Você está na página 1de 4

Retrocessos à vista

BLOG
Blog do Fausto Macedo
Publicidade

Por Victor Missiato*


01/02/2023 | 05h00

Victor Missiato. Foto: Inac/Divulgação


Em 2023, o Brasil irá completar dez anos das Manifestações de
Junho, que abalaram as estruturas políticas do país e deram
início a um processo de transformação profunda na relação entre
cidadania e república. Os efeitos dessa revolta ainda ressoam na
cultura política nacional e seus sentidos ainda não foram
totalmente decifrados por analistas e pelo próprio povo. A
geologia do tempo político não fica restrita à superfície dos fatos
e acontecimentos. Ainda levará um tempo para que todo o
quebra-cabeça seja montado.

2013 foi o estopim de uma revolta popular contra o início de uma


crise inflacionária que revelava o esgotamento de um ciclo
político iniciado em 1995 no governo FHC e ressignificado nos
anos do governo Lula e início do governo Dilma. Lideranças
associadas à centro-esquerda brasileira que acomodaram várias
forças políticas em um sistema de coalizão partidária que
sustentou um período de relativo crescimento econômico,
importante redistribuição social, ligeira diminuição da
desigualdade e diversas práticas de corrupção.

NEWSLETTER
Política
Receba as principais notícias e colunas sobre o cenário político
nacional, de segunda a sexta.
INSCREVER
Ao se cadastrar nas newsletters, você concorda com os Termos de Uso e Política de Privacidade.
De lá para cá, os brasileiros conviveram com tempestades
políticas em quase todos os anos. Impeachment da presidente
Dilma, duas tentativas de impeachment do presidente Temer e
um governo de tensões e caos durante o governo Bolsonaro,
também acusado de corrupção na área da educação, além das
crises ligadas ao caso Queiroz, que o desgastaram
profundamente. Somado a tudo isso, um protagonismo
exacerbado do Supremo Tribunal Federal (STF), que abriu
prerrogativas perigosas ao Estado Democrático de Direito.
Tensionada de todos os lados, a república brasileira, por outro
lado, viu nascer uma cultura de combate à corrupção que
mobilizou diversos setores da sociedade civil, fortalecendo a
imagem da Operação Lava Jato, que desnudou um dos maiores
esquemas de corrupção da História, envolvendo diversas
empreiteiras e estatais, e absorvendo quase todos os partidos
políticos, sob a liderança administrativa do Partido dos
Trabalhadores (PT). Segundo o saudoso filósofo Ruy Fausto, em
seu livro Caminhos da esquerda: elementos para uma
reconstrução (Cia. das Letras), nos governos do PT "houve um
sistema errado de poder e de administração. [...] Mais ainda: o PT
não enveredou apenas pela corrupção. Infelizmente, houve
coisas piores. Ele esteve envolvido de algum modo, que fosse o
da responsabilidade moral ou política - há alguém que ainda
duvide disso? -, em pelo menos um caso escabroso de morte
violenta (acompanhado de meia dúzia de vítimas "colaterais"): o
assassinato do prefeito Celso Daniel, de Santo André, em 2002"
(2017, p. 30-33).
A luta contra corrupção resultou em diversas prisões e
restituições financeiras por parte dos agentes políticos e
empresariais. Pela primeira vez no Brasil, a noção de justiça era
democratizada de fato, o que poderia ter fortalecido a dimensão
republicana de toda a sociedade. No entanto, falhas processuais
e elementos salvacionistas nos julgamentos eclipsaram a tal
dimensão republicana e deram ensejo para discursos anti-
lavajatistas, enfraquecendo discursos e diluindo leis que
favoreciam no combate à corrupção.

Fatos que comprovam esse enfraquecimento do combate à


corrupção começam a aparecer nesse ano que se inicia. Em seus
discursos de posse, Lula não mencionou o combate à corrupção
em nenhuma vez, demonstrando seu desprezo ao tema.
Coerentemente, uma das primeiras medidas adotadas logo no
começo do mês foi a alteração na Lei das Estatais, reabrindo a
possibilidade de ocorrer um novo "Petrolão" nos cofres públicos.
Logo em seguida, atestamos para a nomeação da ministra do
Turismo, Daniela Carneiro, que possui fortes indícios de ligação
com as milícias no Rio de Janeiro, sendo que uma das principais
bandeiras do PT foi a denúncia de envolvimento com milicianos
por parte da família Bolsonaro. É sintomático em um primeiro
mês de governo, surgirem denúncias que demonstram um laço
tão estreito entre Daniela e a milícia de Belford Roxo, na Baixada
Fluminense. Por fim, a proposta de substituição das penas
impostas às empreiteiras por construção de obras públicas sem a
presença do Ministério Público nas negociações indica outro
retrocesso no combate à corrupção, transformando decisões
jurídicas em acordos políticos.

Por conseguintes, antes de terminar o primeiro mês de governo,


sinais de alerta acendem para possíveis retrocessos na luta
contra a corrupção no Brasil, trazendo à tona a incompletude das
lutas mobilizadas em junho de 2013. Após uma década de
diversas convulsões e crises políticas, o atual governo demonstra
não compreender perfeitamente as novas exigências e perfis de
uma sociedade ainda em busca de sua cultura republicana.

*Victor Missiato, doutor em História (Unesp/Franca),


professor e pesquisador do Instituto Presbiteriano
Mackenzie, campus Tamboré
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a)
e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção
Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito
Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica

Você também pode gostar