Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Teodor Shanin
Universidade de Moscou
23
Teodor Shanin
Ver GEERTZ, Clifford. Agricultural Involution: The Process of Ecological Change in Indo-
nesia, New York: Fontana Press, 1963. (Nota dos revisores)
24
Lições camponesas
tram uma real habilidade para se ajustar a novas condições e também uma
grande flexibilidade para encontrar novas formas de se adaptar e ganhar a
vida. Em alguns lugares, há comunidades de camponeses que hoje vivem
principalmente do turismo. Há lugares onde as comunidades camponesas
ganham a vida com novos métodos de produção e, em outros, os campo-
neses ganham a vida por meio da combinação do trabalho camponês e do
trabalho não-camponês.
Há até mesmo modelos internacionais de sobrevivência camponesa.
Por exemplo, encontramos na Alemanha camponeses turcos que vão para
lá para trabalharem nas fábricas e remetem a maior parte do que ganham
para a Turquia, onde suas famílias sobrevivem desse dinheiro, além de com-
prarem mais terras. Então, estamos diante de algo novo e excepcional: um
campesinato internacional em sua natureza. E, só é possível entendermos
como eles vivem e como eles conseguem manter estável a sua subsistência
econômica, se conseguirmos entender essa complexidade.
Considerando-se o que foi dito até aqui, podemos chegar a uma du-
pla conclusão. Primeiramente, que a vida e existência camponesa é sob um
grau considerável definida por não-camponeses, pelo governo e decisões go-
vernamentais, pelo movimento de fronteiras, pela mudança da natureza de
regimes políticos etc. Ao mesmo tempo, podemos concluir que a resposta
do campesinato às situações de crise nas quais eles são submetidos é sobre-
tudo complexa e eles não ficam esperando que alguém traga a solução. As
soluções encontradas para o problema de como permanecer camponês e as-
segurar a subsistência da família costumam ser muito flexíveis, inventivas e
criativas. Camponeses têm provado ser extremamente resilientes e criativos
em situações de crise e não há uma forma simplista para descrever isso.
Nesse sentido, ao compararmos o que foi dito no século XIX por vá-
rios especialistas e muitos teóricos marxistas e não-marxistas a respeito do
campesinato com o que está acontecendo, fica evidente que os recursos de
sobrevivência do campesinato têm provado ser mais fortes do que o que se
poderia esperar naquele período.
A flexibilidade de adaptação, o objetivo de reproduzir o seu modo de
vida e não o de acumulação, o apoio e a ajuda mútua encontrados nas fa-
mílias e fora das famílias em comunidades camponesas, bem como a mul-
tiplicidade de soluções encontradas para o problema de como ganhar a
vida são qualidades encontradas em todos os camponeses que sobrevivem
25
Teodor Shanin
26
Lições camponesas
SCOTT, James, Seeing Like the State: how certain schemes to improve the human condition
have failed, New Haven: Yale University Press, 1998. (Nota dos revisores)
27
Teodor Shanin
Ver CHAYANOV, Alexander, La organización de la unidad económica campesina, Bue-
nos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1974, disponivel em http://www4.fct.unesp.br/
nera/telas/uso%20restrito.htm. (Nota dos revisores.)
28
Lições camponesas
viver e como resolver problemas nos quais a maior parte da população está
envolvida. Especialmente aprender a partir da criatividade e multiplicidade
de respostas dos camponeses em situações de crise e de sua capacidade para
usar a família como instrumento para se defender de calamidades. A família
pode empregar sua mão-de-obra de diferentes maneiras e, agregando os re-
sultados de seu trabalho, manter-se reunida e proteger-se de maiores danos.
Em certas situações em que não há crédito no banco para os camponeses,
eles podem obter crédito com parentes. Tudo isso é extrememente impor-
tante e pode ser visto claramente quando estudamos o campesinato de ma-
neira séria, buscando compreendê-lo e buscando decifrar junto com ele o
que e como fazer, e não, ensinar a ele o que fazer.
Antes de concluir a minha fala e passar para as perguntas, eu gostaria
de dizer que considero que a mobilização militante por terra para os cam-
poneses que está acontecendo atualmente no Brasil é positiva, significativa,
e deve ser apoiada como o é de fato por pessoas como eu. Mas, nós precisa-
mos também de uma mobilização do conhecimento e pelo conhecimento,
não somente por causa do jogo econômico ou por causa da terra, mas para
expandir o conhecimento dentro da comunidade acadêmica.
É comum dizer que filosofar não resolve os problemas, que a filosofia é
só para filósofos. Para mim, isso não é verdadeiro. Enquanto é verdadeira a
necessidade de nos mobilizarmos em nível econômico, político, enfim, nos
mais diversos níveis, é necessária também a mobilização no nível do conhe-
cimento. Como um grande filósofo inglês já disse, “saber é poder”. E o po-
der sempre é necessário se quisermos mudar o mundo para melhor, inclu-
sive quando queremos pôr em execução o antigo slogan “terra e liberdade”.
Muito obrigado.
29
Teodor Shanin
Debate
Questão 1
Ariovaldo Umbelino de Oliveira – USP
Professor Teodor, parabéns pela brilhante conferência que fez e muito
obrigado por continuar defendendo princípios que fizeram com que nós
que não nos conhecíamos pudéssemos acreditar naquilo que o Senhor tem
dito nos seus livros e nos seus textos. Então, a primeira fala é de gratidão.
Gratidão que certamente de agora em diante vai se somar às interlocuções
que esperamos poder continuar a estabelecer contigo.
A minha questão refere-se aos processos que estão em desenvolvimen-
to na Europa, sobretudo em função da Política Agrícola Comum (PAC) e
a possibilidade que a Europa, sobretudo a Europa Ocidental, tem no sen-
tido de garantir esse processo de reprodução, de recriação do campesina-
to, que foi durante muito tempo o esteio da economia e da produção de
alimentos na Europa.
Resposta: Eu acho que o que está acontecendo na Comunidade Eu-
ropéia, quer dizer na Europa Ocidental e Europa Central, é fundamen-
talmente um esforço para incorporar os camponeses dentro do sistema
30
Lições camponesas
31
Teodor Shanin
Questão 2
Marco Antonio Mitidiero Jr. – UFPB
A minha pesquisa de doutorado tenta pensar e entender a influência
da Igreja Católica e da religião na formação dos movimentos e das mobili-
zações de luta pela terra. No Brasil e na América Latina, esse papel é mui-
to evidente. Muitos pesquisadores afirmam que muitas dessas mobilizações
dos movimentos sociais nasceram na paróquia, nas igrejas, nasceram a partir
da iniciativa de alguns padres, inspirados por uma teologia diferente da te-
ologia romana, da teologia tradicional, que é a chamada teologia da liberta-
ção. Eu gostaria de saber, considerando o conhecimento que o senhor tem
de outras mobilizações no mundo, se há uma influência da igreja ou mesmo
da fé religiosa nessas mobilizações, principalmente no que diz respeito ao
campesinato russo.
Resposta: Uma das particularidades da influência da religião no cam-
pesinato da Rússia é que praticamente não causou impactos radicais. Isso se
deve à natureza e à forma de organização da igreja russa. A Igreja Ortodoxa
Russa, desde a sua origem na tradição bizantina, era uma igreja totalmente
estatal. O chefe da igreja era o imperador e, com a conversão para a Rússia,
tornou-se o Tzar. Havia um sistema no qual a essência da influência religiosa
decorria da natureza estatal da organização. O clero rural apoiava o governo,
ajudando o Estado a suprimir qualquer mobilização.
Mas há exceções que eu gostaria de mencionar. A primeira exceção é
que a origem rural de muitos clérigos que viviam no meio rural fez com
que eles fossem mais simpáticos aos interesses dos camponeses do que às
orientações que recebiam da hierarquia da igreja. Na Revolução de 1905-
1907, houve um caso em que um clérigo de uma vila pequena foi eleito
para a Duma, o novo parlamento russo criado em conseqüência da rebelião.
Ele imediatamente começou a atuar na facção trabalhista do parlamento.
Quando o parlamento foi disperso pelo Tzar, o clero também foi removido
pela igreja e enviado para o exílio no norte da Rússia. Então, houve casos de
envolvimento de alguns sacerdotes nos movimentos camponeses.
32
Lições camponesas
Questão 3
Rusvênia Luiza B. R. da Silva – UFT
Professor, eu fiquei muito contente com sua fala, sobretudo com sua de-
fesa do conhecimento como uma forma de mobilização e de poder. Eu sou
de uma região do Brasil localizada no Centro-Oeste e faço uma pesquisa em
duas vilas rurais em que os camponeses se vêem numa situação de meio do
caminho entre o campo e a cidade. Eles não podem mais se reproduzir como
agricultores porque são ex-funcionários de fazendas e também não podem se
reproduzir como agricultores de subsistência porque estão espremidos numa
situação de moradia reduzida a pequenos lotes agrícolas, por isso há uma
produção de fundo de quintal. Há uma divergência entre alguns intelectu-
ais quanto à definição desse sujeito que vive uma situação de aposentadoria
rural, tendo assim garantida a sua sobrevivência, mas que, ao mesmo tempo,
convive com uma situação de impossibilidade de se reproduzir economica-
mente da forma como se reproduziram os seus pais e seus avós. Gostaria de
saber se é possível definir como camponês o sujeito que vive nessa situação
de intersecção e meio de caminho entre o campo e a cidade.
Resposta: Quando eu era jovem e bonito eu tentei definir o campesi-
nato em minha tese. Eu sugeri que a definição seria a seguinte: terra, vila [ou
comunidade rural], economia camponesa e a condição de classe inferior na
sociedade, sendo a classe mais baixa da sociedade. Essa foi minha primeira
definição. Mas, eu também falei, já naquela época, que poderíamos encon-
33
Teodor Shanin
trar muitos grupos que apresentam três e não quatro dessas características
e, mesmo assim, são camponeses. Podemos chamar esses grupos de “quase-
camponeses”, camponeses marginais, camponeses marginalizados, uma va-
riedade de coisas. Podemos chamá-los por outros nomes, se quisermos.
Camponeses que não têm terra suficiente para sobreviver, mas, ao mes-
mo tempo, têm uma economia familiar, mostram a maioria das característi-
cas do campesinato em sua maneira de sobreviver e morar, mesmo que não
sejam encontrados neste caso todos os elementos da definição.
Gostaria de acrescentar o seguinte: quando nós comparamos os mode-
los com a realidade, esta última é sempre mais complexa do que os modelos,
e mais difícil de apreender devidamente. Isso não significa que modelos são
inúteis. Mas, tratar modelos como se fossem realidade é inútil e perigoso.
Modelos são modelos e é importante que isso seja destacado para que pos-
samos notar a diferença existente entre o conceito e a realidade, caso contrá-
rio, perderemos nossa capacidade de entender a realidade.
Eu acho que uma das características principais do campesinato é o fato
de que ele corresponde a um modo de vida, a uma combinação de vários
elementos. Somente após compreendermos que se trata de uma combinação
de elementos e não de algo sólido e absoluto é que começamos a entender
realmente o que ele é. Porque, se procurarmos uma realidade fixa, não va-
mos encontrar isso no campesinato.
Houve momentos de argumentos fortes sobre a definição do camponês
no tempo em que eu defino como a época em que eu era jovem e bonito.
Argumentos fortes dizendo que, sim, os camponeses são diversificados en-
quanto o proletariado é único e, portanto, revolucionário. Aos quais eu res-
pondi dizendo: “me mostra um grupo de proletários reais que seja singular
e consolidado.” Às vezes, podemos até encontrar um grupo assim, mas isso
é uma exceção, não a regra.
A classe operária normal também não é única, porque uma classe nor-
mal, o campesinato e outros grupos, nunca é como o modelo. O modelo é
uma coisa, a realidade é outra. Isso é importante para você, que analisa o tipo
de gente que descreveu, que vive parcialmente com o dinheiro da aposenta-
doria proveniente do Estado e parcialmente de outras fontes. O instrumen-
to crucial para tudo isto, para a sobrevivência deles, é a economia familiar. A
economia familiar é um elemento mais significativo para compreendermos
quem o camponês é do que um modelo geral de campesinidade
34
Lições camponesas
Questão 4
Rosemeire Aparecida de Almeida – UFMS
Bom dia a todos, que lindo dia, professor eu estou um pouco nervosa, mas
é pela emoção, porque tê-lo aqui foi um sonho construído coletivamente por
pelo menos duas gerações, então eu tenho todo o direito de estar nervosa.
Eu gostaria que o professor nos desse um esclarecimento em relação
ao debate em torno do campesinato como classe no capitalismo, e princi-
palmente a partir da perspectiva marxista. Como o professor já falou e tem
escrito, o campesinato se define principalmente em função dessa economia
doméstica, familiar, ou seja, ele vive da sua mão-de-obra, só que ele também
é um proprietário de terra. O professor o chamou de classe mais baixa da
sociedade. Será que essa posição dupla do camponês no processo produtivo,
de ser ao mesmo tempo dono dos meios de produção e dono da força de
trabalho, não produziria nele uma consciência ambígua no processo político
mesmo, muitas vezes, se envolvendo em movimentos mais conservadores de
defesa da terra e, outras vezes, se mobilizando através de movimentos sociais
de contestação da propriedade privada, de contestação do neoliberalismo?
Eu gostaria de entender um pouco melhor isso. Então, professor, pensando
nas classes fundamentais de Marx, me corrija se eu estiver equivocada, te-
mos a classe burguesa, o proletariado e os proprietários de terra. Os campo-
neses seriam uma quarta classe?
Resposta: Para começar, o problema de classe, da natureza de classe, é
mais frequentemente definido como uma abstração lógica. Há uma abstra-
ção lógica que se chama de capitalismo. Nesta abstração tem o proletariado,
que é evidentemente um proletariado puro, porque na abstração nenhum
deles tem propriedade. E, tem uma classe de capitalistas que é dono dos
meios de produção, claro, todos os meios de produção, e nada mais. Isso é
uma abstração que exige um considerável ajuste se olharmos a realidade.
Trabalhadores não têm propriedade! Vá para a Inglaterra e você verá que
praticamente todos os operários são donos de sua própria casa. Trabalhadores
vivem somente do salário! Vá para a Rússia e lá você verá que não podemos
entender o operário sem a sua horta. Em cada dois trabalhadores, um tem sua
própria horta como parte fundamental de seu sustento. Então, essa abstração,
assim como todas as outras, pode ser muito útil para entender a realidade, mas
se a tratarmos como se fosse a realidade, como se o proletariado fosse um gru-
po de pessoas sem nada, não vai dar certo. A realidade não é assim.
35
Teodor Shanin
Capitalistas não são pessoas que têm capital e não fazem nada. Dizem
que muitos deles não trabalham, porque o trabalho é realizado em outros lu-
gares. Mas, a realidade é muito mais complexa. O uso de modelo exige que
estejamos atentos ao risco de eles se tornarem mal compreendidos e assim
contribuírem para nos confundir mais do que para entendermos a realidade.
Como é que resolvemos esse problema, então? Como entendermos o
que é classe e o que não é classe? Eu acho que temos que partir da abstração
para a realidade. De fato, foi o que Marx fez com bastante freqüência. Se
pegarmos sua obra “O dezoito de Brumário de Luís Napoleão Bonaparte”,
temos aí uma definição de classes. As classes lutam entre si por objetivos es-
pecíficos e assim se definem enquanto tal. Elas não são definidas pelo fato de
que, em abstração, há os que não têm propriedade. Ninguém está pergun-
tando se o sans-culotte é proprietário ou não-proprietário, mas, se ele pega
em armas para lutar contra uma outra classe, ele é uma classe.
Marx gostava da expressão “classe para si”. A questão não é simplesmente
uma questão da posição da classe ou de sua situação objetiva em dada circuns-
tância analítica, mas diz respeito ao que as pessoas fazem. A partir desse espí-
rito, eu diria que para responder a pergunta sobre se os camponeses são uma
classe, eu precisaria fazer outra pergunta: o que é que eles fazem? Não o que
eles são, mas o que eles fazem. Porque é no fazer que as classes são definidas.
Neste sentido, os camponeses russos de 1905 a 1907 pegaram em armas,
lutaram e se tornaram uma classe. Sob opressão pesada, desistiram, mas, em
1917, lutaram de novo e ficaram na luta até 1922 e definitivamente formaram
uma classe. E na atualidade, o campesinato russo é uma classe? Provavelmente
não. Porquê? Não por sua definição analítica, mas pela realidade da inexistên-
cia da luta de classes hoje em dia. Esta não é uma posição anti-marxista, é uma
posição marxista, é só olhar o “Dezoito de Brumário”.
Agora, qual é a definição alternativa que eu gosto mais? Ela não é, definiti-
vamente, marxista. É uma definição derivada da antropologia clássica, produ-
zida pelo antropólogo chinês Fei Hsiao-Tung, que não está vivo atualmente,
infelizmente. Quando eu estava começando a tentar entender o campesinato,
ele foi de grande ajuda para mim. E, quando eu me tornei um professor, eu o
Às vezes, Fei Xaotong. Ver HSIAO-TUNG, Fei, “Peasantry and Gentry: an interpreta-
tion of Chinese social structure and its changes”, em The American Journal of Sociology,
Volume LII, July 1946, Number I, p. 1-17. (nota dos revisores)
36
Lições camponesas
utilizei para explicar muitas coisas para meus alunos. Para a questão, o que é
campesinato – obviamente, sempre houve este tipo de indagação sobre defini-
ções – a resposta dele foi, “campesinato é um modo de vida”.
Apesar do passar do tempo desde quando eu o li pela primeira vez, ainda
considero particularmente útil essa definição de Fei Hsiao-Tung: “campesina-
to é um modo de vida”. Daí, o quanto este “modo de vida” pode dar origem
a uma classe, é uma questão que depende das condições históricas. Podemos
definir isso ao analisarmos as circunstâncias e verificarmos se eles lutam ou
não lutam por seus interesses, então, saberemos se é uma classe ou não. Mas,
em todas as condições, quando luta ou não luta, o campesinato é um modo de
vida, e isso é essencial para compreendermos a sua natureza. Acredito que esse
aspecto é mais central que qualquer outra coisa em sua definição.
Questão 5
Wagner – Assessoar, PR
É uma grande honra estar aqui ao seu lado e ouvir esta conferência
brilhante que nos inquieta e também nos fortalece em nossas convicções.
Eu gostaria de perguntar a respeito do conceito de trabalho familiar que é
tão central nessa relação de terra e liberdade que o senhor coloca. A minha
pergunta é se de fato não estamos olhando de uma forma muito positiva o
trabalho familiar como uma estratégia para construir uma autonomia de so-
brevivência no sistema capitalista.
Talvez eu possa explicar melhor a minha pergunta a partir de minha ex-
periência. Eu trabalho em uma ONG que chama-se Assessoar, no Sudoeste
do Paraná, que há 40 anos trabalha com agricultores familiares. Nós vimos
trabalhando há alguns anos com a formação de jovens em agroecologia e
percebemos uma grande evasão desses jovens do campo para a cidade. Per-
cebemos que os agricultores familiares intensificam cada vez mais o trabalho
na propriedade para conquistar mais autonomia. Conhecemos agricultores
que trabalham até 16 horas por dia e, mesmo em propriedades que se viabi-
lizaram economicamente, muitos jovens acabam desistindo e vão trabalhar
como assalariados em grandes indústrias.
Não estaríamos diante de um problema de sobretrabalho, que está co-
locado para a sociedade, e esses jovens vendo toda essa penosidade, vendo
que hoje o movimento sindical mundial luta por 36 horas de trabalho sema-
nal enquanto que, na agricultura, o trabalho familiar impõe jornadas muito
37
Teodor Shanin
maiores, especialmente para as mulheres e para essa nova geração? Não es-
taria aí, no trabalho familiar, justamente uma armadilha que vai reduzindo
esse modo de vida?
Resposta: Para começar, eu gostaria de, mais uma vez, fazer o movi-
mento da abstração para a realidade. É verdade que, no mundo em que vi-
vemos, os camponeses trabalham mais horas do que os operários. É quase
sempre assim, inclusive quando chega a época da colheita, no período de
pico, tem camponeses que não dormem nenhum pouco, porque este é o
único jeito de manter-se. No entanto, temos que ser mais precisos, porque
o camponês enfrenta trabalho duro na época da safra, mas, fora dela, não é
bem assim. A situação do camponês na Sibéria, por exemplo, é a de um ve-
rão muito curto, quando ele trabalha demais, e um inverno muito compri-
do, quando ele trabalha muito pouco. Então, não é só uma simples questão
de dizer que têm trabalho demais.
Eles são, também, donos de seu próprio trabalho e assim são capazes de
escolher sua própria maneira de descansar, o que é importante. Se olharmos
para o camponês real, não o camponês abstrato, quando ele está trabalhan-
do, veremos que ele é capaz de sentar-se à sombra de uma árvore numa hora
quente do dia e comer um pouco da comida que trouxe de casa, saboreá-la
ou até tirar uma soneca. Então, quando o calor diminui, ele retoma o traba-
lho, e aí ele trabalha realmente pra valer e termina o que tem que ser feito,
só Deus sabe quando.
Essa é uma peculiaridade do trabalho camponês, é o trabalho de um
homem que é dono do seu próprio trabalho e pode decidir como utilizá-
lo. Há pessoas que preferem trabalhar mais horas em seu próprio trabalho,
outras, preferem trabalhar oito horas diariamente e, depois disso, ficar to-
talmente livre. Primeiramente, é parcialmente uma questão de escolha, de
cultura. Diferentes culturas esperam que você aja de diferentes maneiras.
No contexto russo, o qual eu conheço melhor do que o do Brasil, quan-
do, em algum momento, o camponês larga o campo e vai para a cidade, o
primeiro motivo, quase sempre, é a pressão da esposa. Geralmente, os ho-
mens gostavam da vila, da comunidade rural. Eles gostavam de seu trabalho,
gostavam de ser seu próprio patrão, gostavam dessas horas em que podiam
escolher quando descansar. Mas, o trabalho feminino nessas vilas é extrema-
mente duro. Ele nunca pára: é criança, horta, lenha, cozinha e outros tantos
trabalhos domésticos.
38
Lições camponesas
39
Teodor Shanin
Então, eu disse o meu nome, Shanin. “Ah!”, falou ele. “Shanin!?” E, tirou
do bolso um pequeno livro de capa mole, Peasants and Peasant Societies.
O mundo está mudando e o trabalho duro do campesinato está mudando
também. Não sei o que aconteceu com este homem. Talvez, ele tenha ido
para a cidade para estudar na universidade, talvez não. Talvez ele tenha con-
tinuado no campo assim mesmo.
Questão 6
Valeria de Marcos – USP
Professor, eu queria agradecer enormemente essa brilhante conferência
e dizer que, para nós que estudamos os seus livros e ensinamos com os seus
livros é um prazer imenso poder ouvi-lo. Eu tenho me dedicado ao estudo
das formas alternativas de organização da produção camponesa. Tenho es-
tudado a organização da produção coletiva, a produção comunitária e reali-
zado estudos sobre essas práticas na realidade brasileira. Mas, um dos casos
que eu estudei foi o dos kolkoses e dos sovkoses, das cooperativas de produção
na Rússia. Então, gostaria de saber, depois do fim da União Soviética, o que
aconteceu com essas experiências e quais são, em sua opinião, as perspecti-
vas desse tipo de organização da produção camponesa.
Resposta: São várias questões dentro desta sua pergunta. Há a questão
do que aconteceu com as organizações dos kolkoses e sovkoses e há a questão
sobre a direção que a Rússia está tomando agora na organização do trabalho
rural. Vamos começar com a primeira questão.
Quando houve o colapso da União Soviética, na maioria dos lugares as
fazendas coletivas foram abolidas. É importante notar que elas não foram
abolidas porque os camponeses disseram: “Nós não queremos os kolkoses, os
sovkoses, queremos uma nova vida sem eles”. Eles foram abolidos porque o go-
verno determinou que esta era a medida certa, sem sequer consultar os cam-
poneses. Nesse sentido, a reforma agrária ocorreu da mesma maneira que nos
tempos da coletivização. Ninguém perguntou-lhes se queriam coletivização e,
SHANIN, Teodor, Campesinos y sociedades campesinas, México, Fondo de Cultura
Económica, 1979.
Na historia da implementação da reforma agrária na União Soviética, algumas fazendas
particulares foram transformadas em fazendas do Estado através do processo de coleti-
vização, criando os kolkoses, e outras foram reunidas em sistema comunal, estabelecendo
os sovkoses. (Nota dos revisores.)
40
Lições camponesas
41
Teodor Shanin
42
Lições camponesas
perguntei sobre o que fazia a mulher dele. Ele me respondeu: “Ela é diretora
da escola local”. Isso significou, então, que, desde o início da transição, ele
pode contar com um salário para garantir o sustento da família.
Então, há esse tipo de situação, que corresponde a um tipo de re-coleti-
vização com um fazendeiro exercendo o papel de diretor do sovkose com base
nas habilidades que aprendeu em sua carreira dentro do partido. Hoje em
dia, então, tem produção agrícola em fazendas coletivizadas, que foram re-
criadas, especialmente em lugares de terras boas, principalmente no sul. De
fato, o sistema lá é tão produtivo que o novo governo não aboliu os kolkoses
que existiam lá. Muitos têm os mesmos diretores que tinham na época da
União Soviética, homens bem mais preparados do que qualquer um que o
governo pudesse mandar. E, os camponeses sabem que é melhor assim. É
melhor ter a velha guarda competente do que apostar em um desconhecido
ou tentar fazer eles mesmos quando não têm a preparação adequada.
Em alguns lugares há os kolkoses, em outros, as fazendas particulares.
Porém, em uma vila com mais ou menos quarenta famílias, só encontramos
dois ou três agricultores e o resto é um grupo de bêbados que não sabem o
que fazer. Há as vilas onde moram só algumas velhinhas e ninguém mais.
Essas mulheres sobrevivem com aposentadorias. São vilas mortas e, é só uma
questão de tempo, elas vão desaparecer. Isso é uma questão preocupante
para o meio-ambiente, inclusive a água.
Agora, o futuro, quer dizer, o futuro em termos do que já aconteceu nos
últimos cinco anos. Vários ex-kolkose e ex-sovkose foram dominados pelo agro-
negócio. O agronegócio é, na maioria, de capital nacional, local, russo, não de
capital estrangeiro. Por exemplo, há grandes companhias de gás que compra-
ram grandes parcelas de terra e estabeleceram grandes fazendas com produção
em larga escala; há algumas empresas médias que também conseguiram fazer
a mesma coisa. Geralmente, essas empresas acumularam capital em outras ati-
vidades como o comércio e depois decidiram investir no campo.
Atualmente, há um discurso na Rússia, principalmente articulado pe-
los funcionários do Ministério da Agricultura, que defende que o futuro da
Rússia está nas grandes propriedades e no agronegócio. Certamente o agro-
negócio não trará bons resultados para a maioria da mão-de-obra das vilas
que não será aproveitada porque o agronegócio não cria emprego. Alguns
trabalhadores vão simplesmente ser deixados para trás, afogando-se em be-
bida até morrer. Há um número grande de vilas assim e são lugares terríveis
43
Teodor Shanin
Questão 7
Maria Franco Garcia – UFPB
Na sua fala, professor, o Senhor apresentou um caminho para a apre-
ensão da realidade camponesa e este caminho estava localizado, com gran-
de ênfase, nas estratégias que os camponeses desenvolvem para se inserir de
forma diferenciada na economia estatal, na economia de mercado. E, estas
estratégias partiam, evidentemente, pela minha compreensão, da esfera da
reprodução. A criação é um momento fundamental em que o campesinato
desenvolve suas estratégias. Como foi colocado, nessa esfera da reprodução,
existe um ser camponês homem e um ser camponês mulher e o papel desse
ser camponês mulher de reproduzir e criar a unidade familiar é fundamental
em todas as sociedades, do passado e do presente.
Durante minha pesquisa de doutorado, eu tive a oportunidade de
acompanhar um movimento camponês no Brasil, o Movimento dos Tra-
balhadores Rurais Sem Terra (MST). Na ocasião, eu observei que a divisão
sexual do trabalho no universo camponês é um elemento que limita muitas
vezes a inserção da mulher camponesa em movimentos políticos que pode-
riam politizar essa mulher, movimentos que lutam pelo universo camponês
como um todo. Como o senhor tem uma experiência muito mais ampa das
lutas e do universo do camponês e, de fato, é só por meio deles que pode-
remos encontrar respostas, eu pergunto,qual a sua análise da relação entre
gênero e política entre os camponeses? Existem de fato, em algum lugar ou
tempo, luzes, estratégias ou movimentos camponeses significativos que con-
testem o Estado, o neoliberalismo, a opressão, e que não tenham reproduzi-
do a opressão da mulher camponesa através do trabalho diferenciado entre
homens e mulheres no campo?
Resposta: Bem, acho que eu já mencionei alguma coisa sobre a parti-
cularidade da posição feminina e sua influência no sustento de camponeses
quando afirmei que, na Rússia, o maior motivo para o êxodo rural dos cam-
poneses das vilas rurais era a mulher e não o homem. Embora o homem seja
o cabeça da família, o número um, quando chega nessa questão mais fun-
44
Lições camponesas
45
Teodor Shanin
46
Lições camponesas
47