mas é
correto dizer que todos estão aí incluídos, até mesmo os cozinheiros e os
seus auxiliares. Se considerarmos uma situação ideal, a preocupação e o
interesse deles é que essa refeição cumpra o seu destino. Todos veem a
refeição em função do que vai acontecer com a comunidade como um
todo. Nesse sentido, ela inclui os cozinheiros. Se dissermos que eles não
são verdadeiramente o mesmo que os convidados, estaremos certos. Temos
então que levar isso em conta e perguntar-nos por que razão. Se não há
realmente aqui nenhum lugar para os cozinheiros, onde estão eles?
Podemos dizer que eles representam a vontade que realiza tudo. Todo o
evento é a manifestação da vontade do cozinheiro e, portanto, em verdade,
ele está em toda parte. Não há um lugar onde possamos fixar o cozinheiro.

•••
O ponto 9 representa o início da digestão da comida. Às vezes
perguntam como é que o eneagrama tem os pontos 1-4-2-8-5-7, quando
não há nenhum 10 e nenhuma divisão por 7. É possível construir um
modelo, como o fizemos há muitos anos atrás em Coombe Springs, com o
eneagrama numa espiral, de modo que os dois dós estejam separados.
Embora, quando são projetados num plano, esses dós sejam o mesmo, o
processo se move numa espiral. Na verdade, não é necessário fazer isso,
porque o eneagrama é apenas uma taquigrafia mental ou uma forma de
manter o padrão na nossa mente. É esse o valor do eneagrama e a razão
pela qual podemos nos beneficiar muito, habituando-nos a ele, de modo
que possamos considerar os processos e ver os fatores que surgem e as
coisas que estão faltando. Todos nós podemos ver o que acontece numa
cozinha quando não se leva cm conta apenas uma dessas relações. Não é
coisa muito grave o fato de um auxiliar de cozinha entusiástico retirar da
prateleira todo um conjunto de frigideiras e descobrir que a comida vai ser
cozida e não frita. Mas, quando deixamos de atentar para isso, o processo
se toma definitivo, as mudanças são irreversíveis e os erros começam a
acompanhar o processo.

•••
Essa figura interna de seis pontos 1-4-2-8-5-7, representa o que se
passa na visão mental do cozinheiro. É a mente deste que percorre os
pontos 1-4-2-8-5-7, enquanto a própria comida percorre os pontos 4-5-6-7-
8 e a cozinha passa pelos pontos 1-2-3-4-5-7-8. Quando o cozinheiro
considera as coisas do ponto de vista da refeição acabada e da sua
consumação, ele tem em mente as duas coisas que estão nos pontos 2 e 5.
Uma é a situação da cozinha e outra, o processo de cozinhar ou as pessoas
que tem sob o seu controle. Ele tem sob o seu controle os auxiliares de
cozinha que vão fazer o trabalho do lado direito e que entram em ação no
ponto 2 e os próprios cozinheiros, que entram em ação no ponto 5.
Devidamente equilibradas, essas duas coisas darão como resultado a
conclusão da refeição. A sua própria intenção está presente o tempo todo,
imaginando como será a refeição na hora de ser comida.
Os três pontos 3, 6 e 9 são os pontos de contato com o mundo
exterior. A cozinha foi equipada a partir do exterior, ela não se equipa a si
mesma. Os mantimentos vieram de fora, não cresceram dentro da cozinha.
Os convidados vieram de fora, não saíram da cozinha. Este é um aspecto
muito importante, quando somos levados a aplicar o eneagrama às três
espécies de alimento do Homem. Não é o cozinheiro quem convida os
comensais nem é ele na verdade que normalmente encomenda os
mantimentos, mas o responsável pelas provisões. Não é o cozinheiro quem
equipa a cozinha. Se estivéssemos considerando isso em função de um
grande restaurante, poderíamos supor haver uma firma contratada para
montar a cozinha. Haveria um maítre responsável pela recepção dos
convidados. A responsabilidade do cozinheiro estaria dentro da cozinha. É
evidente que pode ocorrer de as coisas se tomarem mais simples e que
uma pessoa tenha que desempenhar vários papéis. É claro que uma mãe
que cozinha para a sua família tem que ser tudo. Vai até mais longe e se
toma uma convidada. Mas, mesmo quando ocorre essa circunstância, os
papéis ainda estão presentes.
Às vezes nos perguntamos por que, mesmo para as pessoas que
gostam de cozinhar, é tão difícil cozinhar para si mesmas e tão fácil fazê-
lo para os outros. É porque é difícil a gente desempenhar o papel desse dó;
temos que ser a “nossa própria força neutralizadora”. Sabemos como é,
quando estamos preparando uma refeição para nós mesmos, especialmente
se a tivermos que fazer inúmeras vezes: vamos para a cozinha e vemos os
mantimentos e sentimos que não podemos conciliar uma coisa com outra;
assim, acabamos desistindo e tomando uma xícara de chá. Há toda uma
série de outras explicações para o fato de ser tão difícil cozinhar para si
mesmo, mas é interessante que deve haver também uma explicação
cósmica.
•••
O ponto 7 está relacionado com a sensação, com o que está
acontecendo dentro das pessoas. Exteriormente, do ponto de vista de
efetivamente suprir as pessoas de comida, não importa a quantidade do
que é posto no prato, porque os molhos não são parte importante do valor
nutritivo da comida. O ato de servir faz parte do aspecto estético, mas é
muito importante. Uma refeição que negligencia o ponto 7 carece de algo
muito definido. Se compreendermos isso, compreenderemos então o
significado da nota lá da oitava. Às vezes, ao estudar a lei das oitavas,
podemos compreender algo sobre a nota sol, mas pode ser difícil ver o que
acontece, exceto que a qualidade é enfatizada. Isso é muito importante em
relação à comida e noutros exemplos de um processo que se completa a si
mesmo.
O processo concreto da refeição dá uma volta completa na parte
exterior do círculo: limpeza geral da cozinha (ponto 1), decidir o que vai
ser cozido e distribuir tarefas (ponto 2), entrada dos mantimentos (ponto
3), começo da preparação destes (ponto 4), cozimento (ponto 5), tocar a
campainha (ponto 6), servir a refeição (ponto 7), comê-la (ponto 8), ir
embora e fazer a digestão (ponto 9); esse processo gira na parte externa do
círculo e esse é o único caminho que pode seguir. Mas, do ponto de vista
do processo mental e do modo como se efetua, ele segue a sequência 1-4-
2-8-5-7. É isso que faz do eneagrama esse símbolo extraordinário. É
realmente um espanto que esse símbolo notável tenha sido criado e deve-
se um grande respeito àqueles que o criaram. É digno de nota mencionar
aqui que o grande Bahauddin, Xá de Bukhara» foi chamado Nakshband ou
construtor de símbolos, e dizem que ele teria revelado os seus
ensinamentos por meio de símbolos. Quando o eneagrama começou a
aparecer pela primeira vez abertamente (provavelmente no século XV,
quando surgiu o sistema decimal) não é improvável que Bahauddin ou
seus sucessores tenham algo a ver com ele.
A profunda significação do eneagrama reside na distinção que ele
faz entre o ciclo funcional, que é o que segue a sequência 1-2-3-4-5-6-7-8-
9 e o ciclo da vontade, que obedece à sequência 1-4-2-8-5-7.

•••
Alguém fez uma pergunta inteligente sobre o papel do fogo: “Não
seria o fogo uma entidade independente? Ele não participa como os
mantimentos e as pessoas o fazem.” Mas se pensarmos nele, veremos que
participa do meio pelo qual todo o processo de cozinhar é executado.
Embora seja um recurso peculiar e extraordinário, não passa, no entanto,
disso. Um instrumento ainda mais extraordinário está presente na cozinha:
a inteligência do cozinheiro, que não deve ser esquecida. A inteligência do
cozinheiro é também parte do modo como a cozinha funciona. No entanto,
ela não entra no processo, não é o alimento, não sofre transformações.
O cozinheiro-chefe deve ver o progresso como um todo. O seu papel
não é acompanhar cada parte do processo de cozinhar desde o princípio até
o fim. Ao contrário, ele deve ser capaz de ver o fim antes do princípio.
Esse papel “intemporal” é de importância central para a compreensão de
qualquer processo cósmico e uma das virtudes do eneagrama é nos
permitir ver isso claramente.

•••
O eneagrama pode nos dizer quem somos realmente, mas devemos
primeiro saber que ele nos fala. Podemos, um dia, descobrir que o
eneagrama é mais do que uma representação de nós mesmos, só que ao
contrário: o direito é esquerdo, e o esquerdo é direito. Lembro-me
vivamente quando vi pela primeira vez que o eneagrama era uma
representação de mim mesmo. Ouspensky estava fazendo uma conferência
sobre o eneagrama por volta de 1924 e me pediu que traçasse o diagrama
no quadro-negro. Quando eu estava riscando as linhas familiares, senti-me
saindo de mim mesmo e entrando no diagrama. Observei que estava me
defrontando comigo mesmo e percebi pela primeira vez a diferença
fundamental entre os dois lados do nosso corpo. Quanto tempo isso durou
não sei, mas, desde aquela noite, me convenci de que o eneagrama é um
diagrama vivo e que podemos nos sentir como eneagramas. Estava
particularmente impressionado por ver que compreendia o ponto 6,
embora não fosse com a cabeça.
Há uma entrada em cada estágio onde algo está sendo feito. Qual é a
diferença entre o lado direito e o esquerdo do eneagrama? Num outro caso,
diríamos que o lado esquerdo é o aspecto espiritual e o direito o material.
É do lado esquerdo que saímos do mundo no qual começamos. Este é o
papel do fogo no cozimento. Antes que as pessoas tivessem feito muitas
outras coisas na vida humana, até onde podemos ver, usaram fogo para
cozinhar os seus alimentos. Deve haver alguma razão para isto. Sem
dúvida, não é necessário para o corpo do homem; podemos sobreviver
comendo apenas alimento cru. Mas algo levou o homem a fazer isso e a
razão é que o efeito do fogo sobre o alimento não é apenas tomá-lo
saboroso. Ele libera uma energia particular do alimento de que
precisamos, preparando-o para quando ele ultrapassa as necessidades do
organismo físico. Poderíamos dizer que, se comêssemos apenas alimentos
crus, estaríamos sob influências animais tão poderosas, que o lado humano
da nossa natureza encontraria muita dificuldade em se manifestar. A razão
disso está relacionada com o nível de energia do fogo. Agora a pergunta é:
“Tudo bem, mas não é o calor, proveniente da madeira que é introduzida
para atiçar o fogo, tanto uma entrada no processo quanto no próprio
alimento? Assim, por que o distinguimos?” Se pensarmos um pouco sobre
ele, ele começa a entrar em foco. Considerando os fatos concretos que
ocorrem na cozinha, não introduzimos o fogo no momento em que o
alimento está sendo cozido. O fogo foi providenciado. Tradicionalmente,
acendeu-se o fogo de manhã e tudo está pronto para cozinhar. Dessa forma,
o fogo já foi introduzido no ponto 1. Onde usamos coisas artificiais, como
o gás e a eletricidade, fez-se algo equivalente. É parte da estrutura geral da
própria cozinha e pertence à primeira oitava. Não é realmente introduzido
no ponto 5, mas entra no ponto 1, no mesmo sentido de que está
‘‘providenciado”. É provável que se estivermos cozinhando com lenha ou
carvão, esses dois elementos tenham sido postos na cozinha antes que algo
tenha começado, sendo a primeira coisa feita de manhã. Se estivermos
cozinhando com algo que venha de fora, tudo será providenciado para que
esteja ali desde o começo. A provisão de fogo é inerente à primeira oitava
da própria cozinha. O que Gurdjieff chama de Harnel-Miatznel está
descrito no capítulo do Purgatório, em Beelzebub's Tales na fórmula: “o
superior se mistura com o inferior para dar origem ao intermediário”. Na
versão de Ouspensky, temos: “o oxigênio combina com o carbono para dar
origem ao nitrogênio”. Essa fórmula, sem sentido para um químico,
significa que os elementos ativo e passivo de uma situação podem, em
condições apropriadas, liberar a “terceira força”, representada pelo
nitrogênio. A menos que o carbono seja disponível, as transformações não
podem ocorrer e, no entanto, isso não começa com o elemento ativo, mas
com o passivo, isto é, o oxigênio. O Harnel-Miatznel ocorre nas transições
0-1, 4-5 e 7-8 do eneagrama. O elemento ativo na transição 4-5 é o fogo
que cozinha a comida, mas ele próprio não é para ser comido.
O Processo Industrial

Quando se examinam as grandes empresas industriais sob o aspecto


de investimento, produção e atividade, constata-se que as mais bem-
sucedidas desenvolveram uma forma de organização muito próxima da
estrutura de um organismo vivo. Até agora não se havia compreendido as
leis de tais estruturas nem avaliado suficientemente a sua relevância para
as organizações industriais. A marcha para uma forma satisfatória de
organização tem sido penosa e incerta, uma questão, em grande parte, de
sobrevivência das mais aptas, pois as empresas que não conseguem se
adaptar às leis básicas — ainda que de forma inconsciente — caminham
para o fracasso.
O organismo vivo é uma relação de três fontes de vida e de
atividade: o alimento, o ar e as impressões sensoriais. Através dessa
tríplice entrada, o animal se mantém e mantém a sua atividade externa e, o
que é bastante curioso, não há outros canais de comunicação entre ele e o
seu mundo. Uma fábrica depende também de uma bem ajustada entrada
proveniente de três fontes bem definidas:
1) a direção administrativa da empresa como produtora;
2) as matérias-primas para o produto; e
3) a demanda do público como usuário.

Quaisquer que sejam as transformações que possam se realizar


dentro da fábrica, o sucesso ou o fracasso das operações dependem da
produção de artigos vendáveis. É esse o critério da administração
inteligente. É também o critério da compra bem-sucedida de matérias-
primas e acessórios, e da eficácia do projeto e do planejamento
organizacional. Outrossim, é a pesquisa de mercado. Essas três exigências
põem em movimento três correntes de atividade, que devem se harmonizar
e se sustentar reciprocamente e, no entanto, permanecerem distintas.
No símbolo do eneagrama, isso é representado pelos três ângulos do
triângulo, desse modo:

Fig.9 -A tríade da fabricação

A primeira corrente se inicia com a decisão da administração de


lançar um novo produto. Ela deve ser acompanhada através de todos os
estágios até o momento em que o produto é bem aceito pelo público.
Como a responsabilidade é da administração, essa primeira corrente será
chamada de Direção Administrativa. A segunda corrente começa com as
matérias-primas e vai até o produto, tal como é vendido e usado. Será
chamada de corrente do Produto. A terceira se inicia com o público, e seu
término é o estabelecimento de um mercado satisfatório. Ela será chamada
de corrente de Mercado.
Devemos voltar agora a nossa atenção para os estágios sucessivos
pelos quais as operações complexas são levadas a cabo. Em qualquer
fábrica, a transição é de um nível inferior para um nível superior de
organização. Numa empresa plenamente integrada, a entrada é de
matérias-primas que podem até ser apenas minérios e combustível. O
produto pode ser um artefato, um serviço ou uma atividade; de qualquer
modo, é o resultado de processos de transformação e de organização,
dirigidos por um planejamento ou uma política. Considerando uma nova
empresa em fase de se estabelecer valendo-se de suas ideias do que
basicamente tenciona fazer, há três espécies de atividades que devem ser
conduzidas para produzir uma operação integrada bem-sucedida, a partir
de ideias iniciais imprecisas, matérias-primas não coordenadas e um
mercado que ainda não aceitou a sua entrada no campo da oferta.
A primeira exigência é que a administração tenha uma ideia clara
do que pretende alcançar. Em segundo lugar, deve tornar claros os métodos
que usará e, finalmente, deve pôr em ação com êxito tais métodos.
Para isso ocorrer, deve haver, no estágio inicial, um elevado
potencial, isto é, deve haver não apenas uma grande força propulsora que
ponha o produto em circulação, mas também alguma ideia nova e
convincente, sem a qual a empresa não poderá marcar presença junto ao
público. Isso dá início a um ciclo que conduz à comercialização bem-
sucedida do produto.
O ciclo assim definido é representado no eneagrama pela figura de
seis pontos, que deve ser lida na ordem 1-4-2-8-5-7 e voltar novamente ao
ponto 1 e se repetir como um ciclo contínuo. Não basta haver a direção e a
ideia; é preciso que também haja uma grande experiência das operações
que serão empreendidas. Só então os objetivos iniciais podem ser levados
em consideração pela administração, assim como as exigências e padrões
do usuário, sem perder de vista as limitações e características do produto e
a sua relação com os meios de fabricação, de um lado, e o mercado
potencial, de outro. Essa visão condicionará todas as atividades da
empresa.

Fig. 10 — O ciclo da fabricação


A corrente da direção administrativa passa pelos seis pontos numa
ordem diferente da obedecida pelas operações concretas. Começaremos,
portanto, considerando as últimas, uma vez que se aplicam ao
desenvolvimento de um novo produto.
O primeiro passo é a decisão inicial de entrar num mercado
específico com um produto determinado. Geralmente isso é conhecido
como elaborar uma Especificação. Às vezes isso é feito na forma de uma
descrição verbal da coisa que vai ser produzida, mas, em geral, ela é muito
mais minuciosa e inclui um modelo real do produto. A especificação deve
conter uma descrição tão completa quanto possível das características,
funções e qualidades que o produto deve satisfazer. É nessa especificação
que a administração expressa, de forma concreta, a qualidade da qual
dependerá o atrativo do produto para o público. Ela abrange informações
como custo e preço de venda e, também, o item importante referente à
data em que o produto deve estar pronto para venda ao público. Sem esta
última informação, os que trabalham no desenvolvimento do produto não
saberão como conciliar os seus esforços a um cronograma. O ritmo de
produção também será definido nesse estágio para que os que têm que se
adaptar a ele saibam que meios e equipamentos devem ser fornecidos.

A elaboração de uma especificação constitui o ponto de partida do


processo e estabelece também o princípio que orientará os responsáveis
pelos estágios subsequentes. Com a especificação, o primeiro estágio
passa da ideia à sua concretização.
Completada a especificação, termina tudo que a Diretoria pode fazer
diretamente; uma nova forma de atividade deve se iniciar a fim de
progredir. Esta segunda atividade necessária se chama Projeto. É evidente
que não pode haver projeto algum sem uma especificação a partir da qual
ele seja desenvolvido. Mas o projeto em si abrange a introdução de fatores
inteiramente novos, inclusive os que se relacionam com a disponibilidade
de matérias-primas e a demanda do público. Esse é o terceiro estágio de
desenvolvimento.
Na maioria dos casos, o projeto envolve experiências, cálculos e
pesquisa, e culmina com o desenho de cada peça isolada, de modo que as
características exatas do produto final possam ser apreciadas. Há
habilidades especiais implicadas nesse estágio; estas podem ser descritas
com o título geral de perícia. Sem perícia, o projeto será artificial e falhará
inevitavelmente nos seus objetivos. Por outro lado, a perícia será
insuficiente sem a tecnologia do projeto.
Quando a empresa projeta o seu produto, incorpora ao desenho, do
modo mais completo possível, tudo o que foi fixado na especificação. Ao
fazer os desenhos de todas as peças separadas do produto, a seção
responsável deve pensar na conversão de cada desenho num componente
mecânico, cuja combinação total constituirá a primeira amostra do
produto. A execução da amostra nos leva ao contato entre a corrente da
administração e a da matéria-prima. O trabalho é feito no que se conhece
como seção de engenharia de uma organização industrial. Por causa da
tríade produtor / artigo / usuário, é essencial que a seção de engenharia
nunca perca de vista que a razão fundamental e, de fato, única, para a sua
existência é tornar possível fazer todos os preparativos no sentido da
fabricação em massa do produto.
Neste ponto, devemos voltar ao eneagrama e considerar a
importância do ponto 3 do triângulo de “entrada". Aí a matéria-prima
necessária à produção começa a influir no processo, e isso dá início à
corrente do Produto. Desse ponto em diante, direção administrativa e
desenvolvimento do produto seguem juntos. Por isso, a corrente de
controle administrativo obedece à ordem 1-4-2 e não 1-2-3-4. A
administração só toma decisões referentes ao projeto, quando a Amostra
do Produto está disponível para que se confirme ou não a praticabilidade
da execução da especificação.
Nesse estágio, a atividade da empresa está nas mãos da seção de
engenharia, que cuida tanto das matérias-primas como das ideias. É tarefa
da seção de engenharia, nesse estágio, obter o grau máximo de certeza de
que os desenhos que elaborou são símbolos exatos daquilo que é
necessário ao produto como um todo e a cada uma das suas peças isoladas,
até os menores detalhes. Isso, no entanto, não pode ser determinado sem
sérios riscos, a menos que se faça uma amostra concreta. É por essa razão
que a verificação e o desenvolvimento do produto se realizam em
amostras feitas apenas depois que a seção de engenharia completou o seu
trabalho. É evidente que os diversos desenhos não podem ser testados e
desenvolvidos, mas é igualmente óbvio que só se pode fazer a amostra
depois que os desenhos passaram do estágio de esboço provisório à mais
exata e detalhada concretização da especificação que se possa alcançar.
A administração necessita de um conjunto harmônico de desenhos
que ela sabe que estão corretos. Ela só pode saber disso testando e
modificando as amostras de acordo com a especificação. Quando a
amostra aperfeiçoada tiver sido feita e testada, todos os desenhos deverão
ser refeitos, de acordo com as alterações introduzidas, a fim de se obter a
amostra aperfeiçoada. Só nesse ponto é que se pode dizer que um Projeto
Completo foi obtido. A inteligência com que se efetua essa parte do
projeto talvez seja o fator mais importante do futuro sucesso da empresa.
Às vezes ela é malfeita e a organização industrial que, sob outros aspectos,
é muito competente, se mete em sérias dificuldades ao tentar a produção a
partir de um projeto não testado.
Só fazendo uma amostra concreta e trabalhando nela de forma
correta é que a administração pode transformar o seu projeto original
imperfeito num projeto completo. A questão aqui é que esse trabalho só
pode ser feito através de uma avaliação independente, que represente de
fato o ponto de vista dos responsáveis pelo processo de fabricação efetiva,
isto é, ele não pode ser efetuado em função de perícia técnica, mas de
experiência de fabricação.
Entretanto, sem a primeira amostra incompleta, os responsáveis
pelo teste não podem fazer progresso no sentido de uma amostra
aperfeiçoada. A interação das duas correntes é que toma possível o
progresso. Isso se equipara, de forma admirável, à transformação do
alimento no organismo animal, que depende, até certo ponto, da interação
do oxigênio com o conteúdo do sangue venoso. Aqui o ar é análogo à
matéria-prima que é introduzida para se transformar no produto final.
Nesse estágio, as duas correntes começam a fluir paralelamente,
mas não perdem a sua identidade. O projeto completo e a amostra perfeita
são de todo diferentes. São encargos de seções diferentes, que têm ligações
diferentes com a relação fundamental produtor / produto / usuário.
Avançando paralelamente, a amostra perfeita e o projeto completo
permitem que os engenheiros apresentem um Produto Planejado. De
início, parece não haver razão alguma para que a administração não vá
diretamente do planejamento à fabricação. Está evidentemente em seu
poder agir assim, e não há, no fluxo da função administrativa, obstáculos
naturais a esse movimento. Existe, porém, no fluxo do próprio produto,
um sério obstáculo, que consiste na mudança implicada e nos novos
fatores que entram em cena, quando se passa da produção de unidades
simples para uma produção em grande escala. Há uma inevitável incerteza
na realização de qualquer projeto humano. Ninguém sabe se ele dará o
resultado pretendido, enquanto não tiver sido tentado. Os melhores
projetos sempre se revelam mais ou menos imperfeitos, e a ignorância da
incerteza resultante fatalmente acarreta dificuldades, que, produzidas em
grande quantidade, são dispendiosas. Vender ao público um artigo
produzido em massa, com defeitos flagrantes, contraria evidentemente os
interesses de todos os três membros da tríade produtor-produto-usuário.
Para evitar esse tipo de problema, as empresas mais experimentadas só
dão início à produção em massa, quando algumas amostras do produto
foram executadas de acordo com métodos e equipamentos industriais
planejados, e essas amostras foram comparadas à amostra industrial
perfeita e consideradas idênticas a ela em cada pormenor importante. Se a
comparação revelar falhas no produto, modificam-se ou aperfeiçoam-se os
elementos do planejamento, até que as amostras sejam idênticas. Não há
nenhuma outra forma de tomar razoavelmente seguro que, ao ser fabricado
em grande escala, o produto se adapte às exigências do usuário, que foram
originariamente incorporadas pela administração à sua especificação. É
necessário que a administração tenha um alto grau de inteligência que lhe
permita tomar uma decisão correta nesse ponto. A necessidade de uma
receita de vendas é um áspero incentivo para agir com base na suposição
de que o produto planejado e testado seja satisfatório. Essa exigência devia
pelo menos ser uma evidência convincente de que a amostra perfeita deve
se aproximar, tanto quanto seja humanamente possível, do artigo
produzido em grande escala, que deve sair das linhas de produção. Uma
das mais devastadoras causas de problemas para a administração surge
quando o produto projetado c o artigo produzido em grande escala são
executados com diferenças, em algum detalhe importante, da amostra
perfeita. Isso tem sido feito vezes sem conta e sempre acarreta problemas.
Os engenheiros sempre advertem do perigo, mas ele só pode se tomar
evidente a partir da sistemática que é fundamentalmente errada, uma vez
que suprime um dos elementos independentes exigidos para uma héxade
completa. A produção em grande escala de um grande número de artigos
idênticos com base apenas na possibilidade é um procedimento que a
natureza nunca adota, e, como dissemos antes, as empresas mais bem
organizadas são as que se amoldam de maneira muito estrita às leis da
natureza.
Quando há as melhores intenções de tomar idênticos o artigo
produzido em grande escala e a amostra perfeita, continuam a existir, no
desenvolvimento do próprio processo, muitas ocasiões em que aparecem
fatalmente variações e desvios. A fábrica tem que lidar com grandes
quantidades de matéria-prima vinda, talvez, de muitas partes do mundo.
Deve empregar um grande número de homens, cuja atitude psicológica e
capacidade técnica não podem ser garantidas. Quando novos e importantes
métodos de produção são introduzidos, cada par desses fatores, que se
relacionam com a tétrade, produz as suas próprias ações recíprocas. Só
adotando precauções imediatas e positivas, equivalentes à introdução de
um termo inteiramente independente, é que se pode empreender a
transição do produto planejado para a produção em massa com uma
razoável probabilidade de evitar problemas.
Esse sexto elemento independente se chama Inspeção, ou controle
de qualidade. O processo de desenvolvimento está agora na sua fase final.
Neste ponto, o interesse do usuário começa a exercer uma influência
crucial nas decisões. Isso corresponde à terceira corrente iniciada no ponto
5 do eneagrama. Uma vez que essa corrente se inicia, deve ter um peso
igual, em todas as decisões, às da direção administrativa e às do
desenvolvimento do produto. É de particular importância garantir que a
inspeção não esteja, de forma alguma, subordinada aos interesses da
administração e da produção. A inspeção, na prática, repassa o processo do
ponto de vista do usuário como ele o verá quando o produto for distribuído
em grande quantidade. As qualidades exigidas para tomar essa inspeção
realmente eficaz são diferentes das exigidas no teste e na avaliação.
A inspeção ou controle de qualidade é muito mais do que um exame
do produto para assegurar que ele se adapta à amostra perfeita. Ela deve
levar em conta todas as variações possíveis que ocorrem dentro de um
grande número de unidades supostamente idênticas. Sabe-se que em
100.000 automóveis ou geladeiras haverá variações que devem ser
controladas, se quiser evitar críticas prejudiciais. Só quando o próprio
público tiver tido a oportunidade de testar o produto em larga escala é que
a inspeção alcança de fato todo o grau de independência que é necessário
para a complementação do projeto.
A terceira corrente começa assim, propriamente, com a inspeção, e
prossegue como controle de qualidade, durante o período em que o artigo
está sendo produzido e vendido, e mesmo depois, até que seja finalmente
retirado de uso. Nessa fase, a relação das três correntes se toma patente. O
sucesso de todo o processo se mostra agora na ligação efetiva da intenção
original da administração com as demandas decisivas do mercado. Num
certo sentido, a organização de vendas deveria se tornar a representação do
interesse do usuário. Ela transmite à administração dados quanto às suas
exigências em relação à qualidade e à época de lançamento, informações
que na sua totalidade influem na atividade de fabricação.
Outra conexão entre as correntes é a que existe entre a
especificação e o produto fabricado em grande escala. A administração
precisa saber que a sua política de fabricação está de fato sendo
implementada e não está saindo do controle, devido a fatores técnicos e de
distribuição. Há uma ação recíproca pela qual o usuário faz chegar à
administração uma caótica batelada de pedidos que a levam à formulação
de uma nova especificação destinada a satisfazê-los.
A ação da corrente do usuário influencia diretamente a
administração e apenas indiretamente o produto.
Estamos agora em condições de considerar as três formas como as
matérias-primas e a energia são consideradas na organização. O alimento
que entra através da administração é o capital na forma de instalações e
equipamentos, dinheiro e experiência acumulada. O capital, como recursos
materiais, não pode por si só iniciar uma corrente criativa, mas apenas o
capital que assume a forma de uma ideia e da elaboração de uma
especificação. O capital propriamente dito está disponível na forma de
prédios, maquinaria, equipamento c matérias-primas, estando tudo isso
num constante estado de transformação. A transição da especificação para
o projeto exige um investimento de capital e todas as etapas do processo
até o início da produção são uma forma de investimento. A segunda
corrente está visivelmente presente na forma de matérias-primas, energia
e componentes estocados. Tudo isso, no entanto, é inútil exceto na medida
em que é inteligentemente utilizado. A primeira amostra imperfeita deve
ser feita e aprimorada antes que a corrente da matéria-prima possa
começar a fluir. Essa execução e aprimoramento é o que o projeto requer
para ser transformado, e isso ele recebe dos cérebros e mãos dos homens.
Eles fornecem a perícia e a habilidade que efetuam a transmutação das
matérias-primas num estado superior de organização. Do mesmo modo
que o corpo transforma o alimento não elaborado em proteínas muito
complexas e em substâncias ativas exigidas para a sua atividade bem-
sucedida, a força de trabalho é o meio de transformação das matérias-
primas em produto vendável.
A partir do momento em que o trabalho sobre a matéria-prima
começa, a perícia permeia todo o processo. Numa organização de
produção em grande escala, faz-se geralmente uma tentativa no sentido de
que a seção de engenharia conduza o desenvolvimento a partir de uma
amostra aperfeiçoada de maneira mecânica; noutras palavras, substituir a
habilidade intelectual e manual pela perfeição da maquinaria e dos
recursos. Dessa maneira, algo é irremediavelmente perdido.
A mais importante modificação que está ocorrendo hoje nas
organizações de produção em grande escala é o reconhecimento da
importância da habilidade técnica nesse estágio. Desse modo, a ideia de
uma perícia repetitiva das formas iniciais de produção está sendo
substituída pela perícia treinada, única que pode produzir artigos de
qualidade. Estreitamente relacionado com essa transformação está o
progresso da automação, que elimina praticamente a perícia do estágio
repetitivo, mas exige um desenvolvimento muito elevado de perícia
intelectual e manual nos estágios de preparação da especificação de um
produto aperfeiçoado.
É mais difícil definir a terceira corrente do que as outras duas. Ela é
facilmente reconhecida na pesquisa de mercado, nos relatórios de serviço
e nos resultados das vendas, mas estas são apenas as formas externas. O
significado real da terceira corrente é o estímulo que ela proporciona a
uma apreciação mais inteligente do nível de perfeição a que o produto
deve ser levado para que alcance um sucesso completo. Essa atividade
pode ser comparada ao efeito das sensações sobre o organismo vivo. Estas
despertam todas as espécies de respostas reflexas que, na sua totalidade»
permitem a expressão do próprio impulso vital. O interesse do usuário é,
em grande parte, uma questão de sensação, que leva à satisfação das
necessidades corporais, mentais e emocionais. Isso se transmite à
organização de produção na forma de uma série completa de pedidos de
satisfação. O grau de inteligência com que esses pedidos caóticos são
postos em relação com determinado aparelho mecânico determina a
vitalidade da empresa produtora e o seu potencial de crescimento.
Isso nos leva, finalmente, à integração do processo total à vida
social e à história da humanidade. Embora a indústria possa ser isolada das
outras atividades humanas, com o tempo, ela tem de encontrar o seu lugar
no conjunto da sociedade humana. Isso requer fatores novos e
independentes, que não se podem limitar a termos de produtor e usuário ou
de tecnologias de projeto. Esses resultados amplos são estéticos e morais.
A empresa se torna parte integrante da sociedade, tendo a sua própria
individualidade. Como tal, ela é responsável em relação à totalidade da
experiência humana. Ao ser representado no eneagrama, isso nos leva de
volta ao ponto 9, que é a administração considerada como um veículo da
vontade da empresa de servir a comunidade. É também o ponto de partida
de outro ciclo, o da História da Empresa. Uma empresa só tem, no sentido
objetivo, uma história, quando é uma entidade independente, não apenas
técnica e comercialmente eficiente, mas social e moralmente consciente
do seu poder e das suas responsabilidades.
O Homem Como Transformador de Energia

Quando se pode usar este símbolo como um instrumento de


compreensão e interpretação? Será possível aplicar o eneagrama a toda e
qualquer espécie de situação? Certamente que não. Ele só é aplicável a
situações que tenham uma estrutura que permita a atuação recíproca de
três tipos diferentes de processos. Às estruturas com essa forma especial,
Gurdjieff dá o nome de Cosmo. Cosmo não significa apenas algo
ordenado, mas o que é organizado e ordenado de uma forma intencional. O
eneagrama é o símbolo de um cosmo e pode ser utilizado para interpretar
situações que são cosmos ou as que tenham uma estrutura cósmica. Um
modo pelo qual um cosmo pode ser descrito é dizer-se que ele é uma
entidade autônoma e que funciona automaticamente dentro desse mundo.
Possui certo grau de independência e é capaz de tê-la pela simples razão
de que está trabalhando por meio da combinação de três processos. Uma
cozinha empenhada em preparar a comida é um cosmo. Ela é um modelo
cósmico muito bom e, se assimilarmos o processo pelo qual se mantém a
alimentação de uma comunidade, teremos um excelente meio de obter
uma percepção intuitiva do que é um cosmo.
O primeiro cosmo que o homem deve estudar é ele mesmo. Assim
como na cozinha, há nele três fontes independentes. Há três modos de
estarmos em contato com o mundo e seria muito útil parar e refletir sobre
eles. Estamos evidentemente em contato com o mundo através dos nossos
sentidos e, de modo gerai, poder-se-ia dizer que esse é todo o nosso
contato. É pela visão, pela audição, pelo tato e pelo olfato que nos
relacionamos com o mundo. Mas o que dizer da respiração? Esse contato
não é, de forma alguma, tão evidente. Se nos lembrarmos de que Gurdjieff
gostava tantas vezes de falar das “criaturas que respiram”, “das outras
criaturas que respiram como nós”, toma-se claro que para ele a
significação da respiração nunca estava fora de cogitação. A respiração é
um modo de estarmos em comunicação com o mundo. Não se trata
simplesmente do fato de que, se não respirarmos, morreremos. Há também
um papel desconhecido da respiração, no qual o ar é o portador de
substâncias mais finas. Isso é algo que a usual explicação cientifica da
respiração não percebe. A respiração tem a faculdade de transformar as
energias em nós e é possível, com a respiração, regular os nossos estados
emocionais de maneira muito simples. Mas isso ainda não nos diz tudo o
que há para dizer sobre a respiração. Gurdjieff nos diz que existem no ar
substâncias que têm origem no nosso próprio planeta, nos outros planetas
do nosso sistema solar e no Sol. Todas essas substâncias nos são
necessárias. É delas que provém o alimento dos corpos superiores do
Homem.
Sabemos que, sentados aqui nesta sala, estamos todos respirando o
mesmo ar que penetra em mim como em todos os presentes. Estamos o
tempo todo intercambiando o ar que respiramos. Não percebemos isso,
porque não somos sensíveis ao ar, mas, mesmo sem ir além do que
podemos falar a partir da nossa própria experiência, sabemos que o
próprio ar é um meio pelo qual estamos em contato com o mundo, com as
outras pessoas e com as outras formas de vida. Além disso, podemos pelo
menos compreender a ideia de que há transformações muito mais
profundas do que o simples intercâmbio do ar que penetra em nós e depois
sai. Essas transformações ocorrem no ar, de acordo com o estado e o nível
de ser da pessoa que respira.
Em terceiro lugar, há a comida que comemos. Esse alimento nos
põe em contato com o mundo de um modo totalmente diferente das outras
duas fontes. A comida que ingerimos é uma parcela de vida. Estamos em
contato com a força vital através do alimento que comemos. Não há
contato interior algum com coisa mais passiva do que a comida, como
substâncias como a madeira ou a pedra que não podem ser digeridas. Com
elas estamos em contato apenas através do que vemos e tocamos, mas não
com o seu próprio ser como o fazemos com o alimento que assimilamos
ou o ar que respiramos. Refletindo sobre tudo isso — e é necessária muita
reflexão —, podemos ter uma percepção do que é a nossa natureza
cósmica. Quando estivermos comendo, será particularmente útil dar-se
conta de como esses três pontos de contato com o mundo estão presentes
em nós, talvez até ver o que realmente significa não haver nenhum outro
contato além destes: nenhum outro intercâmbio ou relação com o mundo,
salvo através dos nossos sentidos, do ar que respiramos e do alimento que
comemos. Esta é uma característica de um cosmo: ele tem esse contato
tríplice com outros modos de existência diferentes dele, com outros
cosmos semelhantes a ele, como nós entramos em contato uns com os
outros e com outras formas cósmicas, tais como outras formas de vida ou
com os planetas e as estrelas. Quando entrarmos no estudo detalhado da
transformação do homem, como o fizemos no caso da cozinha, e
perguntarmos o que acontece nesse cosmo para que a existência seja
mantida e qual o trabalho a ser feito para isso e como ele pode servir ao
propósito da sua existência, veremos então o processo em funcionamento.
De acordo com a classificação de Gurdjieff em doze categorias de
substâncias, que começa com a matéria amorfa H 3702, o alimento que
comemos é H 768. Quando ele penetra no corpo e atravessa a membrana
exterior, torna-se H 384. Tem então a densidade de vibração, como ele diz,
da água. Sofre transformação no fígado e adquire a densidade do ar. Em
seguida, entra no sangue e adquire a densidade do fogo, da energia livre ou
da energia elétrica.

Fig. 11 — Eneagrama do alimento


Quando ele ultrapassa a linha intermediária, que fica entre os
pontos 4 e 5, penetra no domínio da espiritualização. No ponto 5, ele tem
as qualidades da experiência que chamamos pensamento e sentimento. No
estágio seguinte, se reveste da propriedade de ser sentido como ele
próprio, assim como de dar a sensação do mundo que designo como
“energia sensitiva”. Esse estado de consciência individual, H 24, nos dá,
por exemplo, o poder de saber que estamos pensando e não apenas
pensando automaticamente. No ponto 7, H 12, há o que chamo consciência
real ou uma consciência do “Eu”. H 12 não está restrito ao enfoque
individual de H 24. O ponto 8, H 6,é ainda mais irrestrito, indo além dos
limites de toda a existência.
No lado direito do diagrama, está a circulação sanguínea e, no
esquerdo, o sistema nervoso e as glândulas endócrinas. Entre H 384 e H
192, a corrente sanguínea, passando pelo fígado, atua sobre o alimento.
Assim, entre os pontos 2 e 3, está o sistema digestivo. Em H 192, o ar
penetra como um segundo dó e, no ponto 6, H 24 desempenha um papel
análogo, por vezes mencionado como impressões.

Podemos aprender tudo isso nos manuais e qualquer um, com um


elementar conhecimento de fisiologia, pode compilar isso por si mesmo.
Há certos pontos interessantes a investigar, como, por exemplo, o
significado da linha que vai de 2 a 8. Como é que, no ponto 2, estamos
olhando tanto para a fase seguinte de transformação como para a fase final
de transformação? Essa é uma questão pertinente do tipo das que o
eneagrama nos ajuda a elucidar.
O ponto fundamental é que há uma unidade global do organismo,
uma direção interna, um mestre ou regulador instintivo responsável pela
manutenção de todos os equilíbrios e mudanças do corpo. Ele mantém a
temperatura sanguínea, a acidez e as várias substâncias químicas do
sangue em estado de equilíbrio e mantém o tônus do sistema nervoso. Há
um número extraordinário de equilíbrios, cada um dos quais requer
ajustamento, porque uma coisa precisa ser compensada e provavelmente o
é às custas de uma outra. Estudando isso, podemos ver que há uma
inteligência superior em ação em algum lugar, que cuida desse equilíbrio
no estado de saúde do corpo. O segredo da medicina homeopática reside
na presença dessa inteligência que mantém o equilíbrio da saúde do corpo.
O efeito dessa medicina é se comunicar diretamente com o ponto 8, de
modo que o corpo possa fazer o seu próprio trabalho de modo mais
inteligente do que o médico. Esse é o significado da linha que vai de 2 a 8
e ele se relaciona com este primeiro alimento do corpo. O primeiro
alimento do corpo é a matéria-prima destinada a manter integralmente o
equilíbrio corporal.
A partir de 8, há a tríade 8-5-7; essa é inteiramente relacionada com
a sensação. Com base nela, podemos ver onde podemos produzir a energia
necessária. O choque deve entrar na tríade 8-5-7. Fazendo uso da
passividade da energia automática -podemos agir sobre ela com a nossa
inteligência, de modo que possamos manter o nosso nível de consciência e
de liberdade em relação ao ambiente. Tudo isso está desenvolvido em
Fragmentos de um ensinamento desconhecido, de P. D. Ouspensky{6} e
noutros livros. Há alguns pontos difíceis que encontramos, quando
estávamos estudando tudo isso em 1930, com vários médicos e fisiólogos.
Isso ocorria porque estávamos com a atenção voltada para o lado esquerdo
em termos demasiadamente fisiológicos, não percebendo que, nessa fase,
estamos lidando com transformações psicológicas e não fisiológicas.
A Realização da Beleza

Tomaremos um exemplo concreto da realização da beleza em


matéria de som. O caso particular será o da educação de um cantor
profissional. O processo se divide, sem dificuldade, em três partes, que
correspondem aos elementos de uma tríade.

Elemento de Recepção — Contingência — o acidente de uma voz


natural boa.
Elemento de Conciliação — Expectativa — treinamento dirigido
para uma meta que inicialmente não está clara.
Elemento de Afirmação — Transcendência — A Arte da Música
como valor superior à pessoa.

Traçaremos o desenvolvimento dos três elementos com a ajuda do


símbolo do eneagrama. Temos:

Processo de Recepção — A Voz. Esta é um acidente. Desse


modo, a combinação das condições é que toma possível a
educação da voz. Estamos diante do Valor de Contingência.
Processo de Conciliação — O Treinamento. Este começa
sem nenhuma meta estabelecida, mas com um sentimento
de possibilidade. O professor inicialmente está presente
apenas para ensinar. Nestas condições, o elemento pessoal
parte do Valor de Expectativa.
Elemento de Afirmação — A Arte. Acima da compreensão
do aluno e do professor está a pureza da arte musical. É esta,
no entanto, que impele ambos a buscar o ideal. O valor é o
de Transcendência.

Fig. 12 — A realização da beleza

O primeiro processo — a voz

Passo Inicial. O processo tem início quando a jovem se dá conta, de


maneira progressiva, de que tem uma “voz que promete”. Ela canta para o
seu próprio prazer, mas não sabe nem como cantar nem reconhece a
qualidade em matéria de som. Os pais notam que ela tem uma boa voz. Os
amigos sugerem que a “menina deve ser corretamente ensinada”. Alguns
incentivos vagos e fantasistas se combinam e dão origem à imagem da
moça como uma futura prima-donna ou uma famosa estrela de cinema.
Propostas inconclusivas e discussões cansativas finalmente têm como
resultado uma audição por um professor recomendado. Neste ponto, a
meta parece mais próxima do que na primeira etapa.
Fase Um. Entramos agora no ponto 1 do eneagrama. É dada à jovem uma
série de lições experimentais. O professor testa sua capacidade de trabalho
e o seu gosto e compreensão naturais da música. Ela pensa que está
progredindo, mas para ela nada ainda mudou. A decisão do professor de
aceitá-la como aluna não depende do que ela possa fazer agora, mas de que
ele veja uma perspectiva de que ela se entregue ao trabalho com seriedade.
Olhando o eneagrama, vemos que o professor vai de 1 a 4, antes de deixar
a aluna ir de 1 a 2. Fazendo isso, ele entra no ponto 3 do eneagrama e o
segundo processo se inicia.

Fase Dois. Aceitação da Aluna. O plano de ação é decidido. A família


concorda em pagar as despesas. O professor ainda tem que fazer a moça
compreender o que significa produzir um som intencional e
conscientemente. Só quando ela começa a ver por si mesma o que
significa estudar canto, que é diferente de cantar por prazer, é que o
processo de aprendizagem realmente começa.

No início, seu progresso efetivo parece ser um retrocesso. Some-se


a isso a espontaneidade. Não há mais “canções" nem a pretensão de cantar
as grandes árias para a sua voz, mas exercícios, prática e repetição que o
professor lhe dá no seu método particular. É desse modo que o professor
volta do ponto 4 para o 2. Temos a primeira metade da figura de seis
pontas:

1. A Voz.
2. O Trabalho.
3. O Método.

Esta fase pode durar muito tempo e está fadada a levar a períodos de
perplexidade, desencorajamento e até mesmo de dúvida em relação ao
professor, assim como a períodos de progresso e esperança. Uma
característica definida dessa fase é a completa dependência ao professor. O
ouvido da moça não está educado nem o seu gosto desenvolvido. Ela não
pode reconhecer quando produziu um som correto.

Fase Três. Quando a moça começa a ouvir pela primeira vez a sua própria
voz e pode criticar a si mesma, ela inicia a terceira fase representada pelo
número 4 no símbolo. O professor também deu um passo nesse momento.
O que ele havia previsto como meramente possível — no elemento de
Valor de Expectativa — agora está começando a aparecer. A moça vê que
pode trabalhar. Inicialmente tinha apenas momentâneos lampejos — uma
simples frase cantada com plena consciência de ter feito o que devia.
Daqui por diante, todas as outras canções comparadas com essa parecerão
fáceis e inexpressivas. À medida que a experiência começa a se tomar
mais frequente, ela se dá conta também de que não sabe como isso se faz.
Nada do que ela ou o seu professor possam fazer nessa fase a ajudará.
Toma conhecimento, pela primeira vez, de que a arte de cantar pode ser
conquistada, mas está acima dela fazê-lo.

O segundo processo — o treinamento

A nossa atenção se volta agora de novo para o professor. Nesta


altura, tudo depende da sua integridade. A aluna pode estar a ponto de
abandonar os estudos ou querer inconscientemente se iludir que progrediu.
O professor é tentado a facilitar as coisas. Pode mostrar-lhe truques para a
produção de sons harmoniosos sem precisar saber como. Se lhe faltam
gosto ou escrúpulos, ele a encorajará na crença de que pode vencer as suas
dificuldades e, dessa maneira, se tomar uma cantora que poderá se
apresentar em público.
Se o professor for honesto e conhecer o seu ofício, deverá voltar à
fase dois (ponto 2 do símbolo) e, a partir daí, pensar no futuro e fazer uma
avaliação do que a voz pode realmente vir a ser (ponto 8). Só com essa
previsão é que ele pode passar a aluna para o ponto 5. Assim, o eneagrama
nos mostra os dois caminhos — um da realização no tempo (1-2-3-4-5), o
outro do padrão eterno (1-4-2-8-5). Como no exemplo da cozinha já
examinado no capítulo 3, o terreno agora está preparado para a fase de
progresso real. Fase Quatro. Esta fase corresponde ao momento em que o
alimento é posto no forno para cozinhar. É a fase de máximo sofrimento. O
quinto ponto é sempre o de maior tensão.{7} O esforço repetido para emitir
sons autênticos ainda não admite controle, mas mostra, de fato, como a
aluna deve trabalhar. Ela começa a sentir a proximidade do terceiro
processo — a Arte do Canto — e deve fazer sacrifícios: da sua própria
vaidade, da sua independência, da sua obstinação e até mesmo das
opiniões que adquiriu a respeito do que são os sons e da real significação
da música na vida do homem.
Nessa fase, ela adquire respeito pelo seu próprio trabalho. Não é
mais apenas para satisfazer-se, mas para servir a sua arte, que aplica os
seus esforços.
Agora devemos retomar ao professor. Nessa fase, o seu papel volta
a mudar. Ele não pode mais fazer tudo isso por si mesmo. A aluna deve
ouvir cantar bem, deve entrar em contato com artistas autênticos. Se ele
insistir, por ciúme, em mantê-la para si mesmo, deixará de realizar a etapa
do seu próprio trabalho. Para ele também há uma fase de hesitação e
desamparo. Ele deve voltar-se para a arte e tomar a despertar em si mesmo
o sentimento de admiração e respeito que o verdadeiro som musical faz
surgir. Em suma, deve estabelecer um contato íntimo com o terceiro
processo que se inicia no terceiro ponto do triângulo — o ponto 6 do
símbolo.

O terceiro processo — a arte musical

A música não é uma coisa em si mesma, mas uma experiência e


uma atividade. A arte musical se inspira num ideal — independente de
lugar e tempo — que é o som perfeito. Embora o ideal seja in temporal e
eterno, a sua realização não o é. De todas as artes, é a música a que mais se
aproxima da condição determinante da hiparxe.{8} O seu poder reside na
vibração dos sons, no ritmo e nas transformações melódicas — tudo isso
com base na recorrência. Em épocas passadas, os homens buscaram muitas
vezes na música o segredo dos céus. Por mais carentes de objetividade e
por mais imperfeitas que tenham sido essas buscas, sempre houve e haverá
nelas um fundo de verdade. A música, como beleza sonora, provém de
uma afirmação transcendental que está além de qualquer egoísmo. A
música da natureza não difere, de forma essencial, da música artística. O
tordo e o rouxinol, o touro, o garanhão e o leão são todos artistas que
recriam em sons a afirmação cósmica que deu existência a eles. Desde a
época em que a Terra recebeu, pela primeira vez, a sua atmosfera, a
música do vento e das ondas estava presente, um bilhão de anos antes que
a vida tivesse ouvidos para ouvi-la.
Nenhum desses devaneios passa pela cabeça do professor e da aluna,
e, no entanto, a Beleza Transcendente da Música está ali para atraí-los e
também os unir. O impacto imediato da Arte da Música deve ocorrer no
professor. É dele a responsabilidade de assegurar que a aluna desperte ao
seu chamado. Depois os dois seguem juntos para a etapa seguinte.

Uma propriedade muito extraordinária do eneagrama é que o único


passo que coincide com o tempo e a eternidade — isto é, em redor do
círculo e como uma figura de seis pontas — é o que vai da etapa quatro a
cinco. À medida que eles se movem, a Arte da Música se move com eles.
Esse passo recebeu mais uma alma no seu sagrado recinto. É assim que a
arte vive e circula e, é assim também, que conquista o tempo. Ela toca o
pequeno drama das lições de canto da moça com uma pena das suas asas.
Ela vai embora, mas a situação está transformada.

Fase Cinco. Externamente, não há nenhuma transformação espetacular. O


trabalho prossegue, mas a motivação mudou. A música é agora a mestra e
o professor apenas o irmão mais velho que trilhou o caminho antes. A
“arte do canto”, até então nada mais do que uma frase vazia ou expressão
de uma atitude emocional, é agora uma realidade importante. E, apesar
disso, a arte continua sendo algo longínquo e inalcançável. Não há outro
remédio a não ser trabalho mais árduo e os raros momentos de verdade.
Gradativamente, emerge na consciência da cantora uma
compreensão clara das suas próprias limitações. Ela começa a ver por si
mesma o que ela poderá conseguir. Desapareceu a satisfação espontânea de
produzir sons subjetivamente agradáveis, mas objetivamente falsos. Muito
distante está a perspectiva de obter a verdadeira espontaneidade dos
mestres da arte. Esta adquiriu agora uma qualidade sagrada e ela sabe o
que é estar ligada à Musa. Enfrenta agora um novo compromisso. Seu
canto não pode ser exclusivamente para si mesma. Ela aprendeu como
cantar, mas também sabe muito bem que não pode cantar. Não pode
progredir mais apenas pelo estudo. Deve professar a música e partilhá-la
com outros. Permanecer amadora é ser infiel à arte.
Estamos agora no ponto 7 do eneagrama. Como disse antes, a Arte
da Música conquistou uma nova alma. O professor quase realizou a tarefa
que empreendeu. A cantora pode medir a sua força e a sua fraqueza;
conhece o seu poder e sabe como usá-lo. Mas deve viver a angústia de
expor a sua fraqueza e a sua força juntas ao impiedoso julgamento do
mundo. Essa fase é repleta de muitos perigos. Ela tem bastante
conhecimento para manter a posse do que lhe pertence — a sua técnica e a
sua voz a sustentarão — mas só a Arte da Música pode mantê-la dentro do
círculo daqueles poucos músicos que são, antes de tudo, artistas e só
depois cantores.

Fase Seis. Para o artista, é o coroamento da sua transformação. O que era


no início um mero fato — uma voz natural — tornou-se agora um valor —
a beleza de uma canção. As condições externas não importam mais; a
espontaneidade voltou. Ela conhece a Alegria na sua arte, a Serenidade na
sua consciência de artista e a Realização no propósito de sua vida. São
essas três coisas a tríade da Verdade. Ela agora vê a Verdade como a meta
do seu esforço. Mesmo a Beleza não passa agora de base para a sua
ascensão. Visto que a Verdade é para sempre inatingível pela alma finita, a
busca se converte na aspiração pelo Valor Supremo. Novas esperanças e
novos sofrimentos surgem na vida. Os momentos de Verdade — mesmo da
Verdade relativa — raramente aparecem. O mundo não sabe das suas lutas
nem da razão por que ela deve trabalhar como o faz. A beleza invisível e
silenciosa da Verdade a atrai e ela não sabe até que ponto está cativa. Um
novo ciclo, que deve ser representado por um novo eneagrama, começa. É
o ciclo da sua Busca da Alma. Nesse ponto, devemos deixá-la e voltar de
novo ao seu professor.
No ponto 8, o professor e a aluna se separam. Ele retoma ao ponto
de partida 1 para começar novamente o ciclo de instrução, quando pode
encontrar uma aluna que seja capaz de realizar a etapa de 1 a 2, isto é, de
aceitar a tarefa de trabalhar pela sua arte.
O terceiro processo passou apenas por duas fases: a vocação da
aluna pela sua arte e a contribuição que ela faz na sua profissão à arte do
canto. Se formos mais adiante em sua companhia, veremos que ela penetra
num ciclo de atividade criadora, deixando após a sua passagem um legado
permanente. Tal atividade transcende a personalidade de um único artista,
pois se relaciona com o Mundo da Música, no qual todos os homens, de
modo consciente ou inconsciente, têm o seu lugar.
A Transformação do Homem

Tendo examinado os alimentos do Homem, devemos nos voltai para


uma faceta raramente explorada, que é, para nós, a mais importante.
Poderá o eneagrama nos ajudar a compreender a transformação cósmica
do próprio Homem? Entendemos por “Cósmico” não apenas o seu
processo interior, mas o papel que ele pode desempenhar no trabalho de
transformação do mundo. Imaginemos inicialmente que haja algo como
uma cozinha que tenha que produzir para este mundo, para a vida na Terra
e talvez para todo o sistema solar, algo que corresponda a uma refeição.
Podemos também supor que nós — as pessoas — estejamos envolvidos no
processo. Há preparativos, organizações ou lugares equipados para realizar
essa operação, como uma cozinha, ou como o corpo humano para a nossa
própria transformação. De um modo geral, chamamos esses lugares de
escolas. Elas proporcionam as condições, os meios e o equipamento. É
possível fazer uma analogia do modelo da cozinha com todas as coisas que
são necessárias numa escola. Algumas pessoas dão a isso o nome de escola
esotérica, mas vamos utilizar, para esse fim, a simples palavra escola.
No ponto 1, está algo que chamamos “escola”. Há outra coisa, que
chamamos “o buscador” e também o que denominamos “Trabalho”. Todos
eles têm algum sentido para nós, quando falamos deles. Agora façamos a
nós mesmos a pergunta: o que ocorre com as linhas de ligação? O círculo é
dividido em três partes pelo triângulo e as linhas que ligam os pontos 1-4-
2-8-5-7. Antes, ao considerar a cozinha, vimos que os pontos 1 e 2
estavam relacionados com a criação de condições que tornam possível a
preparação da refeição, os pontos 4 e 5 eram a ação sobre os mantimentos,
a conversão dos alimentos crus em alimentos cozidos, e os pontos 7 e 8 a
apresentação da refeição e o ato de comer. Agora que estamos falando
sobre o trabalho de escola, temos nomes para essas três fases. Chamamos
a primeira de fase exotérica, a segunda de mesotérica e a terceira de
esotérica.
Na fase exotérica, nada realmente acontece ao buscador. O ponto 1,
a nota ré, está relacionado com o “que”, isto é, apenas com a aquisição de
conhecimento. É o tipo da coisa que ocorre quando lemos livros ou
chegamos e aprendemos coisas, mas ainda não começamos a nos envolver
realmente. É, na verdade, aprender exteriormente.
A segunda fase se inicia quando aprendemos “como” fazê-lo,
quando aprendemos a discernir e nos mostram o que fazer e quando. É por
isso que temos, nesse caso, a sucessão 1-4-2. O ponto 4 representa a fase
em que o trabalho está começando a penetrar em nós e algo efetivamente
acontece conosco, quando não estamos mais experimentando ou tentando
coisas, mas nos empenhamos em deixar que algo nos aconteça. É com isso
em mente que aprendemos “como” fazer coisas. É por isso que, do ponto
de vista do instrutor, do mestre, do professor ou seja de quem for, a coisa é
vista na ordem 1-4-2. Do ponto de vista do processo, ele segue a sequência
1, 2... e, em seguida, vem o verdadeiro acesso. O acesso a uma escola se dá
quando há um efetivo envolvimento. Isso ajuda a explicar o dito de que o
trabalho não começa no nível da vida comum, que é preciso acontecer algo
antes a fim de que o trabalho se inicie.

Fig. 13 — A transformação do homem

Não entramos numa escola simplesmente pelo fato de estarmos nela


ouvindo e aprendendo. Só estaremos na escola quando a ação tiver início
em nós, quando começarmos a cortar as folhas velhas, a tirar o excesso de
gordura e todas as coisas que o cozinheiro faz ao preparar a comida.
Deveria ser totalmente possível visualizar e compreender como isso é
assim, e ver como frequentemente nos equivocamos julgando que estamos
numa escola ou temos uma ligação com ela, quando, na verdade, ainda
estamos do lado de fora.
Na fase exotérica, isto é, nos pontos 1 e 2, é possível entrar e
continuar incólume, intocado. Às vezes, as pessoas fazem isto: creem que
algo aconteceu, mas, cedo ou tarde, se toma evidente para elas que nada
aconteceu. É necessário que haja essa espécie de trabalho, porque, de certo
modo, esse é o meio da própria escola se regular. Ela não pode começar o
seu trabalho a partir da fase mesotérica, mas se nunca vai além dos dois
primeiros pontos, nunca chegará então a ser uma escola no verdadeiro
sentido.
Assim, esse segundo dó, o do ponto 3, representa um certo
envolvimento. Outra forma de dizer isso é afirmar que ela começa nesse
ponto a ligar-se ao “ser”; o Trabalho começa a tocar o ser daqueles que
entram nele. Nos pontos 1 e 2, ele entra em contato com o conhecimento
deles, porque podem aprender várias técnicas, exercícios, meditações e
trabalhos físicos, mas é ainda apenas conhecer e, como disse antes,
podemos nos enganar, supondo que o trabalho que é realmente apenas para
conhecer seja trabalho para ser. Ficamos entre estacionários. Quando tal
coisa ocorre, o Trabalho perde a direção, nenhuma situação cósmica se
estabelece nem existe escola real alguma. O começo de uma escola real se
dá, apenas, quando há um envolvimento que irá mudar o ser daqueles que
estão interessados; e isso também muda a natureza da própria escola.
A escola deve ter uma meta. Esta é representada pela linha que vai
de 2 a 8, como acontece em todos esses casos. À medida que a atividade da
escola toma forma na consciência dos seus membros, toma-se evidente
que o seu propósito é servir. Este é representado pelo ponto 8. É por isso
que há sempre, em toda situação cósmica, a necessidade de compreender o
que a linha que vai de 2 a 8 representa.
Qual é a diferença entre os pontos 4 e 5? A verdadeira diferença é
que o ponto 5 se relaciona com a Vontade tanto quanto com o Ser. O
cozimento entra aqui e, nesse caso, o fogo representa o sofrimento. Só se
os alunos estiverem preparados para ir da fase do esforço à do sofrimento
é que poderão passar de 4 a 5. O que é que torna esse sofrimento possível?
É a visão rápida do fim, a compreensão inicial daquilo por que estamos
trabalhando, isto é, a conexão entre o ponto 8 e o 5. Entre os pontos 2 e 8,
a conexão está na mente do professor. Entre os pontos 8 e 5, ela já está
penetrando na percepção do aluno.
Ora, o que é esse terceiro dó, classificado aqui de “Trabalho”?
Representa a reviravolta que ocorre quando o Trabalho começa a operar no
interior, quando o incondicionado começa a atuar dentro do condicionado
ou o espiritual, dentro do psicológico. Essa transição para a fase esotérica
se dá com a renúncia ou a aceitação. A fase esotérica, a transição pelo
ponto 5, é, na verdade, morrer. É a morte e a ressurreição que ocorre,
quando se vai do ponto 5 para o 7. No ponto 7, o novo homem nasceu.
Podemos dizer que, no ponto 4, ele adquire o seu segundo corpo, mas, no
ponto 6, conquista o seu terceiro corpo. Essa é a forma de dizer as coisas
de um modo muito completo.

•••
Respostas a perguntas formuladas:

Podemos dizer que o choque consciente corresponde às três fases do


Trabalho: a exotérica, a mesotérica e a esotérica. Devemos agora
compreender esta propriedade peculiar do eneagrama e dos cosmos em
geral: eles podem surgir em diferentes escalas. Gurdjieff usava a
expressão “oitavas interiores” ao falar disso, de modo que podemos com
muita facilidade passar de uma escala a outra. De um modo geral, falei da
grande escala que é a totalidade do trabalho neste mundo. Mas é possível
considerá-la numa escala menor em relação a uma escola particular ou até
mesmo a determinada pessoa, justamente por causa da lei geral de
semelhança. Digo isso porque as palavras exotérico, mesotérico e
esotérico podem ser usadas, de modo geral, em relação à totalidade do
trabalho da transformação em toda a humanidade.
Neste momento, temos simultaneamente três fases: a exotérica, a
mesotérica e a esotérica. Alguns podem estar numa delas, outros numa
outra. Alguns entraram na fase mesotérica do Trabalho: algo ocorreu com
o seu ser. Isso é algo muito grande e extraordinário.
Chegar à terceira fase é um grande passo, porque significa morrer
para si mesmo. Isso só ocorre quando o próprio Trabalho toma posse:
quando aceitamos realmente não sermos mais o nosso próprio senhor, mas
deixamos que o Trabalho se tome o nosso amo.
Quando pudermos verdadeiramente nos separar da nossa
personalidade, então a transformação que se dá no ponto 5 ocorrerá. Mas,
quando pudermos pôr de lado a nossa própria vontade, de maneira total,
sermos inteiramente servos do Trabalho, então a transição do ponto 5 para
o 7 ocorrerá. É aí que o Trabalho entra como terceiro choque. Em todos
nós é esse choque que permite o nascimento do homem espiritual ou
homem do Trabalho. Tudo isso faz parte, no seu significado pleno, da fase
esotérica. Só então é que o ser de um homem se torna uma fonte para si
mesmo. Ele é então a fonte de onde provém a força do Trabalho no mundo,
representada pela linha de 7 a 1 e completando o ciclo. O homem que
atinge o ponto 7 nesse sentido é agora, por si mesmo, uma fonte pela qual
esse mesmo processo novamente se inicia, como na sentença sufi: "Só pela
Tua presença o homem pode ser transformado.” Essa terceira
transformação é muito interessante, porque implica que o próprio
Trabalho também está sendo transformado, não é algo fixo ou exterior. Ele
adquire vida através da escola e das pessoas. A ideia do Trabalho, ou o
padrão, o programa do Trabalho, o que o Trabalho representa está ali, mas
só se concretiza através das pessoas. Enquanto elas não lhe dão um corpo,
ele não tem nenhum lugar nem nenhum acesso. É através das pessoas que
ele pode chegar ao ponto de ser uma manifestação dentro deste mundo,
deste cosmo particular dessa terra e da vida que nela existe. Dessa forma,
é através dos "nascidos duas vezes”, como dizem na índia, que este
trabalho adquire o seu ser e os que podem passam do ponto 5 ao 7. O
extraordinário poder do eneagrama reside no fato de nos permitir abranger
mais coisas diferentes do que possivelmente poderíamos perceber com a
nossa mente desamparada. Ele faz pela nossa visão interior o que um
telescópio fará pela nossa visão exterior. Gurdjieff usa essa mesma
comparação, quando diz, em Beelzebub’s Tales: “Teskuano ou um
instrumento que toma a visibilidade das concentrações cósmicas sete
milhões de vezes mais próxima.” Com a sua ajuda, se pudermos admitir e
refletir sobre isso, poderemos entender uma enorme quantidade de
ensinamentos e acontecimentos aparentemente desconexos. Tudo o que se
relaciona com a vida espiritual e religiosa do Homem pode ser
representado nele.
A Simbiose Biosférica

Só podemos compreender a comunidade total da humanidade nos


reportando à grande simbiose{9} de que a humanidade é uma parte. Trata-
se da Simbiose da Biosfera, que é a sociedade de transição entre os
Mundos Autonômico e Hipernômico.{10} Estamos aqui em face de uma
estrutura que abrange, de maneira evidente, elementos que ainda estão
faltando na nossa experiência humana. Sabemos que a Biosfera, como uma
comunidade de organismos vivos, tem existido por muitas centenas de
milhões de anos e que é provável que dure enquanto as condições
climáticas da superfície terrestre continuem a ser controladas pelos
intercâmbios de energia entre a atmosfera, os oceanos e a camada exterior
da crosta terrestre. Não há nenhuma razão evidente pela qual essa situação
não deva prosseguir por outro milhar de milhões de anos.
A Biosfera abrange tudo o que está associado à vida na superfície do
nosso planeta; e aqui está uma situação extraordinariamente complexa
exclusivamente para a humanidade. Há mais de três bilhões de seres
humanos vivendo atualmente; não podemos calcular o número total de
seres humanos que viveram e viverão no decorrer da história passada e
futura. Existimos na Terra com muitos milhares de bilhões de animais,
vertebrados e invertebrados. O conjunto é entreligado a uma rede de
conexões que desafia uma descrição.
O homem é representado por uma única espécie e provavelmente
não deve ter havido mais de três ou quatro espécies de hominídeos no
milhão e meio de anos de vida do homem na Terra. Dentro do Evento total,
que começou com o aparecimento da vida na Terra e que terminará com a
sua final cessação, a humanidade ocupa, em duração e grandeza, um lugar
muito pequeno. A significação do homem como uma forma de vida
dominante na Simbiose Biosférica reside numa tarefa a ser realizada na
Evolução da vida na Terra. Com isso em mente, podemos estabelecer uma
estrutura de sociedades, que começa no Homem, considerado
individualmente, e termina na Biosfera como um todo. Podemos
representar isso pela estrutura dos três processos interligados do
eneagrama. Na Simbiose Biosférica, os três grandes processos unem-se
num Grande Ciclo Cósmico:

1. A Transformação dos Seres Humanos em Indivíduos.


2. A Evolução da Humanidade.
3. A Espiritualização da Biosfera.

Estes três ciclos distintos resultam de três fontes independentes.


Cada um deles caracteriza um tipo radicalmente distinto de sociedade ou
elemento da simbiose total. O caráter total da Biosfera deve ser objeto de
conjectura, mas está, sem dúvida, ligado ao papel da vida como o
elemento de conciliação dentro do Universo.{11} A vida na Terra nos brinda
com uma complexidade de relação imensa demais para que possa ser
representada por uma única estrutura. Por causa disso, trataremos apenas
do papel particular da humanidade na Simbiose Biosférica.{12} Como
estamos tratando de três processos independentes podemos fazer uso das
nossas ideias referentes à harmonia do eneagrama. Cada ponto de partida
ou “dó” conduz a três fases, antes que surja a necessidade de “fusão”.
Esses três ternos podem ser deduzidos da natureza dos pontos de partida.

PRIMEIRO TERNO
Fase inicial O Ser Humano
Segunda fase A Família
Terceira fase O Clã ou Nação

SEGUNDO TERNO Fase


inicial A Comunidade Cultural ou Civilização
Segunda fase A Situação Humana limitada no Tempo, a Época

Terceira fase A Situação Humana Global, ilimitada no Tempo,


Humanidade
TERCEIRO TERNO
Fase O Homem como um veículo de Espiritualização
inicial
Segunda A forma particular de vida na qual a Espiritualização é
fase concentrada. Ramo evolutivo

Terceira Forma de Existência dominante na Biosfera. Forma de vida


fase dominante

Em conjunto, essas nove fases formam nove elementos, três dos


quais são pontos de partida e seis são etapas. O eneagrama tem apenas
nove pontos, mas um deles aparece duas vezes, como ponto de entrada e
também como ponto de saída. Isso se deve à propriedade que o eneagrama
tem de representar as situações cósmicas nas dimensões intransitivas de
Espaço e Eternidade e nas dimensões transitivas de Tempo e Hiparxe.
A primeira sequência inicia, acima das sociedades nacionais, a
simbiose internacional, aqui chamada de Época.{13}
As Épocas se associam à evolução consciente da humanidade e,
portanto, crescem de importância a cada fase sucessiva. As Épocas
sobrevivem a muitas gerações humanas; a duração delas é da ordem de
uma centena de gerações. Acima das Épocas está a Humanidade numa das
fases superiores da sua evolução. Por exemplo, estamos neste momento na
fase em que a Humanidade está se tomando consciente da sua unidade
(Consciência de um só mundo), mas ainda não do seu papel na Biosfera.
Quando chegar o momento, uma Humanidade transformada começará a
tarefa de orientar a evolução de toda a vida na Terra no sentido do seu
grande destino. Numa fase ainda mais posterior, uma nova Humanidade,
totalmente diferente da raça humana que conhecemos hoje, se dedicará a
unir-se com a alma da Biosfera.
É a estrutura do nosso diagrama que sugere essas profecias
especulativas do futuro bem distante. No ponto em que a Humanidade
assumir a responsabilidade pela sua própria evolução, ela se deparará com
um novo problema: o da Espiritualização da própria Biosfera. Ver-se-á
então que a existência humana não tem qualquer significação
independente e que uma extraordinária mudança de atitude em relação a
toda a vida na Terra terá que ser admitida, se se deve realizar um progresso
maior.

Fig. 14 — As sociedades da Biosfera

Os Ramos Evolutivos do passado prepararam o caminho para o


novo passo em frente. Assim, c mamíferos abriram o caminho para a
chegada do homem. A Humanidade descobrirá o seu papel como um Ramo
Evolutivo da Forma de Vida Humana que finalmente completará a
transformação dívida.
Ao descrever a Simbiose da Biosfera, seremos obrigados a prever o
futuro. A razão disso é que o Homem é um ser relativamente novo na
Biosfera e não desenvolveu aim as propriedades que finalmente o
distinguirão existencialmente dos animais. Dizemos existencialmente,
porque, na sua natureza essencial, ele tem sido completamente diferente
dos animais desde que surgiu pela primeira vez na face da Terra.
A simbiose que estamos estudando neste capítulo é perceptível no
tempo e no espaço. Não podemos observar diretamente o modelo eterno no
qual se baseia sua construção, mas podemos deduzi-lo a partir de
princípios sistemáticos. A significação hipárquica{14} escapa-nos
completamente; noutras palavras, não temos meios de saber se a Simbiose
Biosférica corresponde ao Destino da Biosfera. Se pudéssemos conhecer a
resposta a essa pergunta, saberíamos uma porção de coisas sobre o destino
e o futuro da Humanidade.

No momento presente, nosso interesse deve necessariamente estar


voltado para as sociedades de que temos exemplo na nossa experiência.

A família

Podemos considerar a família a esfera total dos contatos do homem


e da mulher. Há um acordo geral em ver como retrógrada a tendência ao
enfraquecimento dos vínculos familiares, desenvolvida recentemente. Em
tempos passados, a comunidade familiar era tida como abrangendo três
gerações. O clã, possuindo terras em comum e afirmando descender de um
ancestral comum, nos fornece um possível limite muito distante do
autêntico laço familiar. Podemos reconhecer a extensão de uma
comunidade familiar pela existência de uma ligação pessoal entre os seus
membros. Um homem pode nunca ter encontrado algum outro membro ou
ouvido falar dele, mas pode “reconhecê-lo” pelo seu parentesco, pelo local
de residência ou pela ocupação. Dessa forma, podemos reconhecer, dentro
de uma comunidade familiar completa, subgrupos de membros.
Constituem todos uma parentela, mas nem todos desempenham a mesma
função. Na sociedade patriarcal ideal, há subgrupos que trabalham em
harmonia nos diferentes níveis do egoísmo. Alguns se ocupam com as
necessidades materiais, outros com os prazeres e ainda outros com a
educação e a transformação.

Assim, a família é o ambiente natural em que se desenvolve a vida


do homem. A sua principal influência se exerce sobre as quatro
Personalidades que recebem o seu conteúdo sobretudo da família. A
personalidade se nutre de todas as fontes. É muito provável que a
comunidade familiar partilhe de um Destino comum.
A família tem também uma importância essencial visto que oferece
as condições para a aquisição de poder e discernimento. Essa tarefa faz
parte da sua vida interior. A família tem uma importância simbiótica para
a Biosfera como a unidade natural da vida da humanidade. É com a família
que começam as transformações da forma da vida humana.
Em todas as sociedades humanas, a família é a força social
fundamental dentro das complexidades sociais mais amplas. A simbiose
da família nos leva diretamente à fase seguinte: as nações.

Comunidades nacionais

A família é uma unidade basicamente dirigida. Os membros


partilham uma herança comum que os mantém reunidos. A herança
compreende a consanguinidade, as experiências comuns, as posses em
comum, uma linguagem comum, crenças e tradições comuns. A influência
dessas forças não se esgota quando cessam de gerar uma ligação pessoal.
Podemos reconhecer, acima dos limites da família, comunidades com uma
estrutura mais complexa, mas que são unidas por laços da mesma espécie.
Essas comunidades são as nações ou povos. Sociedades assim existiram na
Terra desde antes da história escrita. Geralmente se mantiveram juntas,
tanto pelas fronteiras geográficas como por uma herança comum; mas é
essa última que constitui o verdadeiro elo da nacionalidade. Comprova-se
isso, quando se observa a capacidade que as nações têm de preservar a sua
unidade ao emigrar para um novo ambiente geográfico. De modo geral, a
herança comum compreende uma linguagem comum e uma acentuada
tendência endogâmica.
Embora a unidade de uma nação seja primordialmente existencial,
ela sempre se estende por vários níveis de existência e abrange atitudes
comuns em relação a Valores Morais. Pode haver, por exemplo, uma arte
nacional, uma moral nacional e obrigações nacionais reconhecidas e
partilhadas pelos vários grupos dentro de uma comunidade nacional.
As nações devem, naturalmente, ser distinguidas dos estados, que
são instrumentos para o exercício da autoridade e não fazem parte das
comunidades naturais da biosfera. Os governos estatais são raramente tão
duráveis como as comunidades nacionais, embora muitas vezes declarem
que a sua autoridade se baseia nos “direitos das nações”. Os estados
modernos abrangem com frequência muitas nações e as nações estão
divididas entre estados. O “estado” como instituição está constantemente
mudando de forma. Idealmente, deveria ter a estrutura de um sistema de
quatro elementos, pois a sua função é manter uma cooperação harmoniosa
entre os quatro subgrupos psicostáticos da comunidade humana total. A
economia política, ou ciência de governar, é uma parte da harmonia geral
das comunidades humanas e continuará se transformando, à medida que a
humanidade evolua no sentido de estruturas que substituam o estado
moderno como este assumiu o lugar das velhas instituições. Isso nos
conduz ao papel das civilizações.

As civilizações

As civilizações diferem das famílias, clãs e nações pela sua origem


e função. Elas não se mantêm unidas pelas influências centrípetas de uma
origem comum ou das pressões econômicas e vegetativas. Geralmente se
estendem por regiões geograficamente diferentes. Muitas vezes abrangem
muitas nações que vivem sob condições climáticas e econômicas muito
diferentes. Além disso, surgem, se desenvolvem, florescem, degeneram e
são substituídas de modo totalmente diverso das famílias e nações.
As civilizações são também diferentes das simbioses pertencentes
às terceira e quarta fases, que abrangem toda a raça humana por um
período de tempo. As civilizações não fazem parte das “fases” da evolução
humana, mas, até certo ponto, são canais através dos quais penetram as
influências dos Valores Morais. Elas estão, de maneira imperceptível,
associadas ao Fundo Comum da Essência da Alma, {15} cuja situação
refletem na vida visível da humanidade. Desse ponto de vista, as
civilizações não têm suas origens nas necessidades pessoais do homem ou
da mulher nem no modelo espiritual do Destino da Biosfera, mas no
ímpeto evolutivo da humanidade como um todo. Elas são os esforços da
Alma do Homem, ainda imatura, e assinalam uma fase da sua
transformação do informe Fundo Comum da Essência da Alma na direção
do futuro Homem Cósmico.
As civilizações se caracterizam pelas estruturas específicas de
valor, que abrangem os gostos populares, as morais sociais e os valores
religiosos e humanos. Uma Civilização pode durar mil anos e abarcar uma
substancial porção da humanidade. Pode ser também relativamente restrita
em alcance e duração. Em todos os casos, as civilizações têm um caráter
binário. Externamente, são sociais e políticas, despertando nos seus
membros uma ampla ambição e o ímpeto de impor às outras sociedades a
sua estrutura de valores. Internamente, são humanas e religiosas, buscando
a realização da Revelação Essencial associada ao seu aparecimento.
Arnold Toynbee, cujo livro Study of History é a nossa principal fonte para
a descrição das civilizações, mostra como elas estiveram associadas tanto
aos grandes Impérios quanto às Igrejas Universais.
As civilizações são eventos comparativamente recentes no cenário
da história humana. Toynbee distingue pouco mais de quarenta que
floresceram nos últimos cinco mil anos. Isso não quer dizer que o papel
que elas desempenharam não foi cumprido anteriormente. Sempre houve
Fontes a partir das quais as estruturas de valor penetraram na experiência
humana. Antes da existência das civilizações, já havia Escolas, mas as
suas influências se restringiam a uma minoria que permanecia isolada do
restante da humanidade. O papel das Civilizações tem sido a ampla
disseminação das estruturas de valores entre todos os povos do mundo.
Esse papel está hoje quase completo e as Civilizações, como as
conhecemos, darão lugar a novos tipos de comunidades para a transmissão
dos valores. Isso não pode ocorrer enquanto os valores superiores não
penetrarem na Alma do Homem através do Fundo Comum da Essência da
Alma. Podemos ser encorajados a esperar que esse progresso esteja sendo
feito, na purificação do Fundo Comum da Essência da Alma, pela
observação de que a implacável crueldade das lutas humanas não é mais
aceita como era há dois mil anos atrás. Há também um amplo
reconhecimento da responsabilidade que o forte tem pelo fraco. Essas são
indicações de que a natureza animal é menos dominante na Alma Humana
do que no passado. Infelizmente, não há indício algum de que cinco mil
anos de Civilizações, que abarcaram nove décimos da raça humana,
tenham conseguido diminuir os profundos males da sede egoística de viver
e de dominar os outros. Muitos milênios terão que passar antes que o fluxo
das influências vindas da Segunda Fonte seja muito diferente do que é
atualmente.

As épocas

A terceira grande fase na transição do homem para a Biosfera se dá


com a comunidade mundial da Época, que é em si mesma uma simbiose.
Isso significa que ela é mais do que uma comunidade de seres humanos
existentes durante um período de tempo. Ela está colocada num ambiente
de transformação evolutiva e involutiva, que abrange todas as formas de
vida na Biosfera. Isso não é tudo, pois a Época tem um ambiente invisível
ou essencial, que é o Destino total da Humanidade. A simbiose é total na
medida em que a humanidade é considerada, excluindo-se, no máximo, os
vestígios dos períodos iniciais que saíram da corrente evolutiva. Desde
que só pode haver uma totalidade dessa ordem num determinado momento
e sua duração é medida em milhares de anos, podemos ter pouquíssimo
material histórico para o seu estudo. Parece certo, no entanto, que as
Estruturas de Valor das diferentes Civilizações, embora conflitantes em
aspectos particulares, têm um elemento comum reconhecível, que assinala
a fase alcançada na Evolução geral da raça humana. Dentro da Época, as
civilizações, as culturas, os estados e superestados, as religiões mundiais
etc. são elementos distintos dentro da estrutura global. Só no passado
recente é que se tomou disponível um material histórico suficiente para
permitir uma visão sinóptica da Simbiose da Época. Devido à sua posição
na simbiose total, devemos esperar que cada época sucessiva dê uma
contribuição específica e reconhecível ao progresso humano. Chamaremos
a isto Ideia Mestra da Época. A sua estrutura está fadada a ter um grau de
concreção que corresponda ao número de elementos que ela deve
combinar.

A humanidade
A categoria da Essência Humana compreende todos os seres
passados, presentes ou futuros, que, vivendo na Terra, têm a possibilidade
de transformação consciente. Dentro desta Totalidade, diferentes espécies
de homens apareceram no passado e, sem dúvida, aparecerão no futuro.
Qualquer desses ciclos principais de transformação humana determina
uma totalidade que chamaremos de uma Humanidade. A duração de tal
elemento na Biosfera pode ser de uma centena de milhar de anos — nessa
fase, não temos um critério para decidir. Pode acontecer que os ciclos
sucessivos correspondam ao desenvolvimento das Personalidades numa
única totalidade humana.{16} O princípio orientador aqui é a crença de que
a humanidade tem um só destino a cumprir e que todas as comunidades
subordinadas estão incluídas nesse destino, quer estejam cientes disso ou
não.

A espiritualização

Temos aqui a noção de “Realização da Essência na Existência e de


Espiritualização da Existência através da Essência’’. Ao incluí-la no nosso
esquema das sociedades da Biosfera, sugerimos que há uma
Espiritualização para as “comunidades” de Indivíduos. Esta sugere uma
ligação com as Almas Individualizadas dos Grupos Psicoteléios (que
alcançaram a liberação e estão livres das ilusões da vida terrena).
Associaremos provisoriamente esta fonte dentro da Totalidade Biosférica à
“Comunhão dos Santos” e aos indivíduos perfeitos que aceitaram a
responsabilidade de guiar o processo de espiritualização na Terra: o
"Círculo Profético”. Este pode abranger também as Essências Demiúrgicas
para formar uma comunidade de Vontades Individuais que se unem —
acima das limitações de tempo e espaço — para executar essa tarefa.{17}

Ramo evolutivo
As totalidades humanas que aparecerão na Terra não podem por si
mesmas realizar a tarefa total da transformação da Biosfera num Ser
Criador Consciente. Para a realização dessa grande meta, é necessária a
combinação de muitos papéis diferentes. Entendemos por Ramo Evolutivo
a comunidade que, durante um período fundamenta] de tempo, é o ponto
de crescimento no qual se concentra a significação da vida na Terra.

Forma de vida dominante na biosfera

Até aqui consideramos a Biosfera como sendo uma totalidade


existencial que ocupa uma posição indefinida entre a vida e a existência
além da vida. Temos agora que ampliar a nossa visão para levar em conta a
significação essencial da grande comunidade de seres vivos que habitam a
superfície do nosso planeta. Presumimos que a humanidade está em vias
de desenvolver uma Grande Alma Humana; podemos dar um passo adiante
e sugerir que a Biosfera também está em processo de Evolução no sentido
da Unidade.

Não temos atualmente quase nenhum sentido de responsabilidade


em relação à Biosfera. Vivemos às custas da vida que nos rodeia. Impomos
processos antinaturais ao solo, à vegetação e aos animais. Destruímos a
substância germinativa dos insetos, dos microorganismos e das outras
formas de vida. Tudo isso se faz sem qualquer consideração pela Biosfera,
da qual viemos e para a qual devemos retornar. Como uma criança
irresponsável, utilizamos mas não restauramos, e a nossa ideia do futuro é
esboçada em termos de “Domínio sobre a Natureza” pelo homem.
Aspiramos, ao mesmo tempo, a um destino que vá além da natureza.
Estamos ganhando experiência — muitas vezes de maneira muito dolorosa
—, mas compreendemos muito pouco da vida e nada da razão pela qual há
vida no planeta Terra. Pouquíssimos membros das nossas atuais
civilizações estão mesmo interessados nesses problemas. Não apenas para
o homem comum, mas para os filósofos, políticos e líderes religiosos, o
problema que temos diante de nós é considerado como se começasse e
acabasse com o homem. Tudo que escrevemos neste capítulo será tomado,
quer como uma tola especulação, quer como completamente irrelevante
para os problemas concretos do nosso tempo. Esse repúdio da Biosfera e
suas simbioses é totalmente errado, pois os problemas da vida e da morte
com que a humanidade se defronta só poderão ser resolvidos se vier uma
ajuda do Poder Espiritual que está trabalhando no sentido da
Transformação da Biosfera.
A comparação da estrutura ideal da comunidade humana com a
situação existente hoje na Terra toma evidente que não existe nenhum
Grupo Psicocinético{18} eficaz. Essa é a principal razão por que a
humanidade está vivendo em desarmonia com as necessidades da
Comunidade da Vida na Terra. Os Especialistas que adquiriram certo grau
de compreensão da situação não têm autoridade e são compelidos a agir
como instrumentos dos líderes psicostáticos. Quando se estuda a situação
desapaixonadamente, parece que a deterioração progressiva das relações
do homem com a Biosfera é inevitável. Tem-se mesmo sugerido, com
certa seriedade, que o homem, em última análise, poderá prescindir de
todas as outras formas de vida, produzindo não só todas as matérias-
primas, mas também todas as substâncias nutrientes exigidas para viver,
através do exercício do seu próprio poder de controlar as energias
essenciais. Mesmo hoje, algumas vozes têm-se levantado advertindo
contra essa loucura — não do ponto de vista moral, mas devido à
evidência de que a destruição da vida na Terra supera a sua capacidade de
encontrar substitutos. O desmatamento, a perda de fertilidade das terras
cultiváveis, o despovoamento dos mares, a adulteração dos alimentos e a
perda do valor nutritivo, a pressão populacional crescente na própria raça
humana, são citados como sinais de perigo que a humanidade se recusa a
perceber. De fato, o homem está desempenhando um papel
“antissimbiótico”. {19}
Se a nossa análise da estrutura social corresponde à realidade, esses
sinais de perigo são advertências de um perigo mais profundo: o da
emergência de sociedades humanas tão extraordinariamente organizadas
que dominarão o mundo e, no entanto, total e obstinadamente ignorantes
da verdadeira significação da existência humana.
O Eneagrama Planetário

Por dois ou três bilhões de anos, a Terra tem sido uma totalidade
autorrenovável. Ela sustentou a vida e produziu as energias requeridas
para a evolução do sistema solar. Participa de um equilíbrio entre o
planeta, a Biosfera e o que Teilhard de Chardin chama a noosfera ou esfera
da inteligência. Esse equilíbrio é necessário para o cumprimento de um
grande objetivo para o qual o sistema foi criado. Durante os dois ou três
milhões de anos — o que não passa de uma milésima parte do tempo de
existência da vida — a Terra foi a sede da raça humana. Vamos ver se
podemos compreender, com o auxílio do eneagrama, esse equilíbrio e sua
necessidade, e o lugar que ocupamos nele.
A Terra é, na verdade, o corpo do espírito planetário. Essa grande
ideia foi formulada há cem anos atrás pelo filósofo e psicólogo alemão
Gustav Fechner na sua obra Tagesansicht gegen Nachtansicht (Visão
diurna versus Visão noturna). Ele estava talvez inclinado a representar o
ser planetário demasiadamente baseado no modelo do ser humano; mas foi
um dos precursores da nova época. Seu livro será redescoberto e relido à
medida que começa a se realizar a sua profecia. A Terra não é um ser
“vivo” no sentido de que os homens e os cavalos, as abelhas e os vermes o
são. Ela cria vida num sentido semelhante ao modo como um cozinheiro
“prepara” uma refeição ou um pintor “pinta” um retrato. Há um Gênio
Criativo associado à Terra, que é expresso pela palavra Elohim no livro do
Gênese. Esse gênio criativo desempenha o mesmo papel na evolução da
vida que o cozinheiro-chefe na preparação da refeição. Podemos também
imaginar os poderes espirituais que realizam todas as funções exigidas
pela evolução do planeta. A estas Gurdjieff dava o nome de “Exército
Celestial”.
A Terra sólida é a cozinha e a Biosfera é o alimento a ser cozido. A
comunidade que deve ser alimentada é o mundo espiritual, que necessita
de corpos para cumprir o seu destino. Podemos representar as três oitavas
do eneagrama como está mostrado no diagrama planetário.
A sequência na qual as formas de vida surgiram faz a volta do
círculo. Inicialmente havia a Terra com os seus mares e sua atmosfera. Sob
a ação da intensa radiação do Sol, a superfície foi lentamente transformada
e ativada até que começaram a aparecer compostos autorrenováveis. Essa
é a transição ré-mi da rocha em terra. O aparecimento da vida foi uma
etapa criativa — que se completou com o aparecimento da reprodução
sexual e, daí, a possibilidade de evolução por variação e sobrevivência. As
notas fá e sol, a vegetação e os invertebrados, compreendem todas as
formas de vida nas quais não há nenhum pensamento e sentimento
individuais. O estágio seguinte se dá com o advento de um poder que é
superior ao instinto e é partilhado por todas as formas de vida dotadas de
um sistema nervoso, isto é, os cordados, que abrangem os répteis, os
peixes, os pássaros, os animais e o homem. Esse poder resulta da
organização da energia sensitiva que ocorre na nota lá e da consciência, na
nota sí.
O homem, como um ser natural, pertence ao estágio final do
processo de evolução, mas é capaz de uma transformação posterior por
meio de um novo ciclo que começa na nota dó ou ponto 9 do eneagrama.
Esse é o caminho da espiritualização.
Temos, então, três processos bem definidos:

1. A Evolução do Planeta
Dó A Terra primitiva
Ré Rochas, água e ar
Mi Terra e água do mar
Fá Vegetação
Sol Invertebrados e micróbios
Lá Animais
Si Homem
Dó A Terra espiritualizada
2. A Emergência da Vida

Dó Formas autorreprodutoras
Ré Vegetação
Mi Invertebrados
Fá Animais
Sol Homem
(Lá) Homem Consciente
(Si) Homem Criativo
(Dó) Homem unido ao Criador

3. A Transformação Espiritual
Dó O Exército Celestial
Ré Os Seres Sensíveis u
Mi Os Seres Conscientes
(Fá) Os Seres Transformados

As notas entre parênteses vão além do eneagrama do planeta e


podem ser interpretadas apenas levando em conta a significação do Sol e
do sistema solar como um todo. A Terra mesma tem uma tríplice
significação. De acordo com Gurdjieff, os planetas que mantêm a vida
foram criados para permitir que os seres auto criadores realizassem o seu
destino. A Terra é, desse modo, primeiro um meio, depois um poder
criador e, finalmente, uma manifestação do espírito. É um elo entre os
mundos da existência material, da consciência e da criatividade. Esses
mundos são chamados na terminologia sufi:
Alem-i-Ejsam O mundo dos corpos
Alem-i-Ervah O mundo dos espíritos
Alem-i-Imkyan O mundo das potencialidades

Até aqui o esquema não revelou nada de novo. Ele serve para nos
dar uma visão da totalidade da vida planetária e do seu lugar no sistema de
Manutenção Recíproca, através do qual o universo cumpre o seu destino.
Mas ele não nos diz nada sobre o modo como os processos são controlados
e dirigidos. Devemos voltar à figura recorrente de seis pontos, que
representa o ponto de vista da Inteligência diretiva; como o cozinheiro-
chefe é no exemplo da cozinha. A ideia mecanicista da evolução rejeita a
noção de uma Inteligência diretiva, achando que isso é uma complicação
desnecessária; no entanto, um século de pesquisas, levadas a cabo com
enormes recursos por cientistas da mais elevada capacidade, não
conseguiu produzir uma explicação convincente da evolução da vida no
planeta, baseada no mecanicismo puro, com a negação do papel da
inteligência.
Imaginemos uma Inteligência Demiúrgica capaz de estudar a
história de três bilhões de anos e considerar um milhão de anos como o
fazemos com o trabalho de uma semana. É essencial colocar-se na
perspectiva de uma escala de tempo dessa ordem, se tivermos que ver o
destino de nosso planeta como um todo. Poderíamos também levar em
conta três espécies diferentes de tempo: uma linear, outra circular e ainda
outra exponential. Este é um aspecto do eneagrama que até aqui não
consideramos, mas é necessário vê-lo dessa maneira, se quisermos
conciliar os fatos observados de progresso, repetição e recorrência e de
aceleração. O estudo do tempo e da eternidade é tão vasto que não
podemos fazer mais do que mencioná-lo nesse estágio.

Voltemos, assim, à Inteligência Demiúrgica e façamos a nós


mesmos a pergunta sobre como o processo de evolução deve ser posto em
movimento. Antes de tudo, deve haver um meio fértil. Encontramo-lo no
solo e nos compostos químicos correspondentes existentes nos oceanos.
Para a vida, como a conhecemos, é indispensável uma atmosfera rica em
oxigênio, mas, a fim de ter essas condições, já deve haver vida. O dilema
do ovo e da galinha se coloca diante da Inteligência Demiúrgica, que o
soluciona dando origem a formas pré-vitais que podem se reproduzir e
nada mais do que isso. Não saberíamos nada dessas formas se não
houvesse, nos nossos dias, um exemplo delas. Trata-se da película
protoplasmática não celular que recobre a rocha umedecida, na forma de
algas verdes-azuladas. Durante 500.000.000 de anos, e talvez muito mais,
não houve nenhuma outra atividade vital na superfície da Terra. Isso é
representado, no eneagrama, pela linha 1-4 e leva pela linha 2-4 ao solo ou
seu equivalente, o oceano. O ponto 2 abrange a formação da atmosfera
como a conhecemos.

Fig. 15 – Eneagrama planetário

Neste ponto, a oitava atingiu seu Mdnel-In mecanocoincidente, onde


o segundo choque deve ocorrer. Este é inquestionavelmente o surgimento
da reprodução sexual. Pode-se dizer que todas as perturbações desta Terra
começaram há dois bilhões de anos atrás, quando apareceram as primeiras
células masculina e feminina. É quase impossível imaginar que uma
massa de protoplasma pudesse espontaneamente adquirir características
sexuais. É muito mais plausível acreditar que a Inteligência Demiúrgica
introduziu o sexo de além da Terra, talvez até mesmo do sistema solar. A
partir do momento em que surgiu a reprodução sexual, a evolução poderia
continuar por meio do “Harnel Miatznel”. A Inteligência Demiúrgica
poderia então voltar-se para o estágio final, no qual apareceria o Homem,
e dirigir o curso da evolução com o seu objetivo diante de Si. Esta é a
linha 2*8 do eneagrama.
O Homem só poderia aparecer na Terra, quando uma quase ilimitada
variedade de formas e energias tivesse criado um meio adequado. Esse era
o papel da série invertebrada, as esponjas e corais, as bactérias e enzimas,
os vermes, insetos e moluscos. Todos esses contribuíram com algo para o
ambiente do homem na Terra. A Inteligência Demiúrgica previu e
preparou isto seguindo a linha 8-5 do eneagrama. A característica
fundamental do ponto 5 é a concentração e a liberação da energia sexual.
A oitava da vida chega aqui ao seu próprio Mdnel-In
mecanocoincidente e precisa de um choque para o seu desenvolvimento
posterior. Isso ocorre com o advento de uma sensibilidade organizada, mas
aqui temos de novo um elemento que não pode vir só pelo Harnel
Miatznel. A sensibilidade só pode ser organizada pela consciência, que,
por seu turno, deve ser dirigida por uma inteligência criadora. O modo
como isso se toma possível está indicado no capítulo sobre o Purgatório de
Beelzebub's Tales to His Grandson. Nosso Criador Eterno observou nos
invertebrados a possibilidade de movimento independente e os dirigiu no
sentido da sensibilidade. No eneagrama isso é mostrado no ponto 6, que é
o acesso de influências espiritualizantes vindas de fora. Elas levam a ação
criadora ao longo da linha 5-7 para dar origem à vida animal.
Aqui, a vida começa a agir sobre o próprio planeta. A linha 7-1 é um
aviso de que a Terra está sujeita a uma tensão que atinge o seu clímax com
o aparecimento do Homem. Podemos agora estar diante da ação
Demiúrgica necessária à manutenção do equilíbrio da Terra. O Homem,
em sua natureza animal, é um predador, alimenta-se de toda a vida,
saqueia sua própria casa, a Terra. O ciclo de recorrência exige que a Terra
possa ser restaurada no seu estado original. Isso ocorrerá pela destruição
da vida inteira ou pela transformação do Homem? Essa é uma pergunta
que não podemos responder e pode ser que a solução esteja fora do poder
da Inteligência Demiúrgica.
Este esboço de aplicação do eneagrama ao estudo de nosso planeta e
à evolução da vida suscita questões muito importantes. De fato, estabelece
um programa de pesquisas que pode ser mais importante para o nosso
futuro do que a exploração do espaço, ou até mesmo do que o estudo da
estrutura da matéria ou da liberação de suas energias desconhecidas.
Apêndice I

Processo Estruturado na Experiência Científica

K. W. Pledge

“Neste trabalho, mais do que em qualquer outro, compensa persistir no


exame das questões consideradas resolvidas, de outro ângulo, como se não
estivessem solucionadas.”

Wittgenstein

Resumo

Neste ensaio, demonstram-se as consequências da utilização de


certo tipo de método simbólico de investigação, através de sua aplicação
ao estudo de experiências científicas especiais. Mostra-se que as situações
científicas denominadas experiências são limitadas pelas mesmas leis
qualitativas, os mesmos princípios estruturais, os mesmos modos de
comportamento — sejam quais forem os seus nomes — que limitam todas
as outras situações, nas quais se possa discernir a presença de processos
concluídos. No trabalho científico, do mesmo modo que em todas as
atividades de qualquer espécie, entram certas considerações qualitativas e
estruturais, que têm relação direta com o que pode ser realizado por meio
de ação dentro das situações. Usando o eneagrama de Gurdjieff, que é um
símbolo de ação generalizada, que representa os diversos padrões a que se
ajustam os processos consumados, demonstra-se que não só a experiência
do desvio prismático de Newton como a experiência correspondente do
espectrômetro são exemplos inequívocos desse ajustamento. Os resultados
da investigação se compatibilizam com uma interpretação da experiência
científica como o estudo dos processos completos específicos pela retirada
gradativa dos fatores contingentes das situações em que eles são
exemplificados.

Prefácio

Neste estudo, faz-se uma tentativa de mostrar como certas ideias


extremamente gerais sobre a estrutura são realmente exemplificadas nas
situações concretas das experiências físicas específicas.
Não espero ter chegado a mais do que uma simples indicação de
como se pode fazer isso. Faz hoje pouco mais de dois anos que comecei,
pela primeira vez, a poder ver como justamente a estrutura da oitava de
um processo acabado, com as suas necessárias intervenções pelo processo
exterior, é exemplificada pela simples experiência de Isaac Newton para
dispersar a luz branca através de um prisma.
O que percebi inicialmente foi comunicado, num breve memorando,
ao Grupo de Pesquisa Científica Integral do Instituto de Estudo
Comparativo, em 1963; mas a ocasião ainda não era propícia ao
desenvolvimento das ideias ali contidas; por isso deixei o assunto no ponto
em que estava. Por muito tempo, deixei até mesmo de poder ver o que vi
então, porque a minha atenção se voltou para outros assuntos.
Recentemente, ao me dedicar à tarefa de escrever um artigo
completo a partir desse primeiro trabalho, descobri que minha capacidade
de perceber a estrutura tinha se modificado mesmo nesse curto lapso de
tempo. Eu podia então ver mais, na simples situação física da experiência
de Newton, do que tinha sequer sonhado antes. Outro trabalho que me
havia ocupado durante o período decorrido começou a revelar também ter
um lugar adequado na estrutura que se desdobrava diante dos meus olhos.
Devo me desculpar antecipadamente pela desagradável exigência
que se faz ao leitor ainda não familiarizado com o extraordinário livro All
and Everything, de Gurdjieff, ou com o registro fidedigno que Ouspensky
faz, em sua obra Fragmentos de um ensinamento desconhecido, dos
ensinamentos iniciais de Gurdjieff sobre as estruturas em geral e os
princípios segundo os quais elas se mantêm unidas. Foi o livro de
Ouspensky que me deu o primeiro vislumbre convincente de como
penetrar na estrutura geral das situações. Mas a minha rígida formação
científica me forçava igualmente, com as suas indicações, a ver que a
ciência pode e deve descobrir, embora de forma diferente, um
conhecimento válido de como o mundo realmente é.
Foi para mim um momento muito feliz aquele em que vi que tanto a
minha ciência empírica, adquirida penosamente, como as não menos
penosamente adquiridas ideias estruturais de Gurdjieff — que ele próprio
obteve através do contato direto com antigas fontes tradicionais — podiam
ser consideradas como se tivessem o seu lugar próprio. Uma esclarecia e
completava a outra. Comecei a ver que as ideias e o simbolismo de
Gurdjieff podiam começar a explicar por que a prática da ciência pode ser
admiravelmente excitante e compensadora para o teórico, assim como
para o experimentador.
Vi que a minha preparação de cientista, não me permitindo aceitar
ideias sem constatar por mim mesmo algum tipo de correspondência entre
elas, o que era para mim a realidade concreta e inabalável do fato
experimental, não fora vã.
Sabia que estava vendo coisas novas e que estava vendo coisas
velhas de maneira nova, que as tomavam significativas e proveitosas, e
isso bastava.
Tomou-se claro para mim que a verdadeira noção de prova depende
geralmente da possibilidade de se estabelecer correspondências entre
elementos equivalentes de uma estrutura. Onde não se possa estabelecer
nenhuma correspondência não haverá possibilidade de provar seja o que
for. A capacidade de "acompanhar” uma prova se toma, portanto, o poder
de perceber as correspondências existentes.
A capacidade de acompanhar as provas gerais da exemplificação de
princípios estruturais gerais depende então do poder da mente de
compreender de um modo que podemos denominar simbólico ou
figurativo.

Estudo e exemplificação da estrutura

O simbolismo aplica-se à estrutura permeável. As situações podem


ser mais ou menos estruturadas, mais ou menos inteligíveis. É uma
experiência comum que as características estruturais de uma situação
podem ser muitas vezes transferidas para outra. O uso de analogias
elétricas no tratamento de problemas acústicos é apenas um exemplo
disso. Há fórmulas matemáticas, como a equação ondulatória, técnicas
matemáticas, como o cálculo diferencial e integral, as próprias operações
aritméticas e numéricas em geral, que oferecem simbolismos e se aplicam
à estrutura permeável num sem-número de situações. Neste trabalho, nos
ocuparemos com a aplicação de um tipo especial de simbolismo estrutural
que é não-matemático, mas, apesar disso, permeável. É um simbolismo
especificamente voltado para a elucidação da estrutura de ação das
situações. Trataremos, neste trabalho, especificamente das que estão
envolvidas na experimentação científica.
Ciência é aquilo que os cientistas fazem. Estudando o que fazem os
cientistas, devemos estudar situações estruturadas de ação que abrangem
preparativos e operações com objetos materiais extensos. Temos que
examinar de perto os ajustamentos que os cientistas realizam, quando
montam e operam a sua aparelhagem. Devemos estudar os processos para
o estudo dos quais a aparelhagem é especialmente montada. Temos que ter
algum meio de dar destaque à significação de todas essas coisas e
encontrar um meio de fazê-lo com simplicidade, clareza e uma satisfatória
generalidade.
A experiências proporcionam dados concretos. Mas a realização de
uma experiência real implica razões de intenção, valor, julgamento e ação
inteligente em relação à consecução de objetivos e tudo o mais que vá
além da espécie da fatos fornecidos pela experiência. Os cientistas estão
absorvidos em chegar aos fatos, mas assim que estes se produzem eles
saem de cena. Isso conduz a certos mal-entendidos ingênuos referentes à
natureza dos fatos científicos, nos quais o próprio experimentador, que
sabe exatamente quanto tempo, esforço e dificuldade estão implícitos na
produção dos resultados, é provável que não participe. Entretanto, muitos
ainda falam como se os resultados da experiência fossem, de certa forma,
objetivamente verdadeiros e independentes do cientista que os fornece. Há
alguma verdade nessa ideia, mas, como muitas outras crenças populares,
ela precisa ser considerada com reserva e cercada de condições antes que
adquira importância verdadeira.
Os símbolos generalizados não podem ser utilizados sem que se
introduza na situação precisamente aqueles tipos de considerações que são
deixadas de lado quando se tiram conclusões dos resultados da ciência. Por
causa disso, a maneira da sua utilização é um pouco diferente, digamos, da
matemática no trabalho científico. Com eles, estudamos estruturas
completas. Se estudamos uma parte utilizando esse símbolo, é com
referência à situação total de que ela deriva e à qual se refere. Na
matemática, é possível e, na verdade, necessário estudar partes isoladas e
tratá-las como se fossem independentes dos conjuntos a que se referem.
No simbolismo generalizado isso não é possível. A conexão é
fundamental.
O uso de tais símbolos como instrumentos de estudo exige um tipo
de percepção da semelhança estrutural comum a diversas situações, que
não é acentuadamente diferente do tipo de percepção por meio da qual, por
exemplo, aprendemos pelo estudo e prática a ver finalmente que tipo de
fórmula matemática corresponde a uma situação material definida. A
diferença é que estamos trabalhando mais a partir de uma fórmula geral
para a situação do que buscando ajustar uma das variedades de fórmulas às
condições materiais particulares. Há, em ambos os casos, uma faculdade
estética implícita no reconhecimento da correspondência envolvida, que é
análoga à resposta a uma obra de arte.
A diferença de trabalhar com fórmulas matemáticas reside no modo
como a percepção penetra na investigação. Quando descobrimos a
matemática apropriada ao tratamento de um problema material definido,
só nos resta, na maioria das vezes, aplicar o seu correlato procedimento de
cálculo e o problema está resolvido. Noutras palavras, podemos chegar
automaticamente à solução sem mais dificuldades. Ao estudar a estrutura
com a utilização do simbolismo generalizado, a atenção não pode se
afastar do problema para que a substância da estrutura não se desvaneça
diante dos nossos olhos. O uso prático do símbolo só compensa quando
avança de mãos dadas com a confrontação intencional entre a estrutura
simbólica e “os fatos irredutíveis e pertinazes” da situação em estudo.
Gurdjieff mesmo expressou isso de forma resumida, ao dizer: “Só o
que podemos pôr no eneagrama é o que realmente sabemos, isto é,
compreendemos. O que não pudermos pôr no eneagrama, de fato não
compreendemos.” {20}
A ênfase está na percepção cabal da situação. Nisso não há
diferença alguma entre o nível do professor universitário e o hábil
mecânico de garagem. A prova prática é, como sempre, a ação eficaz.
As situações humanas só de modo comparativamente raro
constituem exemplo da plena estruturação de um símbolo absolutamente
geral. Em especial, a maioria das situações artificiais são insuficientes
como exemplo total, embora elementos deste possam ser perceptíveis. O
que constatamos geralmente é que uma situação contém características
que correspondem estreitamente a uma ou outra característica da estrutura
descrita por um símbolo e carece de outras, num grau igualmente
perceptível. Encontram-se muitíssimas situações que servem como
exemplo da estrutura de um processo completo. Outras, muito mais
raramente, mostram de maneira clara o modelo dos três processos
interativos necessários à consecução de algum fim desejado. Encontramos,
embora mais raramente, esse modelo recorrente interno firmemente
estabelecido por meio do qual são indicados como eventos realizados.

Modelo de estrutura simbolizada pelo eneagrama


Usaremos, neste trabalho, o símbolo de ação chamado eneagrama
como um instrumento de estudo e de interpretação. Será conveniente,
nessa fase, recapitular algumas das características mais notáveis da
estrutura representada no eneagrama, antes de tentar demonstrar como o
modelo é ilustrado nos exemplos que seguem.
Podemos considerar inicialmente o símbolo como a representação
de um processo de desenvolvimento completo. Este é simbolizado pelo
círculo que contém a “figura de nove pontas”, da qual deriva o nome do
símbolo. Devemos imaginar o processo como tendo origem no ponto mais
elevado e se desenvolvendo ao longo da circunferência gerada pela rotação
no sentido horário em torno do ponto central.
A conclusão do desenvolvimento é simbolizada pelo fim da curva,
no seu encontro com o ponto de partida, formando, desse modo, uma
figura fechada completa. Assim, o círculo demarcado simboliza a noção
de um processo de desenvolvimento continuamente modificado de certa
maneira sob o controle de um ato intencional de vontade que lhe permite
chegar ao fim.
O final do círculo retoma ao princípio e isso simboliza a forma
como uma sequência coordenada de ações começa com o fim já em vista,
já presente, embora ainda não existente.

Fig. 16 — O símbolo da ação generalizada do eneagrama, mostrando os


seus três processos interativos

Uma vez completado, o círculo não tem princípio nem fim. Isso
simboliza o poder dos processos completos de se perpetuarem
repetidamente. Uma vez realizados, eles alteram o curso dos
acontecimentos, como uma experiência histórica, desde que consumada,
não pode ser desfeita, mas pode ser levada em conta pelo futuro
conhecimento. A recorrência do círculo também simboliza que os
processos podem crescer e se desenvolver em força e importância, como o
simples processo da experiência de Newton deu origem, sem nenhuma
mudança no processo fundamental completo envolvido, ao espectrômetro.
O círculo fechado simboliza também a exigência de isolamento de
uma área dentro da qual o processo completo pode ir adiante. Para que um
evento se efetue deve haver algum lugar em que possa ser situado. Um
evento é uma situação que tem existência real dentro do mundo existente,
que “encontrou o seu lugar" e persiste nele com a sua própria força
independente do meio exterior das contingências sempre mutáveis.
Aqui começamos a tocar o cerne da questão e a encontrar uma
ligação com a ciência. A ciência ocupa-se com o estudo da ordem dentro
do mundo existente. Ela procede a este estudo criando e examinando
situações artificiais de que é retirada, tanto quanto é humanamente
possível, a contingência. Essas situações chamam-se experiências e são a
fonte de informações restritas, mas não-contingentes, sobre os processos
completos dentro do mundo.
A concretização de uma experiência é o ato de colocar um evento
dentro de um processo completo. A capacidade de afastar as contingências
é a condição para a colocação de tais eventos. Mais exatamente, não é a
capacidade de afastar, mas a de circunscrever a contingência que é o traço
distintivo do grande experimentador. Aston, Faraday, Michelson, Newton
foram homens brilhantes com o dom de realizar justamente a ação
estruturada correta, numa situação experimental que afastava as
contingências. Há mesmo uma afirmação a respeito de Michelson no
sentido de que “o seu interferômetro era um admirável instrumento... nas
mãos de Michelson”. Há muitas evidências que mostram que os grandes
avanços, no domínio da ciência, são marcados por uma percepção da
presença da incerteza nas etapas teóricas avançadas: a contingência nos
golpes de mestre experimentais.{21}
A dificuldade da aplicação do simbolismo de ação generalizada,
que não ocorre nas matemáticas, é a multiplicidade de significações.
Enquanto no simbolismo mais corrente há uma correspondência mais ou
menos unívoca entre o símbolo e o significado, no simbolismo de ação
estruturada as correspondências são de um para muitos e,
correspondentemente, complexas. Assim, o triângulo interno da figura
simboliza que devem existir não um, mas três processos de
desenvolvimento, de origens independentes e mutuamente interativos,
para garantir que um só desses processos possa chegar ao seu termo.
O triângulo serve também para simbolizar que os três processos
devem se ligar de acordo com a relação de afirmação, negação e
conciliação determinada pelo sistema de três termos ou tríade. Na relação,
o primeiro processo completo, sendo o principal dos três, transmite a
afirmação. O segundo transmite os impulsos de negação a que o primeiro
está sujeito em consequência do acaso e da incerteza e da contribuição
necessária das condições ambientais através das quais o primeiro deve
prosseguir. O terceiro processo está relacionado com a condução bem-
sucedida do desenvolvimento a sua pretendida conclusão, através de uma
conciliação desses dois impulsos de ação oposta.
Outro aspecto que o triângulo simboliza se refere à feição
qualitativa e quantitativa da interação dos processos. Os três processos
devem ser combinados — devem ser do tipo e grau adequados para que
haja uma combinação correta e a consequente excelência de qualidade no
produto final. Um extraordinário exemplo disso ocorre no espectrômetro,
onde a tríade interna, formada pelo colimador, o prisma e o telescópio,
permite uma harmonização surpreendentemente apurada dentro do
processo global e uma exatidão de medida até frações de um percentual de
praxe.

A tríplice demarcação do círculo pelo triângulo interno serve para


indicar três regiões do processo em desenvolvimento. A primeira está
relacionada com uma fase de partida ou expansão; a segunda, com a
interação ou mediação; e a terceira, com o retomo ou receptividade
concentradora. A terceira região se relaciona com a finalização do
processo, situada no ponto 6 da figura, que assegura a completação
adequada do processo no ponto 9. A segunda se relaciona com a
possibilidade de prosseguimento do processo principal e implica a entrada
do segundo processo no ponto 3. A primeira região é o domínio dentro do
qual o processo original se estabelece.
Há um sem-número de interpretações adicionais do triângulo
interno, das quais podemos mencionar apenas uma, a que se relaciona com
a localização ou fixação de uma estrutura dentro de uma situação. Há uma
tríplice ação que, uma vez realizada, assegura que as partes de um
processo estão harmoniosamente dispostas com relação a ela. No trabalho
científico, isso está diretamente relacionado com a localização da
aparelhagem no espaço. Há três espécies de operações espaciais possíveis
para a aparelhagem: ela pode ser posta em posição, os seus elementos
podem ser alinhados com relação à orientação definida entre eles mesmos
e, finalmente, pode haver alternâncias das direções assim definidas. Essas
três possibilidades esgotam as possibilidades permitidas pelo espaço.
Podemos agora tomar a considerar a figura recorrente dentro do
círculo. Ela se repete de acordo com a sequência numérica recorrente 1-4-
2-8-5-7.{22} O modelo representa uma ligação entrelaçada da estrutura dos
três processos da situação que, ao ser lograda, organiza o conjunto como
um evento significante. As correspondências são necessárias entre os
pontos dos três processos ligados por esta figura, que são mantidos por
certas ações realizadas entre eles. A realização dessas ações é o trabalho
de sincronização entre os processos, que constitui um todo funcional
exemplar e adequado.
Chegamos agora à notação simbólica da oitava musical, com seus
sete intervalos entre as oito notas que vão de dó até o segundo dó'
harmônico.

dó - ré - mi / fá - sol - lá - si / dó'

Os espaços com barras indicam os dois semitons da oitava.


Este é um antigo meio de indicar, de forma conveniente e
econômica, as características de um processo de desenvolvimento. A
transição de nota a nota comunica com êxito a característica de uma
transformação. A nota continua sendo uma nota, isto é, permanece com
um som, mas muda de tom. Desse modo, por analogia, uma transformação
implica uma modificação na qualidade de algum veículo material, o qual
conserva a sua própria natureza durante a mudança. A transição para uma
qualidade superior é transmitida pela elevação do tom considerado.
Os semitons entre as notas mi-fá e si-dó simbolizam duas espécies
de descontinuidades implícitas no desenvolvimento dos processos
completos, devido às quais eles devem ser reforçados pela intervenção de
outros processos a fim de se completarem. Isso já foi tratado antes com
referência ao eneagrama e aos três processos de ação recíproca que ele
requer.
Há uma condição especial no processo de transformação associado à
transição que acompanha a nota sol, que é descrita por Gurdjieff.{23}

Esta fica situada entre as duas etapas da transformação que


compreende os semitons acima referidos, numa fase do processo em que a
interação com fatores de perturbação já ocorreu. No exato momento em
que esse ponto é alcançado, os efeitos corretivos, que levarão o processo à
sua conclusão, podem finalmente intervir. É, noutras palavras, uma fase de
especial risco para a completação do processo ao qual se refere.
Falando de modo geral, às vezes é possível, em situações altamente
sofisticadas e bem organizadas, registrar exemplos nítidos de todos os
componentes estruturais do modelo do eneagrama. Essas situações são
invariavelmente aquelas que se desenvolveram com dificuldade durante
anos para atender, de um modo cada vez mais completo e adequado, a
alguma necessidade ou propósito totalmente bem definido.{24} Elas
aparecem, no domínio da ciência, nos preparativos de experiências que
foram desenvolvidas para tratar, de modo experimental, um fenômeno
particular, de um modo extraordinariamente especializado. No presente
trabalho, será estudado um notável exemplo, quando examinarmos a
estrutura implícita na operação de um espectrômetro ótico e deduzirmos a
sua ilustração da estrutura do eneagrama. Apesar disso, o eneagrama pode
ser, até certo ponto, estudado pouco a pouco, escolhendo-se, digamos, a
estrutura de três processos de um motor a gasolina, no qual o processo
principal completo diz respeito ao ar, o secundário à injeção de
combustível e o terceiro à ignição. Outro exemplo é encontrado no diodo
termiônico, com um processo principal completo bem exemplificado do
catódio ao anódio, mas não encontramos o eneagrama exemplificado de
modo convincente enquanto não acrescentarmos um terceiro eletródio
(grade) e um resistor de anódio. Na transformação do retificador para o
amplificador de voltagem temos, em termos Sistemáticos, a transição da
díade em tríade.

Temos agora claramente delineadas as armas para atacar os


problemas estruturais que nos interessam. Como descrevemos acima, o
extraordinário poder de um símbolo generalizado provavelmente só é
vagamente evidente. Só se tomará mais claro quando conseguirmos
demonstrar uma correspondência real entre os padrões que ele manifesta e
a estrutura do mundo concreto da experiência científica.

Aplicação do símbolo a situações específicas

Será conveniente abordar numa certa ordem o estudo das situações


que exemplificam o modelo de estrutura através do eneagrama. Adotamos
o seguinte procedimento:

1. Procuraremos primeiro a área isolada dentro da qual o


processo se efetua. A rigor, os três dós desses processos
são gerados a partir de fora dessa área. Isso serve para
definir os seus limites.
2. Consideraremos em seguida o processo fundamental
completo. Podemos muitas vezes reconhecer a
semelhança entre as duas notas dó, a que inicia e a que
termina o processo.
3. Procuraremos então a manifestação da figura recorrente
interna do símbolo. Com muita frequência, é só isto que
dá a indicação do caráter real do evento que se concretiza
na sua conclusão.
4. Finalmente examinaremos a situação de acordo com os
vários significados do símbolo triangular interno: os três
processos interativos; a fixação do todo dentro da sua
situação; os aspectos qualitativos e quantitativos da
relação; as três áreas etc.

Continuamos agora, sem mais delongas, a conduzir nossos estudos


pelo exame de experiências físicas específicas. Escolhemos a famosa
experiência de Newton,{25} realizada em 1660, para mostrar que “a luz do
Sol consiste de raios diferentemente refrangíveis” e as experiências
correspondentes, embora mais apuradas, realizadas nos nossos dias com o
aparelho, descendente direto de Newton, que é o espectrómetro de prisma
ótico.

Experiência de refração prismática de Newton

Situação

Newton foi um experimentador brilhante e laborioso. A homens


dessa espécie é outorgada eventualmente uma apreensão intuitiva da
estrutura. Tomam-se tão experientes no setor do seu absorvente interesse,
que chegam a ser capazes de instintivamente fazer a coisa certa, de
realizar o ajuste adequado, de encontrar a maneira correta de contornar
uma dificuldade. Tudo isso surge com o sentido da estrutura. E ocorre
também com o conhecimento de que a complexidade do universo é
praticamente ilimitada e, portanto, da necessidade de simbolismos
generalizados para exprimir a sua multiplicidade.
Foi Newton quem observou, pouco antes do fim da sua fulgurante
vida:
“Não sei o que posso parecer aos olhos dos outros, mas para mim
mesmo pareço ter sido como uma criança que brinca na praia,
divertindo-se em achar um seixo mais liso ou uma concha mais
bonita, enquanto, diante de mim, se estende desconhecido o grande
oceano da verdade.”

Este mesmo homem escreveu os admiráveis Principia e a famosa


óptica. Quando nos voltamos para as páginas desta última, nas quais
Newton registra a sua própria descrição da experiência com que
demonstrou a formação do espectro de cores a partir da luz branca, lemos
o seguinte :{26}

“Num cômodo muito escuro, num orifício redondo, da largura de


uma polegada, feito numa janela fechada, coloquei um prisma de
vidro, pelo qual o feixe de luz solar que entrava por esse orifício
podia ser refratado para cima, na direção de uma parede do lado
oposto do cômodo, formando ali uma imagem colorida do Sol.”

Newton não era apenas um esplêndido experimentador, mas


também um brilhante formulador e expositor. Nessa simples sentença
condensada, conseguiu expressar com precisão os dois primeiros do nosso
conjunto de quatro grupos de aspectos estruturais. Deu, com exatidão
considerável, as oito notas da oitava do processo principal completo e
assinalou a área em que ele se efetua.
Agora, aplicamos o simbolismo de acordo com o procedimento
acima esboçado.
O círculo, considerado como oferecendo o lugar dentro do qual o
processo completo e o evento potencial devem se estabelecer é,
naturalmente, o “cômodo muito escuro”. Ele é escuro, porque o evento
deve ser uma experiência com luz; desse modo ele está especialmente
preparado. É um cômodo que conterá a experiência.

Processo Principal Completo


As sete etapas e as oito notas do processo principal completo com
referência ao qual a experiência é feita são descritos de forma
inteiramente satisfatória para os propósitos da exposição. Podemos
reconhecer as oito etapas necessárias seguintes do processo a partir da
descrição de Newton:

dó O Sol como fonte luminosa


ré O orifício
mí A entrada do feixe luminoso
fá A refração
sol O prisma
lá O desvio para cima do feixe de luz refratado
si A parede do lado oposto
dó O Sol como imagem colorida

Quadro 1. Processo principal completo da experiência de Newton

A correspondência entre o Sol como fonte de radiação original e a


imagem como fonte de re-radiação aponta-os, de maneira inequívoca,
como dó e dó' do processo principal completo. O intervalo entre as notas
mi-fá é preenchido pela face do prisma e, desse modo, o segundo processo
da experiência deve dizer respeito aos efeitos do prisma sobre a luz. O
restante intervalo de semitom si-dó é preenchido e o processo completado
pelos átomos da superfície da parede que absorve e re-emite o feixe
luminoso desviado que incide nela.
É claro que essas sete etapas podem ser mais ou menos
distinguidas dessa maneira, mas, ao contrário de outras formas de abordar
os problemas, temos que enfrentar uma inevitável e aparente incerteza
quando tentamos fazer vinculações precisas. O método simbólico
generalizado estuda situações como conjuntos ligados: e isso é válido para
tudo. Não podemos tornar precisos e separados, um do outro, elementos
que, na realidade, estão sempre ligados. Tudo que podemos fazer é chamar
a atenção para certas áreas nodais dentro das quais uma dada característica
é mais ou menos exemplificada e passar então para a próxima área nodal,
por uma espécie de retirada da atenção de uma característica e transferi-la
para a seguinte. A técnica está exatamente em correspondência com o
procedimento pelo qual vinculamos sete cores ao espectro. Não podemos
dizer onde uma cor termina e a seguinte prossegue; no entanto, podemos
distinguir as sete — nada mais e nada menos.

Estrutura do Evento

Temos agora material suficiente para começar a construir o


eneagrama da experiência. Para tomar mais claro o estudo completo,
fazemos primeiro um diagrama esquemático do aparelho de Newton,
mostrando as etapas classificadas com as notas da oitava que elas
caracterizam. Nos seus elementos essenciais o diagrama é do próprio

Fig. 17 — Esquema da experiência de refração prismática de Newton

Newton. Traçamos depois o círculo com as oito notas da oitava principal,


distribuídas em volta dele da forma costumeira.
O triângulo interno está em linha pontilhada por razões de
completação, mas, no momento, nos concentraremos na elucidação do
significado da figura interna recorrente que liga os números 1-4-2-8-5-7
na circunferência do círculo.
Para isso, temos simplesmente que voltar novamente à própria
descrição que Newton fez do seu procedimento na Óptica.
Fig. 18 — Eneagrama
indicando a oitava do processo principal completo na experiência de
Newton

Ligação (1-4) — Da citação que fizemos anteriormente, extraímos


a seguinte afirmação que descreve a sua ação inicial ao montar a
experiência. Ela corresponde ao estabelecimento da linha 1-4 da figura
recorrente. É simplesmente que... “num orifício redondo... coloquei um
prisma de vidro...”
Essa é uma ação que põe o orifício e o prisma numa certa condição
de relação e significado de um para com o outro. A ação é simplesmente
executada, mas a sua significação leva algum tempo para ser
compreendida. Ela estabelece a fase, por assim dizer, das ações
sincronizadas que se seguirão no padrão interno recorrente.

Ligação (4-2) — A sentença seguinte segue imediatamente a que foi


citada antes: “O eixo do prisma (isto é, a linha que passa pelo meio do
prisma de uma ponta a outra e corre paralelamente à aresta do ângulo de
refração) estava, nessa e nas experiências seguintes, perpendicular aos
raios incidentes."
Esta posição do eixo do prisma perpendicular ao feixe luminoso
incidente é de imensa importância. É um fato de padronização que
erradica de imediato uma das contingências dentro da situação, um ato de
limitação que remove certas possibilidades e mantém apenas um único
conjunto ordenado. Para cada um dos conjuntos de possibilidades que é
mantido há uma, e somente uma condição de relação que se conserva entre
a face do prisma e o feixe luminoso incidente.

Ligação (2-8) — Nessa experiência, essa ligação é apenas


fracamente exemplificada, como se tomará claro quando a descobrirmos
vivamente realizada no espectrômetro. Agora precisamos simplesmente
notar que a ligação entre o feixe luminoso e a parede oposta é assegurada
pela construção do cômodo. O feixe luminoso incidente dará sempre
algum resultado na parede, enquanto as ações descritas até agora e que
ligam os pontos 1-4-2 não forem canceladas.

Ligação (8-5-7) — Para a elucidação desses atos de ligação,


tomamos a apelar para a descrição de Newton, que prossegue: "... Em
tomo desse eixo girei lentamente o prisma e vi a luz refratada na parede,
ou imagem colorida do Sol, primeiro descer e depois subir.”
Voltando à figura do eneagrama, delineamos a ação da seguinte
maneira: Com a sua atenção dirigida para a parede, no ponto 8, Newton
rodou o prisma, no ponto 5, variando assim o desvio do feixe luminoso
transmitido no ponto 7.

Ligação (7-1) — Chegamos agora ao ato que transforma toda a


experiência num evento. Newton o descreve, dizendo: “Entre a descida e a
subida, quando a imagem pareceu estável, parei o prisma e fixei-o nessa
posição, que não deveria mais ser mudada.”
Para ver a relação aqui na sua dependência do feixe luminoso
desviado e o orifício, temos que refletir que a perfeição com que este
último ato é completado depende, em última instância, da precisão com
que o ponto de desvio mínimo pode ser determinado. Isso é diretamente
determinado pelo orifício — quanto menor for este, mais indistinta será a
imagem final, deixando de considerar os efeitos de difração; quanto maior
for, dará apenas uma mancha. Em consequência disso, o espectrômetro
moderno é dotado de uma fenda ajustável. O problema só fica
devidamente resolvido quando são utilizados feixes luminosos
monocromáticos, que correspondem à modificação em dó e, portanto,
saem do domínio da experiência como tal. Newton julgava isso um
problema digno de consideração, uma vez que estava utilizando luz branca
e, por conseguinte, sobrepondo imagens coloridas. Entretanto, reconhecia
a obrigação implícita em atingir o ponto de conclusão da figura recorrente,
pois chega a nos dizer que posteriormente padronizou essa posição dos
seus prismas nas outras experiências.

Harmonia Interna

A riqueza de significação simbólica do triângulo interno da figura


impede qualquer tentativa de dar mais do que uns poucos exemplos da sua
aplicação à experiência. Consideraremos a sua verificação por graus, como
segue.
O ponto 9 é fixado antes que o prisma seja colocado em posição e
antes mesmo que a experiência exista como algo que estamos estudando.
Ele é fixado quando as notas que iniciam e completam soam como uma só.
Noutras palavras, quando o Sol simplesmente projeta a sua própria
imagem na parede oposta ao orifício da janela. Não há triângulo porque
não existe nenhuma interação, nenhuma saída ou retomo.

Os pontos 3 e 6 são estabelecidos e, com eles, a base do triângulo e


seus dois lados 9-3 e 6-9, quando o prisma é colocado entre o orifício e a
parede.
Com o prisma posicionado, ocorre imediatamente uma tríplice
separação da forma descrita acima. Passa a existir um processo completo
que compreende áreas de saída e retorno intermediadas por ação recíproca.
Ao considerar a significação ulterior do triângulo, podemos
imaginá-lo como um triângulo oblíquo ou assimétrico enquanto os
processos de saída e retorno estão faltando no ajustamento mútuo. Quando
eles se tomam equilibrados verifica-se uma harmonia na situação total. Na
experiência de Newton essa harmonização ocorre precisamente no
momento da obtenção do desvio mínimo possível. Este é o ponto já
mencionado: “... entre a subida e a descida, quando a imagem parecia
estacionária?”
Newton dá a sua razão, realmente uma razão estética, para escolher
essa posição especial como término da montagem das suas operações. Diz
ele: “Pois nessa posição as refrações dos dois lados do ângulo de refração,
isto é, na entrada dos raios no prisma e na sua saída dele, eram iguais entre
si.”
A própria experiência se toma, neste ponto, símbolo de harmonia. A
estrutura da harmonia cruza todos os níveis e se revela em todos os atos de
harmonia onde e quando possam ser realizados.
O ato de harmonia significa uma concretização de valor dentro de
uma situação fatual. Quem já tenha realmente efetuado essa mesma
experiência logo se lembrará da satisfação estética que sentiu por ter
obtido, no final da sequência de ajustamento, a posição de desvio mínimo.
Há uma percepção inequívoca de que algo foi concretizado como resultado
desse ajustamento final. É esta a recompensa do experimentador autêntico.

Espectrômetro de prisma ótico

Agora nos despedimos dos escritos de Newton, que nada conhecia


do espectrômetro como hoje o conhecemos. Ficamos imaginando o que ele
teria obtido se o tivesse conhecido.
Vamos prosseguir a nossa linha de ataque preferida, considerando
inicialmente o espectrômetro do ponto de vista de sua qualidade como
lugar da experiência.
Fig. 19 — Esquema do espectrômetro de prisma ótico (As linhas mais
acentuadas indicam os “raios idealizados” correspondentes)

Somos obrigados, neste ponto, em virtude da limitação do espaço, a


remeter o leitor aos compêndios usuais e aos manuais de laboratório para
que tomem conhecimento dos detalhes da aparência, construção e
operação do instrumento.{27} Neste trabalho, admitimos que o leitor está
suficientemente familiarizado com o seu funcionamento, de modo que
possa acompanhar os pontos que escolhemos para ilustrar os nossos
propósitos. Damos, na figura 19, um diagrama esquemático dos aspectos
óticos do instrumento.

Espaço de Medição

O espectrômetro, como o lugar no qual a experiência pode ser


situada, mostra uma inegável evolução em relação ao cômodo escuro de
Newton com um orifício feito na janela fechada. O conjunto tomou-se um
mecanismo organizado, que contém em si tudo o que é necessário à
existência,{28} isto é, à execução, da experiência do desvio prismático. O
orifício evolui no sentido de um subinstrumento completo, capaz de
ajustar-se por si mesmo, de modo independente. Podíamos dedicar um
eneagrama exclusivamente a esse instrumento — o colimador — e iríamos
encontrar uma sequência de ajustamento correspondente às linhas internas
recorrentes da experiência de Newton. A harmonia que se obtém pelo
fechamento do modelo seria a produção do feixe luminoso paralelo que o
instrumento se destina a conseguir. O telescópio também é um instrumento
auxiliar que se desenvolveu a partir da parede que desempenha uma parte
na estrutura da organização experimental de Newton.
Esses dois instrumentos auxiliares estão dentro do lugar em que a
mesma experiência se tomará, como anteriormente, situada dentro do
mundo existente. Mas o lugar mesmo se deslocou do cômodo de Newton e,
ao fazer isso, deu-se um passo em frente em relação ao primeiro
significado.
O passo em frente consiste em ajustar previamente, no lugar em que
a experiência se situará, outro espaço que é estruturado de modo tal que
certas espécies de eventos que ocorrem dentro dele se tomarão
inevitavelmente medidos.
Esse passo indica a transformação completa da situação da
experiência de Newton, de uma experiência qualitativa que produz um
fenômeno, que exibe um efeito físico, a um instrumento de medida. O
espaço de medida é produzido por meio de outro eneagrama que trata os
instrumentos empregados na experiência como objetos materiais aptos a
serem submetidos apenas a operações de ajuste de posição, deslocamento
de direção e configuração rotacional, segundo os três tipos de
determinações espaciais.
Quando se retira o espectrômetro do armário do laboratório pela
primeira vez, é preciso testá-lo para se ter a certeza de que os eixos
principais do telescópio e do colimador se movimentam no mesmo plano
perpendicular ao eixo principal do instrumento, em tomo do qual giram
tanto o telescópio como a face do prisma. Quando essa condição é obtida,
torna-se efetiva a harmonia do espectrômetro como um instrumento de
medição.
Ele pode então ser usado em combinação com um calibrador{29} que
fornece traços, no espaço de medição, dos deslocamentos espaciais
ocorridos quando se executa a experiência e quando todas as ações que
tornam real sua harmonia foram realizadas.

A situação estruturada global está muito bem simbolizada, para os


nossos fins, no diagrama esquemático do ajustamento real dos elementos
do aparelho como instrumento de medição, mostrado na figura 20. O ponto
central representa o eixo central do instrumento. O colimador está
firmemente ligado a ele, em posição perpendicular. O primeiro círculo
representa a face do prisma que está livre para girar em tomo do eixo
central. O segundo representa a liberdade de rotação do telescópio em
tomo do mesmo eixo. O círculo mais externo indica o círculo dividido,
que é a escala do calibrador em relação ao qual são traçados os
deslocamentos no espaço de medição.

Fig. 20 — Esquema do espaço de medição do espectrômetro


Com essas observações, interrompemos nosso exame do primeiro
aspecto do modelo simbolizado pelo eneagrama e exemplificado pelo
espectrômetro de prisma ótico. Não temos tempo para prosseguir adiante
com o nosso estudo, mas deve ter ficado patente que as considerações
acima esboçadas são de extrema importância para a compreensão da
medição, como, de um modo geral, uma técnica ideal impressa na
estrutura da situação experimental.
Processo Estruturado

Quando comparamos o esquema simples da experiência de Newton,


na figura 17, com o diagrama correspondente da figura 19 para o
espectrômetro, descobrimos sem dúvida refinamentos e modificações no
último; mas não pode haver qualquer dúvida, no nosso espírito, de que o
principal processo completo em ambos os casos é um só e o mesmo.
Assim, encontramo-nos na vantajosa posição de ter dois exemplos
diferentes do mesmo processo completo. Temos, portanto, a oportunidade
de extrair, do exame de ambos, a sua principal estrutura de oitava comum.
Nisso, somos ainda auxiliados por outra razão. Falando de modo
geral, constatamos que o resultado de toda a complicação adicional da
aparelhagem do espectrômetro é, na verdade, a simplificação da situação
experimental. O feixe luminoso considerado se comporta efetivamente da
mesma maneira que os “raios idealizados”, segundo os quais o fenômeno
de refração é explicado nos compêndios elementares. Os “raios
idealizados” são traçados com linhas mais acentuadas no esquema do
espectrômetro da figura 19. Isso nos fornece ainda um terceiro exemplo
“idealizado”, que é particularmente claro ao mostrar as características do
segundo processo.

A Estrutura de Oitava

Quando consideramos conjuntamente esses três, somos levados a


fazer as seguintes afirmações sobre as notas dos seus processos completos:

Primeiro Processo

dó1 O som da primeira nota da oitava principal consiste no


fornecimento da fonte de radiação luminosa.
ré1 A segunda nota se relaciona com a escolha, a partir dessa
radiação, da luz que é bem definida do ponto de vista de direção e do
ângulo sólido.
mi1 A luz transmitida assim determinada entra no campo
experimental e se propaga por expansão.

Segundo Processo

Intervalo e dó2. Interpõe-se uma superfície plana no seu caminho, a


perpendicular à sua superfície, determinando um ângulo com o feixe
luminoso agora incidente nela. Uma lente do espectrômetro, colocada
neste ponto, garante que a luz proveniente do feixe luminoso incide de
modo uniforme. Uma superfície de vidro é a segunda fonte na experiência.
fá1 e ré2. A luz do raio incidente penetra na superfície do prisma e
interage ali de modo seletivo com o vidro (daí a ocorrência de ré2 aqui no
eneagrama).
sol1 e mi2 A luz é dispersada (sol1) e o seu caminho desviado (mi2).
Essas condições persistem durante a sua transmissão através do meio.

Terceiro Processo

Intervalo e dó3. A segunda superfície do prisma se toma a superfície


de saída pela qual o feixe transmitido emerge, manifestando finalmente os
resultados das interações que sofreu. O ângulo dessa face em relação ao da
primeira é um fator determinante. A lente objetiva do telescópio
desempenha certas funções finais e, em especial, reúne num todo os raios
emergentes de cor e desvio correspondentes.

lá1, fá2 e ré3. No espectrômetro, o som e a combinação dessas


três notas significa a ação final de “concentração num foco”.
lá1 é a condição que a luz emergente apresenta de levar com ela
os resultados de todas as interações anteriores, numa forma capaz de se
manifestar posteriormente.
fá2 é “o desvio do que já foi desviado” na segunda face do prisma
do espectrômetro assim como na lente do telescópio. É outra interação
análoga à fá1, onde o raio incidente interage com a primeira face do
prisma.
ré3 podemos considerar como a definição das direções que
ocorrem na saída da segunda face do prisma. As direções vão no
sentido de algum lugar final ou definitivo no qual todas as cores, e cada
uma em particular, se tornarão visíveis de maneira correspondente.
si1, sol2 e mi3. Essas três notas correspondem igualmente à
condição de a luz “chegar a um foco” no plano focal da lente objetiva
do telescópio do espectrômetro, ou de chegar à tela de exposição final
da parede de Newton.
si1 é a condição da luz de estar concentrada em sete cores mais
ou menos definidas.
sol2 é a fixação e a dispersão final do efeito da refração do
prisma pela formação subsequente de todo o espectro.
mi3 expressa a persistência, dentro de uma área espacial bem
definida, da imagem que forma o efeito exposto, que é o espectro.
dó'1 tem a significação da imagem considerada como se fosse em
si mesma uma fonte de re-radiação de luz. Como tal, constitui a
primeira nota de outra oitava consequente, através da qual esta
finalmente chega a ser percebida. Em todo o tratamento anterior,
pressupõe-se a existência dessa segunda oitava. Todavia, é evidente que
a experiência começa a partir de dó'1 do mesmo modo que de dó1. O
conjunto se destina a fornecer material para observação por meio do
que mostra o ponto 8.

Fig. 21 — Eneagrama
indicando a oitava principal do espectrômetro

As atribuições das notas na oitava aqui atribuída são


suficientemente precisas para os nossos objetivos atuais. No momento,
só precisamos observar que as duas lentes estão colocadas
respectivamente nos pontos 2 e 7 da figura 21. Podíamos ter esperado
que elas preenchessem os dois intervalos nos pontos 3 e 6, como de fato
o fazem. Mas deveria estar claro, com base nas experiências de
Newton, que esses dois intervalos já estão preenchidos pelas duas faces
do prisma e que, portanto, as lentes podem, de modo muito plausível,
desempenhar outros papéis no conjunto.
É característico do exame das estruturas que um único e mesmo
elemento pode desempenhar diferentes papéis, ainda que talvez
intimamente semelhantes, quando são considerados como parte de tipos
diferentes de estruturas. Quase do mesmo modo, uma folha de papel
pode servir, em situações diferentes, como marcador de página de livro,
um lugar para anotar números de telefones ou uma nota de mil
cruzeiros. O papel que lhe é adequado depende do contexto geral em
exame.

Processo de Ajustamento

Vamos continuar o nosso estudo da estrutura de ação do


espectrômetro, examinando como a figura interna recorrente se
expressa na sua operação. É evidente, com base no exame anterior da
mesma figura em relação com a experiência de Newton, que o evento
que surge no fechamento da figura se refere ao ajustamento do
espectrômetro com vista ao desvio mínimo.
A consulta aos compêndios gerais de física experimental nos
revela que, para esse fim, desenvolveu-se, no correr dos anos, um
processo padronizado, que é respeitado sempre que se quer alinhar
cuidadosamente um espectrômetro com a maior economia de ação. Um
desses compêndios diz:{30}

"Antes de começar a fazer medições com o espectrômetro, deve-


se observar que determinadas condições se mantenham
constantes, a saber:

1. O eixo principal do telescópio e do colimador deve ser


perpendicular ao eixo principal do instrumento, isto é, o eixo
em tomo do qual giram o telescópio e a mesa do prisma.{31}
2. O telescópio deve ser focalizado para raios incidentes
paralelos, isto é, para infinito.
3. O colimador deve ser focalizado para raios emergentes
paralelos.
4. O prisma deve ser ajustado de modo que as faces que
compreendem o ângulo a medir sejam ambas paralelas ao
eixo em tomo do qual o telescópio e a mesa do prisma giram
juntos.”

Wagner acrescenta duas novas condições: {32}

5. (a) Os eixos do telescópio e do colimador devem passar pelo


eixo principal do instrumento.

(b) Deve ser possível fazer coincidir os eixos do telescópio e


do colimador.

Em seguida, Wagner chama a atenção para o fato de que essas


cinco condições “devem ser observadas na ordem em que são dadas”; e
prossegue descrevendo o método comum de fazer isso.
Neste ponto, podemos começar a estabelecer as correspondências
entre os pontos e a ligar as linhas internas recorrentes do eneagrama, da
seguinte maneira:
O ponto 8 se refere à primeira ação da sequência de alinhamento,
que é a remoção do telescópio do espectrômetro e o seu ajustamento
para focalizar os raios incidentes paralelos no plano focal. Faz-se isso
geralmente com o simples expediente de focalizar qualquer objeto
convenientemente afastado. Essa operação liga um certo lugar — o
plano focal no ponto 8 com a condição de que vários feixes paralelos de
luz penetrem no instrumento: que, observamos, se refere ao ponto 5, no
qual os feixes luminosos desviados e dispersos estão pela primeira vez
presentes no prisma.

O ponto 2 é o local da operação seguinte, que é o alinhamento do


colimador para que forneça raios paralelos de luz. Enquanto a operação
se realiza, o telescópio e o colimador estão literalmente “alinhados”
nos lados opostos da mesa do prisma. Isso constitui a linha 2-8 da
figura. O raio de luz que entra na experiência não se toma, de forma
alguma, definido no ponto 2; resta, assim, pouca dúvida com referência
à atribuição que fazemos aqui.

Ponto 4. A primeira face do prisma está, portanto, alinhada para


ficar paralela ao eixo em tomo do qual giram o telescópio e a mesa do
prisma. Faz-se isso por meio de uma série bastante complexa de
operações de ajustamento, que leva mais tempo para descrever do que
para realizar. Nessas operações, tanto o telescópio como o colimador
são usados em conjunção com a face do prisma, que atua como um
refletor. Observamos que ela não poderia ser feita se o telescópio e o
colimador já não estivessem alinhados. A completação da operação
constitui de fato a linha 4-2, pela qual o feixe de luz do colimador fica
numa relação perpendicular bem definida com a primeira face do
prisma.

O ponto 1 é a própria fenda do colimador, que é ajustável. Até


este ponto da sequência, a operação experimental que produz o
fenômeno esteve em segundo plano. Ela começa agora a se tomar
percebida e a fenda do colimador toma-se tão estreita quanto seja
necessário. Nessas operações iniciais de ajustamento, foi vantajoso
dispor de muita luz; agora ela justificou a sua finalidade. Fazendo essa
observação, estabelecemos uma distinção entre as linhas internas 1-4 e
7-1 e verificamos como a sequência se faz naturalmente ao longo do
caminho em ziguezague 4-1-7.

Ponto 7. Podemos considerar este ponto como o ponto ou lugar


da experiência em que o experimentador se introduz ou intervém nas
ações da Natureza. É aqui que se efetua a delicada e hábil operação por
meio da qual, na experiência, se concretiza o fenômeno do desvio
mínimo. Já nos referimos à beleza dessa realização. É uma operação de
sincronização que, ainda uma vez, é melhor e mais fácil de ser feita do
que ser descrita. Mas ilustra claramente a ação neste ponto 7, pela qual
todos os três processos interativos são levados a uma harmonia simples
de ajustamento sincrônico.
O colimador é posto em posição, garantindo assim o
estabelecimento do processo inicial. O prisma e o telescópio, que são
os Instrumentos dos outros dois processos, são usados então
simultaneamente numa única operação em relação à imagem da fenda
no plano focal. Essa operação consiste em chegar exatamente à mesma
condição a que Newton chegou, pois a imagem se move inicialmente na
direção, em seguida se afasta, de uma única situação definida que
ocorre na posição do desvio mínimo. Com toda essa imensa justeza e
precisão, o método de ajustamento culmina no mesmo ato simples de
harmonização que Newton descreveu assim:

“Entre a descida e a subida, quando a imagem parecia


estacionária, parei o prisma e o fixei nessa posição, que não
deveria mais ser mudada.”

Vemos essa operação como o estabelecimento da linha em


ziguezague 8-5-7 dessa figura.
O ponto 5 é o lugar em que o material do prisma e o ângulo do
prisma determinam a dispersão e o desvio do feixe luminoso refratado
transmitido através dele. Chegando à posição de desvio mínimo através
da operação do ponto 7, o fenômeno é levado a uma condição na qual se
mantém uma relação muito simples entre o desvio real do feixe de luz
colorido para o qual ele é organizado, o ângulo do prisma e o índice de
refração do seu material. Todos esses três têm relação com o ponto 5 e
determinam a posição final de colocação no desvio mínimo. A
sequência de ajustamento termina, portanto, neste ponto.
Perguntamo-nos por que a sequência deve começar no ponto 8 e
se desenvolver retrocedendo ao longo da sequência oposta à direção das
setas fornecidas pela dízima periódica 142857... Uma resposta possível
seria que, ao contrário da experiência de Newton, que é uma
manipulação pura destinada a produzir o fenômeno, o espectrômetro é
um instrumento de medição e as linhas internas já foram percorridas,
no alinhamento do instrumento, para dar origem ao espaço de medição
calibrado. Esta é uma explicação possível, que merece ser examinada.
Outra resposta é que, a partir do ponto 8, o eneagrama mostra o
processo principal completo da experiência em conexão com o segundo
eneagrama, que implica a observação por meio de dót. Se colocarmos
uma chapa fotográfica no plano focal do telescópio, o instrumento se
tomará um espectrógrafo. Quando a chapa é exposta e posteriormente
revelada e fixada, e se estuda o espectro que ela representa, o estudo
dará início a um novo eneagrama e envolverá necessariamente o
experimentador numa função muito mais cognitiva. Dessa forma,
embora a experiência tenha início no ponto 8, deve ser conduzida de
modo que se ajuste ao objetivo final de produzir a exposição do
espectro. Por conseguinte, as várias fases de ajustamento começam no
ponto 8 e se desenvolvem em retrocesso pela figura em ziguezague.
Neste ponto, abandonamos a sequência de ajustamento e
passamos à seção seguinte e final dessa parte do nosso estudo. É
evidente que a tentativa de demonstrar o papel da figura recorrente, na
experiência, podia ser levada a um certo grau de profundidade de
detalhe e precisão. A beleza do método simbólico geral resulta, em
grande parte, da sua utilização como instrumento de estudo em
profundidade das situações. Não existe limite algum que nos permita
encerrar as nossas pesquisas com a certeza de que não há mais coisas a
serem descobertas. Há sempre mais a ser visto, percebido e
compreendido. Só a nossa vontade é que fixa o limite da busca do que
está ali para ser encontrado.

A Estrutura Tríplice

Chegamos finalmente ao estudo do espectrômetro em alguns dos


seus tríplices aspectos. Como o espectrômetro é projetado como um
tríplice instrumento, esta é uma tarefa quase inesgotável. Além disso,
como o triângulo interno do eneagrama tem uma riqueza infinita de
significação, seremos novamente compelidos a escolher, dentre a
variedade de exemplos disponíveis, uns poucos de interesse especial para
o nosso presente estudo.

Colimador-Prisma-Telescópio

A tríade constituída por esses três instrumentos auxiliares do


espectrômetro é uma primeira escolha evidente. A partir daí, podemos
aprender muito sobre o desenvolvimento da tríade e da estrutura da
relação. Tornar-se-á claro que a experiência, na sua totalidade, é simbólica
da estrutura de relação, descendo até a forma triangular do prisma que faz
da experiência o que ela é e foi para Newton.
A tríade formada pelo colimador-prisma-telescópio não é
inteiramente constituída, logo no início da experiência. Ela só se forma,
quando a posição de desvio mínimo foi alcançada, exatamente como na
experiência de Newton. Há, no entanto, determinadas sutilezas na maneira
como ela se forma, que são interessantes. Dessa forma, podemos examinar
a sua formação de modo proveitoso por etapas, seguindo o caminho no
qual a estudamos nessa primeira experiência.
Com referência ao eneagrama, o ponto 9 faz soar as suas duas notas,
dó1 e dó1', no espectrômetro, quando o colimador e o telescópio
alcançaram uma perfeição de ajustamento dentro do espaço de medição de
tal ordem, que são exatamente iguais. Isso ocorre para os dois
instrumentos auxiliares em duas funções:

1. Como objetos materiais extensos que desempenham funções na


tríade do espaço de medição, eles devem ser alinhados de
antemão de tal modo que: “Seja possível tomar coincidentes
os eixos do telescópio e do colimador.”{33}

Nessa condição, eles coincidem como objetos de medição angular


potencial e representam o dó1 e o dó1‘ do eneagrama de medição.

2. As notas inicial e final da experiência soam como uma só, quando


a imagem da fonte de radiação de luz formada pela luz
transmitida através da fenda do colimador é focalizada no
plano focal do telescópio.

Uma vez estabelecida, essa é uma condição que se repete através da


experiência em todas as operações de ajustamento. Ela é fixada de uma
vez por todas, em relação à experiência, só quando essa harmonia interna
se concretiza, pelo que a figura recorrente é sincronizada num único todo e
a tríade se forma.
Os Três Impulsos{34}

Quando o prisma é colocado na mesa do prisma, entra em cena, de


forma concreta, a terceira função de relação e podemos falar de três
impulsos de relação transmitidos pelos três elementos:

1. O colimador transmite a afirmação da existência da fonte


do processo inicial da experiência. É o fiat lux.
2. O prisma transmite a negação através das condições
pelas quais a transmissão da luz a partir do processo
inicial se toma oposta, limitada e sujeita a fragmentação.
3. Quando utilizado como um terceiro instrumento na
relação com os outros dois, o telescópio se toma capaz de
transmitir o meio de conciliação entre eles, que é, em
última análise, a vontade conciliadora, livre e
independente, do cientista como experimentador —
graças à qual podemos efetuar ações intencionais
abrangendo uma aproximação progressiva.

Conciliação Perfeita

A condição prévia a que o telescópio e o colimador estão


perfeitamente ajustados corresponde à condição da sua perfeita
conciliação — receptividade completa combinada com total doação. Ela
só é possível quando os dois não estão comprometidos, de nenhum modo,
em participar da interação na qual o prisma age como uma fonte de
negação. No momento em que essa fonte de negação participa da situação,
o ponto 9 se transforma no triângulo 3-6-9 do símbolo, e a conciliação
perfeita fica comprometida pelos elementos negativos.{35} Isso
corresponde à formação de três tipos de processo diferentes:

Os Três Tipos de Processo.

1. A função desempenhada pelo colimador expressa de


forma tão clara o processo de partida, que merece a
denominação de paradigma desse papel.
2. O prisma igualmente representa o segundo processo, que
proporciona o campo de interação e estabelece a
condição de negação em relação ao processo inicial.
3. A conexão do telescópio com o papel finalizador já foi
suficientemente ressaltada na parte inicial deste ensaio. É
também um paradigma que expressa o processo
concentrativo de retomo através do qual uma imagem
final se forma.

Poder de Conciliação

É um sinal da excelência de qualidade da conciliação expressa pelo


instrumento como um todo o fato de ele poder realizar medições até um
grau extremo de precisão. Se procurarmos compreender como esta
qualidade participa do mecanismo, veremos que tudo gira em tomo do
fornecimento do feixe paralelo de luz e do modo como ele é utilizado.
O feixe paralelo de luz dá, tanto ao colimador como ao telescópio,
um poder mediador comum, ou energia livre, que está à disposição deles.
O feixe de luz colimado é uma entidade já conciliada. Tem, portanto, o
poder de gerar harmonia nas situações de que participa. No espectrômetro,
isso se revela na facilidade com que a luz atravessa os seus intervalos,
completando o processo principal da experiência. No prisma, ela é
ajudada. Posteriormente a luz desviada é atenuada na posição da imagem
final. Há mais harmonia no espectrômetro do que no lugar em que a
experiência de Newton se verifica, e a experiência, por conseguinte, é
realizada com mais exatidão.

Transformação
O processo de transformação qualitativa, através do qual as fases
dos processos completos se transformam umas nas outras, é triádico.
Gurdjieff expressou isso numa fórmula geral ilusoriamente simples, a
saber:

"O superior se funde com o inferior para dar origem ao


intermediário e, assim, se toma ou superior em relação ao inferior
antecedente, ou inferior em relação ao superior subsequente.”{36}

Podemos expressar a ação de transformação com referência a


algumas fases que já obtivemos do processo principal completo comum à
experiência de Newton e ao espectrômetro. Assim:

Entrada da Luz no Campo Experimental

A luz emitida pela fonte (dó1) se funde com a fenda e as suas


circunvizinhanças (ré1) para originar o feixe luminoso transmitido
pela fenda e se converte, assim, num cone de luz expandido (mi1), de
direção bem definida... que se propaga no sentido da face do prisma.

A partir dessa formulação, começamos a ver o quanto essas


expressões e noções da estrutura geral são práticas. Na nossa vida
cotidiana estamos acostumados com a estrutura da luz que incide sobre
fendas e o aceitamos tranquilamente. De fato, fazemos muito mais
suposições sobre a ubiquidade e permeabilidade das estruturas gerais do
que geralmente percebemos. Estamos habituados a supor como natural que
o mundo é “lógico”, “coerente” e “harmonioso" — e estas são suposições
referentes à estrutura qualitativa geral.

É digno de nota também que esse tipo de descrição das situações e


do que se passa nelas é justamente aquilo a que chegamos ao considerar o
mundo como um lugar de ação. Neste mundo, nós os cientistas, realizamos
experiências, fazemos ajustamentos, efetuamos leituras, fazemos e
interpretamos registros dos resultados e diagramas de aparelhos. O mundo
da ciência prática é um mundo de transformação concebido dessa
maneira.
Continuamos com a expressão das transformações implícitas na
experiência, nos termos seguintes:

Incidência no Prisma

A luz presente no feixe cônico bem definido (mi1) se propaga e se


funde com a área da superfície plana da face do prisma (dó2) a fim
de dar origem a um raio incidente (fá1) que interage com o vidro.

Podemos também representar desse modo o efeito na oitava da


intervenção da lente do colimador no processo completo. Assim:

A intervenção da lente do colimador no primeiro intervalo do


processo principal completo contribui para a fusão do raio incidente
com a face do prisma, fundindo-se previamente com ele para dar
origem a um raio uniforme paralelo cuja luz pode... etc.

A correspondência formal entre a fórmula geral de Gurdjieff e o


modo como comumente compreendemos esses tipos de transformação é
notável. Ela é claramente um meio de representar a estrutura das situações
que se transformam, cuja penetração só está limitada pela nossa
capacidade de ver o que está se passando. Podemos seguir os processos no
prisma. Assim:

Refração no Meio

1. A luz presente no raio incidente (fá1) entra no meio


através da interface do prisma (dó2) e se funde com a
matéria do vidro para dar origem a uma interação e,
assim, se converte num cone de luz dispersa (sol1)... que
se propaga no sentido da segunda face do prisma dentro
do meio.
2. A área da superfície plana (dó2) se funde com as
propriedades materiais de transparência e opacidade do
vidro (ré2) para dar origem a uma interface que deve
refranger de maneira regular e desviar uniformemente no
seu interior (mi2) a trajetória da luz dos raios que incidem
nela.

Imputamos a dispersão à própria luz e, portanto, à condição


indicada por sol1. A Lei de Snell, naturalmente, aparece neste ponto,
quando o fenômeno é relacionado com um espaço de medição.

Palavras Finais

Aqui podemos deixar o processo principal completo numa situação


muito apropriada para que o leitor comece a completar por si mesmo as
representações finais. Muito do terreno preliminar já foi percorrido e
suficientemente explorado na segunda seção desta última parte.
A exposição feita anteriormente, neste ensaio, da correspondência
que se pode encontrar entre as várias estruturas representadas pelo
símbolo do eneagrama e as características da estrutura ilustrada pelas
experiências consideradas pode parecer um tanto arbitrária e não
convincente à primeira vista. Convidamos o leitor decidido e dotado de
mentalidade experimental a refletir por si mesmo sobre as correlações a
serem descobertas entre o símbolo e o método mais econômico e prático
seguido na realização concreta desta experiência elementar bem
conhecida, pela qual se determina o índice de refração do vidro a partir de
uma amostra com a forma de um bloco retangular — alfinetes, papel,
lápis, régua, transferidor e tudo mais. Há uma fase neste método na qual o
experimentador sente ser necessário desviar o olhar de uma face do bloco
para a outra a fim de poder terminar a determinação do “raio idealizado”,
definido pelos alfinetes alinhados, depois da refração pelo bloco. O leitor
deverá constatar, após uma pequena dificuldade provocada pela falta de
familiaridade com o simbolismo, que este pode ser fácil e
convincentemente relacionado com a linha (2-8) no modelo interno em
ziguezague. É especialmente esclarecedor o exame do papel de vital
importância desempenhado pelo olho nessa experiência, em conjunção
com o uso pelo experimentador da sua liberdade espacial. Nessa
experiência, como na de Newton, é o próprio experimentador que planeja o
ajustamento do espaço de medição. Nessa aparelhagem, ele não é
automático como no caso do espectrômetro.

Observações finais

Tentei demonstrar empiricamente, neste ensaio, a aplicabilidade do


simbolismo do eneagrama generalizado de Gurdjieff a um exemplo de
trabalho científico. Estou bastante familiarizado com o trabalho em
questão para poder estabelecer um contato direto entre ele e o símbolo. A
meu ver, este é quase sem dúvida o único caminho possível para chegar a
uma compreensão do que este símbolo generalizado realmente trata.
Falamos sobre o poder das matemáticas, mas, de um modo mais
geral, qualquer símbolo que se refira à estrutura que permeia uma situação
concreta tem poder, quando é usado em relação a essa situação. A
estrutura ou modelo a que o símbolo do eneagrama se refere é tão
extremamente geral, que o seu poder como instrumento para se chegar à
compreensão da estrutura de todos os tipos de situações deve ser
praticamente ilimitado. Não tenho dúvida de que este foi um dos objetivos
para os quais ele foi originariamente criado.
O eneagrama é um instrumento, em seu uso um método, para
compreender os princípios gerais das estruturas. O estudo da sua ilustração
em situações especiais nos leva a um ponto de vista novo que é
antitemporal.
A estrutura é intemporal e se relaciona com aquilo que perdura para
além da efetivação dos processos temporais. Os processos se efetivam
temporalmente de acordo com padrões — que são antitemporais, porque
se mantêm preservados, intocados, não modificados pelas mudanças que
ocorrem sucessivamente no tempo.
O eneagrama aponta para um mundo que já está presente, mas é
virtual. Um mundo que é ordenado, estruturado, padronizado-latente, com
formas de significação que já esperam se concretizar na efetivação de
situações reais. O símbolo representa assim o modelo latente no momento
verdadeiro.{37}
O símbolo é uma representação clara da estrutura de um processo
totalmente coordenado, que se efetiva dentro de um momento real. Este é
simbolizado pelas figuras estruturais confinadas no círculo. Numa
experiência, o ponto central em tomo do qual o círculo se inscreve é a
vontade do cientista X, com referência ao qual a experiência inteira
adquire realidade, é montada, ajustada e todas as medições são executadas.
Tudo que é compatível com a execução dessa experiência específica tem
um lugar no círculo; tudo mais é excluído pela decisão inicial de X.
Assim, o círculo simboliza inicialmente a categoria de compatibilidade
estabelecida pelo ato que separa o que é pertinente do que não é. A
formação da tríade interna simbolizada pelo triângulo corresponde ao
estabelecimento de uma copresença com o aparato básico — como o
prisma estabelece o efeito de retração pela sua copresença com a fonte
luminosa, o orifício e a tela. A situação de coalescência se dá quando o
padrão interno recorrente se fecha. Os três tipos de ligações se relacionam
com os pontos dos ângulos do triângulo. Os três elementos recorrentes
podem ser imputados às três espécies de processos envolvidos e, portanto,
aos três lados do triângulo. O símbolo que indica interioridade tem um
duplo sentido: como ligação dos pontos da circunferência com o centro e
também com a área contida no círculo. Mas devemos, ainda uma vez, ter o
cuidado de tratar de restringir os significados que, na verdade, são muitos.
A vantagem do símbolo do eneagrama, quando a comparamos com outros
meios de representação, está na sua capacidade de transmitir, de maneira
imediata e inequívoca, as relações estruturais.
Espero ter mostrado, neste ensaio, que o símbolo do eneagrama é
diretamente aplicável ao método científico. A ciência, no entanto, é apenas
um dos campos em que os seres humanos se empenham com vistas a
alcançar objetivos. Onde houver algo a ser feito, desde que valha a pena,
haverá alguma vantagem a ser obtida fazendo-o. A satisfação ocorre
quando a situação, dentro da qual nossos esforços são aplicados, se
transforma de uma luta numa harmonia. Quando isso acontece, alguma
coisa achou o seu lugar certo dentro do mundo real.
Apêndice II

O Sermão da Montanha

A primeira coisa que é dita no Sermão da Montanha é que houve


uma separação. Havia a multidão e os discípulos, e estes, para se
separarem, tiveram de subir a um monte. Isso representa a diferença de
nível entre a vida e o Trabalho. O Sermão da Montanha é dirigido, sem
dúvida, a pessoas que querem trabalhar. Nesse Evangelho, muitas vezes
Jesus diz: “Falo-vos de um modo. A eles falo de modo diferente. A vós me
refiro claramente ao Reino dos Céus e aos outros, em geral, falo
indiretamente por parábolas.’’ Nesse momento, Ele estava com os
discípulos e falava diretamente a eles. Devemos ter em mente que o
Sermão se dirige a pessoas que trabalham, que tencionam trabalhar. E,
evidentemente, se é dirigido a essas pessoas, pretende ser aceito por elas e
servir de base à sua ação, o que é enfatizado na passagem final, em que Ele
diz: “Aquele que ouvir as minhas palavras e as cumprir será como se
construísse uma casa sobre a rocha.” Assim, de maneira mais clara
possível, há a afirmação de que o Sermão da Montanha é um documento
prático destinado a ser entendido como um modo de vida para os que eram
discípulos.
Se queremos mesmo trabalhar, devemos nos perguntar se esse
documento, ou talvez um equivalente moderno dele, representa para nós
um modo de vida. Só uma pequena parte do Sermão da Montanha se refere
à vida interior, às exigências do mundo interior: as Bem-aventuranças. Por
que são postas no começo? Porque representam a prova, as condições. Se
as aceitarem como algo com que estão comprometidos, continuem então a
leitura; o restante se aplica a vocês. Do contrário, não. Se isso
corresponder ao seu estado interior neste momento — ou se tiverem o
germe da possibilidade de serem assim — o que vou dizer se aplica então
a vocês.
A primeira e a última das nove Bem-aventuranças se referem aos
requisitos para alcançar o que Cristo chama o Reino dos Céus. O que
significa o Reino dos Céus? Ele não diz o Reino nos Céus ou em algum
outro mundo. O Reino dos Céus é nitidamente uma situação neste mundo.
Ele começa dizendo: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque
deles será o Reino dos Céus", o que significa: “Bem-aventurados os que
viram a sua própria nulidade”, aqueles que estão vazios. São eles os que
podem entrar.

Fig. 22 — O Sermão da Montanha

Para chegar ao ponto de ver que não somos nada, é necessário um


grande trabalho de preparação, o que está inteiramente implícito no fato de
os discípulos subirem ao monte e a exposição completa só começar
quando estes chegarem lá. A indicação inicial de ter subido ao monte
corresponde ao reconhecimento da própria nulidade; a partir daí, tudo
pode mudar. Enquanto estivermos carregados da ilusão de possuir algo —
de ter algo a proteger, de ter alguma riqueza espiritual — não podemos
começar. Cristo deixa claro que não está falando da pobreza no sentido
material, mas no sentido espiritual; não temos nada que seja nosso mesmo,
não temos nenhum “Eu”, não estamos despertos. Essa percepção
representa o umbral deste nosso trabalho. O ponto de partida de quem
chega a este Trabalho é a compreensão de que não temos nenhuma espécie
de bens espirituais. Isso nos leva a nos dar conta de que estamos
separados, o que está representado pela expressão “os que choram” —
“Bem-aventurados os que choram”.
Quando voltamos nossa atenção para o desejo que nasce do
sentimento da separação e da necessidade de reencontrar nossa origem,
isso faz surgir a esperança: “porque eles serão consolados”. Em grego isso
é muito bonito. Provavelmente foi escrito nessa língua e é nela, portanto,
que se deve compreendê-lo. Makarioi hoi penthoontes, hoti owtoi
paraklaythaysonteye.{38}
A Bem-aventurança seguinte traduz-se assim: “Bem-aventurados os
mansos, porque herdarão a Terra.” Essa é a chave da compreensão de tudo
o que virá em seguida. Deve-se construir um mundo novo. O Sermão da
Montanha se refere a um mundo novo, a deixar para trás o mundo velho e
a construir um mundo novo baseado na mansidão.
Cada uma das Bem-aventuranças revela gradativamente a imagem
de um tipo de estado que deve ser alcançado para entrar no Reino dos
Céus.
Dissemos antes que só os versículos iniciais se relacionavam com o
estado interior. Daí em diante, deve-se observar que quase tudo o mais se
relaciona com o nosso modo de viver. Trata-se de um documento dirigido
a uma comunidade e que se refere à maneira como essas pessoas viverão
juntas nesse mundo novo. Há muito pouco, no Sermão da Montanha, sobre
as nossas vidas particulares; quase tudo nele diz respeito à nossa vida
dentro de uma comunidade. Essa comunidade terá que sofrer, porque será
algo estranho dentro do mundo. Isso é deixado claro muitas vezes.
Finalmente está dito em termos bem específicos: “Bem-aventurados
sereis, quando vos insultarem e perseguirem, e com mentira disserem
contra vós todo gênero de mal por minha causa.” Isso é inevitável, porque
essa comunidade deve ser algo estranho dentro do mundo e os seus
costumes não são os do mundo. Mas isso aconteceu antes e não devemos
nos desencorajar por essa razão, porque ocorreu sempre que houve pessoas
eleitas para a realização de uma tarefa especial, como foi o caso dos
profetas. Sempre que as pessoas foram chamadas para o cumprimento de
tarefas espirituais no mundo, este jamais as aceitou. É o que é dito nesse
ponto e, naturalmente, muitas vezes repetido por todo o resto do
Evangelho. “Assim, eles perseguiram os Profetas que nos antecederam.”
Essa é a atitude com que devemos chegar.
Estar preparado para dar. “Bem-aventurados os misericordiosos.”
Em seguida, naturalmente, vem a coisa importante, a coisa difícil:
ser puro de coração. Isso, na verdade, vai além do conhecimento do
próprio vazio interior, que está na primeira. Bem-aventurança; é quando
essa vacuidade foi aceita e não há mais um esforço no sentido de encher-se
de coisas, quando conscientemente nos tornamos nada. Chega então o
momento em que a Terceira Força pode operar, a Força de Conciliação.
“Bem-aventurados os que constroem e fazem a paz.” Fazer a paz é obra da
Terceira Força. É por isso que são chamados “Filhos de Deus”, porque
Deus é a Terceira Força, que agora surgiu neles. Mas terão que sofrer, de
modo que voltamos novamente ao “Bem-aventurados os que padecem
perseguição pela justiça” e assim por diante. No final das contas, o Reino
dos Céus aparece.
Se meditarmos de fato sobre as Bem-aventuranças, veremos que, no
seu conjunto, elas representam uma atitude que permite a uma pessoa
assim ser preenchida pela Ação Divina. Por que tudo isso? Para que tudo
isso? Porque elas devem dar testemunho. Assim, seguem-se ao mesmo
tempo referências ao “sal da terra” e à “luz do mundo”. Há a necessidade
do testemunho. Isso é dito, no início, de modo claro. Todos os tipos de
coisas terão que acontecer para tomar isso possível, mas é para esse fim
que estamos aqui. Se não tivéssemos esse privilégio, então seja o que for
que pudéssemos pensar, de nada serviríamos, deveríamos ser jogados fora
e espezinhados pelos homens. Devemos ter em nós esse cheiro e esse
sabor de sal; devemos ter, emanando de nós, essa luz; as pessoas deverão
reconhecer através de nós a ação da Terceira Força.
Como é então que esse mundo novo surgirá? Será pela destruição de
todas as velhas instituições e pela matança dos dinossauros? Não, eles
desaparecerão; tudo isso tem que se extinguir por si mesmo e se
extinguirá. Não há necessidade alguma de se preocupar com as velhas
instituições; todas devem se exaurir e ter um fim. O novo tem que surgir.
Que isto é algo de novo está dito por todo o resto do capítulo: “Foi dito aos
antigos.” O velho mundo era assim, o mundo novo tem de ser de uma
espécie diferente do mundo em que as coisas são compradas e vendidas.
Na nossa comunidade, devemos ter esse tipo de modelo; iremos
viver de maneira diferente e nossas relações serão de tipo diferente. Todo
o restante do capítulo trata da transformação das relações que é própria da
nova comunidade. No mundo velho prevalecia o princípio de não matar,
mas aqui o substituímos por um princípio de aceitação. Aceitar o irmão,
fazer as pazes com ele. Não basta se abster de prejudicar; é preciso
descobrir uma atitude positiva. Não é suficiente obedecer às regras de não
prejudicar, de não matar e de não julgar. Nossa comunidade não se
manterá unida à base de regras; essa união deverá se fundamentar numa
atitude.
Falei antes de uma interpretação da sentença: "Se o teu olho te
escandaliza, arranca-o.” Ao me referir ao “traço principal”,{39} eu disse que
ele é a causa do escândalo para nós e para os outros, mas não é destruindo,
senão por um ato de separação ou não-identificação, que nos libertamos.
Devemos ser capazes de olhar com um olho que não escandalize; devemos
ser capazes de agir com mãos que não firam.
A relação entre homens e mulheres, nessa comunidade, deve ser
diferente; eles devem ver que não se trata de uma relação externa
temporal, que pode mudar com o passar do tempo, como tudo muda com o
tempo, mas de uma espécie diferente de relação. Eles devem procurar
sempre essa “outra qualidade” na vida, não por meio de regras, contratos e
coisas assim.
A nova maneira vai mais além e mais fundo do que tudo o que
existia antes; ela não resiste ao mal e nem mesmo tenta corrigir as coisas.
Isso não podia ser compreendido a não ser na busca de uma comunidade
ideal. Deixar-se submeter é o segredo de uma comunidade que pode
suportar pressões e ser transformada: ninguém faça questão de seus
direitos, mas que se submeta ou seja logrado. Devemos aprender isso
como uma forma de viver. Essa é uma das coisas em que a dificuldade
começa a se revelar. As pessoas dirão: “Mas como podemos fazer isso? Se
cedermos sempre, onde terminará tudo isso? Devemos então ser
espezinhados, escravizados." “Sim”, diz Ele, "isso é bastante verdadeiro
em relação ao mundo, mas não nesta comunidade, não aqui.”
Essa maneira de viver só tem uma regra: a da perfeição. Para ela
tudo mais é insuficiente. Ele conclui dizendo: “Sede perfeitos como vosso
Pai do Céu é perfeito.” Quem é o Pai do Céu? Onde é esse Céu? Sem
dúvida, os discípulos compreendiam perfeitamente bem que o Céu não era
um lugar que existisse em alguma parte; compreendiam perfeitamente
bem que, em cada um de nós, há um Céu. E há um Céu que partilhamos, só
que nos fechamos para ele.

O Pai somos nós mesmos; essa parte de nós que está no mundo
incondicionado é o Pai; viemos dessa parte. Devemos amoldar as nossas
vidas de acordo com o padrão, o dharma, do nosso ser real, obedecer ao
nosso dharma e aceitá-lo.
Todo esse capítulo consiste apenas em ilustrações do modo como
será necessário vivermos, se a nossa comunidade tiver que funcionar. Que
eram essas comunidades? Naquela época, havia muitas comunidades
formadas não apenas por cristãos, mas por outros também. Havia
comunidades mitraístas e comunidades dos antigos deuses. Mas as
comunidades cristãs tinham estabelecido para si mesmas uma tarefa
determinada: estavam todas diante da profecia do fim do mundo.
Esperavam que o velho mundo morresse e que o mundo novo surgisse, e
deviam se preparar para isso. Algumas comunidades, especialmente as da
Síria, compreenderam isso de maneira errônea, porque pensavam que
deviam abandonar todos os interesses da vida. Disseram-lhes que não
deviam se casar, que não devia haver relações entre homens e mulheres,
que deviam deixar tudo, porque nada disso tinha importância para o
mundo que iria chegar. Mas, em nenhum lugar desse documento ou
legominismo sugere-se àqueles para quem foi elaborado que não devessem
se casar e continuar sua vida normal, cumprindo todas as suas obrigações
exteriores. Só que eles tinham de adquirir uma determinada força a partir
de sua própria maneira de viver, de sua vida comunitária, para que fossem
capazes de suportar.
Naturalmente, houve violências e pressões. Comunidades foram
perseguidas e muita gente martirizada. Durante o século II viu-se uma
força extraordinária, sem a qual a semente teria morrido. Devemos
compreender que essa era uma preparação muito perspicaz para uma época
de perturbações que estava chegando. Sem se ajustarem a esses elevados
padrões de trabalho sobre si mesmos e de aceitação recíproca, eles não
poderiam ter suportado isso, não só porque não te riam tido o apoio mútuo,
mas, o que é mais importante, não contariam com a energia necessária.
Aconteceu muitíssimas vezes que essas comunidades escaparam de ser
destruídas e aniquiladas, diante de todas as probabilidades. Elas eram, na
sua maioria, comunidades judias da Diáspora, a dispersão posterior à
destruição de Jerusalém no ano 70 depois de Cristo. Houve uma grande
congregação em Alexandria e na costa do Egito. Nessa ocasião, Jerusalém
tinha sido praticamente destruída. A maioria dos judeus voltou a um modo
de vida muito rígido. Eles procuraram refúgio na Lei. Quando o templo foi
destruído, a Lei tomou-se um templo para eles. Eles mantiveram um
padrão de vida muito elevado e eram também constantemente perseguidos
e estavam sempre em perigo. O recurso de que se serviram foi a
observância estrita da Lei e a preservação de tudo o que fazia parte de sua
vida. Esta também os preservou e eles sobreviveram a esse período de
perturbações, mas seu papel era diferente. As comunidades que seguiam o
Sermão da Montanha buscavam algo diferente de regras rígidas.
Dentro da comunidade, os que têm devem dar e trabalhar para os
que não têm. Portanto, a primeira coisa que tem que ser considerada é
como se opera esse dar e receber. Há a lei da esmola: deve-se dar uma
parte das suas posses para ajudar os pobres, pela lei sagrada. Mas de que
maneira? isso não é uma coisa que deva ser vista pelas pessoas, não é
aquilo em que devemos ser uma luz, uma manifestação diferente daquela
que é exigida. Portanto, não é para ser realizada dessa maneira, para que as
pessoas vejam. De início, parece haver nitidamente uma grande
contradição entre a sentença: “Que a vossa luz brilhe assim diante dos
homens, que eles possam ver as vossas boas obras” e: “Cuidai para que
não deis as vossas esmolas diante dos homens para que eles as vejam.”
Qualquer um pode dar-se conta desta e de muitas outras contradições. Essa
luz deve brilhar, não através dessas ações visíveis, não pela observância
das leis e dos costumes, mas por aquilo que emana, aquilo que esta
comunidade tem em si mesma. É essa a parte secreta do Trabalho. Regras
muito simples estão começando agora a aparecer — ou antes, estão sendo
expostos princípios, não regras de conduta.
Há por exemplo, o princípio das duas fases do trabalho. Quando
alguém faz certo tipo de esforço ou sacrifício de trabalho, a recompensa
disso é ser posto diante de uma tentação, que significa a possibilidade de
fazer algo diferente. Nesse caso, a tentação deve ser valorizada por ter
dado esmolas. O verdadeiro trabalho aqui não reside realmente em dar,
mas em não esperar que nos agradeçam por isso. A liberdade consiste em
dar de tal modo que não nos agradeçam ou valorizem por esse ato.
Aprendamos esse segredo e então teremos estabelecido uma ligação com o
Pai, com o mundo interior, com o ser interior. Isso se aplica também aos
outros exemplos apresentados em relação à oração e ao jejum.
O segundo capítulo do Sermão da Montanha é do princípio ao fim
relacionado com a maneira de se chegar ao Reino dos Céus, de se
transformar numa comunidade dessa ordem. São estes os segredos e
métodos que devemos estar prontos a utilizar: ocultemos nosso trabalho
tanto quanto pudermos para deter a energia resultante de nossos próprios
esforços e sacrifícios; não nos contentemos com ela, mas deixemos que se
acumule e aumente. Em seguida, ela começa a ser partilhada e os outros
começam a participar dela; é então que podemos fazer algo, realmente
ajudar os outros. Essa ação é descrita no final da oração “Perdoa-nos as
nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores.” Falar sobre
a Oração do Senhor detalhadamente é uma coisa muito séria, mas direi
umas poucas palavras sobre ela.
A primeira coisa que devemos nos perguntar é o que quer dizer “vãs
recitações”, como as usadas pelos pagãos. Isso soa como se fosse, na
verdade, uma espécie de rejeição do culto mitraísta, que utiliza uma
porção de mantras. O que é uma recitação vã? Vão significa, na verdade,
vazio de substância. Deve haver uma substância material concreta da
oração: ela é feita de algo.

Fig, 23 — Eneagrama da Oração do Senhor


Há também a questão do que quer dizer Pai. Por que nosso Pai? Por
que não meu Pai? A oração é uma oração comunal; não existe nenhum Eu
nela, nenhuma primeira pessoa; é sempre o nosso Pai, os nossos pecados, o
nosso pão de cada dia. Trata-se da oração de uma comunidade. Mas o que
é “Pai” nela? Que significa? Significa que este mundo em que vivemos
tem origem noutro mundo. Nunca devemos pensar que este é o mundo
original, que ele tem o seu começo nele próprio. Não é assim; tudo vem de
outro mundo. É por isso que está dito: “Que estás no Céu”, não aqui,
porque este não é o mundo onde as coisas começam. Elas começam a
partir de uma parte não condicionada. Como disse mais tarde um Apóstolo
— quase na mesma época em que o Sermão foi escrito: “Toda boa dádiva
vem do Alto, do Pai da Luz.” Este mundo procede do mundo
incondicionado, que o nosso conhecimento não pode alcançar, que não
podemos penetrar e sentir diretamente; por isso fazemos esse
agradecimento. É por isso que não falamos de Deus, mas do Pai, e não do
Pai mas do Nome. Não podemos ir além do nome ou da imagem. Não
sabemos o que está por trás dessa imagem. É essa realmente a primeira
coisa que aqui é tomada clara — o lugar de onde somos chamados, de onde
viemos, está além deste mundo do corpo e da mente. Não temos acesso a
ele; só podemos acreditar que exista. Ele nos é apresentado somente como
uma imagem. Todas as imagens sagradas são apenas representações do
Nome que estamos glorificando. Mas, nesse caso, como é que pedimos que
o Reino venha a nós? Porque o Reino tem que penetrar neste mundo, tem
que surgir e se estabelecer aqui neste mundo. É isso que está dito aqui e
alhures de modo claro. Era este o ensinamento; era isso o que eles
aprendiam, era esse o modo como eram ensinados a considerá-lo. Do outro
lado, há o padrão, o dharma, no Céu. Ele deve se estabelecer aqui: “Teu
Reino se fará na Terra”, aqui neste mundo condicionado.
Muitos perguntaram o que significa o “pão nosso de cada dia”. Essa
expressão foi traduzida do grego de maneiras diferentes, ora por palavras
que significam o pão superior, ora por outras que querem dizer pão
supersubstancial. Não importa. De uma forma ou de outra, precisamos de
alimento, de todas as espécies de alimento. Mas alguns desses nos chegam
do mundo incondicionado; é o alimento que não podemos por nós mesmos
reunir nem preparar; é o alimento que nos deve ser dado.
Vem, em seguida, a ideia da aceitação e do perdão mútuos, que
registramos como a condição para que o nosso ser se relacione com o
outro mundo; enquanto houver rejeição, enquanto rejeitarmos os outros,
estaremos rejeitando o caminho para o outro mundo. A mesma oração
aparece noutro lugar, mas nele está acentuada novamente a sentença: "Se
não perdoares, não serás perdoado.” Que isso fique bem claro, porque não
podemos ter a comunidade que buscamos com base em exigências
recíprocas.
Se estudarmos esse capítulo intermediário do Sermão da Montanha,
veremos que ele se refere inteiramente à relação entre os mundos
condicionado e incondicionado. Ele afirma isso em quase todas as
palavras: “Não ajunteis para vós tesouros na Terra, mas no Céu.” A Terra
representa sempre o mundo condicionado, o Céu é sempre o mundo
incondicionado, os dois aspectos da nossa natureza. Tudo se relaciona com
a maneira como deve ser sanado esse divórcio dos dois aspectos da nossa
natureza.
Vem, em seguida, algo que é muito importante para nós e devemos
realmente refletir muito sobre isso. No restante desse capítulo há muitas
alusões a não pensar, a não planejar. Ele diz que há efetivamente duas
maneiras de viver: uma é confiando no padrão, no dharma; a outra é
confiando na nossa própria capacidade de fazer cálculos. Se escolhermos
esta última, então nos colocaremos sob a ação das leis desta Terra. Se
estivermos preparados para não fazer cálculos, mas para confiar nas leis
do dharma, no padrão das coisas, então elas tomarão conta de nós. É essa a
espécie de comunidade que temos que formar: uma comunidade baseada
na confiança no padrão, no dharma, não na nossa própria capacidade de
calcular. Veja como isso é absurdo: podemos, com os nossos cálculos,
acrescentar uma polegada à nossa estatura? Podemos ver os limites dos
cálculos humanos? É dessa forma que o mundo está tentando viver; ele
está tentando viver de cálculos, de planejamento e de preparação, confiado
no trabalho das leis naturais e no conhecimento quantitativo para adaptá-lo
ao seu gosto, para conquistar o controle sobre ele. A advertência é bem
clara: não é desse modo que a comunidade deve trabalhar; ela deve
trabalhar na base da confiança no dharma, no padrão.
{1} All and Everything ou Beelzebub's Tales to his Grandson (Do Todo e de todas as coisas ou
Relatos de Belzebu a seu neto).
{2} Turnstone Press, 1973, Apêndice II.
{3} Literalmente habitat da humanidade, em grego.
{4} A potencialidade sempre é mais rica do que qualquer realização possível. Embora a
realização exata de um plano seja teoricamente possível, as probabilidades contra ela são tão
grandes que, na prática, a tornam impossível.
{5} Vide capítulo 4.
{6} Ed. Pensamento, São Paulo, 1982.
{7} Cf. Gurdjieff, All and Everything, p. 754. Nessa obra, esse ponto é mencionado como
“Hamel-Aoot”.
{8} Uma terceira espécie de '‘tempo”, diferente não só do tempo comum, mas também da
“eternidade". O tempo comum é a condição da mudança permanente. A eternidade é a condição
da permanente inalteração. A hiparxe é o “retorno” do imutável ao mutável. É, portanto, como a
vibração e o ritmo, sendo a música o símbolo disso. A “dimensão hipárquica” de um homem é
uma medida do quanto ele pode ser ele mesmo no meio da vida, das atividades, das experiências
e assim por diante.
{9} “Quando for necessário levar em conta as relações de uma Sociedade dentro de uma família
de Sociedades em processo de interação e desenvolvimento, falaremos de uma simbiose... A
simbiose é uma associação que só podemos compreender com referência à confiança mútua dos
seus grupos de membros e também ao processo universal em que ela ocorre.” The Dramatic
Universe, vol. Ill, Coombe Springs Press, p. 231.
{10} Autonômico significa “subordinado às suas próprias leis’* e se refere à existência vital.
Hipemômico quer dizer “acima das leis”.
{11} Os três mundos de materialidade (Hiponômico), vitalidade (Autonômico) e divindade
(Hipemômico) formam uma tríade na qual a Vida transmite o impulso de Conciliação.
{12} A história da vida na Terra» Inclusive o aparecimento da inteligência, envolve um novo
conjunto de implicações.
{13} A teoria das Épocas foi apresentada pelo autor na sua obra Crisis in Human Affairs, Hodder
& Stoughton, 1948.
{14} Esta é uma medida da sua contribuição à Realidade
15. O Fundo Comum da Essência da Alma é o reservatório da energia empírica de que é extraída
e para o qual retoma a matéria-prima da alma dos seres humanos. As incontáveis gerações de
seres humanos transformam gradualmente a substância da alma.
{16} O leitor reconhecerá a semelhança entre essas ideias e as do budismo tântrico e outras
tradições do Oriente Médio e da China. O autor não encontrou nenhuma verificação dos ciclos
precisos, tais como o período de 432.000 anos que parece ter-se originado dos cosmólogos
caldeus. A teoria das ‘'comunidades" apresentada aqui foi desenvolvida independentemente
dessas tradições, mas a similaridade não é sem significação.
{17} Essa comunidade está atuando no nível da “História Providencial". As essências
demiúrgicas são a categoria de seres que existem num nível superior ao do homem e são
responsáveis pela manutenção da harmonia planetária. Como Gurdjieff sugere, no seu
Beelzebub's Tales, o trabalho deles não é necessariamente favorável à liberação dos indivíduos do
mecanismo cósmico.
{18} O grupo que está sofrendo uma transformação pessoal e passando da personalidade à
individualidade — ou se tomando real. Este grupo está situado entre os psicostáticos, que vivem
uma vida puramente externa e os psicoteléios, que alcançaram a autorrealização.
{19} Há uma ficção americana que instala o Diabo num arranha-céu de Manhattan e mostra
como ele (o diabo) ensina ao homem como destruir a Biosfera.
{20} Citada pelo seu aluno, P. D. Ouspensky, em Fragmentos de um ensinamento desconhecido,
Ed. Pensamento, São Paulo, 1982, p. 336.
{21} Cf. Brigther Than a Thousand Suns, R. Jungk, Penguin Books, 1960, e J. J. Thomson and
the Cavendish Laboratory, G. P. Thomson, Nelson, 1964; Reason and Chance in Scientific
Discovery, R. Taton, Science Editions, Nova Iorque, 1962; The Art of Scientific Investigation, W.
I. B. Beveridge, Heinemann, 1950.
{22} A fração decimal repetida, comum a todas as frações não inteiras que têm como
denominador. Ela demonstra a incomensurabilidade da setuplicidade com a unidade e serve para
exprimir, num simbolismo numérico, uma das incompatibilidades necessárias da estrutura. Em
Fragmentos de um ensinamento desconhecido, de Ouspensky, há uma figura derivada disso, p.
330.
{23} Cf. All and Everything, de Gurdjieff, Routledge & Kegan Paul, 1950, pp. 754-5. “Hainel-
Aoot”.
{24} Cf. O processo industrial (capítulo 4).
{25} ... que ele mesmo indicou como “sendo, a meu ver, a mais extraordinária, senão a mais
notável investigação feita até aqui das ações da natureza”.
{26} Optics, de Isaac Newton, Londres, 1704. Livro 1, Parte 1. Proposição 2, Teorema 2.
{27} O Textbook of Light, de G. R. Noakes, Macmillan, 1946, contém muitas informações
importantes. Outra fonte confiável é a Experimental Optics, de Wagner, John Wiley, 1929, mas
qualquer compêndio de Física de curso médio servirá. Na Inglaterra, a manipulação do
espectrômetro de prisma é hoje parte do programa de Física Superior.
{28} Cf. Fragmentos de um ensinamento desconhecido, p. 329.
{29} Cf. Towards an Objectively Complete Language, de J. G. Bennett, H. P. Bortoft e K. W.
Pledge. Systematics, vol. 3, n. 3, dez. 1965, seção IV, parte 3, p. 220.
{30} Wagner, loc. cit., p. 24. Essa obra contém o trabalho prático de ótica dado aos oficiais
da Escola de Pós-Graduação da Marinha dos Estados Unidos, alguns dos quais, mais tarde,
“desempenharão as funções de inspetores de instrumentos telescópicos militares a serem
comprados para uso da Marinha".
{31} e 35. Observamos que isso se refere a e estabelece o espaço de medição como foi
descrito acima, na parte 1 desta seção.

{33} Wagner, loc. ctt., p. 25. Ajustamentos do espectrômetro.


{34} Para a elucidação mais ampla dos três impulsos e da maneira como participam de diferentes
modos de combinação, remetemos o leitor a The Dramatic Universe, de J. G. Bennett, Hodder &
Stoughton, 1961, vol. II, parte 11, p. 69ss. A Tríade - Vontade.
{35} Observamos que, quando a fonte de conciliação participa inteiramente da situação, há a
completação da figura interna recorrente e o triângulo 3-6-9 se converte no padrão 1-4-2-8-5-7...
que se repete interminavelmente. Não dispomos de tempo para desenvolver aqui essa
observação. Ela denota a formação de um poder permanente de existência para o evento
considerado, através de uma perpétua renovação.
{36} Cf. AU and Everything, p. 751: “Um novo surgimento provém de surgimentos anteriores
através do ‘Harnel-Miatznel’”. O superior está para o inferior na relação de uma atividade maior
para a situação. O inferior é sempre mais passivo do que o superior.
{37} Cf. Towards an Objectively Complete Language, de Bennett, Bortoft e Pledge. Systematics,
vol. 3, n. 93, 1965.
{38} Versão fonética constante do original inglês. (N. do T.)
{39} Característica individual que nega ou bloqueia o Todo. A referência é a uma reunião de
grupo que não foi gravada.

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