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Instituição Federal Fluminense

Ana Paula de Morais Araújo

A ascensão do Jair Messias Bolsonaro como reflexo do


processo de redemocratização.

Macaé, Rio de Janeiro


2023
1.Resumo:
O presente texto pretende discutir acerca da ascensão e projeção
do ex-presidente Jair Bolsonaro como reflexo de uma redemocratização mal
feita. Para isso, então, utilizaremos do discurso do Bolsonaro no impeachment
da ex-presidente Dilma Roussef para analisar os principais elementos de sua
política. Então, a partir disso, faremos uma análise da importância do processo
de redemocratização para que essas ideias propagadas por Bolsonaro se
mantivessem vivas, analisando, sobretudo, a Lei da Anistia de 1979,
destacando seu papel para a ocultação e esquecimento da memória, e para a
manutenção de uma ideologia, que reaparece com Bolsonaro.

2.Introdução:
“A tua piscina ‘tá’ cheia de ratos
Tuas ideias não correspondem aos fatos

O tempo não para

Eu vejo o futuro repetir o passado

Eu vejo um museu de grandes novidades

O tempo não para, não para”

(NETO, Agenor; BRANDÃO, Arnaldo.)

A música do cantor mais conhecido como Cazuza aparece como


epígrafe do presente trabalho e se une aos inúmeros questionamentos que
vem atravessando os tantos anos de história brasileira, que se constrói de
maneira cíclica. Nos anos mais recentes vivenciamos mais uma dessas
experiências, há 59 anos atrás sofremos um golpe que nos tirou a liberdade e a
potência do ser por mais de 20 anos, e em 2018 voltamos a encarar águas
constituídas pelos mesmos elementos que achávamos que faziam parte de
uma água passada. Isso cria intrinsicamente diversos questionamentos, como
um povo oprimido se submete as mesmas opressões? Como instituições
democráticas ainda estão amarradas por seus laços autocráticos? Como a
história brasileira segue caminhando em círculos? De que forma essa ideologia
segue sendo propagada? O que dá espaço para governos como o de Jair
Bolsonaro continuarem surgindo?
Cabe a esse trabalho tentar responder tais questões. Como afirma
Burke “aqueles que não conhecem a história, estão fadados a repeti-la”. No
processo de redemocratização brasileiro existiu uma grande lacuna no que diz
a respeito a memória e a conscientização desse período, libertando criminosos
torturadores sem um julgamento que expusesse a verdade para o povo
brasileiro, não houve preocupação e seriedade nesse processo. Por isso, é
inviável retratar o governo Bolsonaro, sem relembrar o esquecimento que
gerou sua ascensão. Como um povo provido de conhecimento a respeito dos
fatos que aconteceram, validariam um deputado exaltando um torturador?
como ecoariam gritos por intervenção militar, se o povo tivesse acesso aos
inúmeros crimes cometidos? Se ocorreria ou não, não se pode afirmar, mas é
possível destrinchar como o processo irresponsável da redemocratização
brasileiro causou um espaço para que a figura do Bolsonaro fosse exaltada e
retratada como “mito”.
Por fim, devemos analisar a ideologia utilizada na ascensão do
Bolsonaro, a fim de destrinchar quais elementos que constituem o
bolsonarismo e fazem com que ele seja difundido, reproduzido e gere um
processo de grande identificação em uma grande parcela da sociedade
brasileira. Aqui, cabe entender e relacionar quais elementos dessa ideologia
são traços resultantes da falta de exposição e transição entre a ditadura militar
e democracia brasileira. Por isso, é objetivo do presente trabalho abordar os
fios condutores da campanha e da popularização do Jair Bolsonaro e identificar
a relação desses com elementos difundidos e propagados em governos da
ditadura militar, buscando entender o papel da redemocratização para a
sobrevivência de conceitos, costumes e discursos.
3.Elementos principais do bolsonarismo e de sua projeção de destaque
político
“Perderam em 64, perderam agora em 2016.
Pela família, pela inocência das crianças em
sala de aula, que o PT nunca teve, contra o
comunismo, pela nossa liberdade, contra o
Foro de São Paulo, pela memória do Coronel
Carlos Alberto Brilhante Ustra, pavor de Dilma
Roussef, pelo exército de Caxias, pelas Forças
Armadas, pelo Brasil acima de tudo, o meu
voto é sim” (Jair Bolsonaro em sua fala no
impeachment da ex-presidente Dilma Roussef)

Esse discurso do Bolsonaro traz consigo os principais elementos


de sua política e trajetória. Essas palavras foram ditas em 2016, no momento
em que votou “sim” para o impeachment de Dilma Roussef, momento em que
estava tendo um grande destaque devido sua oposição ao governo petista e
devido suas declarações polêmicas. Visto que esse discurso foi dito em um
período em que os votos, seguidos por longos discursos, estavam ganhando
grande destaque e popularidade na mídia, é possível identificar que Bolsonaro
utilizou desse discurso para apresentar elementos base de sua política, e são
esses elementos que aqui cabe serem destacados.
A primeira parte desse discurso “perderam em 64, perderam agora
em 2016” é possível identificar um dos elementos centrais que compõe sua
base política, o sentimento nostálgico com a ditadura militar e o seu desprezo
por instituições democráticas. Em sua trajetória política, Bolsonaro demonstrou
em diversas declarações e atitudes sua memória positiva com os tempos
ditatoriais, retratando com olhos saudosos os torturadores como “heróis
nacionais”, “defensores da pátria contra os comunistas guerrilheiros”, assim
como fez nesse discurso ao citar o torturador Brilhante Ustra. É possível
encarar e destrinchar essa atitude como sinal de esquecimento da história do
Brasil, a qual apaga os crimes cometidos pelo Estado brasileiro durante esse
período, desvinculando a imagem suja que existe nesses anos e revertendo
essa memória para algo positivo. Essa atitude não apenas relativiza os direitos
humanos, as instituições democráticas, que foram instaladas com tanta luta,
mas também estimula que isso também seja feito por seus apoiadores,
ocultando verdades e encorajando pessoas a questionarem se a militarização
do governo é algo realmente negativo.
Nesse primeiro momento já se observa um diálogo com um dos
elementos centrais de sua ascensão e de sua eleição, o público militar. Ao
decorrer de seus mandatos como deputado, e posteriormente sua campanha
para presidente, assim como seu primeiro mandato, uma das bases de sua
política foi os militares e a conseguinte militarização do governo. As pautas
selecionadas e defendidas por Bolsonaro sempre rondaram em volta dessa
temática e desse público, sendo esse um dos alicerces de sua figura política.
Suas declarações utilizam ideias e vocabulários que dialogam diretamente com
esse público-alvo, se tornando não apenas defensor dos militares, mas uma
figura representativa de identificação deles. Depois de quase 30 anos de
distância do poder, é encontrado novamente essa figura para os militares, e
isso será um dos fios condutores de Bolsonaro, tanto em sua campanha quanto
em seu governo, que teve o maior número de militares em posições políticas
indicadas pelo presidente e seus ministros desde os anos da ditadura militar.
Outro elemento que pode ser destacado é através da citação “Pela
família, pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve”, na
qual aparece a pauta moral que se tornou parte de um dos pilares de sua
política. Bolsonaro criou em torno de si, um movimento que tinha como parte
de um cimento ideológico um posicionamento afinado com as pautas morais,
se tornando conhecido por suas atitudes e falas contra as minorias, tendo uma
composição misógina, racista, LGBTfóbica e xenofóbica. Como afirma Mattos
(2020) acerca de Bolsonaro “Em todos os seus postos legislativos, Bolsonaro
defendeu sempre posições fascistizantes, difundindo um discurso de ódio
centrado em alguns elementos ideológicos basilares.”. Com isso, apesar de
desvalorizar as lutas por direitos igualitários e sociais, Bolsonaro encontra um
grande grupo de identificação, principalmente entre os religiosos, que
começam a ver em Bolsonaro um representante dos princípios cristãos, que
como destaca o ex presidente, teriam supostamente sido marginalizados pelos
governos petistas.
Esse sentimento de pertencimento a um grupo, a uma corrente se
torna fator preponderante para a popularidade de Bolsonaro, se tornando algo
maior inclusive que ele, um movimento idealizado e fundamentado na ideologia
bolsonarista. A ideia de pertencer a um movimento cria no bolsonarismo uma
sensação grande de identificação e submissão aos conceitos filosóficos e
sociológicos presentes nessa corrente. Isso no bolsonarismo acontece com o
respaldo do Olavo de Carvalho e as moralidades cristãs, dando certo teor
filosófico para o movimento, que será um dos elementos de sustento da
corrente ideológica. A adesão ao bolsonarismo ao mesmo que tempo que
exalta a figura do Bolsonaro, diminui a importância dele, porque é algo que vai
além de um ser, mas que representa vários.
Esse respaldo filosófico dado por Olavo de Carvalho dá a
Bolsonaro espaço para restaurar as políticas conspiratórias, camuflando um
certo negacionismo científico e certas ideias conspiratórias. Isso é visto nesse
discurso também, quando o até então deputado cita “contra o comunismo, pela
nossa liberdade”, trazendo de volta o fantasma comunista e se colocando como
figura de salvação para impedir a volta desse. Não é novidade no Brasil
discursos como esses, o perfil heroico que irá salvar a pátria está presente no
perfil político de toda história brasileira, mas, sobretudo, esse medo criado em
torno do comunismo é uma arma recorrente para chegar ao poder, visto como
exemplo nos anos de ditadura militar, em que o medo do comunismo se tornou
uma arma política para ocupar o poder e utilizar aparelhos autoritários de
repressão. Como invoca Cazuza, “eu vejo o futuro repetir o passado”. Além
disso, as teorias conspiratórias não se limitam ao anticomunismo, mas exalam
um anticientificismo, colocando em cheque a ciência, como visto ao longo de
seu primeiro mandato como presidente.
Por fim, o último elemento presente nesse discurso é a apologia à
violência presente. Para isso, não vale nem sequer citar uma única frase, mas
a maneira em que Bolsonaro discursa, as palavras insensíveis e duras, citar a
derrota da esquerda em 64, derrota que carregou tantas mortes consigo, citar
um torturador, citar a tortura da Dilma Roussef. É possível encontrar nessa
estrutura a violência que Bolsonaro carregaria pelos próximos anos como
aliado de campanha, “bandido bom, é bandido morto”, campanha pelo porte de
arma, a violência incitada contra as minorias, a forma desrespeitosa com que
lida com a imprensa, e mais tarde como ele gerenciaria a pandemia de 2020,
minimizando mortes de milhares de brasileiros. Sua trajetória política explora
essa temática e utiliza do uso da violência como melhores respostas ao
cotidiano violento das grandes cidades, se consolidando em suas declarações,
palavras vistas como autênticas, associada um perfil político “ficha limpa”,
sendo reconhecido como “mito”.
4.O espaço dado pela redemocratização para que esses elementos
fossem usados
Tendo em vistas os elementos centrais do Bolsonaro, tanto em
sua campanha quanto em seus respectivos mandatos, vale tentar responder as
perguntas incitadas no início do texto. Como um povo oprimido se submete as
mesmas opressões? Como instituições democráticas ainda estão amarradas
por seus laços autocráticos? Como a história brasileira segue caminhando em
círculos? De que forma essa ideologia segue sendo propagada? O que dá
espaço para governos como o de Jair Bolsonaro continuarem surgindo? São
questionamentos que podem ser interpretados e analisados de diversas
formas, mas que aqui usaremos a análise através do processo de
redemocratização, pós ditadura militar no Brasil.
“Art.1 É concedida anistia a todos quantos, no
período compreendido entre 02 de setembro de
1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram
crimes políticos ou conexo com estes, crimes
eleitorais, aos que tiveram seus direitos
políticos suspensos e aos servidores da
Administração Direta e Indireta, de fundações
vinculadas ao poder público, aos Servidores
dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos
Militares e aos dirigentes e representantes
sindicais, punidos com fundamento em Atos
Institucionais e Complementares” (Lei n
6.683/79)

Quando se discute acerca do período de redemocratização do


Brasil, é preciso discutir sobre como ocorreu a Lei da Anistia em 1979. Julgar
os transgressores que cometeram, abusos e violaram os direitos humanos é
uma parte importantíssima da justiça de transição. Responsabilizar esses
criminosos por seus atos serve para que futuros crimes do mesmo nível não
voltem a se repetir. Por isso, é necessário julgar, investigar, processar e punir
os crimes. Entretanto, o projeto da Lei da Anistia surgiu como ampla e geral,
libertando tanto os criminosos torturadores quanto os guerrilheiros, sendo
usada como um benefício do esquecimento, estando presente nesse projeto
uma faceta de autoanistia. (RODEGHERO, Carla).
A construção do silêncio coletivo sobre os governos criminosos e
torturadores, dá espaço para tornar a memória acerca da ditadura positiva. No
Brasil não ocorreu julgamentos e comissões da verdade nesse período de
redemocratização, não houve punição devida, nem sequer investigação.
Houve, desse modo, uma ocultação de fatos históricos para parcela da
sociedade brasileira, torturas e assassinatos foram ocultados, de maneira a por
em questionamento a existência deles. A bandeira da anistia, que inicialmente
era uma proposta vinculada a luta contra o regime, passou a ser uma
monopolização e condução da produção da história, através da estratégia do
esquecimento pelo regime autoritário. (FAUSTO, Boris) O Estado brasileiro
pouco fez para que a verdade viesse à luz, a Lei da Anistia não previa nem
justiça, nem reparação, mas sim tinha em seu cerne a ocultação da história,
dando voz apenas aos autoritários que comandaram o processo de
redemocratização.
Como afirmaria o escritor William Faulkner “O passado não está
morto e enterrado. Na verdade, ele nem mesmo é passado.” Ele é
constantemente formado a partir das percepções do presente, por isso a
importância de se construir historicamente o passado, sem cair nas tentações
do esquecimento, que iguala os opressores e os oprimidos no silêncio. É uma
memória social ativa, pontuada a partir dos problemas do presente e
diretamente ligada ao esquecimento que acessa a tradição, selecionando os
acontecimentos que devem ser esquecidos. Portanto, a anistia maior, por sua
vez, diz à respeito da anistia dos fatos, extinguindo a possibilidade de se entrar
com a ação penal, desligando o passado de forma a fazer com que os fatos
percam seu caráter criminal.
É nesse sentido que as respostas para os questionamentos
iniciais estão ligadas ao processo de redemocratização, sobretudo a Lei da
Anistia de 1979. A monopolização da memória, deixa o povo refém de
situações e ideias repetidas, a ocultação de diversos processos autocráticos,
dão espaço para que eles continuem se reproduzindo. Bolsonaro é a
materialização dessa teoria, um político que mantém vivo em sua retórica, em
suas atitudes e em sua trajetória movimentos e elementos que eram
propagados e estimulados pela ditadura. Existe uma ligação intrínseca na
política do Bolsonaro com os governos de ditadura militar e é esse processo de
ocultação da história que dá espaço para que isso seja feito e que o povo seja
refém das mesmas fórmulas utilizadas no período anterior.
O autoritarismo, a relativização dos direitos humanos, a
participação direta das forças armadas no governo, os slogans midiáticos, o
sentimento de heroísmo de salvar a pátria do comunismo, da corrupção. Todo
esse discurso presente e reproduzido na ditadura, volta a ser presente nas
falas de Bolsonaro, o não tratamento ideal com a memória mantém o povo
oprimido refém de cair nas mesmas manipulações, mantém a história brasileira
em um movimento cíclico interminável, mantém a ideologia viva para ser
propagada, mantém o espaço para que figuras políticas como Bolsonaro
continuem existindo e reproduzindo as mesmas ideias. Essa dominação e
monopolização desse processo de redemocratização, manteve o perfil
autocrático vivo nas estruturas democráticas.
5.Conclusão:
A memória coletiva de uma geração foi criada a partir da
monopolização da história pelo grupo dominante, mantendo fatos históricos
ocultos e esquecidos. A falta de conhecimento e veracidade acerca do período
militar é realidade de muitos no Brasil, que caem na falsa memória que a
ditadura militar foi um período de ouro brasileiro, com um sentimento e
necessidade de voltar aos moldes que nos custaram tanto para serem
rompidos. A chegada de Bolsonaro é justamente pelo caminho deixado livre,
pela Lei da Anistia, para que certos conceito retornassem, intensificando essa
nostalgia pelos anos de chumbo.
Os gritos por intervenção militar, o questionamento das
representações democráticas, a identificação com a relativização dos direitos
humanos é potencializada com a figura representada por Bolsonaro. A
escancarada maneira em que ele lida com suas declarações, deixando claro
seus preconceitos e seu autoritarismo, demonstram nitidamente que o fio
condutor da sua política é movido por rastros e traços que foram deixados por
meio da Lei da Anistia em 1979. O espaço permitido pela má condução da
transição para a democracia, deixaram rastros nas instituições democráticas e
na construção da memória coletiva, sendo utilizada, anos depois, como
aparelho para a ascensão e vitória do Bolsonaro.
6.Referências:
BRANDÃO, Arnaldo; NETO, Agenor. O tempo não para. [S.I]: Som Livre,
1988. 1 disco sonoro (42 min).
FALCÃO, Jadson. Referência a Brilhante Ustra abre debate sobre apologia à
tortura. A União. Disponível em< Referência a Brilhante Ustra abre debate
sobre apologia à tortura — A União - Jornal, Editora e Gráfica
(auniao.pb.gov.br)>Acesso em:08/04/2023
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 2006.
MATTOS, Marcelo. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia
burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020.
REIS, Daniel; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo. A ditadura que mudou o
Brasil: 50 anos do golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

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