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1.INTRODUÇÃO
Fazer a cartografia do espaço urbano requer que se considere a estreita relação
entre sujeitos, saberes e poderes. Para atingir tal fim, nossas reflexões neste artigo serão
feitas à luz de uma visada discursiva calcada na “caixa de ferramentas” conceituais de
Michel Foucault para analisarmos a história do presente. E, parafraseando Deleuze, como
o século XXI é foucaultiano!
Embora o pensamento de Michel Foucault seja estudado em vários campos das
Ciências Humanas e Sociais, como a Sociologia, o Direito, a Psicologia, a Educação,
dentre outros, uma vez que suas ideias são vastas e complexas, quero registrar aqui meu
lugar de fala como linguista. Isso significa que me situo no campo do discurso e me
interessa estudar os enunciados com valor de “ acontecimento que nem a língua, nem o
sentido podem esgotar inteiramente” (1987, p.32).
Trabalhar com Foucault no escopo da Análise do Discurso é uma escolha um tanto
quanto arriscada, pois os conceitos elaborados e introduzidos nesse campo de saber, se
por um lado, trazem boa recepção, por outro, há também inquietações e desconfianças
principalmente no terreno da Linguística, uma vez que o filósofo em questão não criou
especificamente uma teoria do discurso, no entanto seus conceitos como enunciado,
arquivo, prática discursiva, acontecimento, campo associado, dentre outros, nos
proporcionam elementos para se empreender uma análise discursiva de diferentes objetos,
textuais, imagéticos, semiológicos.
Foucault entende o discurso enquanto práticas que obedecem a regras históricas
atreladas ao tempo e ao espaço. Tais práticas são de natureza semiológica, por isso o
enunciado é a unidade básica de análise do discurso, por ele nos permitir uma análise de
materialidades verbal, não verbal, digital, fílmica, etc. Além disso, o enunciado para
Foucault é histórico, está para além da estrutura textual, embora esta seja uma de suas
dimensões, vez que os enunciados se materializam em textos.
Estudamos, a partir de uma dada formação social, séries enunciativas efetivamente
produzidas por sujeitos sociais para compreendermos as relações que elas mantém entre
si e como as verdades, os sujeitos, os objetos são construídos por meio da produção e
circulação de discursos.
Olhar o discurso com uma visada foucaultiana nos permite interrogar as relações
entre práticas discursivas e não-discursivas, sobretudo as práticas de resistência na sua
dimensão histórico-social para pensar a sua produção, circulação e transformação.
A fim de entender as discursividades urbanas, elencamos como questões de
pesquisa que pretendemos discutir um pouco neste trabalho: a) como os espaços afetam
e são afetados pelas práticas discursivas e não-discursivas do sujeito; b) quais os saberes
que legitimam tais práticas e objetivam os sujeitos, modelando seus corpos, seus
comportamentos, disciplinando-os, normalizando-os, limitando seus espaços de
liberdade; c) como os sujeitos se subjetivam no espaço urbano, mesmo tendo seus dizeres
organizados, normalizados pelas táticas e estratégias sutis dos dispositivos de saber-
poder.
Vivemos um momento conturbado politicamente, de enfrentamento e cruzamento
de forças, de tensão entre a população e o governo Federal, por isso mais do que nunca,
cartografar é preciso! Diferentemente daquela que trata de mapas, territórios etc, a
cartografia das práticas sociais (discursivas, portanto) permite dar visibilidade às relações
de saber-poder que envolvem os processos de objetivação e de subjetivação, resistência
e, havendo, práticas de liberdade do sujeito no espaço urbano. Esta cartografia espacial,
feita à luz de uma arqueogenealogia, tem como fim, não apenas discutir as relações de
poder por meio do inventário de técnicas e táticas discursivas, nem somente mapear
produções de subjetividade para descrever/analisar como somos e por que somos assim,
mas sobretudo diagnosticar o tempo presente com a problematização do funcionamento
do território urbano para recusarmos o que nos é imposto e apontarmos possibilidades de
sermos diferentes.
Segundo o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2008, p.11),
Foucault é um pensador de espaços, das margens, dos limites, das fronteiras, pois tratou
em suas obras da constituição histórica de diferentes espacialidades, desde os espaços
disciplinares como o asilo, a escola, a prisão, o hospital até os espaços da liberdade,
inventados pelos homens em seu cotidiano de lutas e resistências às normas e às leis.
Albuquerque Júnior (2008) designa Foucault “o cartógrafo das margens”, aquele que
mapeia, perscruta, olha as camadas do terreno, as dobras, as falhas, desloca o olhar do
que sempre foi colocado como central, visível, essencial, para tornar visível o que sempre
foi colocado às margens, às bordas, como criminoso, ameaçador.
Conforme Deleuze (2006, p.44), cartografar para Foucault significava dar conta
dos diagramas, isto é, dos mapas das relações de força e saberes que constituem
historicamente as sociedades ocidentais modernas.
As relações de poder têm alcance imediato sobre ele. Elas o marcam, o investem,
o dirigem, o sujeitam a trabalhos. Tal investimento político do corpo está ligado à sua
utilização econômica (2012b. p.25), pois o objetivo é torná-los produtivos ao máximo,
utilizando um sistema gradual e contínuo de suas capacidades, ”corpos dóceis e úteis”,
mas também político, diminuição da sua capacidade de revolta, de resistência, de luta, de
insurreição. Por isso, essas tecnologias políticas passam a investir sobre o corpo, a saúde,
as maneiras de se alimentar e de morar, as condições de vida, todo o espaço da existência”.
(2014, p. 135). Tais tecnologias demandam a construção de novos saberes sobre as
populações das cidades: os registros e estatísticas referidas à proporção de nascimentos e
mortes, às taxas de reprodução, de fecundidade, de longevidade.
Consolida-se assim uma biopolítica, a fim de organizar o corpo social. O seu
surgimento ocorre simultaneamente ao aparecimento de problemas ligados ao habitat, às
condições de vida em uma cidade, à higiene pública. Foucault demonstra que a partir do
século XVIII, a vida se tornou um objeto de poder.
Instaura-se uma sociedade em que o poder da lei está integrado ao poder da norma.
Isso implica um sistema de vigilância e controle em que há uma visibilidade incessante
uma classificação permanente dos indivíduos, uma hierarquização, o estabelecimento de
limites e de diagnósticos.
A norma se torna o critério de divisão de indivíduos. Isso resulta em uma
sociedade em que as práticas discursivas e não-discursivas do indivíduo gravitam em
torno da norma. Uma sociedade normalizadora que reivindica o direito à vida, à saúde, à
felicidade, à satisfação das necessidades. O bem-estar dos indivíduos passa a ser a
garantia da ordem.
O saber biomédico (que envolve a Medicina, a Psiquiatria, a Psicologia, a
Psicanálise) e a noção de norma, em torno da qual o saber sobre a vida se constrói, são
imprescindíveis para compreender as estratégias biopolíticas, pois permitem a articulação
entre o conhecimento dito científico e as intervenções propriamente ditas, concretas. É
em torno da norma que as estratégias de poder podem ser criadas. Por exemplo, em João
Pessoa, o limite máximo de velocidade nas principais vias de trânsito da cidade é de
cinquenta quilômetros.
O poder governamental, que dirige a conduta da população, está materializado
nas faixas de pedestres, câmaras de vigilância (pardais), lombadas eletrônicas, assim
como é discursivizado em reportagens nos jornais locais, mostrando as estatísticas
(saberes) que constatam a diminuição de acidentes com as medidas tomadas pelo
Governo. Em síntese, os saberes (científicos, estatísticos, etc.) credibilizam as práticas do
poder, fazendo com que a população seja normalizada (inclusive por meio de punição,
multas, neste caso), se submeta e se comporte conforme as orientações governamentais.
A sociedade disciplinar se instaura a partir do início do século XVIII (1987),
compreendendo todos os dispositivos que regulam hábitos e comportamentos, com o
objetivo de assegurar a obediência às instituições disciplinares que organizam o campo
social. As tecnologias disciplinares se destinam a todos os sistemas de vigilância ou
instituições disciplinares: a prisão, a fábrica, o asilo, o hospital, a escola, entre outras.
Segundo Foucault, o investimento rigoroso, meticuloso, constante no corpo se deu até o
início do século XX. A partir dos anos 60, percebeu-se que esse poder tão rígido não era
mais tão indispensável às sociedades industriais.
Segundo Gilles Deleuze (2008), no século XX, a partir da Segunda Guerra
Mundial, houve progressivamente a transição da sociedade disciplinar para a sociedade
de controle, termo aplicado e aprofundado por Deleuze (1992). Neste tipo de sociedade,
o controle não apenas disciplina, mas é “o princípio motor”. (FOUCAULT, 2004, p. 69).
A sociedade de controle funciona como uma intensificação e uma fusão dos
aparelhos de normalização que, por meio de instrumentos sutis de coerção, controlam as
nossas práticas diárias.
O poder está cada vez menos localizável e cada vez mais sutil, pois regula
elementos imateriais da sociedade, como informação, conhecimento e comunicação. Não
se trata apenas do controle dos corpos, mas das mentes, das almas. Foram aperfeiçoadas
as técnicas e controle e vigilância da população que atuam quase despercebidas, de modo
até mesmo naturalizado. Além de determinar representações individuais e coletivas, a
informação se consolida como moeda de troca da era digital. Com ela é possível agir
sobre as instituições e os corpos sociais, pois uma vez que se detêm os dados, protegidos
ou disponibilizados voluntariamente, sobretudo na internet, obtém-se o controle.
A normalização biopolítica das cidades urbanas na sociedade de controle é feita
por meio de práticas de governamentalidade. Esta se refere a um tipo específico e
complexo de governamento que tem como foco, a população. Ao Estado não interessa
somente governar, mas melhorar a qualidade de vida da população, fazendo com que
cresça a produtividade, e desta forma, a duração da vida e da saúde de todo corpo
populacional. Esse controle é exercido por uma série de procedimentos, táticas,
estratégias, com fins de regrar, manipular, normatizar a vida do sujeito social.
A biopolítica calcula os desvios e cria estratégias de normalização, define
populações de risco, compara padrões de morbidade e cria intervenções preventivas
capazes de reduzir os desvios e antecipar os riscos. Não é à toa que o discurso da
felicidade é uma imposição social.
Ao administrar na minúcia a vida da população por meio de uma rede enunciativa
que cada vez apresenta mais proibições, como se vê por exemplo, nas placas urbanas que
normalizam a mobilidade urbana, nas câmaras de vigilância dos edifícios e
estabelecimentos comerciais. O governo cerceia as práticas de liberdade por onde o
sujeito resiste. Aliás, resistir ao controle e vigilância governamentais é cada vez mais
difícil, porque a população, atordoada pela insegurança e pelo medo, decorrentes da
violência cotidiana, obedece às normas estabelecidas no afã do desejo de uma melhor
qualidade de vida. Entendemos que múltiplas relações de poder, constituídas por táticas
e estratégias específicas, configuram uma geopolítica urbana.
Por outro lado, o dispositivo propicia analisar, através de suas linhas de fratura ou
de fuga, os movimentos de resistência, aquilo que escapa e resiste. Quando há ruptura, o
dispositivo precisa se reconstituir para capturar novamente o que escapou, por isso, ele
tem caráter de atualização constante. Não possui uma configuração única e definitiva,
pelo contrário, o que o caracteriza é a possibilidade de estar continuamente se
modificando, se recompondo e rearticulando os diferentes elementos que o constituem.
Ele se define por seu teor de novidade e criatividade, que marca ao mesmo tempo sua
capacidade de se transformar, ou de se cindir em proveito de um dispositivo futuro, ou ao
contrário, de fortificar-se sobre suas linhas mais duras, mais rígidas ou sólidas
(DELEUZE, 1999, p. 159).
Como exemplo de linha de fuga do dispositivo político, podemos citar o
acontecimento discursivo – assassinato da vereadora Marielle Franco (em 14 de março
de 2018) -, amplamente discursivizado em materialidades diversas, como no enredo da
Escola de Samba Vai-Vai, em São Paulo, 2019. O que deveria ter sido uma simples
“queima de arquivo” pelo fato de a vereadora ter uma forte militância política no
Complexo da Maré, zona periférica do Rio de Janeiro onde ela morava; sua morte teve
uma repercussão mundial gigantesca e ela foi subjetivada como um ícone representativo
da luta pelos direitos das minorias negra, homossexual e pobre.
Nessa cartografia do espaço urbano, em que os sujeitos afetam e são por ele
afetados, os dispositivos de poder-saber, que regem suas práticas cotidianas, constroem
aquários nos quais os sujeitos nadam como peixes que, a priori, não têm consciência dos
limites de vidro que os aprisionam. Essa metáfora criada por Veyne (2011) sintetiza a
noção de dispositivo enquanto rede de relações produtora de subjetividades. Assim como
os peixes vivem conforme o habitat artificialmente organizado do aquário em dado
período, os sujeitos se constituem dentro de dispositivos de saber-poder, pois “o sujeito é
modelado a cada época pelo dispositivo e pelos discursos do momento, pelas reações de
sua liberdade individual e por suas eventuais ‘estetizações’ [...]” (VEYNE, 2011, p. 178).
No entanto, Foucault também nos ensina que a rede discursiva que o dispositivo
produz e coloca em funcionamento, põe em evidência relações de saber-poder que atuam
incisivamente na subjetivação de sujeitos, possibilitando-lhe movimentos de ruptura, de
resistência, ao que lhe é imposto pelas instituições sociais.
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