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Autobiografia
Memórias de um Repórter
Ao Samuca
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO
O BRASILEIRO SAMUEL WAINER
1ª Parte
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
2a Parte
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
EPÍLOGO
APRESENTAÇÃO
Pinky Wainer, 1987
INTRODUÇÃO
Enquanto meu pai caminhava por São Paulo carregando suas mercadorias e
sua tristeza, minha mãe mobilizava suas enormes energias para que a família
sobrevivesse às dificuldades. Tivemos fases de aguda pobreza. Havia dias em
que faltava comida em casa, mas dona Dora sempre dava um jeito.
Entrávamos e saíamos de colégios, sempre ao sabor das oscilações
financeiras. Ninguém na minha família teve bons dentes, nossa saúde sempre
foi um tanto precária; faltava dinheiro para esses luxos. E sofremos, como
todos, as humilhações reservadas aos meninos de origem judaica. Naquela
época, anterior a Hitler, nós éramos os “assassinos de Cristo”. Nos sábados
de Aleluia, o dia da “malhação do Judas”, ficávamos à beira do pânico. Na
minha infância, praticamente todos os meus amigos eram judeus, e também
as crianças do Bom Retiro falavam iídiche. Só na adolescência eu iria
conhecer melhor o mundo exterior.
Menino, eu não mostrava nenhuma vocação especial para escrever, mas já
era apaixonado por livros. Lia o que me vinha às mãos, frequentava sebos,
fazia esforços desesperados para alimentar essa paixão. Isso me valeu um
episódio traumático aos doze anos de idade. Num dos sebos que ficavam nas
cercanias da praça da Sé, resolvi roubar um livro de Júlio Verne. A técnica
era simples: comprava-se um volume, colocava-se outro por baixo e se
tentava sair. Não percebi que estava sendo observado desde que entrara. Ao
buscar a saída, um grandalhão agarrou-me, deu-me um tapa e tomou o livro.
Trêmulo, ouvi o aviso: da próxima vez, iria parar na cadeia. Fiquei sem ler
Júlio Verne, não havia dinheiro para livros.
Essas dificuldades empurraram-me cedo para fora de casa. Aos doze anos,
fui para o Rio de Janeiro morar com um irmão, Artur. Meses depois, uma
véspera de Ano Novo judeu, voltei a São Paulo. Aos dezesseis anos,
empreendi a segunda viagem rumo ao Rio. Viajei de trem. Nos primeiros
dias, hospedei-me numa pensão, no Flamengo, onde já estavam dois de meus
irmãos. Mais tarde, dividi o aluguel de um apartamento na rua Senador
Dantas com outros estudantes da comunidade judaica. Dessa vez, eu chegara
para ficar.
Chateau D’Oex é uma cidadezinha da Suíça que fica perto de Gstaad. Em
1964, quando eu vivia o segundo exílio político, meus filhos Samuca e Bruno
estudavam numa escola francesa, La Tournelle, localizada em Chateau
D’Oex. Eu morava em Paris, mas viajava com frequência até a cidadezinha
suíça. Num dia de verão, eu lá estava com meus três filhos – Pinky, que
estudava em Paris num colégio interno, também viajara para visitar os
irmãos. De repente, Bruno, então com quatro anos, fez-me uma pergunta:
– Você não vai à missa?
Respondi que não, explicando que era judeu. E quanto a ele?, quis saber
Bruno.
– Bem, você é meio judeu e meio católico – respondi.
Ele saiu-se com uma dedução engraçada:
– Então, não preciso ficar a missa inteira, só até a metade.
Rindo, concordei, e minha filha Pinky entrou na conversa com outra
pergunta:
– Se nós somos metade judeus, de onde é que viemos?
Fiquei intrigado: por que aquela curiosidade?
– É que na escola só me perguntam isso – esclareceu Pinky.
Entendi que precisava inventar uma história. Em consequência do exílio,
meus filhos já estavam enfrentando uma crise de identidade – não se sentiam
brasileiros, nem europeus. Agora, surgia a questão da ascendência judaica.
Contei-lhes, então, uma história com cores bíblicas. Muitos séculos atrás,
ocorrera no Egito uma revolta liderada por um príncipe chamado Moisés, que
montou num cavalo branco e saiu pelo deserto à frente de uma tribo de
judeus. Ao chegar ao mar, Moisés conseguiu secá-lo e o atravessou com sua
gente. Do outro lado do mar, os judeus se espalharam por várias localidades,
cada uma era um principado. Um dos principados se chamava Bessarábia, e o
príncipe era um Wainer. Mas havia problemas: além de assolada por
fenômenos climáticos – secas, nevadas –, a Bessarábia sofria constantes
ataques de outras tribos, que culpavam os judeus por todos os males. Os
atacantes chegavam à noite, roubavam, matavam e defloravam todas as
mulheres. Numa dessas ocasiões, uma velhíssima avó Wainer foi estuprada
por 24 inimigos, todos de raças diferentes. Dessa antepassada descendíamos
todos nós. Éramos, assim, o produto de diferentes raças que se perdiam no
passado, mas éramos, sobretudo, brasileiros.
CAPÍTULO 6
No Rio de Janeiro eu iria descobrir, definitivamente, que era jornalista. Na
minha infância, mesmo no começo da adolescência, não cheguei a destacar-
me por escrever bem. Mas era imaginoso, tinha ideias, gostava de escrever.
Sobretudo sabia examinar assuntos e descrever situações com clareza.
Aprendi a redigir um pouco melhor ajudando a fazer, no Rio, o jornal da
Associação de Estudantes Israelitas. Por volta de 1933, no início da expansão
do nazismo, tive a audácia de aceitar ser responsável por uma coluna, no
Diário de Notícias, encarregada de divulgar pontos de vista da colônia
israelita. Depois colaborei com Israel Dines, pai do jornalista Alberto Dines,
na edição de um Almanaque Israelita que expunha a opinião dos judeus.
Era preciso, contudo, sobreviver – e para tanto eu tinha de somar outras
atividades à minha iniciação jornalística. Um de meus irmãos promovia
leilões populares nos pontos mais movimentados do Rio, e juntei-me a ele.
Eu era praticamente um menino, não tinha desenvoltura alguma para falar em
público, mas virei leiloeiro. Escondido por trás de enormes óculos escuros,
subia numa mesinha e ficava apregoando as qualidades dos artigos leiloados
– por exemplo, tapetes persas que de persas nada tinham. Nessa época, eu
estudava num colégio e me arrastava num curso de Farmácia que jamais
concluiria. Às vezes, um professor me reconhecia em meio a um leilão, eu
ficava constrangido. Mas não havia outra forma de ganhar dinheiro.
Enquanto sobrevivia, colecionava esporádicas incursões pela imprensa e
aguardava uma chance para dedicar-me integralmente ao jornalismo.
Nessa época, a mão do destino – sempre ela – colocou em meu caminho um
grande jornalista, Antônio de Azevedo Amaral, que se tornara conhecido nos
anos 30 graças a seus artigos num jornal chamado Gazeta de Notícias.
Procurei Azevedo Amaral para pedir-lhe um artigo a ser publicado no
Almanaque Israelita. Esse primeiro encontro desencadearia um processo de
aproximação que me colocaria lado a lado com Azevedo Amaral, em março
de 1938, numa revista chamada Diretrizes, destinada a configurar um
capítulo importante da história da imprensa brasileira. Antes disso, porém, eu
começaria a entrar num mundo do qual depois me tornaria íntimo – o mundo
das redações – pelas portas de duas publicações de vida efêmera; a Revista
Brasileira e a Revista Contemporânea.
A Revista Brasileira era uma espécie de livro editado mensalmente, com
mais de trezentas páginas. Tratava-se de uma ideia patrocinada por Antônio
Batista Pereira, genro de Rui Barbosa, e também aí minha ascendência
judaica teve seu papel. Depois de fazer uma conferência em que abordou,
entre outros, o tema do antissemitismo, Batista Pereira conversou com Wolf
Klabin, então chefe de uma família que sempre teve influência junto à
colônia. Nessa conversa, já decidido a lançar a revista, Batista Pereira pediu a
Klabin que indicasse um jovem jornalista judeu para o cargo de secretário da
redação. Klabin indicou-me. Não era fácil fazer tal revista. Ela pretendia
transformar-se numa réplica de uma publicação francesa, Le Mois, uma
revista em formato de livro que reunia alguns dos maiores jornalistas da
Europa. De novo pesou em minha decisão a audácia da raça: aceitei. A
revista não tinha data certa para sair. Além dos problemas inevitáveis que
publicações pobres costumam enfrentar para cumprir o calendário, havia a
crônica social que Batista Pereira adorava fazer. Ele se demorava quinze,
vinte dias na preparação de uma crônica sempre vazada num português
castiço, puríssimo, ainda que se tratasse da descrição de uma festa sem maior
importância em uma embaixada.
Boa parte do material publicado consistia em traduções originais do Le
Mois, mas já era importante a participação de colaboradores brasileiros, entre
os quais tinha peso especial um grupo de professores de esquerda da
Faculdade de Direito liderado por Hermes Lima, Castro Rebelo e Leônidas de
Rezende. Estávamos em 1935, um ano marcado pela ascensão das esquerdas
no Brasil, e eu simpatizava com suas bandeiras. Aos poucos, a Revista
Brasileira inclinou-se nessa direção. Mais que atividades de conteúdo
ideológico, entretanto, absorvia-me a aventura de fazer uma revista.
Eu fazia praticamente tudo. Traduzia textos do Le Mois – mal, mas
traduzia. Como os exemplares eram impressos nas oficinas de um jornal
chamado A Nação, aprendi da forma mais primitiva a marcar a tipologia,
diagramar uma página, acertar um texto. Esse aprendizado teve de ser
interrompido no dia em que Rui Batista Pereira, filho do dono, trouxe para
publicação um artigo do professor Miguel Reale, um dos ideólogos do
movimento integralista, que à época representava uma espécie de sucursal
brasileira do fascismo italiano. A revista costumava abrir-se, na área
internacional, às mais distintas correntes do pensamento político. No plano
nacional, contudo, só publicávamos textos de autores com posições
esquerdistas, ou pelo menos nitidamente democráticas. Opus-me à publicação
do artigo de Miguel Reale, convencido de que, caso concordasse, estaria
dando o sinal verde para que a publicação se convertesse em porta-voz do
movimento integralista. Preferi deixá-la. Pouco tempo depois, a Revista
Brasileira, que chegara a uma tiragem de 1.500 exemplares, saiu de
circulação.
Decidi procurar Caio Prado Júnior, dono de uma editora que mais tarde se
transformaria na atual Brasiliense, e que conhecera como colaborador da
Revista Brasileira. Propus-lhe o lançamento de uma revista nos mesmos
moldes. Caio Prado Júnior gostou da ideia e se comprometeu a comprar as
edições de dois mil exemplares e distribuí-las. Nessa época, eu sobrevivia
trabalhando como vendedor de óleos lubrificantes; era ainda impossível
dedicar-me ao jornalismo em tempo integral. Mas encontrei tempo para
reunir, em poucos dias, o grupo que lançaria, em meados de 1935, a Revista
Contemporânea, uma publicação que duraria apenas alguns meses.
O Brasil vivia um clima tipicamente pré-revolucionário. As forças
esquerdistas aglutinavam-se na Aliança Nacional Libertadora, liderada por
Luís Carlos Prestes, que retornara da União Soviética para articular o que
entraria para a História com o nome de Intentona Comunista, desencadeada
em novembro de 1935. As forças direitistas tinham como ponta de lança a
Ação Integralista Brasileira, movimento chefiado por Plínio Salgado. Era o
confronto entre as forças antifascistas e o fascismo. No meio estava o
governo de Getúlio Vargas, esperando a ocasião ideal para dar o golpe.
Eu tinha declaradas simpatias pela esquerda, mas nunca fui bem assimilado
pelo Partido Comunista e tampouco cheguei a afinar-me com sua ideologia.
De qualquer forma, meu coração pendia para a Aliança Nacional Libertadora,
uma espécie de conglomerado das forças democráticas da época. O
movimento integralista – apesar dos desfiles aparatosos que promovia, da
pesada simbologia condensada no sigma e nas camisas verdes exibidas por
seus militantes – nunca teve penetração popular, jamais foi aceito pelo
brasileiro médio. Getúlio estava atento aos pontos fracos desses dois polos, e
soube esperar o momento para golpeá-los mortalmente.
O fracasso da Intentona, em novembro, permitiu que Getúlio fechasse a
Aliança Nacional Libertadora e desencadeasse uma dura repressão aos
comunistas. Os integralistas permaneceriam em ação até 1937, quando
chegaria sua vez de sentir o peso da mão do governo. Enquanto durou,
naqueles agitados idos de 1935, a Revista Contemporânea alinhou-se à
esquerda e foi agressivamente antifascista. Também ali eu cuidava
praticamente de tudo, intensificando o aprendizado que iniciara na Revista
Brasileira. Um mês depois de minha saída, a Revista Contemporânea deixou
de circular.
Em sua curta existência, a Revista Contemporânea teve como traço
característico também o combate ao antissemitismo, um fenômeno que já se
manifestava de modo inquietante no Brasil, sempre estimulado pelos
integralistas. Esse fenômeno me ameaçava diretamente, mas não o combati
apenas por ser judeu – àquela altura, eu já me tornara essencialmente um
democrata, e compreendia os valores que estavam em jogo naquele delicado
momento político. Nessa época, por sinal, os condicionamentos da formação
judaica já não exerciam efeitos tão agudos sobre mim, embora não tenha sido
fácil livrar-me de certos laços. Isso só ocorreu em 1950, no meu segundo
casamento, com Isa de Sá Reis. Então, telefonei para minha mãe e informei
que decidira casar de novo. A velha Dora gostou da notícia.
– Que bom, meu filho! – alegrou-se. – E com quem?
Disse-lhe que a minha futura mulher era goy, e dona Dora encerrou a
conversa:
– Você não tem uma notícia melhor para me dar?
Com o tempo, essas resistências cessariam, até porque minha família não
tardou a dar-se conta de que eu deixara de ser um menino judeu do Bom
Retiro. Era um jornalista brasileiro, já empenhado em transformar-me em
cidadão do mundo.
Minha primeira mulher, Bluma, pertencia a um universo semelhante ao que
eu conhecera na minha infância no Bom Retiro. Nascera na Bahia, numa
família de judeus, e crescera em meio a um mundo parecido com o meu. Nós
nos casamos em 1933, eu tinha 23 anos. Éramos muito jovens. Nós nos
separamos quinze anos depois, e ela morreu em 1951. Eu a conheci quando
morei na pensão de sua mãe, no bairro do Catete, no Rio. Era uma jovem
bastante nervosa, nossa incompatibilidade de gênios era total. Mas sempre
guardei de Bluma uma doce lembrança. Era uma mulher linda, extremamente
generosa, de ótimo caráter, que dividiria comigo, durante um bom tempo,
uma das experiências mais estimulantes de minha vida – o dia a dia da
redação da revista Diretrizes. Ali, Bluma, uma mulher muito organizada, e
muito querida dos amigos que trabalhavam comigo, seria uma espécie de
secretária-geral. Seria, assim, uma testemunha privilegiada do período em
que amadureci como jornalista.
Ao sair da Revista Contemporânea, tratei de manter ligações com o
mundo da imprensa, e um desses vínculos seria Azevedo Amaral, que já
estava cego. Ele passou a ditar-me artigos que escrevia para algumas
publicações, que eu depois copidescava. Em novembro de 1937, Getúlio
Vargas decretou o Estado Novo, fechando o Congresso e todas as
organizações políticas existentes no país, inclusive o movimento
integralista. Nessa época, Azevedo Amaral convidou-me para trabalhar
com ele no lançamento de uma nova revista. Ao ouvir a proposta, reagi
como se a ideia de uma revista mensal fosse algo em gestação já há longo
tempo num canto qualquer de minha cabeça. Várias ideias estavam
elaboradas.
A ideia essencial era fazer uma revista determinada a registrar a vida
política nacional daquele momento. Parecia absurda. Afinal, não havia
Congresso, nem partidos, a censura afiava suas garras. Mas o mundo
estava às vésperas da guerra, o Brasil estivera em franco processo de
politização nos anos anteriores, e havia leitores à espera de quem
estivesse disposto a dizer, ou pelo menos tentar dizer, a verdade. Enfim,
tínhamos assunto. Azevedo Amaral achou a ideia interessante. Ele tinha
relações com a Light, e conseguiu da empresa uma subvenção mensal no
valor de dois contos de réis, um bom dinheiro para a época. A revista foi
lançada em maio de 1938, no mesmo mês em que os integralistas
cometeram seu grande erro: o ataque ao Palácio Guanabara, onde
Getúlio morava com a família. Surpreendidos pelo Estado Novo, que
pusera fim a seus desfiles enormes, arrogantes e triunfalistas, os
partidários de Plínio Salgado reagiram com o fracassado ataque ao
Palácio. Era a chance que Getúlio aguardava para assestar-lhes o golpe
final. O integralismo entrara no índex do Estado Novo, mas as forças
pró-fascismo eram ainda consideráveis no Brasil, e contavam com várias
autoridades do governo. Diretrizes tinha um poderoso inimigo a
combater.
Para fazer a capa do primeiro número, convidei o pintor Santa Rosa,
um artista de esquerda que frequentava o grupo de Cândido Portinari.
Santa Rosa fez uma capa que mostrava um olho solto no espaço, algo
surrealista, inteiramente fora dos padrões da época. Foi um sucesso. Já
àquela altura, eu reunira um grupo de alto nível, que incluía nomes mais
tarde transformados em frequentadores obrigatórios de qualquer
antologia literária. Estávamos reunidos em torno de uma ideia
extremamente romântica. Os salários eram baixos, a subvenção da Light
era insuficiente para garantir uma folha de pagamentos atraente. O
restante viria do dinheiro obtido com a venda dos exemplares. A redação
de Diretrizes funcionava numa saleta do apartamento de Azevedo
Amaral, e utilizávamos uma pequena oficina para a impressão. O ponto
de encontro do pessoal de Diretrizes era o Amarelinho, um bar na
Cinelândia, que ainda hoje resiste à passagem do tempo, com suas mesas
na calçada. Enfim, Diretrizes nasceu com todos os ingredientes para
durar pouco. Mas durou bastante. Pelo menos, o suficiente para fazer
história.
No começo, eu me limitava a escrever notas curtas, tímidas. Não me
considerava um bom redator, não conhecia a fundo o idioma, e me
retraía diante dos grandes nomes que haviam aderido à ideia. Um deles
foi Rubem Braga, meu grande amigo naquela época, que escrevia
magnificamente. Rubem criou uma seção com o título “O Homem da
Rua”, que abrigaria crônicas maravilhosas. Também juntou-se a nós
Osório Borba, um talentoso polemista pernambucano, liberal, amargo,
feroz. No primeiro número, Borba escreveu um artigo sobre a ditadura
militar do Peru. Para assegurar o equilíbrio editorial, nessa mesma
edição Azevedo Amaral assinou um artigo que elogiava o Estado Novo.
Foi só Diretrizes chegar às bancas para que a esquerda, sobretudo a
esquerda ligada ao Partido Comunista Brasileiro, descobrisse que ali
havia um filão a explorar. Já no segundo número, Diretrizes se
transformara no polo para onde convergiam os sobreviventes da
resistência à ditadura de Getúlio Vargas.
CAPÍTULO 7
O segundo número, fortemente influenciado pelos ventos da guerra que
sopravam na Europa, combatia abertamente o nazismo – uma batalha que
assumiria contornos mais agudos nos meses seguintes. Diretrizes era
submetida à censura prévia do Departamento de Imprensa e Propaganda, o
DIP, encarregado de forjar e preservar uma imagem positiva do Estado Novo.
Tratei de adotar certas cautelas. A composição do conselho diretor da revista,
montado depois da constatação de que a existência de Diretrizes não seria
efêmera, é uma prova desses cuidados. Nele, figuravam nomes como
Astrogildo Pereira, um dos fundadores do PCB, e Graciliano Ramos, um
opositor histórico do Estado Novo. Mas ali também estava, por exemplo, a
poetisa Adalgisa Nery, casada com Lourival Fontes, o todo-poderoso chefe
do DIP. Adalgisa, uma linda mulher, escrevia textos muito interessantes, não
era preciso ser indulgente para publicá-los. Mas o fato de ser casada com
Lourival Fontes, naturalmente, valorizava sua presença na redação de
Diretrizes e oferecia à revista algum tipo de segurança.
O sucesso de Diretrizes tornou-se evidente na segunda edição, que se
esgotou nas bancas. Então, juntou-se ao grupo Jorge Amado, àquela época
um romancista principiante. Pouco depois, a redação da revista já se tornara
ponto de convergência de escritores brilhantes. Além de Jorge Amado, ali
estavam, por exemplo, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de
Queiroz e Aníbal Machado. A meu convite, aliás, os cinco escreveram a dez
mãos uma novela com o título Brandão Entre o Mar e o Amor, publicada em
forma de folhetim e depois editada pela Editora Martins. Também em
Diretrizes, sempre em forma de folhetim, Jorge Amado escreveu O ABC de
Castro Alves. Mas essa é outra história, que vale mencionar para ilustrar a
criatividade de Diretrizes. Mais importante, contudo, é examinar a
importância da revista na história do jornalismo no Brasil. Nesse aspecto,
foram muitas e relevantes as contribuições de Diretrizes.
Num dos primeiros números, por exemplo, tive a ideia de envolver
Azevedo Amaral numa manobra destinada a quebrar o silêncio imposto pela
censura do DIP a notícias e comentários sobre a guerra civil espanhola,
iniciada em 1936 e encerrada em 1939. Azevedo Amaral era considerado o
maior comentarista internacional da imprensa brasileira, e consegui
convencê-lo a escrever uma reportagem intitulada “A verdade sobre a guerra
da Espanha”. Até então, a censura promovida pelo DIP procurava transmitir a
versão de que, desde o início da conflagração, não houvera a menor
resistência popular ao avanço das tropas do general Francisco Franco.
Evidentemente, isso era falso. A falsidade dessa versão ficava transparente na
reportagem de Azevedo Amaral, que só foi publicada porque o autor tinha
estreitas ligações com o DIP. A edição que trazia a reportagem também se
esgotou, mas aí começariam a aguçar-se nossos problemas com a censura. O
DIP desconfiou, com razão, de que ali havia o dedo da esquerda. Também
Azevedo Amaral notou que aquele grupo de jovens jornalistas merecia mais
vigilância. De seu lado, a esquerda percebeu que era o momento de influir de
modo mais decisivo nos rumos de Diretrizes.
Publicada a reportagem sobre a guerra civil espanhola, chegou de
Pernambuco, decidido a agregar-se à redação, o jornalista Octávio Malta,
uma figura já lendária na imprensa brasileira. Em 1932, ele chefiara uma
greve de jornalistas. Em 1935, trabalhara no jornal A Manhã, influente porta-
voz da esquerda, como secretário de redação. Malta, um grande editorialista,
passou a cuidar dos textos que traduziam a opinião da revista. Depois de ter
sido redator-chefe na primeira etapa de Diretrizes, eu já era diretor de
redação, mas deixei por conta do Malta o controle do conteúdo dos editoriais.
Eu cuidava, sobretudo, do aspecto formal da revista. Incansável leitor de
publicações estrangeiras, procurava absorver inovações gráficas, fazia títulos
ousados, modificava com arrojo a diagramação das páginas. Evidentemente,
também interferia no conteúdo das reportagens publicadas por Diretrizes.
Mas não compreendia, ou não queria compreender, que a linha editorial da
revista estava atendendo a outros interesses. Só vinte anos mais tarde Octávio
Malta me faria uma revelação da maior importância: ele fora enviado para o
Rio com a incumbência de assegurar para o PCB o controle de Diretrizes.
Essa miopia política, que me ofuscava a visão de coisas óbvias como a
presença do PCB no cotidiano de Diretrizes, tem causas facilmente
identificáveis. Eu estava deslumbrado com a constatação de que tivera acesso
ao clube dos intelectuais de esquerda. Subitamente, surpreendera-me amigo
de intelectuais como Jorge Amado, Zé Lins, Graciliano, Rachel de Queiroz,
José Américo de Almeida, Érico Veríssimo. Participava de rodas animadas
pelas músicas de Dorival Caymmi, que chegara ao grupo pelas mãos de seu
amigo Jorge Amado. Sentia-me honradíssimo por tantos privilégios. Ter a
companhia de Octávio Malta, assim, era um motivo de orgulho
suficientemente poderoso para fechar-me a vista a certas evidências. Malta
era uma figura extraordinária, sempre seríamos amigos.
Nessa época, revi Carlos Lacerda. Eu o conhecera em 1935, quando o
Brasil vivia uma fase de intensa efervescência política, e Lacerda – um jovem
magro, de aparência ascética e oratória brilhante – era um dos heróis da
esquerda. A ele coubera a honra de ler o manifesto de Luís Carlos Prestes na
cerimônia de lançamento da Aliança Nacional Libertadora. Numa noite, eu
estava jantando no restaurante Reis, apelidado de “Meia Porção” por seus
frequentadores, que ficava perto da esquina da avenida Rio Branco com a rua
Almirante Barroso. De repente, Carlos Lacerda aparece e senta-se à nossa
mesa. Fiquei comovido. Eu já fizera a Revista Brasileira e a Revista
Contemporânea, mas sentia-me um ilustre desconhecido comparado às
celebridades que começava a conhecer. E Lacerda era um dos meus grandes
ídolos.
Ele sentou-se, olhou-me e perguntou quem eu era. A pergunta veio num
tom arrogante. Apresentei-me. Então, ele se lembrou de algumas reportagens
que eu fizera e elogiou-me: “Você fez um belo trabalho”, disse. “Fique
conosco, você vai longe”. Estremeci de emoção. Pouco tempo depois, houve
o episódio da Intentona, e perdi Carlos Lacerda de vista. Ele se escondeu na
Bahia e esperou pelo momento do regresso. Em 1938, de volta ao Rio de
Janeiro, juntou-se ao grupo de Diretrizes. Costumávamos visitá-lo num sítio
em que vivia semiclandestino, ouvíamos com certa contrição o que ele dizia.
Cuidávamos de sua sobrevivência levando-lhe dinheiro, mantimentos. Fui
muitas vezes ao sítio em companhia do jornalista Moacir Werneck de Castro,
primo de Lacerda e uma das figuras mais importantes da história de
Diretrizes. Depois, Carlos Lacerda começou a fazer palestras e conferências.
Continuamos a ajudá-lo: lembro-me de muitas noites em que saí à sua
procura para levar-lhe algum dinheiro. A ruptura entre nós só se daria mais
tarde – e seria violenta.
A publicação da reportagem sobre a guerra civil espanhola alertou Azevedo
Amaral para os riscos contidos na convivência com a redação de Diretrizes.
Ele me chamou para comunicar sua insatisfação e informar que deixaria a
revista. Fizemos um acordo. Ele ficaria com os dois contos da Light, eu com
o título. Numa tentativa de rescisão civilizada, acertamos que ele continuaria
a assinar a principal reportagem internacional da revista. A busca de um
desquite amigável resultaria inútil. Quinze dias depois, naturalmente valendo-
se da verba da Light, Azevedo Amaral lançou uma revista chamada Novas
Diretrizes, abertamente patrocinada pelo DIP. E em franca oposição à nossa.
Em contrapartida, estávamos livres para fazer a revista que imaginávamos
adequada ao Brasil daquele momento.
Tal liberdade era relativa, na medida em que sofríamos, como já ressalvei, a
influência do Partido Comunista, cujos líderes exerciam um forte fascínio
sobre o jovem que eu era. Certa vez, ainda em 1938, fui levado ao encontro
de Osvaldo Costa, um dos mitos do PCB. Emocionei-me ao encontrá-lo num
quarto escuro de um prédio no Largo do Machado, no bairro do Catete. Ele
folheou a revista, fez alguns elogios e recomendou-me que mantivesse a
mesma linha que vinha seguindo. Diretrizes, segundo Osvaldo Costa, não
deveria tornar-se porta-voz do PCB; o correto era defender a formação de
uma frente política que unisse as forças democráticas. A formação de tais
frentes, por sinal, era defendida naquela época por comunistas do mundo
inteiro.
Esses vínculos com os comunistas, que tinham como corolário uma franca
simpatia pela União Soviética, exerceriam um efeito paralisante sobre
Diretrizes em agosto de 1939, quando Hitler e Stálin assinaram o célebre
pacto de não agressão entre alemães e russos. Para a redação, aquilo
representou um desastre moral. Até então, adotávamos uma linha
abertamente antinazista e antifascista. Com a assinatura do pacto, ficamos
perplexos. Como sair daquele impasse? Reunimo-nos para debater a questão,
mas não havia solução possível. Os comunistas, sempre disciplinados, tinham
de apoiar o que Stálin decidira. Como eu era controlado pelos comunistas da
redação, acabei concordando. Foi a fase mais difícil vivida por Diretrizes.
Seis meses antes da ruptura do pacto pelos alemães, em junho de 1941, dei
meu grito de independência, ao mandar fazer uma série de reportagens sobre
as possibilidades de a guerra envolver a Inglaterra, retomando a antiga linha
francamente antinazista. Os comunistas tentaram pressionar-me, continuavam
presos aos termos do pacto de não agressão. As pressões só cessariam quando
a Alemanha invadiu a União Soviética.
Descontada essa fase, Diretrizes foi sempre coerente no combate aos
nazistas e seus aliados. Para evitar problemas, agíamos como se o Estado
Novo não existisse – nossos inimigos estavam todos no exterior. A tática
funcionou, até que o governo brasileiro começou a inclinar-se pela
Alemanha. Em fins de 1938, decidi fazer uma edição inteiramente dedicada à
amizade entre os Estados Unidos e o Brasil, com Franklin Roosevelt e
Getúlio juntos, na capa. A revista estava pronta quando fui chamado ao
Ministério da Guerra. Assustei-me. O Ministério da Guerra era o terror dos
jornalistas de oposição: muitos dos que eram convocados àquele prédio, no
Campo de Santana, dali seguiam direto para alguma cadeia.
Fui recebido pelo major Afonso de Carvalho, chefe de gabinete do ministro
Eurico Dutra. Esse major era uma sinistra figura, ostensivamente fascista. Foi
meu primeiro contato direto com agentes da repressão política. Até então, eu
me limitava a levar textos ao DIP, onde esperava humildemente, às vezes
durante horas, que algum censor me atendesse. Agora, eu estava frente a
frente com um dos mais temidos servidores da ditadura. Em tom de voz
histérico, o major Afonso de Carvalho apontou para um exemplar de
Diretrizes colocado sobre sua mesa e informou que a edição não poderia
circular. “Ela contraria a política externa brasileira”, disse o major.
Argumentei que a foto de capa era uma prova de que o Brasil e os Estados
Unidos eram amigos. Ele colocou um dedo sobre a figura do Roosevelt e
comunicou-me:
– Tira esse que a revista sai.
Fui para a redação e troquei imediatamente a capa, tendo o cuidado de
guardar alguns exemplares para a história. Os textos não foram modificados,
mas Roosevelt teve de ser banido.
Voltei ao gabinete do major Afonso de Carvalho em novembro de 1939,
quando preparava o lançamento de uma edição especial sobre o
cinquentenário da Proclamação da República. A capa, desta vez, trazia a
figura de Benjamin Constant, um dos líderes do movimento que derrubou a
monarquia. Tratava-se de um truque para driblar a vigilância do governo.
Naquela época, o Exército brasileiro estava dividido em dois grupos,
“constantistas” e “deodoristas”. Os constantistas, fiéis às teses de Benjamin
Constant, eram pacíficos, democratas e simpáticos aos Aliados. Os
deodoristas, que cultivavam a imagem do marechal Deodoro da Fonseca, o
“Marechal da Espada”, eram marciais, agressivos e, àquela altura, haviam
aderido às teses fascistas. No Ministério da Guerra, o major Afonso de
Carvalho deu um recado curto e grosso:
– Esse número não vai sair porque vocês são traidores da pátria.
Simulei perplexidade, e o major voltou ao ataque. Informou-me que
Benjamin Constant inoculara o germe pacifista no organismo do Exército, e
que isso era imperdoável.
– Um exército não pode ser pacifista – exaltou-se Afonso de Carvalho.
Então, novamente, apontou-me a saída: a revista só circularia se trouxesse
na capa a figura do marechal Deodoro da Fonseca. Agradeci-lhe as
informações históricas, afirmei que tudo não passara de um mal-entendido e
corri de volta à redação. A edição do cinquentenário da Proclamação da
República saiu com o marechal Deodoro na capa, junto a Benjamin Constant.
CAPÍTULO 8
O nazismo e o fascismo encontraram defensores nas Forças Armadas e no
governo brasileiro, mas jamais se fixaram junto à população. Tampouco
conquistaram muitos adeptos entre as classes dirigentes, até porque a cultura
germânica nunca teve, no processo da formação cultural brasileira, a
influência da cultura inglesa ou francesa. Além do mais, o Brasil foi durante
muito tempo, na prática, uma colônia britânica. Graças a esses fatores, a linha
antifascista e antinazista de Diretrizes era vista com simpatia. O brasileiro
médio não nos considerava comunistas; para ele, a revista defendia causas
justas, democráticas.
A situação se agravou em junho de 1940, quando Getúlio Vargas, a bordo
do couraçado Minas Gerais, fez o histórico discurso com o qual praticamente
formalizava a adesão do Brasil ao bloco liderado pela Alemanha. O discurso
continha a frase que ficaria famosa: “Novas forças se erguem no mundo
ocidental.” O texto era elíptico, mas deixou evidente de que lado se
encontrava o ditador. A França fora invadida, a União Soviética parecia
acuada, a Inglaterra estava na iminência de ser invadida. Nós nos sentíamos
perdidos, mas não perdemos a disposição de reagir. Nessa época, fizemos
uma edição dedicada à França. Era uma forma de resistência.
Até o discurso no Minas Gerais, havia simpatizantes dos Aliados em altos
postos do governo, e o grupo de militares antifascistas era numeroso. A partir
dali, o Exército passou a ser inteiramente controlado por germanófilos, e os
dissidentes do governo silenciaram. A redação de Diretrizes saiu à procura de
assuntos que, sem criar problemas graves com o Estado Novo, deixassem
claro que continuávamos a seguir a mesma linha de sempre, favorável aos
Aliados. Descobrimos, então, o filão do nacionalismo, que se tornaria um
capítulo de extrema relevância na história de Diretrizes.
Desencadeamos a campanha da nacionalização do sul do Brasil, abrigo da
lendária Quinta Coluna. A Quinta Coluna seria um agrupamento de
imigrantes alemães e brasileiros traidores, dedicados a trabalhos de
espionagem e sabotagem. O sul do Brasil, naquela época, estava virtualmente
ocupado pela colônia alemã. As cidades tinham nomes alemães, não se falava
português nas ruas, as crianças aprendiam na escola a falar exclusivamente o
idioma alemão. A campanha tinha o apoio do general Cordeiro de Farias,
então interventor do Rio Grande do Sul, mas o ministro da Justiça, Francisco
Campos, tentou proibi-la. Foi uma tentativa inútil. As teses nacionalistas
defendidas por Diretrizes já haviam sido encampadas pelo Exército e por
homens do governo. Mais tarde, quando o Brasil já se engajara na causa dos
Aliados, Getúlio Vargas adotaria providências drásticas para devolver à
cultura brasileira o sul do país.
No final de 1940, Diretrizes já se transformara numa revista moderna e,
apesar de suas dimensões modestas, bastante influente. Embora a tiragem
oscilasse entre quatro e cinco mil exemplares, a repercussão das reportagens
que publicávamos era grande. Textos políticos eram o prato de resistência da
revista, mas também tratávamos com competência de assuntos de outras
áreas. Haviam sido criadas seções de humor, publicávamos charges, questões
literárias importantes eram debatidas nas páginas de Diretrizes. O grupo de
colaboradores aumentara, outros nomes de prestígio haviam se juntado a nós.
O problema da falta de recursos, porém, continuava presente. Conseguimos
ampliar o volume de anúncios, mas ainda faltava dinheiro. Achei que chegara
a hora de procurar algum capitalista que nos ajudasse.
Depois de examinarmos vários nomes, eu e Rubem Braga nos fixamos num
paulista chamado Maurício Goulart, que participara de todos os grandes
eventos políticos importantes desde a Revolução de 1930. Goulart era um
homem extremamente simpático, muito ligado ao grupo que, em 1945, criaria
a União Democrática Nacional. Marcamos um encontro num bar da Lapa.
Rubem e eu expusemos nossos problemas e planos a Maurício Goulart. Ele
logo se entusiasmou com a ideia e aceitou investir cem contos de réis – uma
fortuna – em Diretrizes. Com esse dinheiro, resolvemos transformá-la em
revista semanal.
O sucesso foi imediato. A tiragem logo alcançaria a marca de vinte mil
exemplares, bastante alta para os padrões da época. Os ventos gerados pelos
conflitos na Europa começaram, afinal, a soprar a nosso favor. Homens do
governo pressentiram que os Aliados poderiam ganhar a guerra e passaram a
pressionar Getúlio Vargas. O serviço de propaganda montado pelos ingleses
abastecia-nos com informações, artigos e reportagens. Emissários americanos
intensificaram suas visitas ao Brasil, decididos a conquistar nosso país para a
causa aliada. Diretrizes se tornaria um dos polos aglutinadores desse esforço
antinazista, e essa seria uma das razões do sucesso alcançado pela revista.
Houve outras. Entre elas, uma das mais importantes foi o fato de Diretrizes já
ter consolidado, àquela altura, sua imagem de revista veiculadora de grandes
reportagens.
Uma dessas reportagens, um dos marcos da luta de Diretrizes contra o
nazifascismo e suas ramificações, chegou-me num envelope remetido do Rio
Grande do Sul. O autor, numa linguagem típica de jornalista de província,
pedia-me cerimoniosamente que me desse o trabalho de ler o que escrevera.
Esse texto hoje figura em qualquer antologia das grandes reportagens já
publicadas no Brasil. O título – “Como era verde o meu Brasil” – indicava,
com fina ironia, o assunto abordado. Inspirado no título de um romance
famoso – Como Era Verde o Meu Vale, de Richard Llewellyn –, o repórter
aludia ao verde das camisas dos integralistas. Essa reportagem, uma vigorosa
denúncia de infiltração de agentes e simpatizantes do nazismo no sul do país,
revelaria o talento de um jornalista que logo ficaria conhecido nacionalmente:
Justino Martins.
Justino, que mais tarde se tornaria diretor da revista Manchete, cargo que
ocupou durante muitos anos, trabalhava na Livraria do Globo, em Porto
Alegre. Ele tivera acesso a um relatório do chefe de polícia do Rio Grande do
Sul sobre as atividades da Quinta Coluna e nele baseara sua reportagem. O
assunto não figurava no índex do DIP, e Justino pôde explorá-lo em outras
reportagens, sempre com títulos fortes: “A infiltração integralista no
professorado”, “Dancei um Tango com a Gestapo”. Como os jornais se
comportavam com timidez diante do assunto, as denúncias de Diretrizes
tiveram enorme repercussão.
Outra reportagem antológica teve o título de “Grã-finos em São Paulo” e,
como autor, Joel Silveira. Joel, um dos grandes nomes da história da
reportagem no Brasil, começou a projetar-se com esse texto. A ideia nascera
numa noite em que o pintor Di Cavalcanti, também ligado ao grupo de
Diretrizes, contou-me numerosos casos e incidentes envolvendo personagens
da alta sociedade paulista. Di Cavalcanti frequentava esse meio, era um
observador sagaz e um ótimo contador de histórias. Pensei comigo: isso dá
uma ótima reportagem, e o homem para fazê-la é Joel Silveira. Joel escrevia
muito bem, sabia descrever situações com deliciosa ironia. Ele viajou para
São Paulo acompanhado de Di Cavalcanti. Ao voltar, trazia uma reportagem
que faria furor. Foi a primeira vez na história do jornalismo brasileiro que
uma publicação teve de tirar três edições sucessivas.
Estimulado pela onda nacionalista, o governo decidiu criar, em 1941, a
Companhia Siderúrgica Nacional, que construiria a usina de Volta Redonda.
O DIP organizou uma barulhenta campanha publicitária, convidando o povo
a comprar ações. Elas se esgotaram rapidamente, e os aproveitadores de
sempre compreenderam que ali havia uma ótima fonte de lucros ilegais. O
esquema era simples. Primeiro, procurava-se um nome para uma empresa
fantasma – Companhia Siderúrgica Brasileira, Brasilminas, coisa do gênero.
Depois, botava-se na presidência um general ou almirante reformado. Em
seguida, um vendedor de ações, sempre acompanhado de algum policial,
dirigia-se à casa de alguma família de imigrantes originários da Alemanha ou
de países ligados aos germânicos – japoneses, alemães, austríacos. Àquela
altura, esses imigrantes viviam em pânico. O vendedor argumentava que
quem se recusasse a comprar ações poderia ser preso como “inimigo da
nacionalidade”. Era um golpe infalível. E, além dessa freguesia indefesa
diante de golpes desse tipo, os donos dessas siderúrgicas inexistentes tinham
a seu alcance brasileiros convencidos de que não poderia haver investimento
melhor para suas economias.
Colhi as primeiras evidências desse escândalo numa conversa com meu
irmão Marcos, um homem muito simples, quase ingênuo. Ele me disse que
estava ganhando muito dinheiro com a venda de ações de uma empresa
chamada Companhia Indústria Pesada. Pedi-lhe uma cópia dos estatutos da
empresa e logo constatei a fraude: os autores do golpe se apresentavam como
proprietários de uma mina de aço. Não se tratava de minério, já haviam
chegado ao estágio do aço. Recomendei a meu irmão que se afastasse
imediatamente daquele negócio, e comecei a apurar. Fui a uma dessas
empresas fantasmas e, poucos minutos depois, tornara-me acionista da futura
Usina Siderúrgica de Montes Claros. Havia filas de compradores, todos
alheios ao fato de que a indústria siderúrgica era monopólio do Estado. Em
poucos dias, colhi elementos para uma grande reportagem. Tive a cautela de
providenciar uma cópia de texto e então encaminhá-la ao coronel Edmundo
Macedo Soares, que à época chefiava o grupo encarregado das obras de Volta
Redonda. Macedo Soares respondeu-me com uma carta cheia de elogios ao
que considerava um trabalho patriótico. Então, publiquei a reportagem com o
título “Gângsters siderúrgicos invadem o Brasil”.
Poucas horas depois, a revista estava esgotada nas bancas. Soltamos uma
segunda edição. Em todas as cidades do país onde havia escritórios das
empresas denunciadas, registrou-se uma maciça corrida de compradores de
ações em busca de seu dinheiro. Houve quebra-quebras, multidões
enfurecidas caçavam responsáveis pela fraude. Fui prontamente chamado à
polícia e convidado a explicar de que modo obtivera elementos para a
reportagem. Mostrei ao delegado que me intimara os estatutos de uma das
empresas: as provas estavam ali. Ele me recomendou que fosse para casa e
aguardasse instruções. Fui para um hotel na Cinelândia, protegido por líderes
estudantis. Naquele mesmo dia, o DIP baixou uma ordem proibindo que a
imprensa tratasse da questão das falsas empresas siderúrgicas. Mas já era
tarde para abafar o escândalo. Graças a Diretrizes, o país fora informado dos
mecanismos da fraude e soubera que havia generais e almirantes envolvidos
no golpe. As empresas fraudulentas foram fechadas, ocorreram muitas
prisões. E a ditadura do Estado Novo, que fora no mínimo conivente com
aquilo tudo, teve sua credibilidade fortemente abalada.
Lembro-me de que, nessa época, tive um ligeiro incidente com Carlos
Lacerda. Eu caminhava pela calçada defronte ao Amarelinho, na Cinelândia,
quando alguém me abraça por trás, põe-me as mãos sobre os olhos e solta a
frase:
– Você vai ser o nosso Assis Chateaubriand.
Eu já reunira informações suficientes para concluir que Chateaubriand era
um gângster da imprensa.
– Chateaubriand é a puta que o pariu! – irritei-me.
Só então voltei-me para trás e me deparei com Carlos Lacerda. Ele parecia
desconcertado.
– O que é isso? – espantou-se. – Eu não te insultei.
Ponderei que a frase fora insultuosa.
– Isso não faz sentido – disse Lacerda. – Ser um Chateaubriand é uma
grande coisa.
Insisti em que ser comparado ao homem dos Diários Associados era uma
degradação. Separamo-nos minutos depois, num clima de evidente mal-estar.
Às vezes me pergunto até que ponto incidentes desse gênero contribuíram
para forjar e alimentar o ódio que mais tarde Carlos Lacerda descarregaria
contra mim. Mas esta é outra história, que examinaremos mais tarde.
A disposição para a denúncia e a linha nacionalista adotada por Diretrizes
conjugaram-se para fazer da revista uma pioneira também na abordagem da
questão do petróleo. Participamos ativamente da luta pela nacionalização que
resultaria na Lei 395, destinada a assegurar ao Estado a posse de toda e
qualquer jazida encontrada no subsolo. Em junho de 1939, por exemplo, fiz
uma entrevista com o general Horta Barbosa, presidente do Conselho
Nacional do Petróleo. Eu me aproximara de militares que integravam o CNP,
e frequentava a casa do coronel Ibá Meireles, genro e chefe de gabinete de
Horta Barbosa. Nessa entrevista, matéria de capa de Diretrizes, o presidente
do CNP reafirmava que havia petróleo no Brasil e que o governo estava
decidido a garantir a exclusividade do Estado na exploração das jazidas.
Horta Barbosa, habitualmente um homem tímido, retraído, mostrou-se
bastante loquaz e afirmativo em suas respostas. Ali começariam a germinar as
sementes da futura Petrobrás. Ali, também, começaria a aprofundar-se meu
interesse pela questão do petróleo, que me acompanharia por toda a vida.
No início de 1940, passou pelo Brasil um geólogo americano chamado
Glenn Rugby, ligado a empresas de prospecção. Fui entrevistá-lo. Rugby, que
ficaria famoso por ter descoberto a presença de jazidas de óleo no Alasca,
estava a caminho do Chile, convidado pelo governo daquele país para
comandar algumas prospecções. Ele me contou que, algum tempo antes,
estivera na Bahia, e fez declarações que tiveram muita ressonância. Afirmou,
em tom categórico, que o Brasil era um país petrolífero. Mais: sustentou que
havia, na Bahia, mais petróleo que no Texas. O DIP apressou-se em proibir a
publicação de novas declarações de Glenn Rugby. Interessado em prosseguir
na abordagem do assunto, fiquei à espera de alguma chance para driblar a
censura.
Pouco tempo depois, consegui junto ao CNP uma autorização para visitar a
área de prospecções na Bahia. Os técnicos americanos que dirigiam os
trabalhos foram extremamente solícitos. Deram-me todas as informações
necessárias, levaram-me a ver os poços. Fiz fotos do petróleo jorrando, e
voltei para o Rio com um material excelente. “Eu vi o petróleo brasileiro”, foi
o título da reportagem. O DIP voltou à carga e proibiu que a revista
continuasse a tocar no assunto. A proibição seria parcialmente neutralizada
por um grupo de estudantes já engajados na campanha pela nacionalização do
petróleo. Eles imprimiram milhares de folhetos que reproduziam textos das
reportagens publicadas em Diretrizes e os distribuíram pelo país.
Os repórteres de Diretrizes viviam à caça de grandes assuntos, mas pelo
menos uma vez um grande assunto enveredou redação adentro pelas próprias
pernas. Certo dia, surgiu em minha sala um general fardado, de ótima
aparência, que fez um resumo dos motivos que o haviam levado ali: “Sou o
general Dilermando de Assis, e quero que seja reparada essa injustiça que é
feita contra mim há quase quarenta anos. Quero que todos saibam da
verdade.” Levei um choque. Dilermando de Assis era o assassino do escritor
Euclides da Cunha, uma das glórias da literatura brasileira. Com o tempo,
consolidara-se a versão de que Euclides fora vítima de um atentado político.
O Partido Comunista, que virtualmente se apossara de Euclides da Cunha,
sempre contribuíra para propagar tal versão. Contestá-la seria, na visão dos
comunistas, uma heresia imperdoável. Mas compreendi que tinha à minha
frente um grande assunto.
Encaminhei Dilermando a Francisco de Assis Barbosa, um de meus
melhores entrevistadores. “Não tenho coragem”, disse Assis Barbosa, já
imaginando o impacto das declarações do assassino de Euclides. Eu o instruí
a fazer a entrevista, depois convocaríamos uma reunião para decidir como
agir. Assim, o general Dilermando de Assis pôde, finalmente, apresentar sua
versão da história – aliás, a verdadeira, como ficaria comprovado. O crime
ocorreu quando ele era um cadete de dezessete anos e vivia um romance com
a mulher de Euclides, que morava no bairro de Piedade, no Rio de Janeiro.
Os vizinhos sabiam, o próprio Euclides sabia. Num dia qualquer, espicaçado
pelo ciúme, o escritor procurou Dilermando, na casa do rival, para um acerto
de contas. Euclides atirou duas vezes; errou em ambas. Dilermando, ótimo
atirador, deu-lhe um único tiro na testa. No julgamento, o assassino foi
absolvido, entenderam que ele agira em legítima defesa. Alguns anos depois,
o filho de Euclides tentou vingar o pai e foi também fulminado com um tiro
por Dilermando.
Com a entrevista – uma bomba – nas mãos, convoquei uma reunião da
redação para decidirmos sobre o seu destino. Surpreendentemente para mim,
a maioria entendeu que a revista deveria publicá-la. Essa decisão faria
desabar sobre meus ombros a fúria do Partido Comunista – um de seus
heróis, afinal, fora ultrajado. Diretrizes foi colocada sob suspeita de estar a
serviço da ditadura, dirigentes do PCB acusaram-me de fascista, traidor.
Os dissabores provocados pela entrevista não foram poucos. Mas a edição
alcançou enorme sucesso de público, e as acusações formuladas pelos
comunistas não afetaram sua boa imagem. Estava claro que a revista chegara
à maioridade.
CAPÍTULO 9
Quando parti para o exílio, meu destino já se havia cruzado com o de dois
homens que teriam presença decisiva em minha vida: Getúlio Vargas e
Carlos Lacerda. Ainda não conhecia Vargas pessoalmente, mas era ele, a
meus olhos de jovem jornalista, a encarnação do mal, o grande adversário a
combater. Mais tarde, nós nos tornaríamos amigos íntimos. O contrário
ocorreu em relação à trajetória de Carlos Lacerda. Hoje, muitos brasileiros
recordam o ódio animal que ele dedicou a mim, suas tentativas desesperadas
de destruir-me por todos os meios, a guerra de morte que travamos. Poucos se
lembram de que fomos muito amigos nos verdes anos de Diretrizes.
A amizade estreitou-se no período em que ele viveu escondido no sítio em
Vassouras. Éramos cinco amigos solidamente unidos. Carlos Lacerda tinha a
liderança política do grupo. Jorge Amado, a liderança literária. Moacir
Werneck de Castro, primo-irmão de Carlos e intelectual de alto nível,
também integrava esse círculo completado por Rubem Braga e por mim.
Nessa época, Carlos casou-se com uma professora que morava em Valença,
Letícia, e começou a publicar artigos em Diretrizes. Pouco depois, com o
relativo abrandamento da perseguição aos envolvidos no episódio da
Intentona Comunista, ele se transferiu para um apartamento em Copacabana.
Carlos Lacerda não demorou muito tempo em Diretrizes. Talentoso, redator
brilhante e já fascinado pelo poder, aceitou um convite para trabalhar numa
revista chamada Observador Econômico e Financeiro, à época uma espécie
de Fortune brasileira, que pertencia a Valentim Bouças, representante no país
de uma empresa que seria o embrião da atual IBM. A revista era dirigida por
Olímpio Guilherme, um grande economista que seria um dos inspiradores do
DIP. Com salário bem mais compensador que o que poderíamos oferecer-lhe
em Diretrizes, Carlos mostrou-se, no começo, um bom repórter – fez um bom
levantamento, por exemplo, sobre a questão da infiltração germânica no sul
do Brasil. Mas uma dessas reportagens exerceria dramáticos efeitos sobre a
sua vida.
A revista de Valentim Bouças encomendou-lhe uma reportagem contando a
história do Partido Comunista Brasileiro, ao qual Lacerda ainda era filiado.
Carlos aproveitou-se dos laços que mantinha com comunistas militantes para
levantar informações necessárias. Ele era frequentador, por exemplo, da casa
do escritor gaúcho Álvaro Moreyra, uma maravilhosa figura de comunista,
cuja mulher, Eugênia, era igualmente fascinante. Eugênia, uma intelectual
ligada aos meios teatrais, tinha uma aparência máscula, fumava charutos,
seria uma das pioneiras do feminismo. E era, naquela época, comunista até a
medula. Na casa de Álvaro e Eugênia Moreyra, Carlos Lacerda era tratado
como um filho querido, venerado como um revolucionário romântico. Carlos
tinha na adolescência um charme enorme. Era o jovem tribuno, o líder dos
moços comunistas, filho de Maurício de Lacerda, um orador lendário da
República Velha, sobrinho de dirigentes comunistas respeitados, como Paulo
e Fernando Lacerda. Pois bem: valendo-se dessa mística e dos laços de
amizade, Carlos conseguiu de Eugênia revelações minuciosas sobre a
infraestrutura do PCB.
Lacerda também obteve informações junto a Astrogildo Pereira, um dos
fundadores do partido, além de vários militantes, e reuniu um ótimo material.
A reportagem, muito bem escrita, descia a detalhes inteiramente
desconhecidos até então, e descrevia com competência a trajetória do PCB.
Mas seus efeitos foram desastrosos. Mais tarde, Lacerda diria, em sua defesa,
que qualquer reportagem escrita por algum anticomunista seria muito mais
prejudicial ao partido. O fato é que, em consequência das revelações que
fizera, ocorreram prisões, várias células foram desbaratadas, a perseguição
aos militantes recrudesceu e registrou-se o assassinato de alguns comunistas.
Numa tarde de 1940, eu caminhava pela Cinelândia em companhia de
Moacir Werneck de Castro quando começaram a voar papéis que atraíram
nossa atenção. Apanhei um deles, li o que estava escrito e fiquei pasmo:
tratava-se de um panfleto que anunciava a expulsão de Carlos Lacerda pela
direção do PCB. No texto, ele era apresentado como traidor e acusado de
responsável, graças às delações da reportagem, pela morte de vários
militantes. Em seu livro de memórias, Lacerda conta que a notícia da
distribuição de panfletos dando conta de sua expulsão do partido lhe foi
levada por Moacir Werneck de Castro. Ele se esqueceu, ou fingiu esquecer,
de que Moacir e eu fomos juntos à sua casa, naquela mesma noite, para
mostrar-lhe o panfleto. Estávamos penalizados. Ao ler o texto, Carlos ficou
pálido, prostrado. Negou, em termos veementes, como faria até o fim de sua
vida, que tivesse tido qualquer intenção de prejudicar o partido e, no começo,
procurou fazer acreditar que o texto fosse apócrifo. Mas logo sentiria o peso
da reação dos antigos companheiros. Velhos amigos passaram a repeli-lo,
outros o marginalizaram ostensivamente, seu isolamento tornou-se completo.
Ainda naquela noite em que lhe mostrei o panfleto, convidei-o a voltar a
escrever em Diretrizes – ali, ponderei, era o seu lugar. Foi uma forma de
mostrar minha solidariedade a um amigo duramente golpeado. Carlos aceitou
fazer críticas literárias para a revista. Os comunistas da redação – e eram
muitos – reagiram com indignação, mas mantive minha posição. Mesmo
Moacir Werneck de Castro, que naquela fase era formalmente o diretor da
revista, discordou da minha decisão, embora depois acabasse por aceitá-la,
até porque era primo-irmão de Lacerda.
Carlos sofreu bastante com esse repúdio generalizado, do qual lhe ficaram
feridas que jamais cicatrizariam. Pude testemunhar alguns penosos efeitos
sobre seu comportamento provocados por esse trauma. Numa noite em que
eu estava com Bluma no apartamento onde morávamos, nas imediações da
Cinelândia, por exemplo, ouvi gritos e o som de murros e pontapés.
– Abra! Abra! – berrava uma voz que a princípio não reconheci.
Assustei-me, já passava de meia-noite, poderia ser algum policial. Abri a
porta e vi diante de mim, completamente bêbado, Carlos Lacerda.
Lacerda literalmente desabou no chão. Eu e Bluma o arrastamos para uma
cama. Ele não parava de chorar e gemer, balbuciando sempre a mesma frase:
– Mataram minha mãe, fiquei órfão.
A mãe, no caso, era o Partido Comunista Brasileiro. Nós o consolamos até
que dormisse.
Convidá-lo a voltar a escrever em Diretrizes não se revelaria uma boa ideia.
No primeiro artigo, Carlos Lacerda praticamente arrasou com o poeta Jorge
de Lima, atacando com incrível violência sua obra e sua figura. Jorge de
Lima, além de grande poeta, era um homem extremamente bondoso. Médico,
costumava tratar gratuitamente dos comunistas. As reações foram imediatas:
“Veja no que deu você trazer esse crápula aqui para dentro”, disse-me Jorge
Amado. Moacir Werneck de Castro ameaçou abandonar a revista. Resisti. O
segundo artigo, tão violento e ressentido quanto o primeiro, teve como alvo o
pintor Cândido Portinari. Moacir pediu demissão. Com o terceiro artigo,
chegou a vez de Mário de Andrade. Constatei, então, que Carlos Lacerda não
se emendara. Eu havia imaginado que, com o episódio da expulsão do PCB,
ele se tornaria mais tolerante, humilde, compreensivo. Nada disso acontecera,
e tive de ceder às evidências: comuniquei-lhe que não havia mais clima para
que ele continuasse a escrever em Diretrizes.
Esse incidente com certeza contribuiu para antecipar a ruptura que ocorreria
mais tarde – era mais uma semente do ódio que ele depois manifestaria em
relação a mim. Outro incidente seria registrado em 1943, quando começaram
a voltar ao Brasil vários brasileiros que se haviam exilado no momento mais
agudo da repressão política. Voltavam para juntar-se à luta contra o inimigo
comum, o nazifascismo que, em 1944, tropas brasileiras ajudariam a derrotar
nos campos de batalha da Europa. Nessa época, o Partido Comunista
Brasileiro estava dividido em dois grupos. Um deles, liderado por Luís Carlos
Prestes, aglutinava-se em torno de uma palavra de ordem: união
incondicional com Vargas contra o Eixo. O termo incondicional tornava
possível até mesmo a presença de integralistas. O outro grupo, reunido em
torno de Agildo Barata, defendia a formação de uma frente política, a União
Democrática Brasileira, menos abrangente. Diretrizes apoiava a tese da UDB.
Nessa época, Carlos fez uma tentativa de reaproximar-se dos comunistas,
usando como ponte seu tio Fernando Lacerda. Ele queria voltar a qualquer
preço ao antigo convívio, e Prestes fez-lhe uma exigência: a publicação de
uma carta em que Carlos apoiaria integralmente a linha da união
incondicional em torno de Vargas. Ele foi à minha procura num fim de tarde,
com a carta nas mãos.
– Samuel, preciso publicar essa carta – disse-me Carlos na redação de
Diretrizes. – Para mim, é uma questão de sobrevivência.
Respondi que tinha o maior prazer em atender a seus pedidos e comecei a
ler. Já nas primeiras linhas, compreendi que toda a argumentação ali contida
se chocava frontalmente com a orientação seguida por Diretrizes. Sugeri-lhe
que deixasse a carta comigo. Imediatamente, passei-a ao grupo de comunistas
da redação.
– Isso é com vocês; resolvam – avisei.
Nos dias seguintes, enquanto eles deliberavam, fui obrigado a tergiversar
com Carlos Lacerda. Dizia que a carta sairia num determinado número,
depois que a publicação fora adiada para a próxima edição, estava
praticamente composta na gráfica. Até que um dia resolvi contar-lhe a
verdade.
– Carlos, eu não posso publicar tua carta – informei. – Ela foi repelida por
toda a equipe.
Ele arrancou-me a carta das mãos e dirigiu-me um olhar que jamais
esqueci. Era um olhar de frustração e ódio. Virou-me as costas e saiu. Só
muitos anos depois eu voltaria a encontrá-lo. A carta acabou sendo divulgada
por uma publicação semiclandestina, chamada Revista Acadêmica. Teve
pouca repercussão.
Quando parti para o exílio, Carlos estava escrevendo no Diário Carioca.
Continuava preso à ideologia comunista, mas não fora aceito de volta ao
partido. Responsável pelo veto: Luís Carlos Prestes. Eu praticamente me
esquecera dos incidentes com Lacerda quando deixei o Brasil pela fronteira
do Rio Grande do Sul.
CAPÍTULO 11
Deixei Porto Alegre de trem, fiquei dois dias em território uruguaio e afinal
cheguei à Argentina. Estávamos em setembro de 1944 quando desembarquei
em Buenos Aires. Saí imediatamente à procura de um querido amigo: o
jornalista americano Allan Hayden, correspondente do Chicago Daily News,
que eu conhecera na redação de Diretrizes, escala obrigatória de todos os
profissionais da imprensa estrangeira de passagem pelo Brasil. Fui
carinhosamente recebido por ele e por vários outros correspondentes que
também me haviam conhecido em Diretrizes e agora estavam em Buenos
Aires. Enquanto esses amigos se mobilizavam a fim de conseguir-me o
dinheiro necessário para seguir viagem, pus-me em campo para saber o que
estava acontecendo na capital argentina.
Soube que Armando de Salles Oliveira, candidato à Presidência da
República nas eleições programadas para 1937 e frustradas pela decretação
do Estado Novo, estava lá. Muito doente, Salles Oliveira chegara do México,
decidido a morrer em seu país. Procurei-o em Buenos Aires para contar-lhe
que surgira no Brasil um movimento clandestino, já com força ponderável,
cuja bandeira era a imediata restauração da democracia. Em resumo,
conspirava-se, e muito, para a derrubada da ditadura. Salles Oliveira não
sabia disso, embora muitos conspiradores tivessem sido seus aliados em
1937. Tampouco sabia disso o correspondente da revista Time em Buenos
Aires, que se mostrou bastante interessado nessas informações, quando lhe
relatei o teor da minha conversa com Salles Oliveira. Encomendou-me uma
reportagem sobre o assunto. Recebi setecentos dólares pelo texto, o primeiro
publicado na imprensa internacional sobre a conspiração em curso no Brasil.
Allan Hayden também me encomendou seis artigos sobre a situação
política brasileira para o Chicago Daily News, pagando seiscentos dólares
pela série. Com esse dinheiro, eu já podia viajar para os Estados Unidos,
conforme meus planos originais. Mas resolvi ficar mais algum tempo em
Buenos Aires, à procura de reportagens para o jornal O Globo. Achei que um
bom assunto estava na postura do governo argentino em relação à guerra. Da
mesma forma que o Brasil, a Argentina se mostrara simpática ao Eixo
enquanto Hitler parecia perto da vitória. Em setembro de 1944, os governos
dos dois países, ambos autoritários, procuravam alguma fórmula que lhes
permitisse conservar o poder mesmo com a vitória das forças democráticas.
Era um bom tema para reportagens. Consegui, então, marcar uma entrevista
com o general Peluffo, ministro das Relações Exteriores da Argentina. Só
mais tarde pude constatar que fora uma má ideia.
Na véspera do dia da entrevista, eu enviara a Chicago o texto de uma
reportagem que denunciava a presença, em Buenos Aires, de uma Quinta
Coluna fascista, integrada também por brasileiros. Um deles, citado
nominalmente no despacho, era o correspondente dos Diários Associados,
Caio Júlio César Vieira, uma espécie de agente da ditadura brasileira junto à
ditadura argentina. Já com a atenção concentrada na reportagem para O
Globo, fui ao encontro do general Peluffo. Ao entrar na sala do ministro, vi
sobre sua mesa um cartão de apresentação que eu lhe mandara horas antes. O
general começou a despejar os conhecidos lugares-comuns sobre a amizade
entre o Brasil e a Argentina, os vínculos históricos que unem os dois países –
aquela retórica me era muito familiar. De repente, ergueu o tom de voz para
queixar-se da existência de um tipo inimigo disposto a arruinar essa amizade:
o correspondente estrangeiro.
– Vou dar-lhe um exemplo – disse. Em seguida, chamou um major que
trabalhava no gabinete. – Traga aquele despacho de que falamos hoje –
ordenou.
Quando o major voltou, fiquei em pânico: ele trazia uma cópia da
reportagem que eu enviara na véspera.
Pedi licença para examinar o despacho, o general recusou: ele mesmo faria
a leitura. Compreendi, imensamente aliviado, que o ministro não havia
associado meu nome ao do autor da reportagem. A cada pausa na leitura, ele
espumava de ódio.
– Miserável! Bandido! Vamos destruí-lo! – exclamava.
Ao terminar, enrolou a cópia, devolveu-a ao major e me fez uma exortação
final:
– Volte a seu país e conte o que ouviu aqui. Mostre que é preciso impedir de
qualquer forma que esses inimigos, traidores, sabotadores, perturbem a nossa
tradição de amizade!
Tentando aparentar tranquilidade, apanhei o cartão sobre a mesa, agradeci-
lhe a entrevista e saí. Entendi que era hora de sair de Buenos Aires – àquela
altura, Caio Júlio César Vieira com certeza já se movimentava para atirar
contra mim a polícia argentina. Mas ainda haveria uma outra coincidência.
Horas depois, quando eu jantava em companhia de Allan Hayden, chegou o
homem que meu amigo convidara a juntar-se a nós: era o mesmo major que
trouxera o despacho naquela manhã, a pedido do general Peluffo.
– Creio que já vi o senhor hoje – disse o major.
Respondi que sim.
– Então vou dar-lhe um conselho – avisou o oficial. – Vá para a estação e
tome o trem que parte à noite para o Chile. Amanhã pode ser tarde.
Caio Júlio fora ao Ministério naquela tarde, fazendo um barulho enorme,
exigindo que eu fosse localizado. Só então o general e o major se deram
conta do episódio ridículo da leitura da reportagem para o seu próprio autor.
Allan Hayden divertiu-se muito com o incidente, que mais tarde relatou numa
de suas reportagens para o jornal de Chicago. Também o major, um homem
sensível, bem-humorado, achou tudo aquilo extremamente cômico, mas
precisava conter o riso diante do chefe.
O major acompanhou-me até a estação, junto com Hayden.
– Não volte mais – recomendou-me.
Fiquei 22 dias no Chile, à espera de que me fosse concedido o visto de
entrada nos Estados Unidos. Eu tinha muitos e bons amigos também no Chile
– era bastante ligado a políticos, como os futuros presidentes González
Videla, Eduardo Frei e Salvador Allende, e poetas como Pablo Neruda e
Gabriela Mistral. Fiquei hospedado na casa de Allende, e passei a frequentar
com assiduidade o círculo de González Videla. Desde então eu teria para
sempre, no Chile, uma espécie de segunda pátria.
Depois de subir a costa do Pacífico, cheguei aos Estados Unidos a 12 de
outubro de 1944. Procurei Nelson Rockefeller, um bom amigo, que me
recebeu fraternalmente. Nelson escalou, para me fazer companhia, o
jornalista Dick Iperroiser, que trabalhava na revista Life, um beberrão com
quase dois metros de altura, inteligentíssimo. Também não demorei a ligar-
me aos comunistas. Eu chegara a Nova York com a recomendação, dada por
amigos da redação de Diretrizes, de procurar a primeira mulher de Fernando
Lacerda, que militava no Partido Comunista Americano. Ela ajudou-me a
encontrar um apartamento, que aluguei por cerca de trinta dólares. Mais
tarde, eu saberia que a ditadura de Getúlio Vargas instruíra alguns agentes
para manter-me sob vigilância. Também o governo dos Estados Unidos,
desconfiado de meu currículo, tratou de seguir meus passos enquanto
permaneci no país.
Em companhia de Dick Iperroiser, passei a frequentar os lugares elegantes
de Nova York. Naturalmente, ele pagava a conta. Numa noite, em meio a
uma dessas celebrações, Dick, que bebera tonéis, teve um acesso de
melancolia etílica e caiu no choro. Confessou-me, então, que Nelson
Rockefeller lhe dava dinheiro para distrair-me.
– Eu não sou teu amigo – lamuriava-se Dick. – Estou te traindo.
Poucos dias depois, Nelson Rockefeller chamou-me para dizer que havia
um emprego para mim na Biblioteca do Congresso, em Washington. Eu
ficaria encarregado de fazer pesquisas sobre bibliografia brasileira. Eu achava
Washington detestável e pressentia que me sentiria deslocado no emprego:
havia lido meia dúzia de livros, como poderia fazer esse tipo de pesquisa?
Mas não resisti à tentação de aceitar um emprego que me renderia 450
dólares por mês.
Depois de algumas semanas em Washington, fui convidado a escrever um
artigo para uma revista muito importante chamada Atlantic Monthly. Título:
“I am a South American Refugee” (eu sou um refugiado sul-americano).
Ofereceram-me mil dólares pelo trabalho, e suspeitei de que também ali havia
o dedo de Rockefeller. Fui à redação e recebi a péssima notícia. Haviam
estourado conflitos na Grécia e, como aquele país era, para os norte-
americanos, bem mais importante que a América do Sul, o espaço que seria
ocupado pela minha reportagem fora reservado ao material do correspondente
em Atenas. Mas havia uma boa notícia: eu deveria procurar um homem
chamado Harold Pitt, bastante conhecido em Nova York; ele tinha um
emprego para mim.
A conversa com Pitt foi decididamente incomum. Nas paredes de sua
antessala havia inúmeros retratos de gente famosa – George Bernard Shaw,
Greta Garbo – com amáveis dedicatórias a meu anfitrião. Estava claro que ele
era um homem com amizades interessantes. Subitamente, abre-se a porta da
sala e me vejo diante de um homem diminuto, cerca de um metro e meio,
com nítidos traços judaicos.
– Você tem o físico para o papel – comentou Pitt.
– Que papel? – perguntei, começando a ficar intrigado.
Ele explicou-me que, durante o inverno, organizava grupos de
conferencistas para percorrer os clubes do país, fazendo todo tipo de palestra.
No meu caso, eu deveria substituir um argentino que abandonara o grupo e se
engajara no Exército americano.
Expliquei-lhe que era jornalista, não conferencista. Ele ponderou que
bastaria contar uma história, uma só, durante cinco anos, o tempo de duração
do contrato. Como eu jamais faria duas vezes uma palestra num mesmo
clube, não haveria problemas. Além do mais, eu receberia quinhentos dólares
a cada apresentação. Informei que mal sabia falar inglês. Pitt retrucou que eu
teria seis meses para aprender, ressalvando que os americanos gostavam de
oradores com sotaque estrangeiro. Perplexo, pedi tempo para pensar e fui
para casa. Então caí em mim. Se eu ficasse mais de seis meses nos Estados
Unidos trabalhando regularmente, eu poderia ser legalmente incorporado ao
Exército americano. Fora precisamente isso que acontecera ao conferencista
argentino. Decidi livrar-me o quanto antes desse risco.
Conheci num bar, em Paris, uma jovem que, apesar do nome Natasha – e
dos traços mongólicos, era francesa. Sempre fui tímido para aproximar-me de
mulheres sozinhas em bares, mas o garçom tratou de estabelecer a ponte.
Horas depois, estávamos no meu hotel, onde ouvi uma história que pouco
tinha de original. Com ar triste, ela me contou que a família morava num
subúrbio daquela capital empobrecida pela guerra. E falou-me com particular
compaixão de um irmão de vinte anos que participara dos combates e agora
mal tinha o que comer. Era uma história como tantas outras, mas fiquei
comovido. No pós-guerra, a elegância dos franceses no trajar desaparecera.
Quase todos se vestiam pessimamente, nivelados pela miséria.
Natasha vestia roupas modestas, enquanto eu saboreava os privilégios
reservados a oficiais americanos: o tecido do uniforme era da melhor
qualidade, tinha direito a cuecas de lã, pulôveres, calças, camisas. Além
disso, havia as roupas que eu trouxera do Brasil. Ela viu sobre a mesa do meu
apartamento um robe de chambre de seda. Pareceu deslumbrada: “Que coisa
macia”, repetia. Disse-lhe que podia ficar com o robe de chambre. Ela
explicou, emocionada, que o daria a seu irmão. Resolvi presenteá-la também
com um par de meias de lã, uma camisa de tricoline, várias peças de roupa.
Ela transpirava comoção.
Assim foi ao longo de uma semana. Ela me visitava, falava do irmão, eu lhe
dava presentes. Acabei por desfazer-me de um finíssimo terno azul de
casimira inglesa, incluindo a gravata. Eu fazia questão de que o irmão de
minha jovem namorada andasse bem vestido. De repente, Natasha
desapareceu. Reencontrei-a alguns dias depois, no mesmo bar em que a
conhecera, que à noite se transformava em cabaré. Ela estava dançando
amorosamente com um homem que usava meu terno de casimira inglesa. Ela
não tinha um irmão – tinha um gigolô. Eu apenas sorri: éramos todos
protagonistas de histórias do pós-guerra.
Histórias assim enriquecem extraordinariamente um ser humano. Vivi
dezenas delas, uma das quais no interior da Tchecoslováquia, outro país
devastado pela guerra. Resolvi viajar até Praga e aluguei um carro. Perto de
Bratislava, derrapei na neve que cobria a estrada e caí num buraco.
Imediatamente, dezenas de pessoas apareceram para socorrer-me. Eu não
falava tcheco, eles não entendiam inglês nem francês, mas de alguma forma
estabelecemos uma comunicação. Usávamos a linguagem dos gestos, dos
sorrisos, dos olhares. Eles me levaram à casa de um mecânico. O carro foi
para a oficina, fiquei hospedado na casa desse mecânico. Sua mulher serviu-
me sopa, depois chocolate, conversamos muito, sempre recorrendo à
linguagem da mímica. Deram-me um pijama e fui dormir. Pela manhã, depois
do café, tirei do bolso um punhado de coroas, a moeda local, e entreguei-as à
mulher. Ela se recusou a aceitar a oferta. Virou-se para mim e disse uma
palavra cujo significado, naquela época, qualquer ser humano entendia: dólar.
Fiquei chocado – até aquele momento, eu pensava estar sendo contemplado
com regras de hospitalidade capazes de sobreviver mesmo a uma guerra.
Concluí que ela estava me cobrando, e na moeda determinada pelo anfitrião.
Tirei do bolso quarenta dólares e passei-lhes as cédulas. Ela foi para o interior
da casa e voltou em segundos trazendo o equivalente em coroas a quarenta
dólares. Meus hospedeiros tchecos não queriam pagamento: queriam dólares,
o ouro do pós-guerra. Com aquela moeda poderiam, por exemplo, comprar as
mercadorias existentes nas lojas controladas pelas tropas americanas. Fiquei
penalizado, quis dar-lhe mais dólares. A mulher não aceitou.
No pós-guerra, a regra era sobreviver, e milhões de pessoas estavam
envolvidas nessa luta para chegar ao dia seguinte. Algumas tinham de
enfrentar problemas adicionais, e nessa categoria estavam enquadrados os
displaced people – gente deslocada, em inglês. Os DP, no jargão do Exército
americano, eram pessoas que simplesmente não tinham para onde ir. Alguns
haviam perdido todos os seus documentos e, com a burocracia desorganizada
pela guerra, não encontravam meios de substituí-los. Outros haviam
colaborado com governos nazistas e, com a vitória dos Aliados, viram-se
transformados em párias. Enfim, os DP eram apátridas. Durante o julgamento
em Nuremberg, soube que existia em Munique um campo onde estavam
concentrados milhares de DP. Resolvi visitá-lo: e se houvesse brasileiros ali?
Havia. Cheguei a Munique num jipe que requisitei ao Exército americano.
Os americanos também cuidavam da manutenção do campo de concentração
dos DP, à espera de que alguém se interessasse pelo destino de seus
habitantes. Levaram-me ao encontro do grupo de brasileiros. Eram alemães
de Santa Catarina que haviam resolvido voltar à Alemanha para colaborar no
esforço de guerra. Muitos deles tinham filhos que, embora nascidos no Brasil,
não sabiam uma única palavra de português. Ao entrar no dormitório
reservado ao grupo, vi na parede o desenho do Pão de Açúcar, em verde e
amarelo. Eles começaram a cantar o Hino Nacional brasileiro com acentuado
sotaque alemão. Não passaram da primeira estrofe: naturalmente, faltara
tempo para ensaiar. Queriam a qualquer custo seduzir o correspondente e
convencê-lo a ajudar o grupo a regressar ao Brasil.
Contaram-me ali histórias rigorosamente inverossímeis. Uns diziam que
haviam viajado para a Alemanha às vésperas da guerra, em visita à família, e
acabaram impedidos de voltar ao Brasil. Outros afirmavam que tinham sido
prisioneiros de Hitler. Logo pude constatar que os brasileiros do campo de
Munique, da mesma forma que os integrantes de outros grupos étnicos que
entrevistei naquela visita, não estavam desesperados. Dançavam à noite ao
som de músicas típicas, sonhando com o embarque para a América. Decidi
visitar outros campos de DP, e fui confrontado com pessoas que haviam
sofrido terríveis tragédias familiares, dezenas das quais ocorridas em campos
de concentração nazistas. Pois também nesses campos pude captar a força de
um sonho comum: recomeçar a vida, a qualquer preço, em qualquer lugar.
No começo de 1946, em Paris, revi Carlos Lacerda. Meses antes, quando eu
passara o controle de Diretrizes a João Alberto e partira para a Europa,
Lacerda havia escrito uma pequena nota no Diário Carioca usando, acoplado
a meu nome, um adjetivo que ele repetiria com enorme frequência no futuro:
“Seguiu para a Europa o aventureiro Samuel Wainer.” O recorte com a nota
chegou-me algum tempo depois. Nela, Lacerda fazia elogios a Prestes,
criticava João Alberto e censurava minha decisão de vender o jornal. Não dei
maior importância àquilo: a agressividade do meu amigo de adolescência
começava a tornar-se famosa, e preferi atribuir o texto a uma pequena
explosão. Assim, em 1946, quando o reencontrei em Paris, tratei-o com a
cordialidade de sempre.
Ele fora encarregado pela revista Observador Econômico de fazer uma
reportagem sobre as cooperativas suecas e, a caminho de Estocolmo, fizera
uma escala em Paris. Fomos almoçar no Café de la Paix em companhia de
outros amigos brasileiros: Danton Jobim, Arlindo Pasqualini e Barreto Leite.
Foi um almoço alegre, cheio de histórias e piadas. No meio da conversa,
contei que havia sido convidado para viajar à Iugoslávia, onde talvez
conseguisse uma entrevista com Josip Broz Tito, o líder da resistência
antinazista. Os iugoslavos, naquela época, disputavam com a Itália o controle
da região de Trieste e estavam interessados em conseguir a solidariedade dos
correspondentes estrangeiros baseados em Paris. Terminado o almoço,
despedimo-nos como velhos amigos.
Pouco depois, viajei para a Iugoslávia. Fui o primeiro brasileiro a
entrevistar Tito, visitei a região de Trieste e acompanhei por alguns dias a
magnífica aventura configurada pela construção da Ferrovia da Juventude,
uma estrada de ferro que saía de Zagreb e se estendia por 120 quilômetros.
Milhares de voluntários, na maioria jovens, passavam o dia inteiro colocando
dormentes – era um esforço comovente. Escrevi várias reportagens sobre a
Iugoslávia, todas publicadas em Diretrizes. Semanas mais tarde, de volta a
Paris, recebi um recorte da coluna que Lacerda começara a publicar no
Correio da Manhã, com o título de “Tribuna da Imprensa”, e na qual se
referia a mim como “agente de Tito”.
Quando voltei da Europa, em 1947, era um repórter famoso. Fui recebido
no aeroporto por vários amigos de Diretrizes, entre os quais Osvaldo Costa,
que imediatamente me arrastou para jantar num bordel.
– Foi bom você ter voltado – disse-me Osvaldo, indo direto ao assunto que o
interessava. – Você é o homem que sabe arranjar dinheiro, e é disso que mais
precisamos.
Fiquei chocado: não era exatamente aquele tipo de conversa que eu
esperava encontrar logo ao chegar. Osvaldo explicou que precisava de cem
contos. Era muito dinheiro.
– Só você pode conseguir essa quantia – disse-me Osvaldo, sugerindo que
eu fizesse uma reportagem de encomenda na Bahia com Otávio Mangabeira,
governador do estado e líder da UDN. Seria uma matéria paga, mas publicada
em forma de reportagem. Reagi:
– Não vou, isso não faz meu gênero.
Osvaldo insistiu, sempre lembrando a importância do empréstimo para a
sobrevivência de Diretrizes. Definitivamente, o velho Osvaldo havia mudado
muito.
– Vou dar a você uma prova de força – disse. – Arranjarei o dinheiro.
Fui ao Banco do Distrito Federal, controlado pelo deputado Drault
Ernanny, e pedi cem contos em nome de Diretrizes. Um diretor explicou-me
que Osvaldo Costa estava desmoralizado como devedor. Então, pedi um
empréstimo pessoal. Consegui o dinheiro, mas tive de pagar um preço
adicional imposto por Drault Ernanny: ele queria que eu fizesse uma série de
reportagens mostrando a importância das refinarias de petróleo, algumas das
quais controladas por empresários ligados ao Banco do Distrito Federal.
Drault Ernanny era uma das fontes de sustentação financeira de Assis
Chateaubriand, e conseguiu espaço nos Diários Associados para a publicação
das reportagens. Chateaubriand jamais recusava algum pedido de seus
banqueiros, mesmo quando se tratava de algo contrário a seus interesses. Na
questão do petróleo, por exemplo, Chateaubriand era um entreguista radical.
Mas não se opôs à publicação de reportagens que defendiam a nacionalização
das jazidas e sua exclusiva exploração pelo governo brasileiro.
Fui contratado como freelancer. Recebi uma razoável ajuda de custo e
comecei a viajar, para ver como agiam nesse campo outros países. Estive no
Uruguai, na Argentina, na Venezuela. Estudei a fundo a questão do petróleo.
Esse, por sinal, era meu estilo: encarregado de escrever sobre um
determinado assunto, eu me entregava inteiramente à tarefa de estudá-lo em
profundidade, fazia uma espécie de curso completo sobre a matéria. No
Brasil, apurei em detalhes a movimentação das várias correntes existentes nas
Forças Armadas, que estavam divididas quanto ao problema da exploração
das jazidas. Reunidas as informações, publiquei a série de reportagens. Como
já informei em capítulos anteriores, as informações que divulguei serviriam
de base a um discurso pronunciado no Senado por Getúlio Vargas. Também
dessa vez a repercussão das reportagens foi intensa.
Consegui os cem contos que Osvaldo Costa me pedira, e pedi demissão de
Diretrizes. Não demorei a encontrar um novo emprego: Chateaubriand, que já
me respeitava como repórter e gostara bastante do meu trabalho sobre a
questão do petróleo, convidou-me para trabalhar em seu grupo. Chegara a
hora de viver minha aventura nos Diários Associados.
CAPÍTULO 15
Assis Chateaubriand convidou-me a assumir a chefia de O Jornal. Pedi um
salário equivalente a vinte salários mínimos da época. Ele quase me expulsou
da sala.
– O senhor vai ganhar mais do que eu! – espantou-se.
Era um exagero, evidentemente, mas o salário que eu pedira era realmente
altíssimo. Chateaubriand regateou durante algum tempo, acabou
concordando. Comecei, então, outra etapa decisiva da minha formação
profissional. Eu nunca havia vivido o dia a dia de um jornal diário. E sabia
ser indispensável conhecer por dentro o ventre desse monstro, compreender
os interesses que ali se cruzavam, absorver os detalhes técnicos de sua
confecção.
O Jornal era a ponta de lança do império. Àquela altura, Assis
Chateaubriand era o dono de uma cadeia que incluía cerca de vinte jornais e
várias emissoras de rádio. Poucos desses jornais alcançavam grande
circulação – O Jornal, por exemplo, tinha uma tiragem diária de nove mil
exemplares. Mas a força política dos Associados era enorme, e
Chateaubriand sabia como poucos usá-la em proveito próprio. Eu não tinha a
menor simpatia por aquele paraibano baixinho, elétrico, que representava
uma espécie de versão cabocla do “Cidadão Kane” retratado no famoso filme
de Orson Welles. O futuro mostraria que Chateaubriand era pior do que eu
imaginava.
Nunca fomos íntimos. Eu o chamava de dr. Assis, ele me tratava de sr.
Wainer. Não tenho dúvida de que ele sempre me considerou um bom
repórter, da mesma forma que jamais deixei de reconhecer em Assis
Chateaubriand um homem com agudo faro jornalístico e talentoso em várias
coisas, entre as quais ser influente e ganhar dinheiro. Ficaríamos juntos até a
posse de Getúlio Vargas e, ao longo desses anos, eu teria a chance de
conhecer profundamente essa lenda do jornalismo brasileiro. Quando
comecei a trabalhar nos Associados, Diretrizes vivia os momentos finais de
sua melancólica agonia. Contratei alguns antigos companheiros e tratei de
modernizar O Jornal. Implantei técnicas de diagramação que não eram
utilizadas até então, lancei seções novas, reservei a última página para
grandes reportagens, passei a publicar fotos enormes na primeira página. A
tiragem logo subiu para dezesseis mil exemplares. Aumentei os salários da
redação, que eram aviltantes – o chefe da seção internacional, por exemplo,
ganhava salário mínimo. Tentei, também, convencer Chateaubriand a tratar
com mais respeito seus funcionários.
Entusiasmado com as inovações que fizera em O Jornal, lembrei-lhe que há
quatro anos ele não visitava a redação. Seu escritório ficava no quarto andar
de um prédio na rua Venezuela e a redação, no terceiro. Não lhe custaria
nada, observei, fazer um dia qualquer uma escala no terceiro andar, para que
o pessoal sentisse seu interesse pela renovação que estávamos promovendo.
– Não vou – reagiu Chateaubriand. – São todos uns analfabetos.
Insisti, ele acabou aceitando. Dois dias depois dessa conversa, avisaram-me
da portaria que Chateaubriand estava chegando. Esperei-o à porta do
elevador, e entramos juntos na redação. Em cada mesa, ouvíamos um
cumprimento: “Boa tarde, dr. Assis!”, “Como vai, dr. Assis?” Em surdina, ele
respondia a cada cumprimento com comentários que só eu ouvia: “Filho da
puta!”, “Cafajeste!”, “Estão roubando meu dinheiro!”, “Analfabeto!”.
Quando chegamos à outra extremidade da sala, onde havia uma pequena
porta que dava para uma escada levando ao quarto andar, decidi voltar. Se
subisse a seu escritório, acabaríamos discutindo. Eu não podia admitir tanto
ódio de um dono de jornal por seus empregados.
Assis Chateaubriand não era um homem rústico. Aos 23 anos, já era
professor de Direito Romano na Faculdade do Recife. Viajara muito, vivera
na Europa, estudara na Alemanha. Mas odiava suas redações com o rancor de
um cangaceiro, e achava que todos os seus funcionários estavam interessados
em lesar seu patrimônio. Alguns meses depois do início de minha
experiência, ele me chamou para informar que havia problemas. Disse-me
que eu estava gastando muito dinheiro.
– O senhor está fazendo um jornal para a academia de letras – afirmou.
Era um jornal bonito, bem acabado, com muitas seções e muitos
colaboradores. O problema é que se tornara inflacionário. Entendi o recado, e
sugeri que eu voltasse à condição de repórter. Ele concordou. Foi, como
demonstraria o futuro, uma excelente ideia. A vida de repórter, afinal, me
levaria alguns anos depois ao encontro de Getúlio Vargas.
Longe da chefia da redação de O Jornal, minha convivência com Assis
Chateaubriand tornou-se mais fácil. Nos meses anteriores fora complicado
aceitar seus métodos. Ele costumava chegar ao prédio da rua Venezuela às
duas horas da madrugada; o jornal rodava às quatro. Sentava-se em sua mesa
e jogava sobre ela o revólver do qual não se separava; gostava de preservar
certos hábitos de cangaceiro. Como dono de jornal, mantinha um estilo
imperial. Mesmo sabendo que a edição estava praticamente pronta, mandava
trocar fotos, legendas, manchetes, jogava artigos fora. Era impiedosamente
desrespeitoso. Logo ao chegar, chamava-me para saber as últimas notícias.
Depois, telefonava para ministros, governadores, empresários, banqueiros,
trocando informações. Acordava qualquer pessoa no meio da noite. Assis
Chateaubriand jamais respeitou os horários alheios.
Não havia horário predeterminado, por exemplo, para a chegada à gráfica
do artigo de Chateaubriand, publicado diariamente na quarta página de O
Jornal. O artigo, manuscrito, vinha em qualquer papel, cheio de garranchos
ininteligíveis – um único linotipista era capaz de decifrar a letra do patrão. A
quarta página ficava com um buraco, à espera do artigo. Numa noite, notei
que o texto de Chateaubriand era maior do que o buraco. Eu estava na
oficina, e acabara de assumir a chefia da redação. Então, vi o paginador
subtraindo dois parágrafos de um artigo que seria publicado ao lado do texto
do patrão. Protestei, observando que aquilo era um insulto a um profissional
que certamente consumira algumas horas de trabalho para escrever.
Candidamente, o paginador informou que agia daquela forma há cinco anos.
Ninguém jamais reclamara.
Chateaubriand começou a construir seu império ao comprar O Jornal, nos
anos 20, com um dinheiro que conseguira da Light. Cresceu ao apoiar a
Revolução de 1930, viveu uma fase de ostracismo depois de ligar-se à
Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo – quando teve de ir para
o exílio –, e nesse momento viu que o melhor caminho era apoiar o governo,
qualquer governo. Ele seria, durante muitos anos, um dos homens mais
poderosos do Brasil. Graças à influência dos Diários Associados, elegeu-se
senador pelo Maranhão, estado que mal conhecia, e foi mais tarde
embaixador do Brasil na Inglaterra. Um cangaceiro na Corte de Sua
Majestade.
Ele jamais teve qualquer estima pelo Brasil, convencido de que era
habitado por uma raça inferior. Preso a tais convicções, foi um entreguista
inacreditavelmente desembaraçado. Escrevia artigos pregando a entrega das
riquezas naturais do país aos monopólios estrangeiros, argumentando que
nunca seríamos capazes de desenvolver o Brasil por conta própria. Todas as
campanhas supostamente patrióticas patrocinadas por Chateaubriand visavam
obter determinadas vantagens ou atender a seus interesses. Ele liderou, por
exemplo, a campanha para a proliferação de campos de pouso no país, sem
revelar que lucrava com a venda dos aviões Paulistinha, fabricados pela
família Pignatari. Estimulou, também, a instalação de postos de puericultura,
quando, no fundo, queria vender mais remédios e aumentar a receita dos
laboratórios farmacêuticos nos quais tinha interesse.
Todos os jornais da rede dos Associados eram deficitários, e nada pode
degradar mais a imprensa que uma publicação com buracos no caixa. Um
jornal deficitário geralmente sobrevive à custa de golpes financeiros, de
favores oficiais. Por trás de cada jornal de Chateaubriand havia um
banqueiro. Por trás de cada campanha movida pelos Associados havia
interesses econômicos. Ele tinha uma enorme capacidade para levantar
recursos, conseguia créditos infinitos. Chateaubriand me disse, certa vez, que
nada sustenta uma empresa com mais eficiência que uma boa dívida. Vivia de
tal forma endividado que o capital privado não podia cogitar a aquisição dos
Associados. O governo, banqueiros e empresários do círculo de relações de
Chateaubriand não tinham alternativa além de ajudá-lo a sobreviver.
Ele adorava frequentar festas e ser cortejado pelas elites que em outros
tempos haviam tentado discriminá-lo por suas origens modestas. Apesar do
sobrenome imponente, Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo,
vinha de uma família empobrecida. Impunha-se mais pelo temor que pelo
talento, que era enorme; mais pela agressão que pela cultura, que era
vastíssima. Cultivava ódios irremediáveis. Depois da Revolução de 1932, um
de seus jornais foi expropriado pelo governo federal em consequência de
gestões promovidas pelo tenente João Alberto. Ao voltar do exílio e
recuperar a empresa, Chateaubriand tratou de marcá-lo para sempre: desde
então, os jornais da cadeia só se referiam a João Alberto, que era um homem
honrado, como “o ladrão”. Outro desafeto histórico foi o conde Francisco
Matarazzo. Ele costumava ajudar Chateaubriand com empréstimos ou
comprando anúncios. Numa ocasião, o conde recusou-se a atender-lhe um
pedido qualquer, e foi incluído no índex dos Associados. Chateaubriand fazia
provocações incríveis. Certa feita, publicou em seus jornais a notícia de que
as Indústrias Matarazzo distribuiriam metade de seus lucros aos pobres que
comparecessem à praça do Patriarca, em São Paulo, onde ficava a sede da
empresa. Centenas de pessoas acreditaram nessa notícia falsa, houve um
enorme tumulto, a polícia teve de intervir. A partir daí, o velho conde
Matarazzo jamais voltaria a pronunciar o nome de Assis Chateaubriand: dizia
apenas “o lazarento”.
A corrupção nos Associados transformou-se numa instituição, praticada em
todos os níveis. Contínuos extorquiam gorjetas para permitir a entrada de
alguém, redatores tomavam dinheiro de açougueiros para não denunciar o
aumento no preço da carne, secretários de redação chantageavam empresas
para impedir a publicação de críticas a seus produtos. Os negócios em nível
mais alto, naturalmente, ficavam por conta do chefe. Quando vagava um
cargo de direção no Banco do Brasil, por exemplo, Chateaubriand
movimentava-se para nomear algum preposto. Quando conseguia, instalava
no Banco uma espécie de máquina de arranjar dinheiro. Cobrava quantias
para apresentar alguém ao diretor que nomeara, associava-se a negócios,
fixava porcentagens. E se fazia ainda mais temido.
Poucos se arriscavam a recusar seus pedidos e convites – eram, na verdade,
imposições. Gostava de acordar um banqueiro no meio da noite e convocá-lo
para a inauguração de um posto de saúde num estado qualquer do Nordeste.
Fez o Museu de Arte de São Paulo, o MASP, à custa de extorsões: ele ia até a
casa de um milionário qualquer e simplesmente confiscava um quadro,
frequentemente valiosíssimo. Quem ousasse dizer não entraria na lista negra
dos Associados. Com esses métodos de gângster, Assis Chateaubriand
marcou fortemente sua passagem por um trecho da História do Brasil, mas
seu legado acabaria por esfarelar-se rapidamente. O MASP, é verdade, ficou.
Mas onde estão os postos de puericultura, os clubes de aeronáutica que
fundou? Seus jornais morreram, os Associados se desfizeram. A revista O
Cruzeiro e a TV Tupi representaram, nos anos 50, verdadeiras minas de ouro.
Hoje, os jovens brasileiros nem mesmo sabem que um dia existiram uma
revista O Cruzeiro e uma TV Tupi. Assis Chateaubriand foi uma das últimas
expressões do Brasil colonial. Ele e seu império não poderiam sobreviver à
modernização do país.
Em seu reinado, porém, soube viver como monarca. Mantinha autênticos
palácios no Rio de Janeiro e em São Paulo. Tinha uma vida social
extremamente movimentada. Numa única noite, comparecia a quatro, cinco
recepções. Escrevia seus artigos durante viagens aéreas e obrigava seus
súditos a aguardar a palavra do rei. Não demorou a juntar uma fortuna
enorme, transformando-se num industrial com interesses em numerosos
campos de atividade. Creio que, numa determinada fase de sua vida, Assis
Chateaubriand pretendeu ser apenas jornalista, mas não tardou a ser
deformado por sua imensa ambição. Alguns de seus parceiros na aventura
dos Associados costumam apresentá-lo como responsável por uma revolução
na imprensa brasileira. De fato, Chateaubriand fez coisas relevantes –
importou a primeira máquina de rotogravura utilizada no país, comandou
publicações que ajudaram a fazer história, implantou a primeira emissora de
televisão. Mas é um equívoco encará-lo como revolucionário: Chateaubriand,
ao contrário, retardou em algumas décadas a evolução da imprensa nacional.
Ele era o atraso.
Definitivamente, Chateaubriand não gostava de seus jornais, detestava os
funcionários de suas redações. Mas tinha faro de repórter, sabia onde estavam
os assuntos efetivamente importantes. Em 1948, por exemplo, compreendeu
que acontecimentos históricos estavam prestes a ocorrer no Oriente Médio, e
que valia a pena encarregar alguém de testemunhá-los. Graças a esse faro, eu
pude ver com meus próprios olhos o nascimento do Estado de Israel.
CAPÍTULO 16
Por decisão das Nações Unidas, numa assembleia presidida pelo brasileiro
Osvaldo Aranha, a criação oficial do Estado de Israel, resultado da chamada
partilha da Palestina, seria proclamada no dia 14 de maio de 1948. Tratava-se
de uma velha reivindicação do crescente movimento sionista, surgido no
começo do século. Depois da Primeira Guerra Mundial, os ingleses, que
controlavam a Palestina, prometeram a líderes judeus um pedaço de terra para
a edificação de seu país. Com as atrocidades cometidas pelos nazistas na
Segunda Guerra Mundial, a palavra de ordem “Um lar para os judeus”
ganhou uma força quase irresistível. Chegara a hora de devolver à sua pátria
um povo disperso e perseguido há mais de dois mil anos.
Naquela época, à exceção do Egito, os países árabes não tinham maior peso
político ou econômico – todos estavam enquadrados na categoria de países
medievais. Assis Chateaubriand, que tinha muitas ligações com judeus,
decidiu fazer uma cobertura favorável à criação do Estado de Israel e, no
começo de 1948, mandou à Palestina dois repórteres dos Associados. O
jornalista pernambucano Murilo Marroquim, um tarimbado profissional que
cobrira a Segunda Guerra Mundial para a BBC de Londres, foi encarregado
de acompanhar os fatos do lado judeu. Coube a David Nasser o lado árabe.
Preparados para a luta inevitável, árabes e judeus haviam consolidado
posições e controlavam grandes porções da Palestina. Murilo Marroquim
instalou-se em Tel-Aviv, já então uma cidade moderna, de aspecto europeu, e
David Nasser no Cairo. Em vez de verificar pessoalmente como andavam as
coisas na zona conflagrada, David Nasser começou a enviar reportagens
baseadas em material de propaganda árabe que lhe era entregue no hotel onde
se alojava. Nesses textos, evidentemente, os judeus eram tratados como
bárbaros assassinos. Chateaubriand, irritadíssimo, ordenou a David Nasser
que voltasse imediatamente ao Brasil e escolheu-me para substituí-lo na
cobertura da partilha da Palestina. Ficou decidido que eu permaneceria em
Tel-Aviv, deslocando-se Murilo Marroquim para o Cairo.
Viajei no começo de abril. Em Roma, fiz uma conexão para Tel-Aviv, onde
Murilo me esperava. Apesar do nariz adunco, da aparência de judeu sefardi,
ele pertencia a uma das mais tradicionais famílias de Pernambuco. Instalei-
me no hotel onde meu companheiro estava hospedado. Tel-Aviv não figurava
entre as várias frentes de combate, mas não escapava ao clima de aguda
tensão que envolvia a Palestina. Em toda aquela região dilacerada pelo ódio,
sucediam-se atentados terroristas de parte a parte, tiroteios, emboscadas,
massacres. Sabia-se que os ingleses planejavam retirar suas tropas no dia da
criação oficial do Estado de Israel, deixando o território entregue às leis da
violência. Assim, judeus e árabes trocavam golpes enquanto se preparavam
para a guerra total.
Organizações terroristas judaicas, como a Haganah e o Irgun, espalhavam o
medo pela Palestina. Militantes do Irgun foram responsáveis, por exemplo,
pelo célebre atentado que reduziu a escombros o hotel King David, em
Jerusalém, onde estava alojado o estado-maior das tropas inglesas.
Disfarçados de leiteiros, os terroristas entraram no hotel pela manhã.
Colocaram galões de leite na cozinha do restaurante e se retiraram. Alguns
continham explosivos. Quando explodiram, o hotel voou pelos ares, matando
todos os integrantes do alto comando inglês. Eu estava em Tel-Aviv quando
houve o atentado.
Nos primeiros dias, senti-me prisioneiro na cidade. Não conhecia ninguém,
sentia os olhares desconfiados que me acompanhavam pelas ruas. Eu não
tinha aparência de judeu, e o pouco que aprendera de iídiche nos tempos de
menino do Bom Retiro já se perdera na memória. Podia ser facilmente
confundido com um espião. Mas não tardei a estabelecer contato com
correspondentes que haviam participado da cobertura do Tribunal de
Nuremberg, e me senti mais seguro. Enquanto Murilo Marroquim buscava
algum meio de passar para o lado árabe, eu procurava os caminhos que me
permitissem entrevistar militantes terroristas.
Graças a insinuações feitas por um correspondente americano, deduzi que o
correspondente da France Presse em Tel-Aviv, um judeu polonês que estava
paralítico, tinha ligações com o terrorismo. Ele me recebera como amigo, não
custava tentar.E teimei o quanto pude, até ele se render ao meu assédio.
Concordou em conseguir-me um contato com os terroristas, desde que a
reportagem lhes fosse simpática e mostrasse ao mundo que eles agiam
movidos pelo patriotismo. Aceitei. Ele me informou que nas horas seguintes
alguém me procuraria no hotel. No outro dia, recebi a visita de uma jovem
loura, linda, muito elegante, que me convidou a um passeio por Tel-Aviv.
Paramos defronte ao Café Brasil, uma espécie de sede do governo judeu na
clandestinidade.
– Sente-se naquela mesa. Daqui a alguns minutos, duas pessoas vão sentar-
se ali também – instruiu a moça loura antes de desaparecer.
Logo depois, dois jovens se aproximaram e ocuparam as cadeiras restantes
em minha mesa. Comunicaram-me que militavam no Irgun e haviam sido
designados para conceder-me uma entrevista. O Café Brasil – enorme, cheio
de mesas – era movimentadíssimo. Em meio àquele burburinho, conversamos
longamente, interrompidos de vez em quando por judeus que se acercavam
dos meus interlocutores, cochichavam alguma coisa e se afastavam. Os dois
jovens descreveram em detalhes, num inglês impecável, o funcionamento da
sua organização. Um deles participara do atentado ao hotel King David, que
descreveu minuciosamente. No fim da conversa, os dois me pediram que
procurasse apresentar o Irgun de forma simpática.
Àquela altura, eu deixara de enviar pelo telex meus despachos para o
Brasil. Era mais prudente fazer anotações manuscritas e guardá-las para
quando voltasse.
Num domingo, recebi a notícia de que um casal que viajava em lua de mel
morrera na queda de um avião. Achei que aquela história poderia render uma
excelente reportagem. Chamei Nelson Rodrigues, meu redator de esportes, e
perguntei-lhe se aceitava escrever uma coluna diária baseada em fatos
policiais. Nelson recusou. Resolvi enganá-lo, e contei que André Gide já
fizera isso na imprensa francesa. Defendi também a tese de que, no fundo,
Crime e Castigo, de Dostoievski, era uma grande reportagem policial. Eu
apenas queria que ele desse um tratamento mais colorido, menos burocrático,
a um certo tipo de notícia. Nelson afinal cedeu. Sentou-se à máquina e, pouco
depois, entregou-me o texto sobre o casal que morrera no desastre de avião.
Era uma obra-prima, mas notei que alguns detalhes – nomes, situações –
haviam sido modificados. Chamei Nelson e pedi-lhe que fizesse as correções.
– Não, a realidade não é essa – respondeu-me. – A vida como ela é é outra
coisa.
Eu me rendi ao argumento e imediatamente mudei o título da seção.
Deveria chamar-se “Atire a Primeira Pedra”, mas ficou com o título de “A
Vida Como Ela É”, que considero um dos melhores momentos do jornalismo
brasileiro.
Da mesma forma que Nelson Rodrigues renovou a linguagem da
reportagem policial, outros colunistas da Última Hora deram outro curso à
história da reportagem esportiva. Eu tinha uma vantagem sobre outros donos
de jornal: passara minha infância brincando com bolas de meia, e eles jamais
haviam entrado num campo de futebol.
Minha intimidade com o assunto era total. Muitos anos depois, em 1962, eu
estava numa recepção oferecida pelo Itamaraty quando começou uma
conversa sobre o jogo que o Brasil teria no dia seguinte contra a Espanha, na
Copa do Chile. A mesa esquentou, e passei alguns minutos dando opiniões
profundas sobre o jogo. Só um dos presentes permanecia sempre calado,
aparentemente alheio à conversa. Era o general Humberto de Alencar
Castello Branco. Na hora do café, Castello Branco fez um comentário
sibilino:
– Doutor Wainer, admira-me muito que um homem como o senhor conheça
tanto de futebol.
A mesa silenciou. Então, em tom amável, observei ao general que, se não
gostasse de futebol, jamais poderia ter fundado um jornal como a Última
Hora. Todos compreenderam o que eu queria dizer com aquilo.
Passados os meses de aflição, senti que encontrava o caminho. Àquela
altura, a redação demonstrava uma imensa confiança em minha capacidade
profissional. Vencida a timidez inicial, passei a escrever editoriais de
primeira página e a interferir com mais desenvoltura nos textos que o jornal
publicava. Ficava boa parte do tempo em minha sala – ali eu recebia quase
diariamente ministros, embaixadores, políticos, empresários. Mas sempre
encontrava meios de escapar para a redação, onde mantinha minha mesa, ao
lado de Octávio Malta. Também visitava diariamente a oficina, empenhado
em estimular meus gráficos a aumentarem a velocidade do trabalho e
tentando compensar com meu entusiasmo a precariedade do equipamento.
Frequentemente, ordenava modificações numa página ou a substituição de
um título. Os operários da oficina não demoraram a entender que eu era do
ramo.
Sempre acreditei que um dono de jornal deve manter vínculos estreitos
tanto com a redação quanto com a oficina. Na Última Hora, tais relações
eram bastante humanas. Ordenei, por exemplo, que se cumprisse a disposição
legal que mandava fornecer leite aos gráficos, exigência tradicionalmente
ignorada pelos patrões. Inflacionei os salários dos jornalistas, para profunda
irritação de Assis Chateaubriand, que me acusou de elevar os salários acima
dos limites suportáveis pela imprensa brasileira. E procurei permanentemente
quebrar o isolamento entre chefe e subordinados. Em 1954, quando a Última
Hora se transferiu para outro prédio, instalei minha sala dentro da própria
redação, numa inovação que ficaria famosa. Era uma sala envidraçada, cujo
apelido – “aquário” – se tornaria famoso. Quando não queria ser visto,
baixava as cortinas. Mas geralmente o pessoal da redação podia acompanhar
com os olhos meus gestos, minhas reações, as conversas com repórteres.
Aquele era o meu santuário.
Eu vivia à noite. Em meio a uma roda-viva de jantares, festas, recepções ou
simplesmente conversas, recolhia informações, boatos, rumores. É à noite
que se sabe das coisas. Dormia pouco: além da energia da mocidade, sempre
que necessário eu recorria a comprimidos de Pervitin, à base de anfetamina.
Às onze horas, acordava e ia para o jornal dar o visto na primeira página,
examinar a edição que estava a caminho das bancas. Fazia questão de
respeitar os horários fixados em nosso cronograma, outra novidade para a
época – naqueles tempos, os jornais costumavam sair quando podiam. O
jornal era minha vida. Em 1951, eu estava casado com Isa Sá Reis, de quem
me separaria em 1953. Mas a aventura da Última Hora me absorvia quase
integralmente e, mesmo quando ficava em casa, minha mente viajava para
aquele mundo que eu começava a construir.
Tive suficiente lucidez para evitar certos exageros, mesmo quando já me
sobravam motivos para acreditar que eu caminhava para o sucesso. No dia 19
de dezembro, data oficial de meu nascimento, fui procurado por uma
comissão de funcionários, liderada por um tipo sabidamente bajulador, que
desejava minha permissão para homenagear-me. Eles me trouxeram um
relógio enorme, caríssimo, como presente pela vitória da Última Hora. Minha
reação foi brutal. Disse-lhes que preferia recusar o presente, por dois
motivos. Primeiro, porque achava aquele presente caro demais para o que
eles ganhavam. Segundo, porque um jornal não deve festejar vitórias na
redação; deve festejá-las nas ruas, vendendo mais. Despachei-os em seguida,
recomendando-lhes que voltassem quando o jornal se tornasse efetivamente
vitorioso. Na primeira oportunidade, demiti o responsável por aquele exagero
bajulatório. Alguns meses mais tarde, descobri que outro grupo de
funcionários encarregara um escultor argentino de fazer meu busto em
bronze. Achei ridículo, e interferi a tempo de impedir a homenagem. O
argentino só tivera tempo de esculpir o busto em gesso. Esse busto, que
descobri no arquivo da Última Hora, rolou pelo Rio de Janeiro até acabar
num antiquário. Os traços lembravam muito mais Coelho Neto que a mim.
Nunca mais soube dele.
Se evitei esses exageros, também é verdade que cometi alguns excessos
sociais, inebriado pela condição de amigo íntimo do presidente e jornalista
vitorioso. Eu saboreava meu triunfo: entrava sem bater nos gabinetes dos
poderosos, era solicitado pela alta sociedade, cortejado por mulheres lindas.
Fazia provocações que incomodavam os concorrentes – por exemplo,
anunciar as tiragens do meu jornal numa época em que todos os outros
ocultavam cuidadosamente seus números. Mas nenhum desses excessos dos
primeiros tempos se comparou ao coquetel que ofereci pelo primeiro
aniversário de Última Hora, em junho de 1952.
Eu poderia ter convidado algumas pessoas para um jantar em meu
apartamento, ou organizado uma festa menos aparatosa num clube qualquer.
Em vez disso, decidi fazer um coquetel na própria redação. Escolhi um
horário que não prejudicasse o trabalho de edição, desloquei as mesas e abri
espaço para quase mil convidados. Uma guarda de honra formada por
integrantes da Polícia Especial postou-se à porta. Não deixava de ser um
acinte. Getúlio Vargas não compareceu, mas foi representado por dona
Darcy, Alzirinha e vários outros membros da família real. Mais tarde, o
jornalista Justino Martins contou-me que a animosidade de Adolfo Bloch em
relação a mim nasceu de um incidente ocorrido naquele dia, do qual nem
sequer me dei conta. Adolfo Bloch teria pedido que eu o apresentasse à
primeira-dama. Não me lembro de ter ouvido a solicitação. O fato é que não o
apresentei. Segundo Justino, Adolfo Bloch jamais me perdoou por tal
desfeita. Outros barões da imprensa tampouco engoliram a festa que reuniu o
que havia de mais influente na corte. Fora uma audácia do judeu aventureiro.
Àquela altura, a campanha contra a Última Hora já se intensificara, mas o
jornal se tornava cada vez mais consistente em todos os sentidos. A situação
financeira, por exemplo, mostrava-se crescentemente promissora graças ao
bom fluxo de anúncios. Eu tratava de atrair novos anunciantes utilizando
barganhas que não me incomodavam por não ferirem os critérios editoriais da
Última Hora. Por exemplo: se duas empresas envolviam-se em determinada
disputa, eu escolhia a que fosse brasileira, ou a que melhor atendesse aos
interesses de Getúlio, e passava a defendê-la. Em seguida, reivindicava dessa
empresa que ajudasse o jornal em forma de anúncios. Tal postura não me
parecia antiética. Um caso típico foi a guerra entre a Varig e a Panair pela
compra dos primeiros aviões Caravelle. Como a Panair era subsidiária da
Panam, uma empresa norte-americana, minhas simpatias apontavam
naturalmente na direção da Varig, uma companhia brasileira. O criador da
Varig, Rubem Berta, procurou-me para pedir que eu o auxiliasse com o
jornal. Concordei, mas em troca lhe pedi contratos de publicidade. Esse
acerto seria inviável se quem me procurasse fosse alguém da Panam; eu não
aceitaria. Meu jornal precisava de publicidade, e era natural que eu cobrasse
do meu cliente nacionalista meios de assegurar a sobrevivência da Última
Hora.
Todo dinheiro que entrava era aplicado no próprio jornal. Nunca alimentei
a pretensão de conquistar uma fortuna para legá-la a alguém. Eu não tinha
filhos na época, e imaginava que jamais viria a tê-los. Portanto, habituei-me à
ideia de que a Última Hora morreria comigo, porque tampouco achava viável
passá-la a outros parentes ou companheiros da redação. Mesmo quando meus
filhos nasceram, por sinal, não cogitei de transformá-los em herdeiros da
Última Hora – jamais aprovei o costume tão brasileiro de passar jornais de
pais para filhos. O jornalismo, afinal, não é uma coisa hereditária. Mas,
embora descartasse planos de enriquecimento pessoal, era importante
consolidar o jornal financeiramente e fortalecer a empresa, preparando-me
para a luta que se aproximava. Nesse esforço de consolidação, decidi ainda
em 1951 levar a empresa para fora das fronteiras do Rio de Janeiro.
Foi então que nasceu a Última Hora de São Paulo.
CAPÍTULO 22
No começo de 1952, eu conversava com Getúlio perto de uma das janelas
do Palácio do Catete quando ele me perguntou se eu não achava que São
Paulo era a “boca do leão”. Aquela expressão me era familiar. O presidente
costumava empregá-la para simbolizar o que o grande Estado representava
para o seu governo. Ainda presos aos ódios gerados pela Revolução de 1932,
muitos políticos paulistas seguiam conspirando, dispostos a patrocinar a
qualquer custo o fim do getulismo. Vargas era popularíssimo em São Paulo,
ali obtivera uma votação grandiosa nas eleições de 1950. Mas a elite paulista
recusava-se à reconciliação com o presidente. E toda a imprensa local,
liderada pelo “Estadão”, mantinha-se em oposição ferrenha a Getúlio.
Concordei: São Paulo era a boca do leão. Quis saber por que tal expressão
lhe ocorrera naquele momento.
– É que hoje esteve comigo o Ricardo Jafet, que está tendo muitos prejuízos
com o jornal dele em São Paulo – respondeu Getúlio.
Percebi aonde ele pretendia chegar e fiquei à escuta.
O presidente ponderou que Jafet, dono do Jornal de Notícias, não entendia
de jornais e que, por ser um homem muito rico, ninguém lhe pagava o que
devia. Revelou-me, afinal, que o próprio Jafet lhe fizera a sugestão: por que
Samuel Wainer não lançava um jornal em São Paulo? O comportamento de
Getúlio durante a conversa à janela do Catete deixava claro que ele gostara da
ideia. Mas jamais admiti, ao longo dos muitos interrogatórios que sofreria em
minha vida, que também a Última Hora paulista fora uma ideia de Getúlio
Vargas.
Animei-me imediatamente com a proposta de criar um jornal na cidade
onde havia nascido. Seria a volta gloriosa ao meu Bom Retiro, a prova de que
eu vencera. Pensei no que diria minha família – era o triunfo. Já com algumas
ideias tomando forma em minha cabeça, disse a Getúlio que achava
perfeitamente possível concretizar tal projeto. Poderíamos montar a primeira
publicação com fisionomia federal num estado cuja imprensa era
historicamente marcada pelo provincianismo. As vantagens políticas
pareciam igualmente evidentes. Num pedaço do país onde o PTB getulista
era anêmico, teríamos um instrumento do presidente da República com
capacidade para fazer com que seu pensamento chegasse às massas
populares. No fim da conversa, combinei com Vargas que procuraria Ricardo
Jafet.
Jafet ficou radiante ao saber que eu estava interessado em seu jornal, que
para ele se transformara numa fonte permanente de más notícias financeiras.
Como se tratava de um empresário forte, não lhe convinha simplesmente
fechar uma de suas empresas – isso poderia dar origem a rumores atribuindo-
lhe dificuldades financeiras. Tampouco valia a pena manter o jornal em
funcionamento; os prejuízos se acumulavam a cada mês. A solução era passá-
lo adiante, e um comprador finalmente lhe caíra do céu. Não foi difícil,
assim, fechar o negócio por um preço meramente simbólico. Do jornal, que
ocupava um terreno no vale do Anhangabaú pertencente ao conde Francisco
Matarazzo, pouco se poderia aproveitar: o equipamento estava virtualmente
reduzido a uma rotativa velhíssima, que fizera parte do parque gráfico da
Folha da Manhã. De qualquer forma, ali eu poderia improvisar uma pista
para a decolagem da Última Hora paulista.
Voltei a Getúlio com a confirmação de que a ideia era viável. Havia,
contudo, o problema de sempre: faltava dinheiro para os gastos iniciais. A
Última Hora do Rio ia bem, mas não gerava recursos suficientes para a
implantação de um projeto semelhante em São Paulo. Com um sorriso
moleque, Getúlio apontou-me a saída usando sua peculiar linguagem em
código:
– Passou por aqui agora há pouco um “tubarão” que parece gostar muito de
jornal. Se tu quiseres, procures o Benjamim. Ele te dirá onde encontrá-lo.
“Tubarão” era a palavra usada na época para identificar os magnatas. Saí à
procura de Benjamim Vargas e logo o encontrei na boate Vogue. Relatei-lhe
a conversa que tivera com seu irmão, e o caçula dos Vargas recomendou-me
que fosse ao Hotel Excelsior, na avenida Atlântica, que acabara de ser
inaugurado. Ali estava hospedado o tubarão de que Getúlio falara: o lendário
conde Francisco Matarazzo.
O velho conde vira seu império crescer na era getulista, beneficiado por
favores fiscais e aduaneiros. Ele gostava muito do presidente da República,
tratava-o com inteira intimidade. Era uma figura bastante simpática, mas
extremamente conservadora e dada a excentricidades. Ele não permitia, por
exemplo, que alguém lhe virasse as costas ao deixar sua sala. As pessoas,
mesmo as da própria família, tinham de sair em marcha à ré. O conde tinha
inimizades invencíveis, e fora justamente uma delas que o levara a interessar-
se por jornais: ele devotava um ódio mortal a Assis Chateaubriand, cujo
nome, repito, jamais mencionava: só se referia ao dono dos Associados como
“o lazarento”.
Os dois haviam brigado por questões de dinheiro, e Chateaubriand fazia
provocações terríveis ao velho Matarazzo. Numa ocasião em que saiu
publicado o balanço das empresas do conde, por exemplo, Chateaubriand
mandou anunciar que os lucros seriam distribuídos entre os pobres da cidade.
Noutra ocasião, quando se casou uma filha de Matarazzo, os jornais de
Chateaubriand descreveram o requinte da festa com tal exagero que
ocorreram manifestações de revolta entre os paulistanos. Graças a essas
declarações de guerra promovidas por Chateaubriand, Matarazzo resolvera
encontrar um jornal que combatesse os Associados. Ele se ligara ao grupo
Folha, mas não se deu bem. Assim, quando o encontrei, ele continuava
receptivo a um negócio que o vinculasse a algum órgão de imprensa.
No Hotel Excelsior, onde me recebeu perto das onze da noite, o conde
tratou-me com extrema simpatia. Disse que já sabia dos meus planos para
montar um jornal em São Paulo e que me considerava um grande jornalista.
– Sei também que o senhor fez um jornal que vende muito – emendou.
Onde colhera a informação?
– Todos os dias vou até a banca que fica aqui perto do hotel e pergunto ao
dono que jornal está sendo mais vendido – explicou-me.
Ele também achava que São Paulo precisava de um jornal moderno, e se
dispunha a colaborar no empreendimento.
– Eu vou lhe ajudar – disse o velho Matarazzo. – De quanto o senhor
precisa?
Novamente, eu não sabia com exatidão o montante dos recursos de que
necessitava. Mencionei uma quantia qualquer que me veio à mente, e o conde
considerou-a razoável. Eu acabara de conseguir o dinheiro necessário para a
aventura da Última Hora paulista.
Antes de selarmos o acordo, o conde perguntou-me qual seria a postura do
jornal em relação a greves. Ponderei que um jornal popular não poderia opor-
se a movimentos do gênero, mas ressalvei que a Última Hora só apoiaria
greves até a porta da fábrica, condenando qualquer violação dessa fronteira.
Ele ficou muito feliz com a resposta – o que o afligia era a eventualidade de
greves que ameaçassem seu patrimônio com quebra-quebras no interior das
fábricas. Depois, avisou-me que não poderíamos ser favoráveis à implantação
do divórcio no Brasil. O conde informou que costumava visitar o papa, e que
não gostaria de ouvir uma frase que formulou com seu sotaque pitoresco:
“Chiquinho, como é que você dá dinheiro para um jornal divorcista?” A
questão do divórcio não tinha, a meu ver, qualquer importância. Aceitei
prontamente a pré-condição estabelecida por Matarazzo.
O conde Francisco Matarazzo cometeu um grave equívoco – se foi uma
jogada intencional, jamais se saberá – ao me transferir, alguns dias depois,
parte do financiamento que havíamos acertado. Ele fez com que o dinheiro,
antes de chegar a mim, passasse pelas mãos de Lutero Vargas, filho de
Getúlio – e esse trajeto dos recursos, que evidentemente deixou rastros, seria
espertamente explorado no futuro por meus inimigos. É possível que o
próprio Lutero, visivelmente enciumado com a influência de Alzirinha sobre
a Última Hora carioca, tenha pedido ao conde para participar da operação.
Também é possível que Matarazzo tenha procurado envolver a família do
presidente no negócio. Só ele poderia esclarecer o que realmente o levou a
agir assim.
Poucos anos depois, quando foi chamado a depor numa comissão
parlamentar de inquérito, o Conde agiu com muita elegância em relação a
mim. Ele chegou ao Congresso em grande estilo, acompanhado de Júlio de
Mesquita Filho e do advogado Oscar Pedroso Horta. Interpelado pelos
membros da comissão, o velho milionário exibiu seu humor singular. Os
parlamentares quiseram saber por que me dera dinheiro.
– O dinheiro é meu e eu dou para quem eu quero – retrucou Matarazzo.
Mas por que especificamente a Samuel Wainer?, insistiram os inquisidores.
Porque vira meu jornal e entendera que faria um bom investimento,
respondeu o Conde. Um integrante da comissão observou que eu era um
homem de origem humilde e poucos recursos, e que já tivera um título
protestado em cartório quando conhecera Matarazzo. Ele sustentou que tais
detalhes não tinham importância: conhecia vários industriais com títulos
protestados. Matarazzo acrescentou que me dera dinheiro por ter acreditado
no homem, e tanto agira com acerto que o jornal se mostrara um
empreendimento bem-sucedido. No fim do depoimento, quando os
parlamentares já haviam desistido de enredá-lo na trama, Francisco
Matarazzo fulminou-os com uma pergunta que exibia sua lógica peninsular:
– Os senhores por acaso conhecem algum dono de jornal que seja pobre?
Antes desse depoimento, eu me recusara sistematicamente a admitir que os
recursos para a fundação da Última Hora paulista haviam saído dos cofres do
império Matarazzo.
A origem do dinheiro já era conhecida, mas ainda assim eu me recusava a
endossar a versão veiculada com insistência pelo restante da imprensa. O
próprio Conde liberou-me desse voto de silêncio ao comparecer ao
Congresso. Ele fez questão de anunciar de viva voz que patrocinara a
aventura iniciada a 18 de março de 1952: nesse dia, o logotipo azul da Última
Hora de São Paulo apareceu pela primeira vez nas bancas da cidade.
Nos dois meses anteriores, eu tratara de colocar o precário equipamento
existente na oficina do jornal de Jafet, rudimentar e envelhecido, em
condições de rodar a Última Hora paulista. Consegui. Um de meus trunfos
como jornalista, por sinal, foi saber criar na pobreza. Jamais dispus de
máquinas novas, modernas. Sempre lidei com equipamentos que lembravam
a pré-história da imprensa, e era compelido a operar milagres para rodar meus
jornais. Certa vez, Danuza Leão, que então estava casada comigo, foi
convidada a responder a uma enquete organizada por uma revista interessada
em saber que tipo de presente um grupo de mulheres da alta sociedade
gostaria de oferecer ao marido. Danuza deu uma resposta bastante original:
“Uma rotativa nova com quatro cores.” Seria um presente magnífico.
Eu também transformara aquele pardieiro que abrigara o jornal de Jafet
num prédio esplêndido, com salões enormes, uma redação moderníssima, as
paredes decoradas com painéis de Di Cavalcanti. No dia do lançamento,
fretei um avião para trazer convidados do Rio de Janeiro, entre os quais
figuravam muitos representantes da alta sociedade carioca e, naturalmente,
vários integrantes da família Vargas. Fiz questão da presença da família real.
A Última Hora de São Paulo alcançou sucesso imediato, basicamente por
duas razões. Primeiro, tratava-se de um jornal federal num estado marcado,
como já disse, por uma imprensa irremediavelmente provinciana. Segundo,
porque meu jornal, embora federal, soube desde sempre ser paulista.
Nos anos 50, a imprensa já não era tão dependente dos favores federais
quanto em outras épocas. Nos anos 30, um jornalista português, João Lage,
dono de O País, editado no Rio de Janeiro, cunhara uma frase cujo cinismo
refletia com absoluta clareza as relações entre imprensa e poder no Brasil.
“Só preciso de 22 leitores: os 21 governadores e o presidente da República”,
dizia João Lage. Quando fundei a Última Hora em São Paulo, já se tornara
possível montar empresas jornalísticas sólidas sem a mão generosa do
governo. O Estado de São Paulo, por exemplo, era uma potência, da mesma
forma que A Gazeta, e nenhum deles fazia barganhas com os donos de poder.
De qualquer forma, São Paulo se ressentia da falta de notícias federais com
sua imprensa – os industriais paulistas, os homens do comércio, os donos da
terra precisavam saber o que se passava no Palácio do Catete. E eles todos
sabiam que nenhum outro jornal tinha tão franco acesso ao centro do poder
quanto a Última Hora. Este era um dos meus trunfos.
Outro trunfo consistia na evidência de que meu jornal tinha estreitas
vinculações com o povo. Do ponto de vista da elite paulista, eu invadira sua
fortaleza para combater sua sigla sagrada – a UDN – e defender um homem –
Getúlio Vargas –, a quem devotavam ódio mortal. Mas o povo não pensava
assim: centenas de milhares de paulistas veneravam Vargas, e me receberam
com a simpatia reservada aos aliados. Além disso, imediatamente comecei a
mostrar nas páginas da Última Hora a cidade esquecida, abandonada, a
cidade desprotegida. Simultaneamente, descobri o interior – havia
reportagens mostrando Santos, Ribeirão Preto, Campinas. Em pouco tempo, a
Última Hora era o mais paulista dentre todos os jornais editados no estado.
Creio ter conseguido inspirar, também em São Paulo, a mesma síntese
anárquica e criativa que fizera o sucesso da Última Hora carioca. Além de
importar colunistas que aparentemente pouco ou nada tinham a ver com São
Paulo, mas que deram certo, como Nelson Rodrigues ou a atriz Odete Lara,
lancei nomes tipicamente paulistas, como o humorista Arapuã, que se
tornaria uma celebridade local, ou Ricardo Amaral, que foi um ótimo repórter
e mais tarde se transformaria num dos reis da noite brasileira. O noticiário
político era da melhor qualidade: informávamos com competência o que
ocorria nos bastidores da guerra entre dois populistas, Jânio Quadros e
Ademar de Barros, cobríamos de perto a Assembleia e a Câmara de
Vereadores. As promoções se repetiam também em São Paulo, e sabíamos
capitalizar em favor do jornal fatos que emocionavam o povo. Quando
morreu Francisco Alves, por exemplo, imediatamente intuímos as reais
dimensões da tragédia: Chico Alves era o grande ídolo popular naquela
época, e tivera seu corpo carbonizado num acidente automobilístico. Os
brasileiros sempre se impressionaram com a morte pelo fogo, e esse tipo de
emoção se multiplica terrivelmente quando a vítima é alguém amado pelo
povo. Tivemos então e ideia de realizar no viaduto do Chá um evento que
batizamos de “Noite dos Violões”. Durante horas seguidas, madrugada
adentro, centenas de violões homenagearam Chico Alves, diante de uma
multidão que reunia dezenas de milhares de pessoas.
Como ocorria no Rio, grandes reportagens tornaram-se uma das marcas do
jornal. Houve uma reportagem que se tornou famosa: a rebelião do Presídio
Anchieta, um célebre e temido depósito de presos então instalado numa das
ilhas do litoral norte de São Paulo. Essa rebelião aconteceu em 1952 e
resultou na fuga de cerca de 120 condenados, que fizeram a nado a travessia
até as praias de Ubatuba. Informado do episódio, viajei imediatamente do Rio
para São Paulo e mobilizei a redação para uma cobertura intensiva. Entre
repórteres e fotógrafos, desloquei para a região quase trinta profissionais.
Demos uma inesquecível lição de jornalismo.
A receita da Última Hora, que misturava ingredientes aparentemente
inconciliáveis, incluía ousadias que os outros jornais locais jamais se
permitiriam. Instituí, por exemplo, a escolha do Homem do Ano, uma ideia
que depois seria retomada pela revista Visão. Só que o primeiro Homem do
Ano da Última Hora foi um dirigente sindical, Salvador Losacco, que
ostentava uma sólida fama de pelego. Não deixava de ser uma afronta às
elites paulistas. Mas também cobríamos a alta sociedade local com
reportagens ou notas nas colunas sociais. Graças a esses malabarismos,
conseguimos a proeza de transformar um jornal financiado por um conde
milionário e conservador numa publicação indiscutivelmente popular, com
posições nacionalistas de esquerda.
Não tenho dúvida alguma de que a Última Hora exerceu desde o começo
uma forte influência sobre a mentalidade dos paulistas, sobretudo dos
paulistanos que, nos anos 50, ainda habitavam uma cidade ilhada, distante do
resto do Brasil. A Última Hora em São Paulo foi um polo de irradiação do
pensamento nacionalista, de difusão das ideias que àquela altura eu já havia
incorporado definitivamente. Era o caso da nacionalização do petróleo, por
exemplo, materializada com a criação da Petrobrás, em 1953, por inspiração
de Getúlio Vargas. Muitos anos depois, quando a Petrobrás resolveu publicar
um folheto comemorativo de seu vigésimo aniversário, os dirigentes da
empresa concluíram que nada simbolizava melhor a importância desse evento
que a primeira página da edição em que meu jornal anunciou o fato histórico:
FUNDADA A PETROBRÁS, informava a manchete em letras enormes.
Abaixo da manchete, uma grande foto mostrava Getúlio com as mãos
banhadas de petróleo. A briga com Carlos Lacerda, que em 1952 ia ganhando
intensidade, também me ajudou a consolidar a Última Hora em São Paulo.
Lacerda era o ídolo da UDN paulista e mantinha fortes vínculos com a
família Mesquita, dona do “Estadão”. Era natural que o lançamento do meu
jornal em São Paulo abrisse uma nova frente de combate. Os antilacerdistas
compravam a Última Hora por razões óbvias – eu me transformara em seu
porta-voz. E os lacerdistas também compravam para saber que espécie de
acusações eu fazia a seu mentor.
Revolucionei os métodos de distribuição em vigor na cidade ao criar as
edições com uma, duas ou três estrelas, que identificavam a primeira,
segunda e terceira edições num único dia. Mudávamos algumas páginas
incluindo notícias frescas, e o jornal estava sempre quente. O público gostou,
e a Última Hora chegaria em pouco tempo à tiragem diária de 150 mil
exemplares, notável para uma cidade com cerca de dois milhões de
habitantes. Funcionários da redação contavam que ao entrarem num ônibus
viam tudo azul – era o logotipo inconfundível do meu jornal. Para acentuar o
azul, eu importava uma tinta mais forte. Tão logo constatou a imensa
penetração da Última Hora, Assis Chateaubriand começou a recorrer a seu
estoque de truques. O primeiro deles foi importar a mesma tinta que eu
utilizava e aplicá-la ao Diário da Noite, para confundir os leitores distraídos.
Eu próprio, mais de uma vez, comprei o Diário da Noite pensando tratar-se
da Última Hora. Outro truque foi ameaçar com represálias quem anunciasse
em meu jornal.
A situação financeira de minha empresa não era ruim, embora eu tivesse de
tomar mais algum dinheiro emprestado ao conde Matarazzo. Como o jornal
do Rio de Janeiro já parecia inteiramente consolidado, passei a deslocar-me
até São Paulo com mais frequência, vigiando o comportamento e a saúde do
caçula da família. Os diretores da Última Hora paulista sempre puderam agir
com independência no plano regional, consultando-me apenas em ocasiões
mais delicadas. Já as questões ligadas de alguma forma à área federal eram
exclusivamente decididas por mim. Compreendi em pouco tempo que eu
deveria circular em São Paulo, ser visto em São Paulo, para deixar ainda mais
transparentes os vínculos do jornal com a cidade. Além disso, certos contatos
– com banqueiros, empresários e políticos muito importantes, por exemplo –
eu fazia questão de estabelecer pessoalmente. Por tudo isso, achei
conveniente ter um endereço fixo também em São Paulo, e aluguei uma casa
luxuosíssima no bairro do Pacaembu.
Nem sempre eu me servia dessa casa. Eventualmente, as viagens a São
Paulo eram uma espécie de fuga. Em noites de muito cansaço, ou em
momentos de depressão, eu saía com meu carro pela via Dutra e dirigia ao
longo da madrugada até chegar à capital paulista. Dormia na própria redação,
estirado num sofá, e ao acordar entregava-me imediatamente ao trabalho. A
casa no Pacaembu ficava reservada às ocasiões mais solenes, festas,
recepções. Essas celebrações nunca chegaram ao requinte das festas que eu
promovia no Rio de Janeiro, mas exibiam minha força e meu prestígio junto à
alta sociedade paulista. A seus olhos, afinal, ali estava um grande amigo do
presidente da República.
Getúlio sabia que eu introduzira uma cunha do governo em território hostil,
e acompanhava com atenção os desdobramentos da aventura. Raríssimas
vezes divergimos. Uma dessas divergências teve como pivô a figura de Jânio
Quadros, um jovem vereador que se lançara candidato à prefeitura, e não foi
difícil contorná-la. Vargas, a quem desagradava a emergência do populismo
janista, pediu-me que combatesse sua candidatura. Preferi não contrariar o
presidente, mas marquei um encontro secreto com Jânio Quadros no Hotel
Comodoro. Ele chegou acompanhado pelo general Porfírio da Paz, que seria
vice-governador por oito anos. Nessa reunião, combinamos que a Última
Hora não daria apoio ostensivo a Jânio. Em contrapartida, cedi-lhe uma
coluna no jornal, batizada de “Canto do JQ”, e nesse espaço ele pôde expor
livremente suas opiniões. A coluna foi-lhe extremamente útil durante a
campanha.
A boa situação de meu jornal permitia que eu saboreasse as doçuras do
poder. Mulheres tiravam-me para dançar e sussurravam-me pedidos para que
apresentasse seus maridos ao presidente. Às vezes, eu atendia. Jovem,
esbelto, elegante, viajava constantemente, alternando aventuras e contatos
profissionais. Continuava decidido a brilhar socialmente e não resistia aos
encantos da aristocracia e a seus convites para festas e jantares. Cortejado e
temido no Rio, temido e cortejado em São Paulo, nunca estive, porém, cego à
realidade – e pude perceber que um cinturão de inveja ia se formando em
torno de mim. Só não pressenti, naquele momento, quais eram suas reais
dimensões.
CAPÍTULO 23
Era uma guerra sem quartel, sem tréguas, sem limites. O objetivo dos meus
inimigos – destruir a Última Hora – não seria alcançado sem que eu fosse
destruído, e precisamente por isso as agressões pessoais não conheciam
fronteiras. Eu revidava também agressivamente, com dureza. Como o jornal
era um sucesso, tinha ali uma fortaleza muito bem guarnecida.
Entrincheirados na redação, eu e meus companheiros alternávamos virulentas
ofensivas contra Lacerda e períodos em que o ignorávamos por completo. Ele
sentia nosso desprezo por sua figura, e isso o feria profundamente. Afinal,
tratava-se de um homem que acuava presidentes, derrubava ministros,
intimidava generais, quebrava bancos. Não podia admitir que alguém
simplesmente o desprezasse.
Creio que uma das razões de minha sobrevivência como homem e como
profissional foi a dignidade que sempre mantive em relação a Lacerda, a
coerência da minha postura durante a luta e depois dela. Jamais admiti a
possibilidade de acordos, jamais cogitei qualquer espécie de acerto. Aceitei o
combate, e soube enfrentá-lo de peito aberto. Hoje, tenho consciência de que
o grande papel da Última Hora, neste aspecto, foi desmistificar a imagem de
Carlos Lacerda. Nós o mostramos ao país como ele realmente era, golpeamos
duramente a imagem que Lacerda pretendia tornar oficial. Se algum jornal
tivesse desempenhado papel semelhante no começo da ascensão de Adolf
Hitler, a história da Alemanha – e do mundo – poderia ter sido outra.
Esse pensamento me ocorreu quando ouvi, no rádio do carro, a notícia da
morte de Carlos Lacerda. Ele foi o responsável direto pela interrupção do
processo de fortalecimento econômico da Última Hora, impedindo que se
consolidasse no Brasil a imprensa genuinamente popular. Em contrapartida,
meu jornal impediu que ele se tornasse um ditador.
Costumo dizer que a Última Hora tinha tudo para transformar-se numa
Volta Redonda da imprensa brasileira. Para fechar o caminho a um jornal
popular, nacionalista, Carlos Lacerda usou métodos de terrorismo psicológico
até então desconhecidos no país. Atento às técnicas macartistas em curso nos
Estados Unidos, ele passou a amedrontar as pessoas que se aproximavam de
mim mesmo em encontros casuais numa rua qualquer. A Tribuna da
Imprensa divulgava informações do tipo “Fulano foi visto conversando com
Samuel Wainer na avenida Rio Branco. Trajava um terno azul e gravata
listrada. O que será que estavam conversando?”. Era um clima de completo
terror, e mesmo velhos amigos meus começaram a mostrar-se assustados.
Mas a Última Hora sabia revidar, sem dúvida. Escrevíamos artigos terríveis
contra Carlos Lacerda, vigiávamos estreitamente seus passos e,
principalmente, não perdíamos chances de ridicularizá-lo. Às vezes alguma
tentativa nessa direção falhava, como ocorreu no episódio em que apontei a
Tribuna da Imprensa como “lanterninha” entre os jornais. Em outras
ocasiões, contudo, atingíamos o alvo em cheio. Foi assim no incidente a
partir do qual Lacerda seria nacionalmente conhecido como “Corvo”.
Trabalhava comigo um repórter policial chamado Nestor Moreira. Era,
como tantos outros, um repórter sem maior brilho, que percorria o submundo
das delegacias e depois telefonava para a redação transmitindo as ocorrência
do dia. Num dia de 1954, Nestor Moreira teve um atrito com um policial,
lotado numa delegacia de Copacabana, cujo apelido era “Coice de Mula”.
Não sei exatamente o que ocorreu, mas o fato é que Nestor foi espancado e
morreu. Jornalista, como sabemos, não pode sequer ser agredido, muito
menos morrer: para os demais jornalistas, trata-se de uma espécie de atentado
ao patrimônio nacional. Nesses momentos, explode o conhecido sentimento
de solidariedade existente na imprensa brasileira, que já fabricou tantos
mártires. Nestor Moreira seria um deles.
Tão logo começou a correr a notícia de sua morte, os inimigos de Getúlio
lançaram-se à tentativa de transformar o fato numa questão política que
complicasse o governo. Nestor Moreira teve um enterro com o qual jamais
sonhara. Seu corpo foi levado para a Câmara Municipal, o povo desfilou ao
lado do esquife. Os organizadores da cerimônia decidiram que o repórter
deveria ser enterrado no Cemitério de São João Batista. Sempre detestei
comparecer a enterros, e decidi que não iria ao de Nestor Moreira. O pessoal
da redação começou a pressionar-me, com aqueles apelos de sempre: “Mas
Samuel, ele gostava tanto de você...” Acabei cedendo. No cemitério,
encontrei-me com Octávio Malta e Moacir Werneck de Castro. Fiquei a um
canto, observando o espetáculo. Passavam por mim políticos com fisionomia
contrita, bandos de jornalistas, todos incorporados à encenação. De repente,
vi Carlos Lacerda.
Lacerda estava vestido de preto dos pés à cabeça, aspecto solene, rosto
compungido, ar sofredor. Era o retrato da revolta humana frente à violência
cometida contra um humilde jornalista, vítima da arbitrariedade política.
Quando vi a cena, senti-me enojado.
– Vou-me embora – disse a Octávio Malta. – Não agüento ver a cara desse
corvo na minha frente.
Sempre que ocorria alguma morte interessante, lá estava Carlos Lacerda.
Era um corvo. Nesse momento, o repórter Edmar Morel aproximou-se de
mim em missão conciliatória.
– Samuel, esta hora é para se esquecer divergências. Venha dar a mão ao
Carlos – sugeriu.
– Dar a mão à puta que pariu! – reagi. – Como é que você, Morel, que é meu
repórter, meu amigo, tem coragem de propor uma coisa dessas? O Carlos não
é jornalista, detesta reportagens de polícia e nunca viu o Nestor Moreira em
sua vida. O que vou fazer é ir embora!
Voltei para a redação cuspindo fogo. A meu lado estava Paulo Silveira.
– Você viu o Carlos? – eu repetia, irritadíssimo. – Ele estava com cara de
corvo!
Na redação, convoquei à minha sala o caricaturista Lan e pedi-lhe que
desenhasse Lacerda como um corvo. Em seguida, propus a Paulo Silveira que
escrevêssemos um editorial cujo título, naturalmente, foi “O Corvo”. O texto,
longo e violento, descrevia a cena que vira no cemitério e desancava Lacerda.
Nunca mais o apelido deixaria de acompanhá-lo. Mesmo os funcionários de
seu jornal passaram a referir-se ao chefe como “A Ave”, um bom eufemismo.
Nos comícios de que Lacerda participava, era comum ouvir-se uma voz
berrando no meio da multidão: “Cala a boca, corvo!” Aquilo marcou Lacerda
para sempre, e naturalmente ampliou o ódio que sentia em relação a mim.
Desde 1952, esse ódio agudo, visceral, vinha-se multiplicando, e podia ser
captado em todo o país. Na Tribuna da Imprensa e nos Diários Associados,
reportagens, artigos e editoriais fustigavam-me diariamente. Graças à TV
Tupi, a figura de Lacerda tornara-se familiar a centenas de milhares de
espectadores, que a cada noite ouviam mais acusações contra mim. E o cerco
se tornou incomparavelmente mais agressivo a partir de 12 de julho de 1953.
Nesse dia, o Diário de São Paulo, um dos jornais da cadeia de Assis
Chateaubriand, publicou uma manchete que agitaria o país:
Em 1961, houve uma noite em minha vida em que tive um incidente muito
grave com Danuza, de quem estava me separando. Fiquei desesperado, pois
uma de minhas obsessões era evitar que chegássemos ao ponto de ruptura, o
que certamente incidiria de modo negativo sobre a formação dos nossos
filhos. Eu me excedera ao discutir com Danuza, perdendo o controle dos
nervos, e a ofendera de forma lamentável. Fiquei perambulando pelos
caminhos sombrios do Largo do Machado, ruminando a cena da discussão e
tentando encontrar uma maneira de reparar meu erro. A certa altura, lembrei-
me de que perto dali morava uma psicóloga a quem Danuza levara minha
filha Pinky; resolvi procurá-la.
Bati à sua porta às sete horas da manhã; ela abriu a porta estremunhada.
Não era exatamente uma mulher simpática, mas eu já não tinha como recuar.
– Desculpe-me ter vindo aqui perturbá-la – disse. – Mas estou desesperado e
quero saber o que fazer.
Ela mandou-me entrar, eu lhe abri a alma. Até então, essa psicóloga não me
conhecia pessoalmente. Quando terminei meu desabafo, ouvi algo que nunca
mais esqueceria.
– O senhor me dá a impressão de ser um homem para quem a luta em si é
mais importante que o começo da luta, ou o seu desfecho – disse-me ela. – O
que o senhor não sabe fazer, nem pode, é abandonar o combate. O senhor
entrou numa luta e agora não quer sair dela.
Guardei para sempre essas palavras, que encerravam uma boa dose de
verdade. Era a luta, algum tipo de luta, que me mantinha, me sustentava, me
preservava. Lembro-me de que, numa ocasião em que Carlos Lacerda me
atacava com especial intensidade, recebi a visita de Oscar Pedroso Horta. Ele
me encontrou com o televisor ligado na TV Tupi. O vídeo mostrava o rosto
de Carlos Lacerda, mais uma vez empenhado em reconstituir a árvore
genealógica dos Wainer. Pedroso Horta pareceu chocado com o que ouvia.
– Não é possível que isso continue – exclamou a certa altura. – Isso ainda
vai levar o país à guerra civil, é preciso que acabe já.
Virou-se para mim com expressão de pena.
– Como você deve estar sofrendo, Samuel – condoeu-se.
Senti vontade de rir, uma sincera vontade de rir. Contive-me.
– Horta, não estou sofrendo – expliquei. – Primeiro, acho grotesco ver o
Carlos desenhando a árvore genealógica da minha família. Além disso, essa
luta representa para mim uma razão de viver.
Isolado na embaixada do Chile, em abril de 1964, eu procurava convencer-
me de que a luta não cessara – haveria apenas um intervalo, durante o qual
seria possível esquecer-me de Lacerda, da necessidade de revidar a ataques
diários, da mesquinhez dos supostos amigos de João Goulart. Livre desse
problemas cotidianos, poderia dedicar-me às coisas de que gostava e, mais
importante ainda, a três pessoas que amava particularmente: meus filhos, com
os quais sempre tive relações muito especiais. Pinky, Samuca e Bruno
atravessavam sem esforço algum a couraça que sempre bloqueou minha
afetividade.
Essa compulsão de preservar-me de doações afetivas incondicionais me
manteve a certa distância tanto dos políticos com os quais convivi até
fraternalmente quanto dos amigos que viveram comigo a imensa aventura da
Última Hora. Neste caso, movia-me também a convicção de que o homem
que lidera não pode ter limitações afetivas, não pode esbarrar em vínculos
sentimentais. O homem que lidera é um homem só. Confesso, honestamente,
que jamais alimentei uma grande amizade. Tive amigos que se sacrificaram
por mim, que me contemplaram com gestos de extrema generosidade. Tive,
em resumo, amigos que me amaram, mas eu nunca soube retribuir, nem
mesmo fui ao enterro de alguns deles. Recebi muito mais do que dei. Poderia
ter-lhes oferecido demonstrações de afeto ao longo de trinta, quarenta anos de
convivência. Mas me contive, embora os amasse.
Com meus filhos sempre foi diferente, a nossa proximidade se aguçou com
o tempo. No momento em que dito estas memórias, eles me oferecem
demonstrações de carinho que saboreio com enorme prazer. De repente,
Samuca, por exemplo, telefona para contar como foi uma reportagem que
acabou de fazer para a TV Globo, no tom entusiasmado de quem vai
revolucionar a televisão brasileira. Pinky me liga de Ubatuba para perguntar
como estou e pedir um presentinho – ela já está casada e tem filhos, mas quer
o colo do pai. Saio com Pinky com certa frequência, e então lhe compro um
casaco, ou um doce. Essas pequenas coisas me protegem da nostalgia do
poder e impedem que eu me arrependa por não ter enriquecido.
No meu exílio, que se estenderia até 1968, penso que soube educar meus
filhos de modo a prepará-los para a ideia de que ter dinheiro não era vital. Na
França, por exemplo, quando meu caçula Bruno me pedia dois francos para
comprar um gibi, eu lhe dava quatro e o proibia de devolver o troco. Aliás,
achei ter chegado a hora de voltar ao Brasil num dia em que fiz a mesma
coisa com Samuca e ele espantou-se. “Papai, tu es fou”, comentou. Ele vira
naquele gesto perdulário um sinal de que o pai havia enlouquecido. Na
verdade, Samuca já estava começando a ser contaminado pelo espírito
avarento, pela mesquinhez que marca o caráter do povo francês. Eu fazia
questão de que meus filhos fossem desprendidos em relação ao dinheiro.
Felizmente, nenhum dos três jamais me acusou de não lhes ter deixado
alguma herança. Ao contrário, riem muito quando conto histórias dos tempos
em que fui rico; irônicos, agradecem a “herança cultural” que leguei. Creio
ter conseguido equipá-los psicologicamente para a hipótese de um eventual
empobrecimento, que afinal se consumou.
Contemplando meu percurso, constato ter vivido uma experiência humana
completa ao cumprir uma trajetória que me permitiu conhecer a ascensão, a
glória e a queda. Na época em que eu era um príncipe do governo Vargas, a
revista Time publicou a meu respeito uma reportagem cujo título era “O
Profeta”. Alguns anos depois, outra reportagem sobre mim, na mesma
revista, tinha como título “O Profeta Destronado”. A revista acertou – eu
realmente fora destronado. Mas sobrevivi sem maiores inquietações
interiores. A queda não me afetou como eu temia, até porque um outro traço
de temperamento – meu desapego às pompas, à glória, ao próprio poder –
contribuiu para reduzir sensivelmente seu impacto.
Claro, às vezes sinto saudades dos prazeres que o poder proporciona, dos
afagos que minha vaidade recebia. Mas nada supera a alegria de constatar que
as pompas do mundo não me fazem falta. Isso me permitiria, mais tarde,
voltar a trabalhar como assalariado, sem qualquer constrangimento, na
redação do jornal que eu próprio fundara. Ademais, estou convencido de que
não me deformei, não me corrompi, não perdi a dignidade, não me humilhei.
Sim, não é agradável lembrar que passei cinco, seis horas na sala de espera
do escritório de algum banqueiro, mas fiz isso para que meu jornal
sobrevivesse. Eu lutava por uma causa. Da mesma forma, fiz acordos e
acertos que muita gente condena, mas também aí estava em jogo a
sobrevivência da Última Hora. Nada guardei para mim.
Quando decidi escrever estas memórias, não pretendia escrever algum
discurso de defesa. Queria apenas saber se valeu a pena. Contemplando o que
o destino me ofereceu, só posso concluir que valeu. Claro, claro que valeu.
Mas não me detive nessa espécie de balanço em abril de 1964, asilado na
embaixada do Chile, talvez pelo desejo de acreditar que o mesmo combate
que me absorvera durante anos logo seria retomado. Tratava-se de uma
pausa, nada mais que uma pausa. Só mais tarde entendi que chegara ao fim, e
que os vencidos haveriam de pagar um preço por isso. Naquele momento,
procurei não pensar nessas coisas. Eu queria agarrar-me à crença de que a
Última Hora sobreviveria à tormenta.
A Última Hora efetivamente mostrou-se preparada para suportar a
tormenta. Em outros estados, contudo, meus jornais sofreram já no dia 31 de
março golpes que se revelariam fatais. Em São Paulo, por exemplo,
problemas pessoais impediram que Jorge Cunha Lima, o chefe da redação
paulista, comparecesse ao prédio do jornal na noite do dia 31 de março para
defendê-lo, e a Última Hora ficou acéfala num momento crucial de sua
história. O general Amaury Kruel, então comandante do II Exército,
mantinha relações de amizade comigo e me prometera, dias antes, proteger o
jornal de eventuais ataques direitistas. Desencadeado o golpe ao qual viria a
aderir dois dias depois, Kruel colocou soldados na porta do prédio. Sem
comando, o jornal deixou de circular durante longos 21 dias. Quando voltou
às bancas, perdera definitivamente a força de outros tempos, vergando-se à
anemia que precipitaria sua venda e, mais tarde, sua morte.
A Última Hora de Pernambuco pagou um alto preço por ter configurado,
em seus 22 meses de existência, uma ilha esquerdista cercada por uma
imprensa regional profundamente reacionária. No dia 31, quando eu já me
preparava para asilar-me na embaixada do Chile, o diretor da UH do Recife,
Múcio Borges, telefonou-me para saber que manchete deveria publicar.
Decidimos que a manchete seria “Todo Poder à Legalidade”. No dia seguinte,
nem bem o jornal chegou às bancas, militares do III Exército invadiram a
redação para prender os responsáveis pelo jornal e fechá-lo. O jornalista
Milton Coelho da Graça reagiu àquela arbitrariedade e, além de preso, foi
brutalmente torturado. Milton aborreceu-se comigo porque censurei sua
atitude. Talvez não tenha compreendido que eu apenas queria que, em vez de
defender o jornal, defendesse sua vida. Como não havia condição alguma
para a resistência, o mais sensato era que, naquele momento, cada um
cuidasse da própria sobrevivência.
Acompanhei essas violências refugiado na embaixada chilena, onde
aguardava o momento de sair do país. No dia 3 de abril de 1964, o próprio
embaixador do Chile comunicou-me que uma visita estava à minha espera em
outra sala. Era Ibrahim Sued. Fiquei intrigado: segundo as leis do asilo, eu só
poderia receber familiares na embaixada. O diplomata chileno esclareceu que
abrira uma exceção porque Ibrahim Sued era um homem muito importante.
Fui ao encontro do ilustre visitante, e Ibrahim explicou-me que estava ali em
nome de um grupo de empreiteiros interessados em comprar a Última Hora.
Eram os empreiteiros que mais tarde se ligariam estreitamente ao coronel
Mário Andreazza.
– Não quero vender a Última Hora, Ibrahim – informei.
– Você é maluco? – espantou-se ele. – Não vê que não tem condições de
manter o jornal?
Repeti que não tinha intenção alguma de desfazer-me da Última Hora.
– Eles pagam o preço que você estabelecer – ressalvou Ibrahim.
Insisti na negativa, e a conversa começou a morrer. Alguns anos depois, ao
cabo de penosas negociações que serão aqui relatadas, a Última Hora acabou
sendo comprada pelo mesmo grupo de empreiteiros que haviam incumbido
Ibrahim Sued de ir ao meu encontro. Naquele instante, porém, eu achava
conveniente preservar o jornal até que a situação brasileira se tornasse menos
sombria. Eu ainda não compreendera que o regime militar teria vida longa.
Não alcançara, também, até que ponto os empreiteiros estavam dispostos a
ampliar sua influência direta sobre a nossa imprensa.
Alguns meses depois, exilado em Paris, recebi a visita de um emissário
desse grupo de empreiteiros, liderados pelos irmãos Alencar – Maurício,
Marcelo e Mário. Os Alencar sempre haviam cultivado lucrativas ligações
com multinacionais e militares, e pressentiam que, com o golpe de 64, sua
hora chegara. Já convencido de que não seria fácil sobreviver no exílio, senti-
me inclinado a fechar negócio. Para consumar a transação, eu precisava do
consentimento formal de Haryberto Miranda Jordão, advogado da minha
empresa, e Sérgio Lima e Silva, diretor da Última Hora. Diante das
incertezas provocadas pelos idos de 64, eu passara a cada um deles um terço
das ações do jornal. Tratava-se, naturalmente, de um artifício legal, pois eu
retomaria as ações tão logo o quadro brasileiro se aclarasse.
Haryberto foi ao meu encontro em Paris, e só então percebi que eles
levaram a sério o que para mim fora apenas um artifício: o advogado e o
diretor da minha empresa achavam que as ações efetivamente lhes
pertenciam, e Haryberto conversou como se fosse, de verdade, dono de um
terço da Última Hora. Fiquei perplexo, mas nada podia fazer. Eles
informaram que só venderiam suas partes por uma quantia X, muito superior
ao preço que os empreiteiros poderiam pagar. Graças a Haryberto e Sérgio, as
negociações goraram. Foi então que os empresários voltaram seus olhos para
o Correio da Manhã.
Embora já estivesse muito distante da opulência exibida nos tempos do
mandarinato de Paulo Bittencourt, o Correio da Manhã ainda era a marca
mais valiosa da imprensa brasileira. O jornal tinha tanta influência e tamanha
tradição que, logo depois de ter precipitado a queda de Jango com violentos
editoriais, conseguiu fazer oposição ao poder ascendente dos militares e
manter sua força. Creio que o Correio da Manhã estaria vivo ainda hoje se
não tivesse tido a má sorte de passar, no começo dos anos 60, às mãos de
Niomar Moniz Sodré Bittencourt, a viúva de Paulo. Niomar, uma sinhazinha
baiana inteiramente despreparada para assumir a direção de um dos grandes
jornais do Brasil, resolveu provar que era melhor do que o marido e o sogro,
Edmundo Bittencourt. Pendurada nessa autossuficiência, destruiu o jornal em
pouco mais de três anos.
Ao saber que o Correio da Manhã, sitiado pelo governo militar, enfrentava
graves dificuldades, resolvi propor a Niomar uma aliança conveniente a
nossos jornais. A ideia era que a gráfica do Correio – uma oficina
monstruosa, capaz de imprimir simultaneamente meia dúzia de jornais –
rodasse as edições de Última Hora. Além disso, os exemplares do meu jornal
seriam distribuídos pela frota do Correio, que somava dezenas e dezenas de
veículos. Achei que ali estava um bom negócio para nós dois. Acertada essa
espécie de pool, eu poderia desfazer-me tanto da gráfica quando da frota da
Última Hora. Niomar, em contrapartida, poderia utilizar a capacidade ociosa
de seus equipamentos e veículos. Pedi a Danton Jobim, que me visitava em
Paris e era amigo de Niomar, que lhe expusesse minha proposta.
– Não me misturo com cafajestes – respondeu Niomar.
Poucos meses depois, o Correio da Manhã foi comprado pelos empreiteiros
que haviam tentado obter o controle da Última Hora. Mais alguns meses e o
velho jornal já não existia mais.
Deixei o Brasil com trinta mil dólares que conseguira reservar para
emergências. Algum tempo depois, retirei os vinte mil que deixara guardados
no banco suíço. Mais tarde, obtive de Jorge Serpa outros noventa mil dólares,
ao fim de constrangedoras negociações. Ao constatar que não seria fácil
sobreviver com meus filhos na França, fiz chegar a Jorge Serpa uma ameaça:
se não me fosse entregue um milhão de dólares, conforme ele me havia
prometido, eu revelaria todos os detalhes da transação que ele comandara.
Serpa assustou-se e mandou um emissário a Paris para entender-se comigo.
Lutamos como leões. Eu dizia que meus filhos enfrentavam sérias
dificuldades e que a Última Hora estava condenada à morte. O emissário
sustentava que Serpa não dispunha de tantos recursos. No fim das contas,
contentei-me com noventa mil dólares. Embora tivesse certeza de que Serpa
embolsara o dinheiro, achei sensato não prolongar a discussão. Mas não
fiquei com os noventa mil dólares. Sempre perdulário, entreguei quarenta mil
a Sérgio Lima e Silva, encarregando-o de ressuscitar a Última Hora em São
Paulo. Mais uma vez, joguei dinheiro fora.
A Última Hora me preocupava permanentemente, mas também dei curso a
outros projetos que frequentavam minha imaginação. Como alguns dos
grandes jornalistas franceses eram meus amigos, resolvi convencê-los de que
valeria a pena lançar uma versão europeia de Seleções do Reader’s Digest,
um enorme sucesso naquela época. A ideia era fazer uma revista, cujo título
seria Europe Moderne, ou simplesmente E. M., que traduzisse o pensamento
e a cultura da Europa ocidental. A ideia, em princípio, agradou bastante.
Certo dia, fui à redação do jornal Le Monde falar sobre esse projeto. Como eu
gostava de tocar várias coisas ao mesmo tempo, aproveitei a ocasião para
convencer a direção do Monde a me vender os direitos sobre a reprodução de
suas reportagens no Brasil por cem dólares mensais.
Entusiasmado com esse acerto, fechei contratos semelhantes com
L‘Express, por duzentos dólares mensais, e com Le Nouvel Observateur, pelo
mesmo preço. Ou seja: por quinhentos dólares ao mês, eu conseguira
contratos de exclusividade com o principal diário e as duas revistas mais
importantes da França. Quando a notícia chegou ao Brasil, Assis
Chateaubriand despachou para Paris o fotógrafo Jean Manzon, com a missão
de torpedear ao menos o contrato com o Monde. Manzon procurou Hubert
Beuve-Meury, diretor do jornal, para dizer-lhe que a Última Hora era o jornal
da ralé carioca; não valeria a pena, portanto, formalizar qualquer espécie de
acerto com uma publicação desse tipo.
– A terra pertence ao primeiro ocupante – filosofou Beuve-Meury, decidido
a manter a palavra empenhada.
Durante algum tempo, a Última Hora utilizou com relativo sucesso as
reportagens compradas a Le Monde, mas depois de poucos meses constatei
que aquele dinheiro desembolsado a cada mês estava ficando caro demais
para meus bolsos. Desfiz o acordo com as revistas e transferi os direitos sobre
os textos de Le Monde para a Folha de São Paulo, que até hoje os republica.
Tentei levar adiante a ideia da versão europeia de Seleções, mas é meio
complicado discutir com franceses. O projeto acabou morrendo, mas
continuo com a convicção de que tinha tudo para dar certo.
Ainda em 1965, a Última Hora recuperou sua saúde financeira e passei a
receber quatro mil dólares por mês. Isso me bastava. Com esse dinheiro,
mantinha meu Alfa-Romeo, um apartamento de dois quartos (administrado
por uma empregada importada de Portugal) e pagava a escola das crianças –
Pinky estudava num colégio perto de Paris, Bruno e Samuca numa escola na
Suíça. Paralelamente, seguia com minha intensa vida social, favorecida por
relações que estabelecera em anos anteriores. Quando cheguei a Paris, por
sinal, Le Monde noticiou na primeira página o desembarque do “exilado
brasileiro e grande editor Samuel Wainer”. Essas coisas impressionavam
muito e contribuíram para abrir-me as portas do grand monde parisiense.
Sempre muito provincianos, os brasileiros não conseguem encarar com
naturalidade minha convivência com artistas, intelectuais, playboys
milionários. Em jornais do Rio e de São Paulo, cronistas sociais publicavam
notas anunciando, com franca admiração, que eu fora visto ao lado da
princesa Soraya, a bela mulher repudiada pelo xá do Irã por não poder dar-lhe
filhos. Soraya tinha um rosto realmente lindo, mas era bastante simples, uma
alma quase camponesa, também ela deslumbrada com as luzes de Paris.
Circulando pelos lugares da moda, era inevitável que eu fosse visto em
companhia de gente famosa. Certa noite, fui a uma recepção numa das casas
da família Rothschild. A caminho da festa, encontrei-me com um pequeno
grupo formado por Fred Chandon, o homem da champanha, Claude de
Leusse, uma querida amiga que apesar de genuinamente aristocrata
trabalhava como jornalista, e Anita Ekberg, a estrela de A Doce Vida. Entrei
no salão de braços dados com duas esplêndidas mulheres – Claude era
elegantíssima. Adolfo Bloch, para meu desprazer, estava presente à recepção
e me recebeu com um olhar de profunda inveja. Mais tarde, conversando
comigo, tentou ser amável:
– Você parecia um artista de Hollywood! – admirava-se Bloch. – De
Hollywood!
CAPÍTULO 35
Augusto Nunes