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Marcos Barreira

BRASIL EM TEMPOS DE DECLÍNIO SOCIAL

Comentários sobre a pós-política no governo Bolsonaro

Pouco a pouco o mundo toma conhecimento das proezas de Bolsonaro na presidência


da nona economia do mundo. Um editorial recente do Washington Post o classifica
como “pior líder mundial” no combate à pandemia e a revista The Economist o inclui
no pequeno grupo de lideranças exóticas “negacionistas” e com perfil autoritário.
Isso condiz com a trajetória folclórica e isolada desse político do “baixo clero” que
fez carreira defendendo crimes praticados pela ditadura militar e que, na eleição de
2018, declarava-se abertamente ignorante em assuntos econômicos. Por trás da
personagem grotesca e do seu círculo de apoiadores, no entanto, delineiam-se
tendências estruturais de esgotamento da própria forma política no contexto mais
geral da crise da integração pela “sociedade do trabalho”. É esse contexto de declínio
social que permite ao governo Bolsonaro transformar as próprias instâncias do
governo em fatores de crise.

De fato, quer se trate da agenda econômica, da emergência médica ou da crise


socioambiental, o governo Bolsonaro tem atuado como um fator constante de
desestabilização. Isso sem mencionar o ataque direto aos demais poderes. Enquanto a
equipe econômica de Paulo Guedes prossegue com os cortes em serviços básicos e
sonha com um projeto de privatização ainda mais amplo que o da década de 1990, o
Congresso – que segue como alvo da militância em torno de Bolsonaro - presenteou
o governo com uma reforma do sistema previdenciário que decreta o fim da
aposentadoria para amplas camadas da população, especialmente nas regiões mais
pobres. Até mesmo onde havia um acordo com a maioria conservadora, a ação do
governo se limitou a garantir privilégios corporativos para o custoso setor militar.
Em divergência com as medidas restritivas contra o desmatamento na Amazônia,
Bolsonaro assumiu ter “potencializado” os incêndios criminosos. Também as
declarações de integrantes do governo contra parceiros comerciais prejudicam seus
apoiadores do agronegócio, enquanto as iniciativas de “desregulamentação” das leis
ambientais começam a ser exploradas por concorrentes estrangeiros na corrida global
pelos fundos de investimento. Nem a pandemia e o dramático agravamento da crise
modificaram esse padrão: o governo tomou medidas que apenas esvaziam o papel da
“política”, fazendo o país atravessar a alta do contágio com um Ministério da Saúde
imobilizado e sem qualquer diretriz técnica.

Esse caráter disfuncional do governo tem sido explicado, de um lado, como


incompetência ou ausência de quadros; de outro lado, como uma estratégia de
produção permanente de crises, por meio da qual o clã Bolsonaro anima as suas
bases. Está cada vez mais claro, porém, que por trás da má condução do governo ou
da estratégia de conflitos não há nenhum projeto a não ser o simples desmonte da
regulação política e o favorecimento de grupos empresariais e corporações aliadas a
Bolsonaro - e tanto a “classe política” quanto as elites empresariais que o toleraram
até aqui já sinalizam com uma possível ruptura. Diante da ausência de medidas
contra a crise social, até mesmo a retórica radical de mercado começa a ser
questionada.

Desde a década de 1990, as políticas de “estabilização” e as reformas de mercado


mostraram-se incapazes de deter o desemprego em massa e a precarização das
condições sociais. O esgotamento do processo de modernização – fim do “milagre
econômico” do período militar – e a incapacidade de os grandes centros urbanos
absorverem a força de trabalho expulsa pelos complexos agroindustriais ou pela falta
de alternativas econômicas no interior do país, criaram a necessidade de mecanismos
de contrapartida social. Durante a Era Lula, esses programas foram estruturados em
larga escala e idealizados como um meio de salvação do capitalismo. A retórica do
Estado com ênfase social ou do “capitalismo popular” servia como justificativa para
a integração das massas pelo consumo durante o boom das matérias primas. No
entanto, o ideal declarado de produzir uma “nova classe média” através da cobertura
social básica, da ampliação do salário mínimo e da proliferação de empregos de
baixa renda forneceu apenas uma miragem de integração pelo trabalho e consumo
em massa dissipada no período que se seguiu à crise de 2008. A queda dos preços
internacionais fez a situação da economia brasileira se modificar bruscamente e
colocou um fim à conjuntura de crescimento que deu origem ao “pacto social”
lulista.1 O saldo da economia política da Era Lula foi uma enorme regressão da

1
Marcos Barreira e Maurilio Lima Botelho, A implosão do “pacto social” brasileiro. Blog Junho,
Maio/2016.
produção industrial. Ainda no contexto do arranjo conservador inaugurado no
governo Lula, a grande injeção de dinheiro público na economia para compensar a
queda no preço das exportações foi transformada pelo pensamento apologético
“progressista” em um novo modelo sustentável de desenvolvimento. O lulismo
condensou, assim, três momentos da crise da política: o deslocamento geral para a
“direita”, a redução da política a uma administração da crise social inteiramente
subordinada à lógica econômica e a tendência geral para a simulação.

Seguiu-se à Era Lula, depois do processo de impeachment de Dilma Rousseff, um


novo arranjo político liderado pela antiga oposição e com base no descontentamento
das camadas médias. Esperava-se que a troca de governo, com sinalizações pró-
mercado, resultasse, por si só, na “retomada da confiança” dos investidores. Mas a
simples expectativa gerada pela troca da cúpula política era obviamente incapaz de
reverter o quadro de crise. O aprofundamento da recessão e a campanha de grupos
organizados no interior do estamento burocrático (por meio do MPF e da PF) contra
os grandes partidos inviabilizaram o novo governo. Quando as lideranças do PT
aderiram de modo realista ao pacto com o sistema partidário de maioria conservadora
e deram ênfase à administração da crise social, tratava-se não mais de algum tipo de
“reforma”, mas de um acordo de sobrevivência do próprio sistema, cujo esgotamento
era evidente. A ruptura desse acordo interno do sistema político só poderia antecipar
uma grave crise institucional e abrir caminho para processos violentos de
desintegração nos quais a esfera da mediação política começa a ser questionada.

Com a candidatura Bolsonaro foi criada uma resposta ainda mais conservadora e
brutal ao desmantelamento do sistema político. Ela foi capaz de alcançar todas as
camadas sociais, o que significa não só a incorporação da “classe média”,
concentrada no Centro-Sul do país, que recusou o “pacto social” lulista e, sob a
influência da operação Lava Jato, estendeu essa recusa ao sistema partidário, mas
também um modo diferente de lidar com os segmentos empresariais e com as massas
populares. O discurso de Bolsonaro apostava, em primeiro lugar, no extremismo
ideológico pró-mercado que emergiu como reação ao “protagonismo estatal” da Era
Lula. Isso vale tanto para os discursos que emanam dos mercados, quanto para a
ideologia regressiva dos setores médios individualizados e precarizados, estes novos
“empresários de si mesmos” que sonham com um capitalismo puro, “sem Estado”,
isto é, sem qualquer regulação das atividades econômicas que, pra eles, tornou-se
sinônimo de fardo burocrático. Um traço comum a ambos os discursos é que a crise,
cuja manifestação local mais aguda era visível por volta de 2014, foi reduzida desde
o início ao mero efeito da ação política, ao passo que as reformas de mercado
apareciam como um retorno à “normalidade” do capitalismo.2 Com o fator novo da
pandemia, que encontra um país marcado pelos cortes nos serviços básicos e
políticas públicas desmontadas, esse antirrealismo é agravado. Ao mesmo tempo em
que se pretende estender aos idosos e debilitados a lógica do darwinismo social que
já atinge os pobres e derrotados na concorrência, o governo tenta atribuir o
agravamento da crise aos governadores para reforçar sua base de apoio.

Ao contrário de Lula, que construiu sua base eleitoral em acordos com as elites e
com os partidos que garantiam a estabilidade política, tendo nas camadas populares
apenas uma base passiva, Bolsonaro chega ao governo com um apoio bem mais ativo
não só nas camadas médias tradicionais, mas igualmente na população de baixa
renda. Sua candidatura se alimentou tanto da energia dos protestos de rua “contra a
política”, quanto dos movimentos fundamentalistas protestantes de base popular, nos
quais a figura de Bolsonaro assume um status quase messiânico. Tais movimentos
ganharam corpo nas últimas décadas como formas periféricas de coesão social fora
da esfera política, o que representa uma resposta à incapacidade do Estado em lidar
com a crise nas áreas mais afetadas pela exclusão social. Eles se encaixam, assim, na
tendência geral de fuga para a fantasia religiosa como substituto ideológico das
identidades coletivas formadas no contexto da modernização das sociedades
tradicionais.3 Diante da crise social crescente, o Estado pôde oferecer apenas uma
pequena renda emergencial como simulação do consumo em massa – o que, em si
mesmo, revela o fracasso da integração social pelo trabalho -, mas que ainda estava
associada a ilusões de desenvolvimento e integração pelo consumo. Mesmo contra a
pregação ideológica dos seus apoiadores na “classe média”, o governo Bolsonaro deu
prosseguimento à gestão da crise por meio dos programas sociais de mercado, mas
sem qualquer roupagem ideológica adicional e, por assim dizer, como um último
2
Essa negação da dimensão sistêmica da crise foi, aliás, um traço recorrente do discurso econômico-
midiático desde 2009, quando as medidas “anticíclicas” eram denunciadas como uma peculiaridade
nacional puramente ideológica (isto é, “estatista”) numa suposta conjuntura global de retomada. Se a
esquerda pelo menos era capaz de enxergar a crise a partir de um quadro não exclusivamente nacional
ou “político”, a própria noção de medidas “anticíclicas”, no entanto, revela que, também aqui a sua
dimensão sistêmica foi apagada. Não surpreende, portanto, que, depois de 2015, a esquerda tenha
atribuído o agravamento da crise à ruptura com as medidas econômica dos “seus” governos.
3
Sobre este ponto ver, Ernst Lohoff, Die Exhumierung Gottes. Von der heiligen Nation zum globalen
Himmelreich. Disponível em https://www.krisis.org/2008/die-exhumierung-gottes/.
recurso. Já não se fala em inclusão na “sociedade de classe média”, nem da salvação
do capitalismo pelo consumo dos pobres. Isso, no entanto, não significa que o
governo e sua base militante tenham se rendido a uma postura pragmática. Pelo
contrário: sua aliança com as correntes fundamentalistas indica uma segunda via de
radicalização ideológica baseada na “comunidade de valores”, que a seu modo
também se volta contra o Estado.4 É claro que a maior parte da população de baixa
renda aceita as políticas sociais de mercado da Era Lula, mas, por outro lado, vê na
agenda “cultural” do PT uma ameaça aos valores do seu meio familiar e social.5

Ainda que esses movimentos tenham sido exitosos na produção de novas formas
de organização à margem da política, contra a qual travam uma guerra cultural, eles
também se tornaram ativos na esfera pública oficial, com a qual mantém uma relação
instrumental. Não por acaso, a pastora Damares Alves, ministra “da família”,
afirmou que “é o momento de a Igreja ocupar a nação... e governar”. Ou, no dizer de
outra liderança evangélica: “Nós estamos indo para a política brasileira e as portas do
inferno não prevalecerão contra a igreja do Senhor”. Por meio da aliança com o meio
evangélico popular também foi “preenchida” a ausência de uma construção
ideológica coerente nos círculos “bolsonaristas”.6 É a partir dessa radicalização
ideológica que vicejam o obscurantismo, as teorias conspiratórias e as ideias de
“seleção natural” pelo mercado. O discurso de Bolsonaro tornou-se, assim, uma
forma regressiva de “antipolítica” que mobiliza a raiva dos estrados médios contra a
“interferência” do Estado e as identidades coletivas da periferia constituídas pelo
discurso religioso.

A antiga polarização eleitoral no interior do sistema político dá lugar então a outra


polarização: de um lado, instituições e partidos “oficiais”; do outro lado, o populismo
de direita que paralisa a esfera política. Se no radicalismo de mercado e no ativismo
dos chamados evangélicos encontramos uma lógica de exclusão ou novas formas de

4
“A exigência de que todos os seres humanos só possam referir-se diretamente a Deus e já não a
qualquer outra autoridade é, ao mesmo tempo, consequência e parte do desmonte da generalidade
abstrata do Estado”. Ibidem.
5
Sobre isso ver Marcos Barreira, À beira do abismo. Blog da Boitempo, 10/2018.
6
O fundamentalismo, no entanto, avança igualmente nos estratos médios, enquanto a mentalidade
individualizada típica das ideologias de “classe média” ganha força junto à população pobre que
ascendeu socialmente na Era Lula. Essas tendências estão apenas no início. Conforme o movimento
evangélico ganha as camadas médias, cresce a identificação deste com o radicalismo de mercado e a
ideia de que o governo é uma instância que apenas sobrecarrega a sociedade com impostos e contraria
crenças e valores cristãos.
mediação social para além da política, a crise da “generalidade abstrata” estatal
ganha uma forma ainda mais evidente com a fragmentação do aparato de violência.
Aqui não se trata das ideias desconexas e cambiáveis que o “bolsonarismo” dirige
aos grandes segmentos da população e sim do processo por meio do qual os próprios
atores na esfera pública (como integrantes do aparato de violência) passam a
exprimir interesses privados e concorrentes entre si, encaixando-se cada vez menos
no ponto de vista do Estado, que começa, portanto, a ser corroído também a partir do
seu interior. Isso diz respeito ao conjunto de ações - legais ou informais - que tornam
flexível o uso da violência, desde os projetos de armamento da população ou do
“excludente de ilicitude” até a formação de grupos paramilitares de agentes e ex-
agentes de segurança pública que atuam por conta própria - ainda que na maior parte
dos casos esse processo de corrosão seja acompanhado de medidas legais que
reforçam caráter repressivo do Estado. A partir daí tem início a autonomização do
aparato de violência em relação a qualquer controle político ou “civil”. O processo
de asselvajamento das relações se manifesta de modo diferenciado, conforme os
níveis de estratificação: nos meios de “classe média”, já marcados pelas tendências
de individualização e de queda, ele prolifera como uma versão especialmente
violenta da desregulação neoliberal e como gesto vazio de autoafirmação do sujeito
isolado contra o “poder do Estado”. A iniciativa individual assume então uma forma
ainda mais selvagem na qual os indivíduos socializados diretamente pela
concorrência já se preparam com armas na mão para os próximos estágios da crise.7
Nas periferias e favelas, por sua vez, constitui-se um modelo informal de regulação
armada, que funciona como uma “guerra particular” entre facções pelo controle da
economia secundária do tráfico e expõe um quadro já quase inteiramente fora do
alcance da ordem estatal. Em ambos os casos, mas de modo diferente, a crise da
mediação política explode em novos surtos de violência racista e sexista.

Longe dos grandes centros urbanos a lógica da violência informal também


floresce na pilhagem da “última fronteira” interna, com as formas ilegais de
ocupação de terras e extrativismo. Para o espanto da parcela da “classe média” que

7
Esses sujeitos da concorrência sonham com uma existência individual “livre” da regulação política
apenas para que possam adaptar-se aos novos imperativos da concorrência. A motivação para os seus
interesses privados não está mais nos grandes ou pequenos empreendimentos que “movem o mundo”,
mas apenas na sobrevivência em condições sempre mais destrutivas. Por isso, a sua forma de
consciência se torna mais violenta, como no culto às armas de fogo e nas fantasias de extermínio dos
“diferentes”.
ainda vê no Estado a defesa do conjunto dos interesses privados, Bolsonaro levou
para dentro do governo a “guerra particular” de agentes privados ilegais contra
facções rivais ou contra movimentos sociais e povos tradicionais. Assim, fica à vista
de todo o país que suas periferias e rincões já estão quase totalmente desconectadas
da normalidade política e econômica – é provável que Bolsonaro se torne
inadmissível para uma parte da nova direita de “classe média” e amante das
“instituições democráticas” devido ao caráter demasiado explicito dessa “revelação”
e não tanto pelo seu conteúdo real.

A convergência inicial de Bolsonaro com a “nova direita” oriunda dos estratos


médios mostra que a autonomização do aparato de violência militarizado e a luta
entre facções no interior do estamento burocrático são duas faces da mesma moeda. 8
Essa frágil aliança se desfez assim que as promessas de “retomada” se mostraram
ilusórias e ficou patente a incapacidade do governo de lidar com a gestão das crises
econômica e da saúde. Desde então, veio à tona a ligação pessoal do clã Bolsonaro
com as milícias cariocas e suas ramificações no restante do país. Essa relação não é
casual. A falta de um acordo orgânico com as elites empresariais aproxima
Bolsonaro e um tipo de agente econômico secundário com maior tendência para os
negócios clandestinos. Outro apoio vem do grupo de militares incorporados ao
governo, ainda que, nesse caso, não faltem contradições entre a ideologia
intervencionista e o extremismo de mercado que dá o tom no governo. Notícias sobre
a ligação da família do presidente com o submundo do crime organizado são outro
fator que tende a colocar em xeque o apoio aberto das Forças Armadas ao governo,
ainda que elas próprias tenham se mostrado permeáveis à ação de esquemas ilegais
(desvio de armas em quartéis, tráfico de drogas etc.) e que as frequentes operações
do Exército na segurança no Rio de Janeiro tenham ignorado as áreas dominadas
pelas milícias. Mas as investidas de Bolsonaro contra os demais poderes parecem
apenas antecipar tendências de fragmentação ainda não suficientemente
amadurecidas no meio militar. É no aparato policial, no entanto, que o clã Bolsonaro
angariou forte adesão, o que resulta imediatamente em ações mais autônomas e

8
Ambas as forças disputam a posição de crítica do “sistema” ou da “política”, mas a segunda só pode
fazer isso por meio do próprio sistema, isto é, como representante das funções legais do Estado,
enquanto a primeira se fia exclusivamente na sua base organizada e, sobretudo, na ameaça do uso da
força.
violentas. Esse mesmo aparato que foge dos controles políticos tradicionais é a
principal fonte da estrutura mafiosa que desafia o princípio do monopólio estatal da
violência e impõe sua regulação armada nas periferias. O que parece ser um desvio
atípico do curso normal da democratização é, de fato, a tendência geral de declínio
após o esgotamento do processo de modernização. O aparelho estatal não pode
atravessar as ondas de crise como uma unidade homogênea. Daí a impossibilidade de
que os novos polos de violência informal produzam algum tipo de ordenamento,
como ainda era o caso nas antigas ditaduras modernizadoras na América Latina. A
tendência desse conflito, pelo contrário, aponta para a ruptura da coesão social.9

O fracasso da integração na sociedade do trabalho – e, em consequência, a crise da


política - devem exigir cada vez mais medidas de emergência contra os excluídos.10 E
mesmo com um programa geral de desmonte e de repressão, o governo não pode
simplesmente avançar na direção do esvaziamento da administração da crise que
vigorou nas últimas décadas.11 Esse quadro de tensão crescente nos coloca diante de
algumas alternativas. É possível que o clã Bolsonaro e seus apoiadores nos círculos
militares e na polícia usem a crise social que se avoluma para avançar com um golpe
contra a classe política e suas instituições, o que resultaria em uma simulação
profundamente disfuncional de “ordenamento”. Para isso, contudo, faltam bases
sociais e apoio econômico. A alternativa inversa, e mais provável, é que se produza na
classe política e no empresariado – também com a ajuda de pressões externas - um
novo consenso de que é preciso afastar Bolsonaro e o setor militar que ocupou o
governo. Essa posição já é francamente majoritária no conjunto da sociedade e poderia
apenas adiar uma inevitável implosão do sistema político. Uma terceira possibilidade é
que Bolsonaro seja contido pelas instituições política e legislativa, num acordo que o
livre de investigações, e no qual o aparato de repressão e de justiça se voltaria contra
os alvos habituais como partidos e movimentos de esquerda. Faz parte desse acordo
tácito o aprofundamento das reformas e o reforço dos programas de renda mínima. Em

9
Análises nesse sentido podem ser encontradas nas contribuições da “crítica do valor” para o fenômeno
da nova direita na Europa, em especial o livro Rosemaries Babies. Die Demokratie und ihre
Rechtsradikalen. Gruppe Krisis (org.), Horlemann, 1993. Ver também, Robert Kurz, “A democracia
devora seus filhos”, Rio de Janeiro: Consequência, 2020.
10
Ver Maurilio Lima Botelho, Guerra aos “vagabundos”. Sobre os fundamentos sociais da militarização
em curso. https://blogdaboitempo.com.br/2018/03/12/guerra-aos-vagabundos-sobre-os-fundamentos-
sociais-da-militarizacao-em-curso/
11
Com metade da população ativa vivendo na informalidade ou no desemprego aberto, o Brasil conta
ainda com uma população maior que a de países como Portugal, Bélgica ou Grécia sobrevivendo quase
completamente desconectada do mercado de trabalho e do consumo de mercadorias.
uma situação como essa, até mesmo as milícias poderiam ser admitidas como uma
solução parcialmente institucionalizada para o caos nas periferias.12 Cada uma dessas
alternativas depende, é claro, da correlação de forças nas disputas em torno dos cada
vez mais limitados projetos de poder e, principalmente, do estado da crise social, que a
qualquer momento pode produzir mudanças bruscas. Em todo caso, nenhuma delas
oferece uma alternativa real à crise da integração social e da forma política.

Há de se perguntar qual o papel da esquerda no contexto de uma crise sistêmica que


torna a política inviável como instância de mediação social, já que o “ser de esquerda”
não conhece nada fora da política. Por todo lado, a frustração das massas com a política
é explorada primeiramente pela direita radical - seja ela “velha” ou “nova” - e pelas
seitas da salvação: “É verdade que o terreno ‘pós-político’ é um terreno perigoso e hoje
quase exclusivamente ocupado de modo racista e fundamentalista, mas uma crítica
emancipatória do sistema em confronto com a nova barbárie terá de passar por esse
terreno”.13 Também aqui Bolsonaro personificou as tendências de brutalização contidas
na incapacidade crescente da política em lidar com as contradições sociais e, ao mesmo
tempo, a emergência dos novos fatores pós-políticos de perturbação do espaço funcional
da regulação estatal. A oposição efetiva ao avanço do bolsonarismo permanece apenas
nas esferas internas ao sistema, seja nas tensões ainda fortes entre o modo de vida
individualizado de “classe média” e o avanço do fundamentalismo de base popular, na
oposição de setores militares ao extremismo de mercado ou na inércia do próprio
sistema político e jurídico. A esquerda pragmática e realista substituiu todos os meios
de mobilização por políticas de governo e uma vez na oposição dispõe de poucos meios
práticos para chegar às massas populares. Mesmos as políticas sociais de mercado
podem facilmente virar-se contra ela. Essa esquerda figura hoje como retaguarda de um
sistema em desagregação que criminaliza as respostas desesperadas à crise social. Os
“antifascistas”, por sua vez, ainda gostaria de ver no quadro atual o renascimento da
política, para se colocarem novamente no centro dos conflitos sociais. Em seu suposto
radicalismo, eles travam uma “luta de classes” puramente imaginária, que pressupõe um
sujeito coletivo imediatamente dado e que pode produzir a qualquer momento um
“acontecimento”. Embora lutem contra novos identitarismos e reafirmem a consciência
de classe, o próprio pertencimento de classe permanece socialmente indefinido e se

12
Ver Marcos Barreira, Para além da ocupação do território. Revista Continentes, n. 2, jan. 2013.
13
Editorial, Krisis, 1993. https://www.krisis.org/1993/krisis-13-editorial/
assemelha a uma cultura puramente identitária de nichos. Sua histórica “ênfase na
política” em uma era de impotência da política só pode levar, igualmente, à impotência
da prática social emancipatória como um todo. É por isso que as iniciativas “contra o
sistema” e de construção dos meios de ação junto aos mais afetados pela crise
permanecem um monopólio dos radicais de direita.

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