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Anexo 7: Atualidades

como Eixo Organizador do


Currículo

Convênio 007/2012 – Fundação Vale/Educativa


Consultora: Dra. Regina Maria Dias Carneiro

(Versão preliminar para discussão interna)

Documento Contendo o Planejamento da Disciplina Atualidades como Eixo Organizador do


Currículo

(Abril/2012)

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Questões Atuais: Nosso tempo, O Mundo Em Que Vivemos, Nossas Vidas

A estrutura social que existe e na qual vivemos é extremamente complexa. É difícil, quase impossível
para um jovem tratá-la “em massa” e dela adquirir qualquer imagem mental. O ambiente social em
que vivemos é, além de complexo, imensamente confuso. Nas palavras do filósofo e educador
John Dewey, “somente uma mente treinada para compreender situações sociais e para reduzi-las
aos seus elementos mais simples e típicos, pode obter suficiente entendimento sobre as realidades
dessa vida e poder ver que tipo de ação, crítica e construtiva, é necessária”. E acrescenta: para
que não sejamos deixados ao sabor da tradição, dos impulsos, ou dos apelos daqueles que tem
interesses especiais ou de uma classe social específica em relação ao ambiente social, “o
treinamento para a cidadania é formal e apenas nominal, a menos que desenvolva o poder de
observação, de análise e inferência com respeito ao que caracteriza uma situação social e as
agencias através das quais ela é modificada”. (J. Dewey; The Political Writings, p.102)

Um dos objetivos principais da educação, é contribuir para o desenvolvimento da mente,


oferecendo amplas oportunidades para “pensar grande”, para usar o intelecto em sua máxima
capacidade, o que implica ser apaixonado por ideias. É muito pouco valorizar o aluno porque
busca agradar o professor ou almeja as boas notas no final de cada semestre. Consideramos ser um
ponto crucial, que representa um enorme desafio em todo o processo educativo, a seguinte
questão: como despertar no estudante o desejo de ser participante de uma ampla jornada
intelectual e sentir o trabalho e o esforço subjetivo como uma longa caminhada que contribui de
maneira decisiva para nos tornar mais íntegros e plenamente humanos.

Ao propor uma organização curricular que estabelece em sua estrutura básica um espaço e um
tempo dedicados às questões importantes que afetam os modos de vida dos seres humanos, tanto
individualmente como socialmente, aos temas que analisam e permitem refletir sobre as condições
que favorecem ou dificultam a vida coletiva, aos dilemas que confrontamos no estabelecimento
de um mundo humano que a todos inclua, a Escola da Vale assume de forma explícita e concreta
o princípio educacional original, o de que os indivíduos só podem realizar-se como humanos se
integrados socialmente como membros participantes da vida em comum, no lugar e no tempo em
que vivem.

Somos confrontados, em vários momentos de nossas vidas, com duas questões fundamentais e
sentimo-nos obrigados a lidar com elas. Tais questões podem ser formuladas da seguinte maneira:
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§ . o que pensamos de nós mesmos?

§ . o que pensamos do mundo em que vivemos?

Nossas ideias e concepções sobre essas questões, de um modo geral , desenvolvem-se


espontaneamente e são por nós incorporadas, participando da configuração de nossa identidade
e da orientação de nossas ações e comportamentos. De forma pouco consciente e pouco
reflexiva, elas são em parte herdadas e assimiladas através de nossas experiências no ambiente
em que vivemos. É assim que costumamos funcionar ordinariamente, dando conta de viver e
sobreviver tanto na esfera doméstica quanto na esfera social. Opiniões, crenças e ideias forjadas
pelo senso-comum em nosso contexto cultural e social, influenciam nossas decisões, das mais
corriqueiras às mais importantes de nossas vidas.

Como a criança que nasce do útero materno e precisa sentir o mundo para gradualmente
adaptar-se ao ambiente externo, reagindo instintivamente, experimentando o mundo que a cerca
e assim ir adquirindo e desenvolvendo habilidades que lhe permitam avançar e crescer na direção
de sua autonomia como ser humano, da mesma forma na adolescência, na juventude e ao longo
da vida adulta, fazemos de nossas experiências de todos os dias, nas circunstâncias as mais
diversas, o material com o qual operamos para adquirir e manter o equilíbrio necessário que possa
garantir a nossa sobrevivência e que nos permita conquistar uma forma de vida que julgamos mais
satisfatória, mais confortável, visando nossa adaptação e participação na vida da sociedade.

Se nossas experiências constituem o material bruto a partir do qual construímos nossas visões e
concepções de vida, direcionando nossas ações e comportamentos, quais os instrumentos e
recursos de que dispomos para operar e elaborar de maneira mais apropriada, refinada e
aprofundada, essa base a partir da qual o potencial e a riqueza da condição humana pode,
gradativamente, manifestar-se?

Sabemos que a consciência contribui enormemente para a gestão da vida. Desde as espécies
animais inferiores até nós, humanos, o papel da consciência foi decisivo para a sobrevivência e o
desenvolvimento no processo da evolução. A esse respeito, sobre o papel da experiência
consciente para o êxito da vida, vale reproduzir uma passagem do livro do neurocientista Gerald
Edelman – Wider than the Sky: The Phenomenal Gift of Consciousness:

“Imagine um animal com consciência primária na selva. Ele ouve o baixo barulho de um rugido
e, ao mesmo tempo, o vento muda e a luz começa a declinar. Ele rapidamente foge para um
lugar mais seguro. Um físico pode não ser capaz de detectar qualquer relação causal entre
esses eventos. Mas para um animal com consciência primária, apenas esse conjunto de
eventos simultâneos podem ter acompanhado uma experiência prévia que incluiu o
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aparecimento de um tigre. A consciência permitiu a integração da cena presente com a


experiência consciente da história passada do animal, e essa integração possui um valor de
sobrevivência, independente se um tigre está presente ou não. Um animal sem consciência
primária” (...) “em média, mais provavelmente terá menores chances de sobrevivência – no
mesmo ambiente é menos capaz do que o animal consciente de discriminar e planejar à luz
de eventos anteriores e presentes”. (citado por Oliver Sacks em “In the River of Consciousness”-
The New York Review of Books, Jan. 15, 2004)

Nesta passagem está colocado um ponto central e crucial para o entendimento básico dos
processos que fazem parte das experiências mentais que nos tornam mais bem preparados e mais
bem equipados para seguir no caminho da vida, na direção da realização de nossos propósitos.
Nossas experiências, que constituem o material básico de que dispomos inicialmente, precisa estar
no foco de nossa atenção e ser registrado na memória para que, em situações semelhantes ou
análogas, possa ser recuperado mentalmente e servir de referencia, orientando nossas ações.

A postura e a abordagem comparativas, que podem ocorrer de modo mais ou menos consciente e
em diferentes graus, destacam-se como um recurso fundamental para todo e qualquer processo
de conhecimento. Associando ou distinguido elementos e aspectos, pelas suas semelhanças e
pelas suas diferenças, estamos permanentemente aprendendo. Desde a experiência inicial na
aprendizagem infantil das palavras até o uso de procedimentos sofisticados, como os utilizados
pelas experiências científicas e filosóficas, a abordagem comparativa e os processos mentais de
análise e abstração, propiciados pela nossa imaginação, estão de alguma forma presentes. Fica
evidente que nesses processos existem alguns condicionantes importantes: o êxito da
aprendizagem depende em grande parte da nossa capacidade em focar nossa atenção e em
treinar, de formas variadas e constantes, a nossa memória.

Oliver Sacks, no mesmo artigo acima citado, fazendo menção à “consciência primária”, reafirma
sua eficácia e capacidade adaptativa na luta pela vida. O contínuo e dinâmico fluxo da
consciência permite, nos níveis mais elevados, a interação da percepção e da memória, do
presente e do passado, nível que de alguma forma compartilhamos com outras espécies animais. E
mais importante ainda:

“Dessa relativamente simples consciência primária, nós pulamos para a consciência


humana, com o advento da linguagem e da auto-consciência e um senso explícito
do passado e do futuro. E é isso que fornece uma continuidade temática e pessoal à
consciência de cada indivíduo. (...) Porque, diante de milhares de percepções
possíveis, são essas ( e não outras) as que me capturam? Reflexões, memórias,
associações estão por trás delas. Porque a consciência é sempre ativa e seletiva –
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carregada de sentimentos e significados unicamente nossos, informando nossas


escolhas e interfundindo nossas percepções”

Nossas experiências são nossas, marcadas pela nossa consciência pessoal e identidade.

Embora estejamos longe de entender o “mistério da consciência”, o pouco que conhecemos


permite-nos considerar, através dos resultados das pesquisas recentes da neurociência, a
significativa importância das experiências conscientemente analisadas e metódicamente
trabalhadas, para os avanços nas condições atuais da vida humana, tanto individual quanto social.

As civilizações apareceram e desenvolveram-se através da história, referenciadas à noção de que


os seres humanos são conscientes de um modo que os animais não o são. Essa é uma das principais
razões para que todas as formas de educação construídas ao longo dos tempos buscassem,
através dos mitos, das religiões, dos códigos de ética, das instituições, criar e implementar
mecanismos que tornassem possível o controle responsável das ações humanas, em acordo com as
condições sociais e os valores culturais de cada sociedade e em cada época.

Desde o início a questão importante foi a da organização da vida social. Como organizar a vida
coletiva? Como criar segurança e meios de sobrevivência para poder avançar, melhorando as
condições da vida? Tais questões apresentaram-se como fundamentais, e continuam sendo, em
grande parte, pelo desejo de, garantindo a sobrevivência, tornar a vida menos penosa, facilitar a
convivência, estabelecendo formas diversas de exercício da justiça. O estabelecimento de
organizações e instituições para reger a vida social propiciou a formação de mecanismos
reguladores da integração e de formas de exercício do poder social. Por outro lado, o
desenvolvimento das atividades intelectuais conscientes, propiciaram formas de conhecimento e
formas de expressão estética que potencializaram, através das tecnologias, das artes e das várias
formas de lazer, o poder criativo da humanidade. Para Antônio Damásio, trata-se de um impulso
homeostático que ativa como um motor, os avanços culturais. Simultaneamente, formas cada vez
mais eficazes e efetivas vão sendo inventadas para comunicar às sucessivas gerações o que já foi
conquistado e adquirido. Lembremo-nos das “centenas de pinturas complexas e milhares de
entalhes numa intricada mistura de figuras e sinais abstratos” que foram registradas há 32 mil anos
atrás, na caverna de Chauvet, em Ardèche, e há 17 mil anos na caverna de Lascaux, que mais se
parece com uma Capela Sistina, no dizer Damásio. “Temos aí, obviamente,” escreve, “a presença
de uma mente capaz de processar símbolos”. E, um pouco adiante, afirma ser difícil imaginar que o
surgimento da linguagem, a explosão de expressão artística e o refinado fabrico de ferramentas,
assim como os funerais elaborados que demonstram um tratamento especial dos mortos, pudessem
ocorrer “sem que houvesse uma preocupação explícita com a vida, uma primeira tentativa de
interpretá-la e atribuir-lhe valor, na esfera emocional, naturalmente, mas também na intelectual”. (
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Antonio Damásio; E o Cérebro criou o Homem, pp. 351-52) São o testemunho da precoce
manifestação do espírito criador e artístico dos humanos desde a sua origem remota.

Aqui estamos de volta com as duas questões iniciais. O que pensamos de nós mesmos? O que
pensamos do mundo, do nosso tempo? São questões que acompanham a vida humana desde
suas manifestações mais primitivas. São questões originadas pelo aparecimento de uma
consciência autobiográfica que surgiu na mente e desencadeou o fenômeno social que
chamamos cultura – “uma revolução biológica” nas palavras de Damásio.

“A mente consciente dos humanos, munida com esses tipos complexos de self e
apoiada por capacidades ainda maiores de memória, raciocínio e linguagem,
engendra os instrumentos da cultura e abre caminho para novos modos de
homeostase nas esferas da sociedade e da cultura. Em um salto extraordinário, a
homeostase adquire uma extensão no espaço sociocultural. Os sistemas judiciais, as
organizações econômicas e políticas, a arte, a medicina e a tecnologia são exemplos
dos novos mecanismos de regulação.” ( A. Damásio; idem, p. 43)

A perspectiva aqui sugerida envolve um estudo, uma análise e uma reflexão sobre as condições da
vida em nossos dias que possibilite compreender o mundo em que vivemos e a vida de cada um
de nós como parte integrante de uma ampla trajetória humana. A rebeldia humana ao não aceitar
as condições e os obstáculos que a natureza nos impõe, propiciou transformações e desenvolveu
recursos que possibilitaram a criação de um mundo humano, uma paisagem que não nos é apenas
dada mas recriada, transformada. Nesse processo nem sempre os homens acertam. Novas
dificuldades e novas questões, além da persistência de velhos e antigos problemas, requerem o
nosso esforço para melhor conhecer e exigem a nossa ação esclarecida para participarmos de
forma lúcida no mundo em que vivemos.

Proposta de um campo de estudo e reflexão sobre a nossa vida e suas principais questões.

As várias formas de conhecimento geradas pelas experiências proporcionadas por cada contexto
social, possibilitaram formas de compreensão dos fenômenos da vida, do mundo, do ambiente
natural e social e suas intrínsecas conexões. Tais experiências e formas de conhecimento
constituíram-se em impulsos que deram direção à luta pela sobrevivência, ao mesmo tempo em
que ampliaram, complexificando, as condições que resultaram nas formas de organização da vida
humana e social como ela se realiza em nossos dias, no tipo de sociedade em que vivemos. Dessa
maneira, compreender quem somos e entender o mundo em que vivemos implica ter consciência
de nossas características culturais, das formas de nossas relações com os outros, de todos e
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qualquer “outro”, ter consciência da realidade que nos cerca, a mais próxima e a mais distante,
dos problemas que afetam o ambiente que nos é familiar e o que nos envolve globalmente. Em
alguma medida, vários desses aspectos estão conectados desafiando-nos a procurar esclarecer os
vínculos entre os temas e as questões que deles são expressão e que nos motivam para as
experiências intelectuais da investigação, da reflexão e das análises mais aprofundadas sobre nós
mesmos e sobre a realidade atual.

Um campo de estudo e reflexão sobre as questões atuais que reconhecidamente estão entre as
mais relevantes para a convivência social e que de forma direta afetam as nossas vidas, tanto
pessoal quanto coletiva, deve ter como principal objetivo abrir um cenário de temas e ideias no
qual os jovens possam atuar, envolvendo-os com as tarefas e as atividades intelectuais que as
ciências de uma maneira geral, a Sociologia, a Filosofia e as demais Ciências Humanas, de um
modo mais específico, propiciam e desenvolvem em suas reflexões e investigações.

O sociólogo inglês Anthony Giddens acredita que a sociologia tem um papel-chave na cultura
intelectual moderna e um lugar central dentro das ciências sociais. Tal crença sustenta-se no fato
da Sociologia ter-se originado, com as características de uma ciência do social, no contexto das
transformações que impeliram a ordem social industrial do Ocidente para longe dos modos de vida
característicos das sociedades precedentes. Desde o aparecimento da sociedade moderna a
mudança tornou-se um fenômeno permanente que chamou a atenção dos pensadores sociais,
obrigando-os a focar seu trabalho investigativo nos processos que a impulsionam e condicionam.
Esse é um tema central da sociologia: o mundo em mudança.“A sociologia tem a responsabilidade
principal”, escreve Giddens, “ de mapear as transformações que ocorreram no passado e de
delinear as linhas mais importantes de desenvolvimento que estão ocorrendo hoje em dia”. (
Giddens; Op. cit, p. IX)

Outros temas fundamentais estão relacionados, direta ou indiretamente, com esse tema central;
como é o caso da globalização da vida social. Uma transformação que teve início com os avanços
do mundo econômico, desde o desenvolvimento das trocas comerciais em nível internacional, que
aceleraram o desenvolvimento do mundo moderno, até a constituição de um mundo financeiro
que, em rede mundial e em tempo real, tornou-se um só, a vida das sociedades, a vida cultural e
mesmo a nossa, pessoal, não tem mais fronteiras. Quais as implicações desse fenômeno? Quais as
características dessas novas formas de relações sociais? O uso cotidiano da internet, o mundo das
redes sociais, a imensa ampliação dos meios de comunicação de massa, o que tudo isso traz de
configuração nova e diversa para os comportamentos e as formas das interações interpessoais, em
especial, das novas gerações?
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O estudo da relação entre cultura e sociedade, desenvolvido numa perspectiva histórico-


comparativa, assim como a análise do papel e função da socialização para a vida e os
comportamentos cotidianos – na família, na escola, nas redes sociais e, e nos vários outros
ambientes institucionais - constituem temas que nos auxiliam na compreensão dos mecanismos que
as sociedades desenvolvem para garantir a continuidade das organizações, normas e valores que
sustentam uma dada ordem social. A compreensão das convenções, das regras e dos costumes
que vigoram e orientam os comportamentos no contexto em que vivemos, deve ser acompanhada
do conhecimento de outros ambientes sociais e culturais onde predominam diferentes crenças,
valores e comportamentos. Essa aprendizagem propicia uma melhor compreensão e apreciação
da variedade cultural, despertando nossa consciência para outras formas de vida, pessoal e social.
Ao mesmo tempo, os estudos e análises comparativos, bem informados, despertam-nos para a
possibilidade de compreender de maneira mais criteriosa, os vários arranjos sociais e os diferentes
estilos e formas de vida, inclusive os nossos. Os estudos da Antropologia, das Ciências e das Artes
em geral, muito nos auxiliam nessa compreensão.

Algumas questões percebidas como prementes e que nos afetam diretamente tem requerido das
Ciências Sociais e das reflexões da Filosofia uma análise mais apurada e um conhecimento mais
aprofundado. São questões que dizem respeito à relação dos humanos com a natureza na forma
como essa relação vem se desenvolvendo. Qual o impacto humano sobre o mundo natural? Há
limites para o crescimento? Como entender o desenvolvimento sustentável? Qual o tratamento a
ser dado para as fontes de energia que movem a vida em nossa sociedade? Como equacionar o
problema da poluição e das mudanças climáticas no contexto dessas questões? Nossa saúde está
vinculada de forma direta às condições da vida social, às nossas atividades e hábitos cotidianos,
ao uso dos recursos naturais e às formas de manipulação e intervenções humanas nos processos da
produção de nossos alimentos. Como lidar com esses vários aspectos para garantirmos uma vida
saudável, uma natureza equilibrada e, ao mesmo tempo, resolver os problemas ligados à miséria e
à pobreza humanas?

Em relação às últimas questões lidamos com uma área de conhecimento ainda muito pouco
desenvolvida; o estudo da Biosfera. Tais estudos tem provocado polêmica dividindo “experts”,
honestos e bem informados, que podem discordar sobre fatos. Mas, como escreve o físico Freeman
Dyson, para além do desacordo sobre fatos, “há um outro desacordo mais profundo sobre valores”.
De maneira simplificada, podemos dizer que esse desacordo se dá em torno de duas orientações
valorativas que contrapõem, no debate, naturalistas e humanistas.
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“Os naturalistas acreditam que a natureza conhece melhor. Para eles o maior valor é o respeito
pela ordem natural das coisas.(...) Humanistas acreditam que os humanos são uma parte
essencial da natureza. Através da mentes humanas a biosfera adquiriu a capacidade de guiar
sua própria evolução e, agora, nós estamos no comando. Os humanos tem o direito de
reorganizar a natureza de tal forma que humanos e biosfera possam sobreviver e prosperar
juntos. Para ao humanistas o maior valor é a coexistência inteligente entre humanos e
natureza. Os maiores males são a guerra e a pobreza, subdesenvolvimento, doenças e a fome,
as misérias que privam as pessoas de oportunidades e limitam suas liberdades.” (F. Dyson;
“What a World!”, The New York Review of Books, Maio 15, 2003)

Vladimir Vernadsky, o grande geoquímico russo, há mais de um século já havia formulado essa
grande questão nos seguintes termos: não apenas uma biosfera mas uma “nousfera”, uma esfera
da mente, que significa uma ecologia planetária desenhada e mantida pela inteligência humana,
o que coloca pesadas responsabilidades sobre os ombros humanos. ( ver Dyson, idem)

Outras questões importantes dizem respeito mais diretamente às dificuldades nas relações entre os
indivíduos e os grupos sociais, afetando a ordem e o funcionamento da vida social. Quais as razões
e as circunstâncias em que comportamentos e atitudes sociais desviantes, de indivíduos ou grupos,
especialmente entre os jovens, passam a ser percebidos e considerados como problemáticos para
a vida social e são tratados como crime, como é o caso das questões ligadas ao uso das drogas ou
o problema da violência que afeta a segurança individual e coletiva? Qual a relação desses
problemas com a decadência das áreas urbanas, com os problemas na educação, com o
desemprego crônico? Ainda no âmbito das interações sociais: porque é difícil o exercício da
tolerância em relação às diferenças de orientações valorativas, religiosas e sexuais, às diferenças
de classe social, de gênero, de cor da pele e aos comportamentos de “tribos” socialmente
dissonantes e divergentes?

Nossas concepções derivadas do senso-comum muitas vezes são desafiadas quando raciocinamos
a partir de um outro ângulo, o do conhecimento científico e o da reflexão filosófica, metódica. Essa
diferente perspectiva de olhar e perceber as coisas e o reconhecimento de suas fundamentais
implicações para a nossa vida, foi formulada pelo filósofo e educador John Dewey, nos seguintes
termos:

“É óbvio que um mundo total, não analisado, não se submete ao controle; isto, ao contrário, é
equivalente à sujeição do homem a tudo que ocorre, como se fosse destino”. (...) “As coisas da
experiência primária são tão aprisionantes e nos absorvem de tal maneira que nós tendemos a
aceitá-las assim como são – a terra plana, o caminho do sol de leste para o oeste e a sua submersão
sob a terra. As crenças correntes em moral, religião e política, de modo similar refletem as condições
sociais nas quais se apresentam. Somente a análise mostra que as maneiras pelas quais nós
acreditamos e formamos nossas expectativas afetam imensamente o que nós acreditamos e
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esperamos. Nós descobrimos, afinal, que essas maneiras são assentadas(set), de modo quase que
lamentável, por fatores sociais, pela tradição e a influencia da educação.” (...)”Nós aprendemos, em
resumo, que as qualidades que atribuímos aos objetos devem ser imputados às nossas próprias
maneiras de experimentá-los, e que essas, por sua vez, são devidas à força das interações e dos
costumes. Esta descoberta marca uma emancipação; ela purifica e refaz os objetos de nossa direta e
primária experiência.” ( J. Dewey; Experience and Nature; pp. 14-15)

Essa grande emancipação deu-se com a descoberta, pela reflexão, do papel desempenhado pela
consciência individual das pessoas na experiência, com suas maneiras de agir, de pensar, de
desejar. (idem, p.16) Assim, as formas avançadas, mais reguladas e mais significantes da
experiência, tornam-se possíveis pelos métodos e resultados da experiência reflexiva. E essa é uma
das contribuições principais da Filosofia como exercício da mente diante das questões que nos
inquietam na busca de sentido para viver.

Para o filósofo Thomas Nagel “a matéria prima filosófica nos é fornecida diretamente pelo mundo e
por nossa relação com ele”. São temas que estão sempre voltando às nossas mentes mesmo para
aqueles que nunca leram nada sobre eles. Ao contrário das ciências a Filosofia não se desenvolve
por experimentos ou observações controladas, mas apenas pela reflexão. Também não possui
nenhum método formal de verificação embora possua procedimentos técnicos específicos
vinculados à formulação de conceitos e à análise crítica. Na visão de Nagel, a Filosofia questiona,
indaga, ensaia ideias e, através da elaboração de argumentos a favor ou contrários a elas, leva-
nos a perguntar “até que ponto nossos conceitos de fato funcionam”. Assim, para ele, a principal
ocupação da Filosofia é “questionar e entender ideias muito comuns que todos nós usamos no dia
a dia sem nem sequer refletir sobre elas”. Assim, por exemplo, aprendemos na família e na escola o
que é certo ou errado em nossos comportamentos, o que podemos ou não podemos fazer. O ato
de filosofar nos leva às perguntas: o que faz com que uma ação seja certa ou errada? E, por que
não podemos fazer certas coisas? O que deve determinar nossas ações? Como saber?

Há sempre mais de dois lados para cada questão filosófica. É, portanto, fundamental que em
primeiro lugar nos envolvamos com as questões e indagações que provocam nossa curiosidade,
aquelas que nos estimulam na direção da investigação, para que compreendendo de forma mais
apurada as perguntas que nos fazemos, possamos desenvolver uma reflexão e análise crítica
apropriadas. Só então poderemos apreciar e compreender adequadamente os argumentos das
teorias que procuram responder a tais questões e indagações. (Thomas Nagel; Uma Breve
Introdução à Filosofia, cap.1)

Podemos dizer que a Filosofia busca contribuir para nossa capacidade humana de inteligência e
consciência, refinando nossa reflexão sobre a experiência humana, tratando de analisar
criticamente os pressupostos que sustentam nossa interpretações sobre nós mesmos e do mundo
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que nos cerca.E ela procura fazer isso esclarecendo as reais possibilidades e os limites da
capacidade e condições humanas.

A experiência processada metodicamente, analisada com o auxílio de conceitos, procedimentos e


argumentos, sistematizados e articulados teoricamente, permite uma visão diferenciada e mais
solidamente fundamentada. O exemplo que ilustra a mudança de visão e perspectiva na
apreensão da realidade do mundo, propiciada pelo desenvolvimento da ciência física, foi
formulado pelo sociólogo Renan Springer nos seguintes termos:

“Quando, em 1969, o homem pisou pela primeira vez no solo lunar, houve quem não acreditasse e
houve quem se perguntasse se não era perigoso o astronauta “despencar lá de cima”. Poucas
pessoas, em nossos dias, têm dúvidas a respeito da chegada do homem à lua, e chega a ser motivo
de galhofa o fato de alguém imaginar que um astronauta pudesse cair “lá de cima”. Afinal de contas,
ao contrário do que parece, a lua não está “lá em cima”. Em se tratando do espaço, não há “lá em
cima” nem “lá em baixo”. Qualquer estudante secundarista sabe que não faz sentido pensar que um
astronauta possa cair da lua e, se o sabe, é porque também sabe que, ao contrário do que parece, a
lua não está “acima” da Terra. Mas, para saber isto, é necessário haver uma ciência que desfaça a
noção de que no espaço há “lá em cima” e “lá em baixo”. Esta ciência é a física moderna, que surgiu
somente no século XVII. Até então, o que havia era a física aristotélica e, de acordo com ela, nada
haveria de impróprio em imaginar que um homem pudesse cair da lua se algum dia lá chegasse”.

As visões e concepções que formamos da nossa realidade, da nossa interação com a natureza,
das possibilidades do futuro, precisam ser tratadas de maneira aprofundada e trabalhadas, sempre
que possível, através de atividades que possibilitam aos estudantes utilizarem os recursos e
ferramentas que as ciências e os recursos tecnológicos atuais oferecem, experimentando e
vivenciando situações desafiadoras de investigação.

Com os recursos e as experiências das análises e estudos desenvolvidos pelas ciências e pela
Filosofia, trabalhados de maneira articulada, torna-se possível a condução de um campo amplo de
temas e questões que são do interesse primordial na formação dos jovens em nossos dias,
considerando a realidade que vivenciam, suas questões pessoais, familiares e escolares, as
questões que afetam a vida da sua comunidade, da sua região, em conexão com a vida do país
e do nosso mundo.

Os procedimentos a serem utilizados para o desenvolvimento dos temas e questões, definidos em


conjunto pelos professores e pelos estudantes, a partir de um levantamento inicial dos aspectos
mais relevantes da realidade para a vida em nosso tempo, vão desde pesquisas e levantamentos
de dados na “web”, no uso da internet, discussão de artigos, filmes, documentários e reportagens
de jornais e revistas, até seminários e debates com professores das diversas disciplinas envolvidas.
Tais estudos e debates poderão gerar projetos que envolvam pesquisa de campo, “surveys”, e
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outras técnicas – como entrevistas direcionadas para a documentação de história oral - como
prática de análise e conhecimento submetidos a um maior controle e praticados de forma mais
objetiva.

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