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Marcos Barreira e Maurilio Lima Botelho, A implosão do “pacto social” brasileiro. Blog Junho,
Maio/2016.
produção industrial. Ainda no contexto do arranjo conservador inaugurado no
governo Lula, a grande injeção de dinheiro público na economia para compensar a
queda no preço das exportações foi transformada pelo pensamento apologético
“progressista” em um novo modelo sustentável de desenvolvimento. O lulismo
condensou, assim, três momentos da crise da política: o deslocamento geral para a
“direita”, a redução da política a uma administração da crise social inteiramente
subordinada à lógica econômica e a tendência geral para a simulação.
Com a candidatura Bolsonaro foi criada uma resposta ainda mais conservadora e
brutal ao desmantelamento do sistema político. Ela foi capaz de alcançar todas as
camadas sociais, o que significa não só a incorporação da “classe média”,
concentrada no Centro-Sul do país, que recusou o “pacto social” lulista e, sob a
influência da operação Lava Jato, estendeu essa recusa ao sistema partidário, mas
também um modo diferente de lidar com os segmentos empresariais e com as massas
populares. O discurso de Bolsonaro apostava, em primeiro lugar, no extremismo
ideológico pró-mercado que emergiu como reação ao “protagonismo estatal” da Era
Lula. Isso vale tanto para os discursos que emanam dos mercados, quanto para a
ideologia regressiva dos setores médios individualizados e precarizados, estes novos
“empresários de si mesmos” que sonham com um capitalismo puro, “sem Estado”,
isto é, sem qualquer regulação das atividades econômicas que, pra eles, tornou-se
sinônimo de fardo burocrático. Um traço comum a ambos os discursos é que a crise,
cuja manifestação local mais aguda era visível por volta de 2014, foi reduzida desde
o início ao mero efeito da ação política, ao passo que as reformas de mercado
apareciam como um retorno à “normalidade” do capitalismo.2 Com o fator novo da
pandemia, que encontra um país marcado pelos cortes nos serviços básicos e
políticas públicas desmontadas, esse antirrealismo é agravado. Ao mesmo tempo em
que se pretende estender aos idosos e debilitados a lógica do darwinismo social que
já atinge os pobres e derrotados na concorrência, o governo tenta atribuir o
agravamento da crise aos governadores para reforçar sua base de apoio.
Ao contrário de Lula, que construiu sua base eleitoral em acordos com as elites e
com os partidos que garantiam a estabilidade política, tendo nas camadas populares
apenas uma base passiva, Bolsonaro chega ao governo com um apoio bem mais ativo
não só nas camadas médias tradicionais, mas igualmente na população de baixa
renda. Sua candidatura se alimentou tanto da energia dos protestos de rua “contra a
política”, quanto dos movimentos fundamentalistas protestantes de base popular, nos
quais a figura de Bolsonaro assume um status quase messiânico. Tais movimentos
ganharam corpo nas últimas décadas como formas periféricas de coesão social fora
da esfera política, o que representa uma resposta à incapacidade do Estado em lidar
com a crise nas áreas mais afetadas pela exclusão social. Eles se encaixam, assim, na
tendência geral de fuga para a fantasia religiosa como substituto ideológico das
identidades coletivas formadas no contexto da modernização das sociedades
tradicionais.3 Diante da crise social crescente, o Estado pôde oferecer apenas uma
pequena renda emergencial como simulação do consumo em massa – o que, em si
mesmo, revela o fracasso da integração social pelo trabalho -, mas que ainda estava
associada a ilusões de desenvolvimento e integração pelo consumo. Mesmo contra a
pregação ideológica dos seus apoiadores na “classe média”, o governo Bolsonaro deu
prosseguimento à gestão da crise por meio dos programas sociais de mercado, mas
sem qualquer roupagem ideológica adicional e, por assim dizer, como um último
2
Essa negação da dimensão sistêmica da crise foi, aliás, um traço recorrente do discurso econômico-
midiático desde 2009, quando as medidas “anticíclicas” eram denunciadas como uma peculiaridade
nacional puramente ideológica (isto é, “estatista”) numa suposta conjuntura global de retomada. Se a
esquerda pelo menos era capaz de enxergar a crise a partir de um quadro não exclusivamente nacional
ou “político”, a própria noção de medidas “anticíclicas”, no entanto, revela que, também aqui a sua
dimensão sistêmica foi apagada. Não surpreende, portanto, que, depois de 2015, a esquerda tenha
atribuído o agravamento da crise à ruptura com as medidas econômica dos “seus” governos.
3
Sobre este ponto ver, Ernst Lohoff, Die Exhumierung Gottes. Von der heiligen Nation zum globalen
Himmelreich. Disponível em https://www.krisis.org/2008/die-exhumierung-gottes/.
recurso. Já não se fala em inclusão na “sociedade de classe média”, nem da salvação
do capitalismo pelo consumo dos pobres. Isso, no entanto, não significa que o
governo e sua base militante tenham se rendido a uma postura pragmática. Pelo
contrário: sua aliança com as correntes fundamentalistas indica uma segunda via de
radicalização ideológica baseada na “comunidade de valores”, que a seu modo
também se volta contra o Estado.4 É claro que a maior parte da população de baixa
renda aceita as políticas sociais de mercado da Era Lula, mas, por outro lado, vê na
agenda “cultural” do PT uma ameaça aos valores do seu meio familiar e social.5
Ainda que esses movimentos tenham sido exitosos na produção de novas formas
de organização à margem da política, contra a qual travam uma guerra cultural, eles
também se tornaram ativos na esfera pública oficial, com a qual mantém uma relação
instrumental. Não por acaso, a pastora Damares Alves, ministra “da família”,
afirmou que “é o momento de a Igreja ocupar a nação... e governar”. Ou, no dizer de
outra liderança evangélica: “Nós estamos indo para a política brasileira e as portas do
inferno não prevalecerão contra a igreja do Senhor”. Por meio da aliança com o meio
evangélico popular também foi “preenchida” a ausência de uma construção
ideológica coerente nos círculos “bolsonaristas”.6 É a partir dessa radicalização
ideológica que vicejam o obscurantismo, as teorias conspiratórias e as ideias de
“seleção natural” pelo mercado. O discurso de Bolsonaro tornou-se, assim, uma
forma regressiva de “antipolítica” que mobiliza a raiva dos estrados médios contra a
“interferência” do Estado e as identidades coletivas da periferia constituídas pelo
discurso religioso.
4
“A exigência de que todos os seres humanos só possam referir-se diretamente a Deus e já não a
qualquer outra autoridade é, ao mesmo tempo, consequência e parte do desmonte da generalidade
abstrata do Estado”. Ibidem.
5
Sobre isso ver Marcos Barreira, À beira do abismo. Blog da Boitempo, 10/2018.
6
O fundamentalismo, no entanto, avança igualmente nos estratos médios, enquanto a mentalidade
individualizada típica das ideologias de “classe média” ganha força junto à população pobre que
ascendeu socialmente na Era Lula. Essas tendências estão apenas no início. Conforme o movimento
evangélico ganha as camadas médias, cresce a identificação deste com o radicalismo de mercado e a
ideia de que o governo é uma instância que apenas sobrecarrega a sociedade com impostos e contraria
crenças e valores cristãos.
mediação social para além da política, a crise da “generalidade abstrata” estatal
ganha uma forma ainda mais evidente com a fragmentação do aparato de violência.
Aqui não se trata das ideias desconexas e cambiáveis que o “bolsonarismo” dirige
aos grandes segmentos da população e sim do processo por meio do qual os próprios
atores na esfera pública (como integrantes do aparato de violência) passam a
exprimir interesses privados e concorrentes entre si, encaixando-se cada vez menos
no ponto de vista do Estado, que começa, portanto, a ser corroído também a partir do
seu interior. Isso diz respeito ao conjunto de ações - legais ou informais - que tornam
flexível o uso da violência, desde os projetos de armamento da população ou do
“excludente de ilicitude” até a formação de grupos paramilitares de agentes e ex-
agentes de segurança pública que atuam por conta própria - ainda que na maior parte
dos casos esse processo de corrosão seja acompanhado de medidas legais que
reforçam caráter repressivo do Estado. A partir daí tem início a autonomização do
aparato de violência em relação a qualquer controle político ou “civil”. O processo
de asselvajamento das relações se manifesta de modo diferenciado, conforme os
níveis de estratificação: nos meios de “classe média”, já marcados pelas tendências
de individualização e de queda, ele prolifera como uma versão especialmente
violenta da desregulação neoliberal e como gesto vazio de autoafirmação do sujeito
isolado contra o “poder do Estado”. A iniciativa individual assume então uma forma
ainda mais selvagem na qual os indivíduos socializados diretamente pela
concorrência já se preparam com armas na mão para os próximos estágios da crise.7
Nas periferias e favelas, por sua vez, constitui-se um modelo informal de regulação
armada, que funciona como uma “guerra particular” entre facções pelo controle da
economia secundária do tráfico e expõe um quadro já quase inteiramente fora do
alcance da ordem estatal. Em ambos os casos, mas de modo diferente, a crise da
mediação política explode em novos surtos de violência racista e sexista.
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Esses sujeitos da concorrência sonham com uma existência individual “livre” da regulação política
apenas para que possam adaptar-se aos novos imperativos da concorrência. A motivação para os seus
interesses privados não está mais nos grandes ou pequenos empreendimentos que “movem o mundo”,
mas apenas na sobrevivência em condições sempre mais destrutivas. Por isso, a sua forma de
consciência se torna mais violenta, como no culto às armas de fogo e nas fantasias de extermínio dos
“diferentes”.
ainda vê no Estado a defesa do conjunto dos interesses privados, Bolsonaro levou
para dentro do governo a “guerra particular” de agentes privados ilegais contra
facções rivais ou contra movimentos sociais e povos tradicionais. Assim, fica à vista
de todo o país que suas periferias e rincões já estão quase totalmente desconectadas
da normalidade política e econômica – é provável que Bolsonaro se torne
inadmissível para uma parte da nova direita de “classe média” e amante das
“instituições democráticas” devido ao caráter demasiado explicito dessa “revelação”
e não tanto pelo seu conteúdo real.
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Ambas as forças disputam a posição de crítica do “sistema” ou da “política”, mas a segunda só pode
fazer isso por meio do próprio sistema, isto é, como representante das funções legais do Estado,
enquanto a primeira se fia exclusivamente na sua base organizada e, sobretudo, na ameaça do uso da
força.
violentas. Esse mesmo aparato que foge dos controles políticos tradicionais é a
principal fonte da estrutura mafiosa que desafia o princípio do monopólio estatal da
violência e impõe sua regulação armada nas periferias. O que parece ser um desvio
atípico do curso normal da democratização é, de fato, a tendência geral de declínio
após o esgotamento do processo de modernização. O aparelho estatal não pode
atravessar as ondas de crise como uma unidade homogênea. Daí a impossibilidade de
que os novos polos de violência informal produzam algum tipo de ordenamento,
como ainda era o caso nas antigas ditaduras modernizadoras na América Latina. A
tendência desse conflito, pelo contrário, aponta para a ruptura da coesão social.9
9
Análises nesse sentido podem ser encontradas nas contribuições da “crítica do valor” para o fenômeno
da nova direita na Europa, em especial o livro Rosemaries Babies. Die Demokratie und ihre
Rechtsradikalen. Gruppe Krisis (org.), Horlemann, 1993. Ver também, Robert Kurz, “A democracia
devora seus filhos”, Rio de Janeiro: Consequência, 2020.
10
Ver Maurilio Lima Botelho, Guerra aos “vagabundos”. Sobre os fundamentos sociais da militarização
em curso. https://blogdaboitempo.com.br/2018/03/12/guerra-aos-vagabundos-sobre-os-fundamentos-
sociais-da-militarizacao-em-curso/
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Com metade da população ativa vivendo na informalidade ou no desemprego aberto, o Brasil conta
ainda com uma população maior que a de países como Portugal, Bélgica ou Grécia sobrevivendo quase
completamente desconectada do mercado de trabalho e do consumo de mercadorias.
uma situação como essa, até mesmo as milícias poderiam ser admitidas como uma
solução parcialmente institucionalizada para o caos nas periferias.12 Cada uma dessas
alternativas depende, é claro, da correlação de forças nas disputas em torno dos cada
vez mais limitados projetos de poder e, principalmente, do estado da crise social, que a
qualquer momento pode produzir mudanças bruscas. Em todo caso, nenhuma delas
oferece uma alternativa real à crise da integração social e da forma política.
12
Ver Marcos Barreira, Para além da ocupação do território. Revista Continentes, n. 2, jan. 2013.
13
Editorial, Krisis, 1993. https://www.krisis.org/1993/krisis-13-editorial/
assemelha a uma cultura puramente identitária de nichos. Sua histórica “ênfase na
política” em uma era de impotência da política só pode levar, igualmente, à impotência
da prática social emancipatória como um todo. É por isso que as iniciativas “contra o
sistema” e de construção dos meios de ação junto aos mais afetados pela crise
permanecem um monopólio dos radicais de direita.