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Edgard Malagodi.
I - Introdução: o problema.
país.1 Teriam, assim, caído por terra as aspirações reformistas de tantos quantos já
desejaram uma reforma ampla da estrutura agrária no Brasil. E, do outro lado, do lado
dos movimentos sociais, estes estariam descaracterizados e estariam sendo
instrumentalizados por dirigentes impregnados de uma ideologia autoritária. Assim, os
questionamentos à estrutura agrária brasileira, a denúncia do problema social no campo,
etc., seriam problemas de outrora, especialmente dos anos 50 e 60 quando a agricultura
brasileira, então dominada pelos latifúndios improdutivos, estava estagnada e não estava
realizando seu papel de dinamizar a industrialização e a economia como um todo. Hoje
tais problemas estariam totalmente superados pelo boom do agronegócio, ao mesmo
tempo em que as demandas dos movimentos sociais deveriam ser tão somente objeto de
políticas sociais compensatórias.2
1
Pá de cal na Reforma Agrária, por Zander Navarro, jornal OESP 21/09/2013 (Opinião). Veja também as
“Sete Teses” (BUAINAIN et al., 2013), especialmente a 3ª. e 4ª. Tese.
2
“O tema da reforma agrária, concretamente, perdeu sua relevância, e a insistência (e correspondente
alocação de recursos) em ações estatais nesse campo não encontra nenhuma justificativa razoável.
Ignorando-se outros aspectos já também vencidos, sequer cabe menção a certa literatura que propõe
uma discussão sobre “campesinatos”, os quais seriam outra via possível de desenvolvimento agrário. É
argumento tão estapafúrdio que não merece comentário”. (BUAINAIN et al., 2013, p. 116).
3
Parte dos argumentos aqui listados poderá encontrar respaldo em muitos trabalhos que analisam
dados censitários. Cf. HELFAND, S. M. et al., 2014
4
Poderíamos tomar como referência meados do século XVIII, ou o “divisor de águas”, proposto por Karl
Polanyi, em torno de 1780, quando o mundo se dá conta de que o mesmo sistema que produz a
“riqueza das nações” foi responsável pela invenção da pobreza. (POLANYI, 2002, p. 116).
3
Ou seja, é um debate que teve amplo sentido histórico nos países do Norte, mas não tem
tanto a ver com a realidade social dos países do Sul, quer dizer, da América Latina, da
África e da Ásia. No entanto, a antiguidade desse debate nos serve de alerta em um
ponto essencial: essa não tem sido uma discussão neutra, nem muito menos conduzida à
parte dos interesses econômicos e posicionamentos políticos, ligados a interesses
corporativos.
Vemos, portanto, que ainda que seja discutida (ou recusada in limine) como uma
questão teórica, ela toca em interesses privatistas poderosos. Mas também está presa a
pressupostos políticos e ideológicos muito arraigados, e tidos como incontestáveis. Mas
exatamente por isso não podemos continuar fugindo de um balanço dessa questão,
principalmente porque as principais posições assumidas nos debates passados estão
reproduzidas nos debates atuais. É necessário, portanto, um mergulho teórico e
histórico na questão agrária, de tal forma que possamos nos dar conta dos mitos e
4
II – O debate de ontem.
5
Em geral os estudos sobre a renda na agricultura mencionam o problema sem toma-lo como questão.
Cito apenas dois trabalhos muito conhecidos e citados. Para o início dos anos 80: Progresso Técnico e
Desenvolvimento da Agricultura (SILVA, 1980). Para os dias de hoje: Sete teses (BUAINAIN et al., 1973, p.
116).
6
“Por mais que se tenha revestido de um aparato teórico imponente, esta célebre expressão (questão
agrária) sempre correspondeu, antes de tudo, à resposta de certas organizações políticas a
determinadas situações circunstanciais.” (Abramovay 1992, p. 31)
7
Shanin (1983/1991) na primeira parte de seu artigo “A última fase do desenvolvimento do pensamento
de Marx: Deuses e Artesãos” faz uma descrição desse contexto. Cf. Shanin (1983/1991).
8
Cf. Marx, K. ; Engels, F. Manifesto do Partido Comunista, Várias Edições. “El modo de producción
capitalista domina la sociedad de hoy y el antagonismo de clase que engendra entre capitalistas y
proletarios es la fuerza que mueve nuestra época y la caracteriza.” (Kautsky, 1984, p. 3) Veja também
Abramovay, 1992, p. 36.
5
proletária que deveria vir logo em seguida.9 Embora a ideia tenha nascido no interior
dos partidos de esquerda, essa visão era comum aos positivistas e liberais. Isso fazia
parte do pensamento da sociedade industrial emergente, marcada por uma fé no
progresso industrial e tecnológico. Nas mentes pensantes da nova economia, da
esquerda ou da direita, o mundo moderno e industrial apresentava-se assim resolvido, e
tudo em nome do progresso da humanidade. Obviamente que a direita ficava com a
primeira metade dessa crença (fé no progresso, na indústria e no mercado), e o
pensamento conservador, buscando remédios para a desgraça dessa inexorabilidade
histórica. O mundo tinha se tornado muito simples, não havia mais nenhuma dificuldade
em entender o papel das principais classes sociais emergentes, a burguesia e o
proletariado, e nem tampouco o papel das classes secundárias, entre elas o campesinato,
tomadas como resquícios do passado ou variantes das classes emergentes.
9
O documento da época que melhor expressa isso é o Manifesto Comunista de 1848.
10
O partido Socialdemocrata tinha uma seção própria na Baviera, cujo congresso de Regensburg (1892)
aprovou medidas para melhorar a situação dos camponeses. Cf. Hussein & Tribe, 1981, p. 94.
11
Entre as principais reivindicações dos camponeses, constantes da seção bávara do Partido
Socialdemocrático e incorporadas pela Comissão Agrária escolhida no Congresso de Frankfurt (1994)
para preparar uma proposta de Programa Agrário para o congresso do ano seguinte (em Breslau)
contava-se: 1) conservação e aumento das terras públicas (propriedade estatal, propriedade comunal
6
O debate atingiu o seu ápice nos países da Europa continental no final do século
XIX, particularmente na Alemanha e na França, e depois reapareceu na Rússia no início
do século XX. No enorme e ruidoso debate instalado entre 1991 (Congresso de Erfurt) e
1995 (Congresso de Breslau) a questão política e prática que se colocava era a inclusão
ou não das reivindicações dos camponeses (o chamado “programa agrário”) no
programa oficial do partido socialista12, partido que se apresentava oficialmente como
seguidor das ideias e da teoria de Marx.
Partido seguidor das idéias e da teoria de Marx? Nisso aí nos já temos que
acender uma luz amarela de advertência, que precisa agora ser levada a sério: a
referência à teoria de Marx deve ser tomada com um cuidado muito especial.13 Na
etc.) em particular florestas e água; 2) passagem de terras públicas para cooperativas agrícolas ou para
pequenos camponeses; 3) Provimento de crédito agrícola pelo Estado; 4) Nacionalização dos bancos
hipotecários e da dívida hipotecária com redução das taxas de hipoteca; 5) Provimento de seguro
agrícola pelo Estado; 6) Manutenção e ampliação dos direitos comunais sobre áreas coletivas de
pastoreio e de coleta de lenha e madeira. (MILHAUD, 1903, apud HUSSEIN & TRIBE, 1981, p. 97/8.)
12
O partido socialista a que nos referimos é o SPD alemão – Sozialdemocratische Partei Deutschlands
(Partido Socialdemocrático da Alemanha) – o partido que assumira a tradição marxista e ditava ao
mundo o que devia valer ou não valer como “marxista”. Após a ruptura interna em 1914 (às vésperas da
Primeira Guerra Mundial), uma fração se proclamou comunista e revolucionária, herdeira autêntica da
ortodoxia e da obra de Marx, enquanto a outra foi chamada de “reformista” ou “revisionista”
permanecendo como “partido socialdemocrático” ou “socialista”. A partir de então passaram a se odiar
e a chamar uns aos outros de traidores e falsificadores da obra de Marx. Cf. Hegedüs (1986); Procacci
(1970); Kautsky (1970), Lênin (1919).
13
Do contrário cairemos em confusões elementares ou erros grosseiros. Zander Navarro, por exemplo,
autor que insiste na inexistência de uma questão agrária no Brasil, parte de Kautsky para explicar o
pensamento de Marx, partido do pressuposto que “geralmente, a literatura reconhece que foi Karl
7
Kautsky quem definiu explicitamente, em sua formulação clássica, a questão agrária”. (NAVARRO, 2014,
p. 703). Para Zander Navarro este autor (Marx) “sequer se dedicou diretamente a esse estudo” (p. 705),
o que não o impede de imaginar que a questão agrária “contém um ‘defeito de fabricação’ ancorada nos
próprios escritos de Marx”. O mencionado crítico reclama de “uma parte considerável dos
pesquisadores brasileiros” (que ele não diz qual e quem é) por transferirem para o setor da agricultura a
teoria que Marx teria desenvolvido para explicar as mudanças no setor urbano-industrial, até porque o
próprio Marx não teria estudado os “âmbitos rurais”. Mas afinal qual é a especificidade da agricultura
dentro do modo de produção capitalista, segundo o sr. Zander Navarro e seus colaboradores?
14
Além de Friedrich Engels que nos anos finais de sua vida mantinha uma intensa correspondência com
as lideranças sociais-democráticas, especialmente com Kautsky.
15
A MEGA² – Marx-Engels-Gesamtausgabe (Obra Completa de Marx e Engels – segunda tentativa) é a
edição completa, histórico-crítica das publicações, dos manuscritos (inclusive rascunhos e anotações de
leitura) e da correspondência de Karl Marx e Friedrich Engels. Esta nova edição coleção das obras
completas, que começou no final da década de 60, já colocou a disposição uma enorme quantidade de
documentos que não estavam disponíveis antes. Mas muitos dos argumentos que defendo aqui já
estavam acessíveis ao leitor brasileiro muito antes disso, com a publicação dos primeiros manuscritos
preparatórios do tomo III do Capital (que datam de 1861-2), editados (a primeira edição foi do próprio
Karl Kautsky, que pelo jeito não entendeu nada do debate de Marx com Ricardo e Smith) com o título de
Teorias da Mais-Valia – publicadas no Brasil pela Editora Civilização Brasileira em 1980 (em tradução de
Reginaldo Sant’Anna, a partir do texto publicado na coleção MEW, da Dietz Verlag Berlin). Cf. Malagodi,
1993b.
16
Na verdade estamos diante de um problema muito pouco levado a sério pelos marxistas
contemporâneos, a saber, a constituição de uma ortodoxia marxista na ausência do autor Marx, e em
alguns casos comprovadamente à revelia de Marx. Também estudos relevantes sobre os camponeses e
a questão agrária não tiram todas as consequências que esta profunda divergência revela. Veja, por
Exemplo, Abramovay, 1992; Hussein & Tribe, 1981.
17
Nesta obra, onde o campesinato aparece como um “saco de batatas” a preocupação central é explicar
o golpe de Estado e a eleição seguida do golpe de Estado de Luís Bonaparte em 1851, como também de
encontrar um bode expiatório para justificar a derrota do movimento proletário de 1848. Cf. Malagodi,
18
Os camponeses aparecem nessa obra (Capital III) no contexto das formas pré-capitalistas de renda,
como servos da gleba, ou seja, no contexto da descrição das formas de renda próprias do feudalismo ou
da transição histórica. Não se trata, portanto de uma análise da agricultura de base familiar e
camponesa própria do modo de produção capitalista. Deve-se também levar em conta que os
8
como um tema secundário e derivado, como parte menor e dependente de temas mais
gerais e abrangentes. 19 A preocupação com os camponeses per se, quer dizer, como um
tema específico e autônomo, aparece apenas em dois momentos muito especiais de sua
vida: em um primeiro momento, quando recém-formado em filosofia, trabalhou como
redator do jornal de Colônia, a Gazeta Renana; e na última década de sua vida, quando
começou a estudar a situação econômica e social da Rússia, bem como os efeitos da
reforma de Stolipin de 1861 sobre a situação social (emancipação) dos camponeses. No
primeiro momento, como jornalista, Marx faz a denúncia das manobras do Parlamento
Renano querendo criar leis para incriminar os camponeses sobre o “roubo de lenha”,
quando se tratava de um costume ancestral de retirada de madeira nas áreas comunais
que estavam sendo privatizadas, terras às quais os camponeses tinham acesso por direito
consuetudinário. O segundo momento tratou-se de um envolvimento mais duradouro e
profundo, pois levou inclusive a mergulhar no estudo da língua russa, o que lhe
possibilitou a leitura de obras (livros, artigos, estatísticas) na língua original. (SHANIN,
1991, p. 13, RJAZANOV, 1973, p. 170). O resultado dessa segunda démarche foi
surpreendente: Marx descobriu nas instituições da comuna camponesa russa uma
capacidade de superar situações adversas e de resistir ao longo dos séculos, e inclusive
servir de base social para um desenvolvimento em direção a uma etapa mais avançada
(socialista ou comunista) da sociedade industrial. 20
manuscritos do tomo II e III não foram publicados pelo autor, apesar de estarem redigidos de forma a
serem encaminhados à publicação. Cf. Malagodi 1993b. Abramovay (1992, p. 35) observa corretamente
que é “impossível encontrar na estrutura d’O Capital um conceito de camponês.”
19
Além destes, há outros momentos em que Marx se refere aos camponeses, como por exemplo, na sua
crítica da obra de Hegel, Princípios da Filosofia do Direito, mas se trata sempre de um tratamento
complementar, subordinado ao tema central. Cf. Malagodi 1993b.
20
“A análise exposta no “Capital” não oferece, portanto, razões nem a favor, nem contra a vitalidade da
comuna rural, mas o estudo especial que dela realizei, e cujos materiais busquei nas fontes originais, me
convenceram que esta comuna é o ponto de apoio da regeneração social na Rússia, mas que, para que
possa funcionar como tal seria preciso eliminar primeiramente as influências deletérias que a assaltam
de todos os lados e, em seguida, assegurar-lhe as condições normais de um desenvolvimento
espontâneo.” MARX, Carta-resposta a Vera Sassulitch, apud MALAGODI, 2003. Cf. Abramovay, 1992,
p.37.
9
russo. A questão que se colocava para a intelectualidade esclarecida russa era o passo
político a ser tomado no enfrentamento do autoritarismo e da tirania tzarista. As
alternativas: uma luta imediata de caráter socialista, fundada nas massas camponesas
que já praticavam o socialismo na base da sua atividade agrícola; ou a repetição na
Rússia do mesmo processo pelo qual passou a Inglaterra: primeiro, a dissolução da
comuna rural russa, depois a criação da propriedade privada camponesa, como passos
preliminares para a transformação na forma inglesa (o arrendamento mercantil), criando
as bases para uma etapa burguesa da transição. O nome de Marx foi invocado em
defesa desta segunda posição. O lado surpreendente dessa história é que Marx sai em
defesa da possibilidade de uma revolução “tendo como base a comuna rural russa”
justamente contra aqueles que naquele país se diziam “marxistas”. No entanto, os
documentos que Marx elaborou para explicar sua posição foram silenciados, como
ocorreu com a carta-resposta que Marx enviou a Vera Sassulitch (que, na verdade,
escrevia em nome de militantes russos que se tornariam o núcleo fundador do grupo
“Emancipação do Trabalho” – entre eles o mais famoso G. Plekhanov, parceiro de
Kautsky na formação de uma ortodoxia marxista).
21
Na Alemanha no Congresso de Breslau de 1895, com a vitória da resolução de Kautsky, e a supressão
da resolução do Congresso de Frankfurt do ano anterior (Relatório de Schoenlank e Von Vollmar, que
apresentaram uma proposta de Programa Agrário). Também de nada valeu a apresentação dos
relatórios das três comissões escolhidas pelo Congresso de Frankfurt para propor versões separadas do
Programa Agrário, uma para o Leste do Elba (onde dominava a propriedade dos Junkers, com
assalariados-moradores (Insteleute) um tipo semelhante ao colonato do café em São Paulo e aos
moradores dos Engenhos do Nordeste), outra para o sul (a Baviera, região de pequenos camponeses) e
outra para o centro-norte (onde predominava os Grossbauern, camponeses médios e ricos).
10
Mas por que este texto sobre a questão agrária precisa entrar em questões tão
internas à história do movimento operário, dos partidos comunistas e da obra de Marx?
Por três motivos principais. Primeiro, porque esse paradigma se espalhou pelo mundo
como uma verdade incontestável por força do poder de controle político dos Comitês
Centrais e do patrulhamento ideológico dessas correntes; segundo, porque ele reaparece
mesmo em ambientes acadêmicos liberais, aparentemente despojados desse passado
22
Lênin apresentará, ao longo de duas décadas, propostas táticas diversas, dentro de sua concepção de
“aliança operário-camponesa”. No entanto, a concepção de Kautsky predominou intocável como base
teórica para a compreensão daquilo que fora definido como o “problema camponês” (a sobrevivência
dos camponeses na sociedade capitalista). Sobre a divergência com Kautsky ver: Lenin, V. I. A revolução
proletária e o renegado Kautsky. [1918] Obras Escolhidas. Editorial Progresso. (Várias Edições).
23
Ainda que ocasionalmente se tenha aberto o debate sobre a “aliança operário-camponesa” e sobre o
papel dos camponeses na etapa democrático-burguesa da revolução.
24
O processo foi muito diferente na China, onde os camponeses foram chamados para compor a grande
força política, militar e econômica para enfrentar a dominação imperialista externa.
11
ideológico, ou seja, ele adquiriu vida própria; e terceiro, porque tendo adquirido vida
própria, parece ser um argumento explicativo por si mesmo, e para ser contestado é
sempre preciso mostrar a gênese histórica e ideológica. Assim, ao longo do século XX,
primeiro, pela via da literatura partidária e, em seguida, através dos debates políticos e
acadêmicos em torno do desenvolvimento nacional, o modelo penetrou no ideário
político intelectualizado, não como simples teoria, mas tomando o caráter de uma
verdade absoluta. Adotado pelos “amantes do capital” 25 no Brasil e alhures, o
paradigma – como o feitiço da mercadoria – não apenas adquire vida própria, mas surge
como um argumento imbatível: algumas dezenas de milhares de empreendimentos
agropecuários (o número cabalístico exato é 55 mil) produzem o suficiente para
“responder por toda a produção agropecuária, inclusive aquela parte destinada à
exportação”. 26 O que fazer então com os “redundantes” 99%? No texto citado não se
observa nenhuma preocupação específica com o que poderia ocorrer com tão expressivo
número de produtores rurais; em vez disso uma preocupação muito especial em afastar
o Estado (os recursos e as políticas públicas) desse gasto supérfluo que seria tentar
mudar o destino determinado pela inexorabilidade da supremacia do mais forte sobre o
mais fraco.27 Enfim, a recomendação é simples e beira à obviedade: a incompetência e
falta de vocação para o negócio agrário não deve premiada com subsídios e ajudas
estatais, mas deixado ao processo natural da competição entre fracos e fortes. O
mercado é o campo natural dessa competição. “Com Malthus o controle repressivo
consistia na destruição dos espécimes redundantes [supernumerary] por meio das
forças brutas da natureza. (...) Se o homem desobedece as leis que regulam esta
sociedade, o impiedoso carrasco estrangularia a prole dos imprevidentes. As leis da
sociedade competitiva foram colocadas sob a sanção da selva.” 28
25
Parodiando a expressão usada por Marx para qualificar os autoproclamados “marxistas”, que
defendiam a inevitabilidade da via inglesa na Rússia e desqualificavam as políticas de apoio ao
campesinato. Cf. Marx, Rascunhos (Raízes); Ver também Shanin, 1983, 15, apud Abramovay, 1992, p. 38.
26
Buainain et al. 2014, p. 1173.
27
No fundo, o pensamento não é liberal, mas de extrema direita. A partir desse paradigma não é
incoerente pensar que fornos crematórios poderiam dar destino aos “redundantes” porque os fracos
não apenas produzem pouco, mas consomem a riqueza produzida pelos mais fortes. Estariam estes
senhores especulando com a Endlösung der Agrarfrage – a solução final da questão agrária?
28
“With Malthus the repressive check consisted in the destruction of the supernumerary specimes by
the brute forces of nature. (…) if man disobeyed the laws which ruled that society, the fell executioner
would strangle the offspring of the improvident. The laws of a competitive society were put under the
sanction of the jungle.” POLANYI, 2001, p. 131.
12
A leitura do texto “As Sete Teses” nos fazem imaginar que os novos ideólogos
não têm compromisso com o conjunto da sociedade e com a economia nacional – ou
seja, com 200 milhões de produtores e consumidores. No caso da agricultura merecem
respeito apenas 55 mil. “A nova fase vem concretizando uma dupla face – de um lado, a
dinâmica econômica concentra a produção cada vez mais, e de outro lado, aprofunda a
diferenciação social, promovendo intensa seletividade entre os produtores rurais.”
(BUAINAIN et al., 2013, p. 116, terceira tese). A consequência natural disso é a
marginalização e/ou desaparecimento dos demais agricultores. “Em nenhum outro
momento da história agrária os estabelecimentos de menor porte econômico estiveram
tão próximos da fronteira da marginalização.”
Trata-se então de uma tendência que deverá acentuar ainda mais os problemas
sociais do país. “É processo de desenvolvimento que tornará “redundantes”
(rapidamente) a vasta maioria dos estabelecimentos rurais, de tamanho pequeno e até
médio”. Ao contrário do que estamos lendo no citado texto, poderíamos esperar – por
que não? – que em face deste cenário terrível de crise social, previsto para os próximos
29
Ver Terceira e Quarta Tese. BUAINAIN et al. 2013.
30
“O tema da reforma agrária, concretamente, perdeu sua relevância, e a insistência (e correspondente
alocação de recursos) em ações estatais nesse campo não encontra nenhuma justificativa razoável.”
(ANTES DA 5ª. TESE).
13
Karl Kautsky, tanto no Congresso de Breslau (que na época era uma cidade do
Império Alemão, hoje Wroclaw na Polônia) de 1895, como na segunda parte de seu
livro A questão agrária, manifestou-se peremptoriamente contra a proposta de que o
14
partido socialista possuísse um programa agrário, voltado aos camponeses. (Op. cit. p.
45) O radicalismo de Kautsky se explica pelo caráter de seu marxismo: absoluta crença
no evolucionismo social, cabendo ao Partido Socialdemocrático apenas ministrar os
sacramentos finais para uma classe social moribunda. Uma vez apreendido
intelectualmente o movimento histórico, que determinava o fim da pequena exploração,
ou seja, dos camponeses, e a vitória da grande exploração, ou seja, dos
empreendimentos capitalistas (observação: Kautsky não tem o rigor de observar as
diferenças sociais internas de cada um destes segmentos), não caberia ao partido
prometer uma sobrevida aos já desenganados. O pressuposto teórico e o rigorismo do
supremo representante da doutrina marxista Karl Kautsky, não lhe permitem hesitações.
Um médico já definira o estado terminal do doente; de nada adianta remédios para
prolongar uma morte certa. Este atestado de óbito antecipado Kautsky supõe ter
recebido de seus grandes mestres: Marx e Engels.31
31
“Si he logrado desarrollar, en el presente escrito, ideas nuevas y fecundas, ello lo debo principalmente
a mis dos grandes maestros *Marx y Engels+.” Kautsky, 1984, p. CIX.
15
Partindo das grandes teorias clássicas – Adam Smith, David Ricardo e Karl
Marx – pode-se dizer que se há algum “bloqueio” ele está na cabeça de certas pessoas
32
Talvez venha daí a animosidade com que o autor Zander Navarro trata Karl Marx. (NAVARRO, 2014, p.
704 e segs.) Primeiro vem um elogio (“apaixonadamente dialético”), para logo em seguida fazer de Marx
“um autor muito hesitante em sua teoria”; e na página seguinte, apesar de aplicarmos “o que parecia
ser uma contribuição de Marx para a interpretação do desenvolvimento do capitalismo na agricultura”,
Z. Navarro nos adverte que “aquele autor (Marx) sequer se dedicou diretamente a este estudo”.
Ninguém pode obrigar ninguém a ler nada, mas negar a existência das centenas de páginas de discussão
das teorias dos fisiocratas, de Smith e Ricardo e outros, que inclusive estão em português há mais de
três décadas (Cf. Marx, Teorias da Mais-Valia, Ed. Civilização Brasileira) não me parece ser uma atitude
correta de um professor universitário. Pior ainda é chamar a desconhecida teoria de “preconceitos de
Marx”.
16
de não entenderem que „propriedade privada da terra‟ e „capital‟ são rubricas diferentes,
mas os proprietários de ambos, se não forem as mesmas pessoas, tem interesses de
classe muito próximos. E foi justamente observando o nascimento da agricultura
capitalista na França e na Inglaterra que aqueles autores clássicos – entre os quais,
pioneiramente os fisiocratas – superando a aparência mais óbvia dos conflitos
econômicos descobriram a fortíssima identidade e complementariedade de interesses
entre os barões da terra – os landlords – e os farmers capitalistas. Se há interesses
divergentes, e sempre os há, eles negociam e daí fazem um “negócio”. E onde tem
negócio, não tem barreira, obstáculo ou bloqueio. Não é aí – ou seja, na diferença entre
capital e propriedade privada da terra – que está – ou que algum dia esteve – alguma
coisa de substancial que o pensamento crítico sobre a sociedade capitalista chamou um
dia de “questão agrária”. (MALAGODI, 1993b)
33
Um famoso escrito de F. Engels também é revelador desta fato: Die Bauernfrage in Frankreich und
Deutschland – A questão camponesa na França e Alemanha, de 1895, toda a questão agrária dos
socialistas é como tratar da sobrevivência dos camponeses na sociedade capitalista.
19
início de seu livro que “no cabe duda – y así lo damos aqui, por supuesto – de que la
agricultura no se desenvuelve seguiendo el mismo esquema que la indústria, sino que
obedece a leyes propias” (Kautsky, op. cit. p. 6) Ele chegou a admitir portanto que a
agricultura é diferente da indústria, o que significa que a circulação do capital obedece
a leis próprias no setor agrário, leis a que não está sujeito no meio urbano-industrial.
Mas quais seriam estas leis e como elas funcionam, o “grande marxista” Kautsky nunca
soube dizer.
IV – Considerações finais.
36
Entre outros textos, ver Menezes & Malagodi ( 2011).
37
MARX, 2005, p. 110 e segs.
22
Referências.