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PODER E POBREZA EM FOUCAULT

PORQUÊ NOS INTERESSA ESTA TEMÁTICA NA ATUALIDADE?

LUIS E. R. ESTENSSORO

1998- 2017 (!)


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“Non, je ne m’identifie pas aux anarchistes libertaires,


parce qu’il existe une certaine philosophie libertaire
qui croit dans les besoins fondamentaux de l’homme.
Je n’ai pas envie, je refuse surtout d’être identifié,
d’être localisé par le pouvoir...”
M. Foucault1

O PROBLEMA E O MÉTODO
O problema do poder está colocado centralmente na obra de
Foucault. Embora ele talvez não se considere um teórico do poder, um
cientista político, a sua análise opera com um conceito de poder que reprime e
limita, um poder que constrói um sistema de submissão de agentes, mas que
também constrói subjetividades. Subjetividades, identidades, sujeitos
alternativos ao “sujeito homem” que estrutura o pensamento na cultura
ocidental. Ora, é a própria evolução social do sujeito universal, que se
transforma e se desintegra para depois reconciliar-se, que permite a existência
de sujeitos alternativos. Cria-se então uma pluralidade que desconstrói a
“prisão” da unicidade do soberano, assim como desconstrói o “hospital” da
unidade da identidade.
“Trata-se não mais de pensar o homem a partir do
próprio homem, senão de examinar os modos de objetivação
do sujeito, ou seja, as operações discursivas pelas quais o
indivíduo se constitui a si próprio como louco, delinquente,
doente, etc. A principal consequência desse empreendimento
filosófico reside na abertura do pensamento a um novo
espaço: o de pensar como, em uma cultura como a nossa, se
instituem relações de alteridade e se realizam os
intercâmbios entre diferença e identidade”2

O pensamento de Foucault tenta intervir no círculo vicioso da


conciliação da verdade com sua essência, isto é, no pensamento para o qual
somente existe a exploração da contradição imanente, o que pressupõe uma
noção de sujeito que irá, no final, conciliar as contradições. Esse mecanismo do
poder, esta armadilha do discurso é desmascarada pela arqueologia do saber
na medida em que mostra como os discursos se constituem, e é dissecada pela
genealogia do poder na medida em que reflete acerca de porquê os discursos
se constituem. Assim, percebemos que a verdade, enquanto reiteração de um
sujeito universal, é produzida dentro de um regime de poder. Um certo regime
de poder.

1Foucault, Michel. Dits et écrits 1954-1988. Paris, Gallimard, 1994, p. 667.


2Adorno, Sérgio. Introdução ao curso “Legalidade e Moralidade na Construção da Ordem Social
Burguesa”. Mimeo, 1998.

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Trata-se de construir uma alternativa (pois sabemos que Foucault


não nega a verdade nem a razão; ele não é niilista) que permita uma
capacidade crítica perante o poder. Para isto, é preciso uma atualização
constante perante o momento presente e um exercício permanente de crítica do
saber, na perspectiva da demolição e não da construção, naturalmente.
Foucault se interessa na transformação, nas rupturas, no acontecimento, e se
opõe à cristalização do sujeito na figura do indivíduo racional do mundo
moderno.
Daí os métodos propostos: crítica do sujeito do saber (arqueologia)
e crítica do sujeito do poder (genealogia), como meios para se construir, além de
uma crítica linear da verdade (analítica da verdade), uma crítica descontínua do
tempo presente (ontologia do presente) como desconstrução das verdades, como
desconstrução do logocentrismo, como fim da possibilidade da razão situar-se
enquanto centro estruturante de um sujeito único, do sujeito universal. Combate-
se desta forma a nossa civilização que cria mecanismos de dominação e
repressão baseada numa verdade racional do sujeito na forma de um discurso
científico das ciências humanas.
O método é trabalhar a história como acontecimento, isto é,
como multiplicidade de fatos que alteram os objetos e a ordem na qual eles se
encontram. Ou seja, olhar a história vendo o acaso, a dispersão, pois é nessa
dispersão que se descobre como se estrutura o discurso das ciências humanas,
e é nessa dispersão que se pode identificar o acontecimento que engendra o
processo histórico. Há uma aposta permanente no acaso, no contingente, no
evento. Assim, deve-se ver como o acontecimento constrói o discurso
(arqueologia) e ver como esse discurso entra para a história (genealogia). Há uma
preocupação com a produção de discursos verdadeiros na medida em que
existe uma política de formação do verdadeiro, dos discursos verdadeiros, da
verdade enquanto produto de um regime de poder, com a capacidade de
determinar o que é verdadeiro ou falso. Chega-se à conclusão que não há
verdade fora dos regimes de poder e não há conhecimento que não seja
resultado de luta. As relações de poder produzem saber e o saber se refere
sempre ao poder.
O conceito que Foucault3 mais utiliza para evidenciar as
relações saber-poder é o de dispositivo, que traduz o movimento das
engrenagens que articulam a intercomunicação saber-poder e que permitem a
constituição de sujeitos assujeitados, erigindo uma dominação como
assujeitamento. São estes indivíduos submetidos ou subjugados que constituem
o ponto de articulação da história, que se materializa no corpo (pensamento,
gestos, olhares, símbolos, etc.). É no corpo que é possível pensar a
multiplicidade. O corpo é então a superfície de imersão dos acontecimentos, é
sobre ele que recai o poder disciplinar. Poder este que administra
comportamentos por meio de espaços e tempos determinados, normalizados e
regulados.

3 Foucault, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979, Cap. XVI.

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O poder é ritual pela sua disciplina exaustiva e mecânica das suas


engrenagens: o registro como extração e produção da verdade fora do controle
dos indivíduos; o exame como técnica que reúne as formas modernas de saber
e poder num processo de vigilância e sanção normalizadora. As técnicas
disciplinares estão na prisão, no hospital, na escola, na fábrica, na caserna, bem
como na sexualidade, e incidem para julgar as pessoas pelos seus
comportamentos.
Dispositivo, para Foucault, é um conjunto heterogêneo de
discursos, instituições, organizações, enunciados científicos, decisões
regulamentares, leis, medidas administrativas, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas, etc. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses
elementos. Entre esses elementos há uma espécie de jogo, mudanças de
posição, modificações de funções. Respondendo a urgências de determinado
momento histórico, o dispositivo tem uma função estratégica dominante na
sociedade como estratégia do saber-poder.
Neste sentido, o dispositivo é uma estratégia sem sujeito. Ele
está sempre inscrito em um jogo de poder e em uma configuração do saber que
dele nascem, mas que igualmente o condicionam. A épistémè é um dispositivo
especificamente discursivo utilizado nas ciências humanas e sociais, enquanto
o dispositivo de que trata Foucault é mais heterogêneo, sendo discursivo e não
discursivo.
“Temos em suma que admitir que esse poder se exerce
mais que se possui, que não é ‘privilégio’ adquirido ou
conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de
suas posições estratégicas. ”4

Vê-se então que o poder não tem finalidade e não tem fim. Não
há contra poder, há apenas resistência, e resistência é poder. O poder não é
somente instância institucional, é uma rede produtiva que atravessa toda a
sociedade: não é poder político (inerente ao sistema político e ao Estado), mas
um poder social.
Para Machado, não existe, em Foucault, uma teoria geral do
poder. O que significa dizer que suas análises não consideram o poder como
uma realidade que possua uma natureza, uma essência que ele procuraria
definir por suas características universais.
“Não existe algo unitário e global chamado poder, mas
unicamente formas díspares, heterogêneas, em constante
transformação. O poder não é um objeto natural, uma coisa;
é uma prática social e, como tal, constituída historicamente.
(...) O que aparece como evidente é a existência de formas de
exercício do poder diferentes do Estado, a ele articuladas de
maneiras variadas e que são indispensáveis inclusive à sua
sustentação e atuação eficaz. (...) Poder que intervém
materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos
indivíduos - o seu corpo - e que se situa ao nível do próprio
corpo social, e não acima dele, penetrando na vida cotidiana

4 Foucault, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes, 1987, pp. 25-26

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e por isso podendo ser caracterizado como um micro poder


ou um sub poder. O que Foucault chamou de microfísica do
poder significa tanto um deslocamento do espaço da análise
[central/periférica] quanto do nível [macro/micro] em que
ele se efetua. ”5

Portanto, poder não se confunde com uma ordem pacificada por


leis – aí há uma crítica à supremacia da ideia de poder soberano, conforme
pensado pelos contratualistas -, mas sim com o biopoder e com a biopolítica, que
remetem à ideia de governamentalidade (exercer o governo de si e o governo de
outros) e permitem o controle e a administração tanto sobre o sujeito que deseja
(controle sobre a sexualidade dos indivíduos), como sobre as populações
(enquanto coletividade de indivíduos com características comuns). Biopolítica
então é a arte de governar que aparece no século XVIII como preocupação de
Estado. Estado este que, sumariamente, é uma composição regulada de forças
sociais que visa duas estratégias: a) diplomático-militar; e b) tecnologia e saber
administrativos.
Esta nova racionalidade, que está ligada ao nascimento do
biopoder, passa a considerar o ser humano como recurso e incentiva o Estado a
investir nos indivíduos e nas populações: nos primeiros por meio de um
dispositivo de sexualidade e nas populações por meio de diversas políticas
sociais. Biopolítica é então um controle do corpo e das populações. Biopoder,
acima de tudo, é uma relação social. O poder é produtor de subjetividades
assujeitadas a uma tecnologia de poder que é historicamente determinada.
Então, podemos inferir a verdadeira essência do conceito de biopoder:
“Biopoder é o crescente ordenamento em todas as esferas
sob pretexto de desenvolver o bem-estar dos indivíduos e
das populações. Para o genealogista esta ordem se revela
como sendo uma estratégia, sem ninguém a dirigi-la, e todos
cada vez mais emaranhados nela, que tem com única
finalidade o aumento da ordem e do próprio poder.”6

São estas práticas sociais ordenadoras, sistematizadoras e que até


segregam (como no caso extremo das prisões) que constituem a tecnologia de
poder, a tecnologia disciplinar. Deveríamos enfatizar que as prisões são apenas
um exemplo dentre muitos outros desta tecnologia de disciplina, vigilância e
punição. Por volta do século XVIII e sobretudo no XIX, estas táticas se
estenderam para outros setores da população, outros lugares de reforma,
outras administrações encarregadas do controle social dos indivíduos e das
populações. Assim é a disciplina como tecnologia do poder:
“A disciplina é uma técnica, não uma instituição. Ela
funciona de modo a ser maciça e quase totalmente
apropriada em certas instituições (casas de detenção, forças
armadas) ou usada para fins precisos em outras (escolas,
hospitais); ela poderia ser empregada por autoridades

5 Machado, Roberto. “Por uma genealogia do Poder”. In: Foucault, Michel. Microfísica do Poder. Rio de
Janeiro, Graal, 1979, pp. X-XII.
6 Dreyfus, Hubert e Rabinow, Paul. Michel Foucault. Uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da

hermenêutica. São Paulo, Editora Forense, 1995, p. XXII.

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preexistentes (controle das doenças) ou por parte do


aparelho judiciário do Estado (polícia). Porém, não é
redutível ou identificável com nenhuma destas instâncias
particulares. A disciplina não substitui simplesmente outras
formas de poder que existiram na sociedade. Ao contrário,
ela “investe” sobre estas ou as coloniza, reunindo-as,
estendendo seu alcance, estabelecendo sua eficácia e
‘sobretudo permitindo conduzir os efeitos de poder até os
elementos mais resistentes e mais distantes’.”7

A disciplina opera primeiramente no corpo, forjando um corpo


dócil, que possa ser submetido e utilizado, pois a construção de um micro
poder, começando pelo corpo como objeto a ser manipulado, é a chave do poder
disciplinar. Em segundo lugar, a dimensão significante do corpo das pessoas e
do indivíduo enquanto ser pensante é progressivamente ignorada, minimizada
e silenciada. Em terceiro lugar, o micro poder se dirige aos diferentes empregos
do tempo. Principalmente, utiliza o controle do espaço, enquanto lugar que o
organiza o tempo, em um elemento essencial desta tecnologia.
“A disciplina procede através da organização dos
indivíduos no espaço, e, portanto, exige um fechamento
específico do espaço. ”8

Assim, há um saber que se constrói a partir deste dispositivo de


poder estruturado por uma tecnologia disciplinar, com técnicas como o registro e
o exame sobre os corpos, e que resultam, por exemplo, no saber sobre o louco,
no controle sobre seu tempo e seu espaço, mas não no saber sobre a loucura.
“O conhecimento da doença considerada como essência
abstrata cede o lugar a um saber moderno do indivíduo
como corpo doente. ”9

É este olhar que se volta sobre os comportamentos dos


indivíduos e das populações que irá determinar os rumos da medicalização
das populações, das políticas sociais de saúde, etc. Um olhar filtrado por um
dispositivo de poder centrado sobre um saber estruturante de um sujeito universal
que concilia as contradições da sua própria desintegração. Para Foucault, este é
o problema. Todo o seu método tenta desconstruir, ou melhor, construir um
combate efetivo a esse olhar das ciências humanas, do saber humanista, do
poder social que dele resulta e que, ao mesmo tempo, os produz.

POBREZA E INTERNAMENTO
Como vimos, a medicina moderna é uma prática social que tem
como pano de fundo uma certa tecnologia disciplinar sobre o corpo social, ou
seja, “a medicina é uma estratégia biopolítica”. Esquematicamente, pode-se dizer
que até o fim do século XVII os encargos coletivos da doença eram realizados
pela assistência aos pobres, sendo que a medicina entendida e exercida como
“serviço”, e esta foi apenas uma das componentes dos “socorros”. Ela se
7 Op. Cit., p. 169.
8 Idem, pp. 170-171.
9 Machado (1979), Op. Cit., p. IX.

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dirigia à categoria importante, não obstante a imprecisão de suas fronteiras,


dos “pobres doentes”. 10
“Economicamente, esta medicina-serviço estava
essencialmente assegurada por fundações de caridade (...)
Na figura do “pobre necessitado” que merece hospitalização,
a doença era apenas um dos elementos em um conjunto que
compreendia também a enfermidade, a idade, a
impossibilidade de encontrar trabalho, a ausência de
cuidados. ” 11

A partir de um esquadrinhamento mais rigoroso da população e


das distinções que se tenta estabelecer entre as diferentes categorias de
infelizes aos quais, confusamente, a caridade se destinava o “pobre” é um dos
primeiros a desaparecer e cede lugar a uma série de distinções funcionais.
Delineia-se, assim, toda uma decomposição utilitária da pobreza, onde começa
a aparecer o problema específico da “doença dos pobres” em sua relação com
os imperativos do trabalho e a necessidade da produção.
“Primeiro fenômeno a destacar durante o século XVIII: o
deslocamento progressivo dos procedimentos mistos e
polivalentes de assistência. (...) Uma análise da ociosidade -
de suas condições e seus efeitos - tende a substituir a
sacralização um tanto global do “pobre”. Análise que na
prática tem por objetivo, na melhor das hipóteses, tornar a
pobreza útil, fixando-a ao aparelho de produção; e, na pior,
aliviar o mais possível seu peso para o resto da sociedade:
como fazer trabalhar os pobres “válidos”, como transformá-
los em mão-de-obra útil; mas também como assegurar o
autofinanciamento pelos menos ricos de sua própria doença
e de sua incapacidade transitória ou definitiva de trabalhar;
ou ainda, como tornar lucrativas (...) as despesas com
instrução das crianças abandonadas e dos órfãos.”12

Foucault reconstitui três etapas na formação da medicina social:


a medicina de Estado, a medicina urbana e a medicina da força de trabalho.
a) A medicina de estado se desenvolve na Alemanha no século XVIII e
consiste em: um sistema muito mais completo de observação da
morbidade, criando um saber médico estatal; uma normalização da
profissão médica, isto é, normalização da prática e do saber médicos;
uma organização administrativa central para controlar a atividade dos
médicos; e a criação de funcionários médicos nomeados pelo governo
constituindo uma organização médica estatal.
b) A segunda direção no desenvolvimento da medicina social acontece na
França, também no século XVIII, onde a medicina teve como suporte a
urbanização. Por razões políticas e econômicas decorrentes da
urbanização, surgiu a necessidade de organizar o corpo urbano nas
grandes cidades num corpo coerente, homogêneo, regulamentado e
submetido a um poder único. Surge então o modelo médico e político
10 Foucault, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1995, p. 80.
11 Op. Cit., p. 195-196.
12 Idem Ibidem.

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da quarentena como forma de organização sanitária das cidades,


revivendo a quarentena utilizada contra a peste nos séculos XVI e XVII,
e da qual deriva a higiene pública como forma de medicina urbana que
cuida do espaço urbano através da noção de salubridade (isto é, não a
saúde das pessoas, mas o estado das coisas -- ar, água, alimentos -- de
modo a assegurar a saúde das pessoas).
c) A terceira direção de medicina social é o modelo inglês, que visa
especificamente a força de trabalho, isto é, os pobres: a medicina dos
pobres, da força de trabalho, do operário não foi o primeiro alvo da
medicina social, mas o último.
Assim, em primeiro lugar o Estado, em seguida a cidade e
finalmente os pobres e trabalhadores foram objetos da medicalização. Existem
várias razões para que os pobres não fossem identificados como perigo médico
logo no início do século XVIII, a mais importante é porque o conjunto deles
ainda não eram um amontoado suficientemente grande como para infundir
medos ou receios. Mas há outra razão:
“Mas existe uma razão mais importante: é que o pobre
funcionava no interior da cidade como condição da
existência urbana. Os pobres da cidade eram pessoas que
realizavam incumbências ( ...) faziam parte da
instrumentalização da vida urbana (...). Na medida em que
faziam parte da paisagem urbana, como os esgotos e a
canalização, os pobres não podiam ser postos em questão,
não podiam ser vistos como um perigo. No nível em que se
colocavam, eles eram bastante úteis.” 13

Foi somente no século XIX que o pobre apareceu como perigo por
razões políticas, pois com as revoluções, os pobres tornaram-se força política. O
pobre torna-se também descartável por razões práticas, uma vez que se
organizam os correios, um sistema de carregadores, etc., que substituem os
serviços feitos pelos pobres. A partir daí o espaço urbano passa a ser dividido
em espaços ricos e pobres, pois a coabitação de pobres e ricos torna-se um
perigo sanitário e político para a cidade. É nesse contexto que surge a medicina
social na Inglaterra, como fruto de um ordenamento legal da sociedade,
promovido pelo Estado, utilizando-se das organizações eclesiásticas para
administrar a questão social relativa à pobreza. Assim, com as Leis dos
Pobres14 (Poor Laws) a medicina social se transfigura em assistência social.

13Idem, p. 93-94.
14 “A compulsory system of poor relief was instituted in England during the reign of Elizabeth I. (...)
Perhaps the first English poor law legislation was enacted in 1536, instructing each parish to undertake
voluntary weekly collections to assist the “impotent” poor. The parish had been the basic unit of local
government since at least the fourteenth century, although Parliament imposed few if any civic functions
on parishes before the sixteenth century. Parliament adopted several other statutes relating to the poor in
the next sixty years, culminating with the Acts of 1597-98 and 1601 (43 Eliz. I c. 2), which established a
compulsory system of poor relief that was administered and financed at the parish (local) level. These
Acts laid the groundwork for the system of poor relief up to the adoption of the Poor Law Amendment
Act in 1834. (...) Parliament in 1723 adopted the Workhouse Test Act, which empowered parishes to deny
relief to any applicant who refused to enter a workhouse.” Boyer, George. English Poor Laws. Cornell
University. http://eh.net/?s=poor+laws. Acessado em 01/10/2017.

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“É essencialmente na Lei dos Pobres que a medicina


inglesa começa a tornar-se social, na medida em que o
conjunto dessa legislação comportava um controle médico
do pobre. A partir do momento em que o pobre se beneficia
do sistema de assistência, deve, por isso mesmo, se submeter
a vários controles médicos. Com a Lei dos Pobres aparece, de
maneira ambígua, algo importante na história da medicina
social: a ideia de uma assistência controlada, de uma
intervenção médica que é tanto uma maneira de ajudar os
mais pobres a satisfazer suas necessidades de saúde, sua
pobreza não permitindo que o façam por si mesmos, quanto
um controle pelo qual as classes ricas ou seus representantes
no governo asseguram a saúde das classes pobres e, por
conseguinte, a proteção das classes ricas. Um cordão
sanitário autoritário é estendido no interior das cidades entre
ricos e pobres: os pobres encontrando a possibilidade de se
tratarem gratuitamente ou sem grande despesa e os ricos
garantindo não serem vítimas de fenômenos epidêmicos
originários da classe pobre.”15

Vê-se, claramente, na legislação estatal que diz respeito a


assuntos médicos, a transposição do grande problema político da burguesia
nesta época: a que preço, em que condições e como assegurar sua segurança
pública. A legislação médica contida na Lei dos Pobres corresponde a esse
processo. De maneira geral, pode-se dizer que, diferentemente da medicina
urbana francesa e da medicina de Estado da Alemanha do século XVIII,
aparece na Inglaterra, no século XIX, uma medicina que é essencialmente um
controle da saúde e do corpo das classes mais pobres para torná-las mais aptas
ao trabalho e menos perigosas às classes mais ricas.
Como podemos ver, somente no século XIX os pobres passam a
ser objeto de políticas sociais de Estado nas quais são identificados, enquanto
grupo social visado pelo dispositivo de poder, como mão-de-obra a ser utilizada
no processo de produção, e não apenas como grupo social merecedor de
caridade (porque necessitado) ou de internação (porque ocioso ou desviante).
Mas, recuemos no tempo para reestabelecer o início deste
processo. Segundo Foucault, o período do Grande Internamento começa com a
inauguração, em 1656, do Hospital Geral em Paris, que, juntamente com
diversas outras casas de internação, é destinada “aos pobres de Paris, de todos
os sexos, lugares e idades, de qualquer qualidade de nascimento, e seja qual
for sua condição, válidos ou inválidos, doentes ou convalescentes, curáveis ou
incuráveis”.16 Poderíamos acrescentar voluntários e involuntários, dado que
para lá também são encaminhados criminosos, doentes terminais, e loucos que
serão acorrentados.
“Ao final da Idade Média, a lepra desaparece do mundo
ocidental. (...) A lepra se retira, deixando sem utilidade esses
lugares obscuros [leprosários] e esses ritos que não estavam
destinados a suprimi-la, mas sim a mantê-la a uma distância

15 Foucault, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1995, pp. 95-97.
16 Op. Cit., p. 49.

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sacramentada, a fixá-la numa exaltação inversa. (...) Pobres,


vagabundos, presidiários e “cabeças alienadas” assumirão o
papel abandonado pelo lazarento, e veremos que salvação se
espera dessa exclusão, para eles e para aqueles que o
excluem.”17

O Hospital Geral não é um estabelecimento médico, é uma


entidade administrativa própria da ordem monárquica e burguesa com caráter
semijurídico, pois julga e executa além dos tribunais constituídos.
Desempenha ao mesmo tempo um papel de assistência e repressão. Assim, se
a Idade Média inventara a segregação dos leprosos, o classicismo inventou o
internamento, com personagens que ocupariam o vazio deixado pelos
primeiros. Na verdade, este fenômeno tem dimensões europeias: na França os
Hospitais Gerais, nos países de língua alemã as casas de correção
(Zuchthäusern), na Inglaterra as Workhouses, e assim por diante. O
internamento tem também dimensões massivas:
“Não se deve esquecer que poucos anos após sua
fundação, o único Hospital Geral de Paris agrupava 6000
pessoas, ou seja, cerca de 1% da população.”18

Segundo Foucault, o gesto que interna compreende, numa


unidade complexa, uma nova sensibilidade à miséria e aos deveres da
assistência, novas formas de reação diante dos problemas econômicos do
desemprego e da ociosidade, uma nova ética do trabalho, e também o sonho de
uma cidade na qual: “a obrigação moral se uniria à lei civil, sob as formas
autoritárias da coação. ” Obscuramente, esses temas estão presentes na
construção das cidades onde ocorre o internamento e, pode-se dizer, na sua
própria organização como cidades modernas.
“A prática do internamento designa uma nova reação à
miséria, um novo patético - de modo mais amplo, um outro
relacionamento do homem com aquilo que pode haver de
inumano em sua existência. O pobre, o miserável, o homem
que não pode responder por sua própria existência, assumiu
no decorrer do século XVI uma figura que a Idade Média não
teria reconhecido. A Renascença despojou a miséria de sua
positividade mística. E isto através de um duplo movimento
do pensamento que retira à Pobreza seu sentido absoluto e à
Caridade o valor que ela obtém dessa Pobreza socorrida.” 19

A Reforma levou, nos países protestantes, a uma laicização das


obras públicas, mas, colocando sob seus cuidados toda essa população de
pobres e incapazes, o Estado ou a cidade preparam uma forma nova de
sensibilidade à miséria:
“Iria nascer uma experiência do patético, que não falaria
mais da glorificação da dor, nem da salvação comum à
Pobreza e à Caridade, mas que faz com que o homem se
ocupe de seus deveres para com a sociedade e mostra no
miserável, ao mesmo tempo, um efeito da desordem e um

17 Foucault, Michel. História da Loucura. São Paulo, Perspectiva, 1997, pp. 3-6.
18 Op. Cit., p. 55.
19 Idem, p. 56.

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obstáculo à ordem. Portanto, não se trata mais de exaltar a


miséria no gesto que a alivia, mas, simplesmente, de
suprimi-la. (...) doravante a miséria (...) passa de uma
experiência religiosa que a santifica para uma concepção
moral que a condena. ” 20

Foucault acrescenta que por caminhos diferentes e com algumas


dificuldades o catolicismo chegará, na própria época do Grande Internamento, a
resultados inteiramente análogos. Alguns anos mais tarde, toda a Igreja aprova
a grande internação, que fora prescrita por Luis XIV. A partir deste ponto, “os
miseráveis não são mais reconhecidos como o pretexto enviado por Deus para
suscitar a caridade do cristão e com isso dar-lhe a oportunidade para sua
salvação”. A Igreja tomou partido, e fazendo-o dividiu o mundo cristão da
miséria que a Idade Média em sua totalidade havia santificado. De um lado,
haverá a região do bem, que é a da pobreza submissa e que se situa conforme à
ordem que lhe é proposta; do outro, a região do mal, isto é, da pobreza
insubmissa, que procura escapar ou modificar esta ordem. A primeira aceita o
internamento e aí encontra sua paz e seu descanso. A segunda se recusa a
tanto, se recusa a conformar-se com o internamento, e, por isso, o merece.
“O internamento se justifica assim duas vezes, num
indissociável equívoco, a título de benefício e a título de
punição. É ao mesmo tempo recompensa e castigo, conforme
o valor moral daqueles sobre quem é imposto. Até o final da
era clássica, a prática do internamento será considerada
nesse equívoco: ela terá essa estranha convertibilidade que a
faz mudar de sentido conforme o mérito daqueles a quem se
aplica. Os bons pobres fazem dela um gesto de assistência, e
obra de reconforto; os maus - pela única razão de serem
maus - transformam-na num empreendimento de repressão.
A oposição entre os bons e maus pobres é essencial à
estrutura e à significação do internamento. ”21

Isto deu ao internamento um sentido que passa ao largo da


preocupação com a doença dos pobres e se cristaliza como funcional ao
sistema econômico que então se desenvolvia. Antes de ter um sentido
estritamente médico, de preocupação com os pacientes pobres, o Grande
Internamento tem um caráter adaptado à realidade social da época, baseada na
ética do trabalho como necessidade individual e imperativo social.
“Antes de ter o sentido médico que lhe atribuímos, ou
que pelo menos gostamos de supor que tem, o internamento
foi exigido por razões bem diversas da preocupação com a
cura. O que o tornou necessário foi um imperativo de
trabalho. Nossa filantropia bem que gostaria de reconhecer
os signos de uma benevolência para com a doença, lá onde se
nota apenas a condenação da ociosidade (...). Em todo caso, é
uma solução nova: é a primeira vez que se substituem as
medidas de exclusão puramente negativas por uma medida
de detenção; o desempregado não é mais escorraçado ou
punido; toma-se conta dele, às custas da nação, mas também

20 Idem, p. 58-59.
21 Idem, pp. 60-61.

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de sua liberdade individual. Entre ele e a sociedade,


estabelece-se um sistema implícito de obrigações: ele tem o
direito de ser alimentado, mas deve aceitar a coação física e
moral do internamento.” 22

Considerado nas suas origens, que remontam às dificuldades que


atravessava a Europa, no século XVIII, devido a uma diminuição na produção
das minas de ouro e prata das Américas, o movimento de internação dos
pobres europeus tem, no continente inteiro, o mesmo sentido: constitui uma
das respostas dadas pelos Estados Nacionais a uma crise econômica que afeta o
mundo ocidental: diminuição de salários, desemprego, escassez de moeda,
devendo-se esse conjunto de fatos, muito provavelmente, a uma crise na
economia espanhola, em função da sua relação econômica com suas colônias.
Mas fora dos períodos de crise, o internamento adquire um outro sentido, sua
função de repressão passa a ter uma nova utilidade: não se trata mais de
prender os desempregados e ociosos, mas de dar trabalho aos que foram
presos, fazendo-os servir com isso à prosperidade de todos.
“A alternativa é clara: mão-de-obra barata nos tempos de
pleno emprego e de altos salários; e em período de
desemprego, reabsorção dos ociosos e proteção social contra
a agitação e as revoltas. ”23

Economicamente, porém, o internamento dos pobres é um


desastre, além de ser socialmente ineficaz. Avaliada apenas de acordo com seu
valor funcional, a criação das casas de internamento pode ser considerada um
fracasso, um remédio transitório e ineficaz, uma precaução social muito mal
formulada pela industrialização nascente. Seu desaparecimento em quase toda
a Europa no começo do século XIX, como centros de recepção de indigentes e
prisão da miséria, sancionará seu fracasso final. Porém, o sentido último do
Grande Internamento reside no impulso que cria a oposição Trabalho versus
Pobreza, isto é, trata-se de uma exigência ética da realidade socioeconômica
que brotava. O mundo político e a economia naqueles tempos visavam a
ociosidade, o pecado da Preguiça, como “o supremo orgulho do homem, o
inútil orgulho da miséria”.
“Nesse primeiro impulso do mundo industrial, o
trabalho não aparece ligado a problemas que ele mesmo
suscitará; é percebido, pelo contrário, como solução geral,
panaceia infalível, remédio para todas as formas da miséria.
Trabalho e pobreza situam-se numa oposição simples; suas
amplitudes estão na razão inversa uma da outra. (...) O
trabalho nas casas de internamento assume assim uma
significação ética: dado que a preguiça se tornou a forma
absoluta da revolta, obrigam-se os ociosos ao trabalho, no
lazer indefinido de um labor sem utilidade nem proveito. ” 24

Para Foucault, sem dúvida é essa exigência ética, essa percepção


moral, que prevalece sobre as condições objetivas da sociedade e da economia.

22 Idem, pp. 64-65.


23 Idem, p. 66-67.
24 Idem, pp. 70-72.

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“Com efeito, a relação entre a prática do internamento e as exigências do


trabalho não é definida inteiramente - longe disso - pelas condições da
economia. Sustenta-a e anima-a uma percepção moral. ” 25
Desta forma, a origem da pobreza não é percebida como a
escassez de gêneros ou como desemprego, mas como falta de disciplina e a
frouxidão dos costumes. A obrigação de trabalhar passa a ser,
simultaneamente, um exercício ético e uma garantia moral. Vale como ascese,
como punição, como signo de uma certa atitude do coração. Além disso, o
prisioneiro que pode e quer trabalhar será libertado não tanto pelo fato de ser
novamente útil à justiça, mas porque de novo aderiu ao grande pacto ético da
existência humana baseada no trabalho.
A internação, criação institucional própria ao século XVIII, é, em
suma, uma tentativa de demonstrar que a ordem pode ser adequada à virtude,
isto é, que a garantia da paz social está em um determinado comportamento
social das pessoas. Ou seja, aquele que não adere ao pacto ético da existência
humana, que é o trabalho em primeiro lugar, está no limiar de uma situação de
insanidade, pois “a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da
incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo, o
momento em que começa a inserir-se no texto dos problemas da cidade. ”26
O internamento seria, assim, a eliminação dos comportamentos
desviantes. Entre estes pode-se citar: pessoas com comportamentos fora do
padrão da moral da família burguesa que construía então seu poder de
repressão; libertinos de toda ordem; excêntricos; criminosos; prostitutas;
homossexuais; doentes venéreos; profanadores; blasfemadores; hereges; ateus;
suicidas; feiticeiros; alquimistas; pobres; doentes; e doentes mentais com todo
tipo de insanidade: “parvos, imbecis, estúpidos e furiosos”.
“A transformação dos interditos em neuroses passa por
uma etapa em que a interiorização se faz sob as espécies de
uma citação moral: condenação ética do erro. ”27

Penaliza-se o comportamento desviante, o espírito rebelde,


juntamente com os doentes e miseráveis em um olhar que percebe estas
personagens como erradas, enganadas, equivocadas somente porque não se
enquadram num determinado dispositivo de poder que nascia naquela época: a
família burguesa. Nasce e cresce então um espaço social de repressão, de
condenação do erro, que não se cinge à pobreza nem à doença. Nas palavras
de Foucault:
“Bruscamente, um espaço social se abre e se delimita:
não é exatamente o da miséria, embora tenha nascido da
grande inquietação com a pobreza. Nem exatamente o da
doença, e, no entanto, será um dia por ela confiscado. ”28

25 Idem, p. 74-75.
26 Idem, pp. 78-79.
27 Idem, p. 98.
28 Idem, p.102.

13
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É exatamente este o processo que corresponde à ascensão da


medicina social na Alemanha, França e Inglaterra, como vimos anteriormente.
Este processo se inicia com uma crítica à ociosidade e culmina com a
preocupação de Estado com o problema específico da doença dos pobres, isto é,
com a saúde da mão-de-obra do modo de produção capitalista. É nessa condição
que a pobreza entra em cena no século XX: como algo surpreendente pois,
apesar do crescimento econômico registrado, ela persiste. Percebe-se então que
o progresso e o trabalho podem criar pobreza ao invés de suprimi-la. Surge
então a questão da natureza da pobreza, isto é, do papel social que desempenha na
reprodução das sociedades. Isto está ligado a três questões interdependentes,
as quais participam de toda política ou luta contra a pobreza: a) para que
servem os pobres? b) para que serve a pobreza? c) que fazer dos pobres? 29
Assim, passamos da Idade Média, onde a função dos pobres era
definida em termos religiosos, para um movimento de laicização da pobreza,
ou seja, a pobreza passa a ser tratada política e operacionalmente, o que
podemos traduzir em outras três questões: a) de quantos pobres precisamos?
b) quantos pobres podemos suportar, política e eticamente? c) qual é o custo
político e econômico da passagem de um a outro desses limites? 30
Como vimos, com a urbanização e o crescimento da pobreza nas
cidades, inicia-se uma política de separação dos “bons” e dos “maus” pobres,
que culmina com o Grande Internamento do século XVII. Posteriormente, com as
Revoluções de 1789 e 1848 houve uma ruptura no tratamento da pobreza:
aparece uma nova racionalidade política que se ocupa do fenômeno da pobreza do
ponto de vista da administração desta questão social, trata-se muito mais de
governar a miséria, do que de promover a sua erradicação na sociedade.
Quando se recoloca, então, o problema da pobreza no século XIX, a questão
premente é a ideia do “social”:
“Gouverner la misère, ce n’est pas l’éliminer; c’est avant
tout constituer un champ, “le social”, dans lequel les pauvres
pourront exister, agir librement, mais à l’intérieur de leur
relation au pouvoir. Le social, et les “politiques sociales”
apparaissent comme une stratégie de dépolitisation des
inégalités, une façon de les traiter en termes d’organisation et
de techniques, et non de pouvoir et de droits politiques.”31

Trata-se de uma tecnologia de governo sobre os pobres que se


desenvolve ao longo do século XIX, quando a questão era: qual pode ser a
função social dos pobres? Sob o nome de economia social ou filantropia, esta
tecnologia de poder se apoiou em três principais acepções:32
a) Separa-se o “pobre normal” do miserável, sendo que o miserável passa
a ser visto como um “sintoma de doença do corpo social”;

29 Lautier, Bruno e Salama, Pierre. “De L’Histoire de la Pauvreté en Europe a la Pauvreté dans le Tiers
Monde”. Revue Tiers Monde, t. XXXVI, nº 142, abr/jun 1995, p. 246.
30 Op cit., p. 246.
31 Idem, p. 248.
32 Idem, pp. 249-251.

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b) Distingue-se o “bom pobre” do “mau pobre”, este último entendido


como um perigo social quando resolve reivindicar seus direitos
sociais;
c) Não se vincula o dever de assistência social que a sociedade tem
para com os miseráveis com nenhum direito de cidadania dos
mesmos. Ou seja, ocorre uma infantilização dos pobres por meio de
sua exclusão do governo da sociedade, concretizada ao se declará-
los seres sociais tutelados pelo poder público.
Com a criação do Welfare State europeu a questão da pobreza
sai de cena até por volta de 1980, pois durante todo o pós-guerra, o operariado
europeu, graças aos mecanismos de seguridade social, se consideraria “pobre,
mas não excluído”. Essa gestão integradora do social iria tirar do cenário
político a questão da pobreza até o reaparecimento, na Europa, do desemprego
durável e massivo e do fenômeno contemporâneo que consiste em indivíduos
excluídos dos direitos sociais. Assim, ocorre uma outra transformação na
forma com que o Estado se relaciona com os pobres, que agora são também
socialmente excluídos.
“D’une logique centripète de réincorporation dans le
champ de l’Etat-providence, on passe à une logique de
gestion de l’exclusion sociale.”33

O conceito de gestão da exclusão social deixa margem para que,


Lautier e Salama tirem alguns “ensinamentos” em relação ao problema
apresentado hoje em dia pela questão social: 34
a) Na relação entre pobreza e democratização, a questão dos direitos
políticos fez, na Europa do século XIX, emergir a questão correlata dos
direitos sociais. Neste contexto, a questão central é: como o pobre pode
ser cidadão? Esta questão social se apresenta, hoje em dia, para as
sociedades do Terceiro Mundo;
b) O argumento neoliberal da “superioridade ética” da justiça produtiva
sobre a justiça distributiva, e a consequente aceitação de que os pobres
devem ser ajudados sim, mas não pelos ricos, e sim pela sociedade
como um todo, pela Nação, tem prejudicado o combate à miséria,
porque direciona as políticas estatais para o crescimento da economia e
não para a equidade social;
c) O terceiro ensinamento é que, no debate sobre a pobreza no século XIX,
estavam ausentes os próprios pobres, situação que contrasta cada vez
mais com a atualidade da questão no Terceiro Mundo “onde a atuação e
profusão de iniciativas dos pobres pela sua sobrevivência impedem de
acusá-los como responsáveis pela sua própria pobreza”.
Na verdade, os direitos sociais, dos quais falamos acima, já foram
reconhecidos, juntamente com os direitos civis e os direitos políticos, no elenco

33 Idem, p. 251.
34 Idem, pp. 252-254.

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dos direitos humanos promulgados pela ONU em 1948; no Brasil eles foram
incorporados por meio da Constituição Nacional de 1988. No entanto, a
defasagem entre a palavra escrita na Lei e a desigualdade, pobreza, e injustiças
existentes na realidade concreta são claras e evidentes. É nesse sentido que
podemos nos referir ao campo social e às políticas sociais como “estratégias de
despolitização das desigualdades”. De fato, a Lei dá margem para que haja
controvérsias sobre a validade de um ordenamento jurídico rodeado de
iniquidades por todos os lados, e, em decorrência disto, também pode-se
questionar a função que o Direito e a Justiça exercem na sociedade enquanto
alicerces de um Estado que “administra a pobreza” por meio de política sociais
e políticas econômicas. Os modelos alternativos de ordenamento social, contudo,
têm-se mostrado precários e ineficazes para permitir uma progressão viável
em direção a uma situação melhor.
Porém, há quem entenda que seja possível “reativar o sentido
político inscrito nos direitos sociais”. Pois, para além das garantias formais
inscritas na Lei, “os direitos estruturam uma linguagem pública que baliza os
critérios pelos quais os dramas da existência são problematizados em suas
exigências de equidade e justiça. ”35 Segundo Telles, esta “operação social”
ocorre quando os valores universais e abstratos penetram na realidade concreta por
meio de normas, leis e regulamentos que estruturam as relações sociais. Assim,
não tanto pelo discurso humanitário que cerca os movimentos sociais, ou pelo
discurso sociológico-técnico a respeito da pobreza, mas sobretudo pelo “poder
de desestabilização de consensos estabelecidos”, que se dá quando os próprios
pobres aparecem na cena política como cidadãos, é que se pode esperar
reativar as exigências de igualdade e justiça.
Em outras palavras, quando os próprios pobres surgem como “sujeitos
falantes” é que se pode questionar o consenso em torno da medida de equidade e da
regra da justiça das relações sociais, ao criar um conflito que consiste na própria cifra
do “mundo comum” em que vivemos, isto é, este conjunto de referências partilhadas
pela pluralidade de discursos e ações nas esferas públicas da sociedade.
“E é também por referência a esse ‘mundo comum’
ampliado pela presença polêmica de sujeitos falantes, que
talvez se tenha uma chave para compreender o sentido da
forte alteridade política, que não é a mesma coisa que o
princípio liberal da pluralidade, e que vai além da genérica
asserção do ‘reconhecimento das diferenças’. ” 36

É exatamente essa relação de alteridade que Foucault diz buscar;


embora a desqualifique aprioristicamente ao igualar poder e resistência como
fazendo ambos parte do mesmo movimento do sujeito universal. Veremos
adiante que este gesto de Foucault, que relativiza e equipara todo e qualquer
discurso ou ação, invalida também a sua própria análise enquanto sujeito
falante no “mundo comum”. Por enquanto, façamos uso de uma ponte entre a

35 Telles, Vera da Silva. “Direitos Sociais: afinal de que se trata? ”. Revista USP, São Paulo, nº 37, mar/mai
1998, p. 38.
36 Op. cit., p. 42.

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questão da pobreza, da medicalização dos pobres, o nascimento da psiquiatria


com a questão do poder, dos sujeitos falantes e do sujeito universal:
“Dois incidentes assumem o significado de serem os
limiares da história da racionalidade: a grande onda de
internamentos nos meados do século XVII e, depois, no fim
do século XVIII, a transformação destes campos de
internamento e asilos em instituições fechadas, com
assistência médica para aqueles que o diagnóstico médico
qualificaria como doentes de espírito. (...) Ambos os
acontecimentos, em primeiro lugar o aquartelamento
indiscriminado de loucos, criminosos, gente sem residência
permanente, libertinos, pobres, excêntricos de todos tipos e,
mais tarde, a criação de clínicas para tratamento de doenças
do espírito assinalam duas espécies de práticas; ambos
servem para marginalizar elementos heterogéneos daquele
monólogo que se ia consolidando gradualmente e que o
sujeito, elevado finalmente à razão humana universal, tem
consigo mesmo, transformando em objeto tudo o que estiver
à sua volta.”37

Se realmente tanto o movimento que gera o internamento quanto


a criação de instituições psiquiátricas servem para marginalizar elementos
heterogêneos de um “monólogo” que se consolida gradualmente e, no qual “o
sujeito, elevado finalmente à razão humana universal, tem consigo mesmo”, é
possível discernir entre duas posições que existem neste embate do sujeito
consigo mesmo. Por que motivo então não podemos nos referir a dois tipos de
sujeito neste conflito? Por exemplo, consideremos a seguinte proposição:
Como resultado da relação entre a questão social vinculada à pobreza e a
medicalização dos pobres, assistimos ao próprio nascimento da psiquiatria,
que, hoje em dia, é equacionada no embate entre o poder e a resistência como
formas de expressão do sujeito universal e dos sujeitos falantes, respectivamente.
Parece-me bastante razoável, enquanto indicação da possibilidade de
competição entre uma realidade dominada por um projeto hegemônico e a sua
contestação por projetos alternativos, ou seja, por verdades e forças concorrentes.
Contrariamente, tomando como exemplo as tentativas de
reforma que resultaram na criação da instituição psiquiátrica e da psicologia
clínica, Foucault desenvolve, segundo Habermas, “aquela afinidade interna
entre o humanismo e o terror que confere acuidade e inflexibilidade à sua
crítica da Modernidade. ”38 Isto é, o pensamento para o qual uma noção de
sujeito que irá, no final, conciliar as contradições, ou o “círculo vicioso da
conciliação da verdade com sua essência”, ou ainda a “contradição imanente do
sujeito universal”, que Foucault tanto criticara, agora aparece como a conclusão
da sua própria análise histórica do problema analisado. Pare ele, humanismo e o
terror são pertencentes ao mesmo sujeito que funda a Modernidade.
A sua busca por uma relação de alteridade não se conclui com o
entendimento da existência de uma confrontação entre o sujeito universal e os

37 Habermas, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. Lisboa, Dom Quixote, 1990, p. 230.
38 Op. Cit., p. 233.

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sujeitos alternativos, sejam sujeitos “atuantes” ou “falantes”, mas prossegue com


a afirmação da unicidade do sujeito universal na conformação da verdade enquanto
relação entre saber e poder, onde não há espaços para outros modos de entender
e pensar, pois todos estes estão compreendidos na própria constituição do
sujeito que os realiza, um sujeito verdadeiramente universal e único. Esta
conclusão – que para alguns é a própria definição de Deus (!) –, para Foucault
representa, a meu ver, a falência do seu empreendimento de busca por uma
“pluralidade que desconstrua a ‘prisão’ da unicidade do soberano, assim como
desconstrói o ‘hospital’ da unidade da identidade”.

PODER E HIPOCRISIA
Foucault, analisando as tecnologias de dominação que surgiram na
Época Clássica (época do absolutismo) e na Idade Moderna (desde o fim do
século XVIII), detecta que o complexo do poder se concentrou primeiramente
na soberania do Estado como monopolizador da força, para depois
sedimentar-se na linguagem jurídica do direito natural moderno que opera
com os conceitos fundamentais de contrato e Lei. Nas palavras de Habermas, o
que Foucault encontra encoberto na proteção oficial de discursos jurídicos
relativos à soberania do Estado, é o começo de uma biopolítica que se forja
gradualmente:
“A verdadeira tarefa das teorias absolutistas do Estado é
menos a legitimação dos direitos humanos que a
fundamentação da concentração de toda a força nas mãos do
soberano. A este compete erguer um aparelho centralizado
da administração pública e favorecer um saber
organizacional útil à administração. O objecto desta nova
necessidade de saber não é o cidadão com seus direitos e
deveres, mas o subdito com o seu corpo e a sua vida,
necessidade que começa por se contentar com o
conhecimento das finanças públicas e a estatística de
nascimentos e mortes, a doença e a criminalidade, trabalho e
comunicações, bem-estar e indigência das populações. Para
Foucault encontram-se já aqui os começos de uma biopolítica
que se forja gradualmente a coberto da protecção oficial de
discursos jurídicos relativos à soberania do Estado. ”39

Ou seja, a evolução exponencial das formas de controle social,


localizadas nos dispositivos de poder com sua tecnologia disciplinar que subjuga o
corpo dos indivíduos, bem como nas objetivações do poder soberano em
instituições e organizações sociais, produz um saber sistematizado pelas
ciências humanas que possibilita uma transparência muito maior das pessoas
perante o complexo de poder.
Para Foucault, antes do fim do século XVIII o homem, enquanto
sujeito de um poder soberano, não existia, isto é, a gramática, a história
natural, e a análise de riquezas eram maneiras de reconhecê-lo, mas não havia
consciência epistemológica do homem como tal. Coube a Kant inaugurar a

39 Idem, 255.

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época da modernidade. Assim, com o fim da metafísica, o homem que se torna


presente na autoconsciência deve empreender “a tarefa sobre-humana de
estabelecer uma ordem das coisas no momento em que toma consciência da
sua existência simultaneamente como autónoma e como finita”. 40 Esta tarefa
não é possível de ser realizada sem uma força de vontade que se desenvolve,
ao mesmo tempo, como saber e poder, isto é, como uma vontade de verdade que
é, para Foucault, a chave da relação interna que existe entre o saber e o poder.
“Desta maneira a forma moderna de saber é
determinada pela dinâmica peculiar de uma vontade de
verdade para a qual cada frustração é apenas um incentivo
para uma renovada produção do saber. Esta vontade de
verdade é agora para Foucault a chave da relação interna que
existe entre o saber e o poder. ”41

Para Habermas, Foucault chega a deduzir da vontade de saber o


conceito básico de poder em que vai apoiar a sua historiografia genealógica, e,
como um discurso dirigido por regras, não pode, ele próprio, regular o
contexto em que está inserido. Então, Foucault irá subordinar a arqueologia do
saber a uma genealogia que explica o emergir do saber a partir das práticas do
poder. É nesta relação entre saber e poder que vai aparecer uma ambiguidade
inicial que irá prejudicar a problematização da pobreza por Foucault, porque,
na transição para a teoria do poder, Foucault destaca esta vontade de saber do
contexto metafísico-histórico e a faz surgir na categoria de poder em geral.
“Esta proveniência oculta do conceito de poder que
deriva do conceito metafísico-crítico da vontade de verdade
e do saber explica também a utilização sistematicamente
ambígua da categoria do “poder”. Esta categoria tem, por
um lado, a inocência de um conceito utilizável
descritivamente e serve para uma análise empírica das
tecnologias de poder que, no plano metodológico, não se
distingue, de forma notória, de uma sociologia funcionalista
do saber, orientada para a história. Por outro lado, a
categoria do poder conserva também, da história secreta do
seu nascimento, o sentido de um conceito teórico-
constitutivo, conceito esse que empresta à análise empírica
das tecnologias do poder o seu significado de crítica da razão
e que garante à historiografia genealógica o seu efeito de
desmascaramento. (...) esta ambiguidade sistemática explica,
na verdade, sem, todavia, a justificar, aquela aliança
paradoxal entre a abordagem positivista e a pretensão crítica
que caracteriza os trabalhos de Foucault a partir dos anos
setenta. ” 42

Habermas fala ainda de três reduções de caráter interno que o


“positivista feliz” Foucault faz e que não são inteiramente identificáveis com
os aspectos das práticas de poder apreendidos do exterior: 43

40 Idem, p. 245.
41 Idem, p. 246.
42 Idem, p. 254-255.
43 Idem, p. 260.

19
20

1) A compreensão do sentido pelo intérprete que participa em


discursos é reduzida à explicação dos discursos [significado];
2) As exigências de validade que são funcionalisticamente reduzidas a
efeitos de poder [valor da verdade];
3) O dever é, numa perspectiva naturalista, reduzido ao ser [avaliação].
Vejamos agora, então, o conceito de poder proposto por
Foucault, começando pela sua conceituação da categoria corpo:
“Mas o corpo também está diretamente mergulhado
num campo político; as relações de poder têm alcance
imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o
supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias,
exigem-lhe sinais. Este investimento político do corpo está
ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua
utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de
produção que o corpo é investido por relações de poder e de
dominação; mas em compensação sua constituição como
força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema
de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento
político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado);
o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo
produtivo e corpo submisso.”44

Vemos então que o objetivo do poder disciplinar não é apenas


submeter as pessoas, mas transformá-las: treinar o corpo para que, através de
uma atitude moral recebida, haja disposição para um trabalho regular e uma
vida organizada. Sobre este corpo há um saber e um controle sobre suas forças.
Ambos constituem o que Foucault chama de “tecnologia política do corpo”,
que, apesar da coerência dos seus resultados, não passa de uma
instrumentação multiforme, de uma microfísica. Isto faz dela impossível de
ser localizada no aparelho de Estado, apesar de este recorrer àquela com
frequência, talvez por isso mesmo. Há, então, uma tecnologia punitiva que se
espalha a partir do final do século XVIII que irá impor disciplinas corporais em
fábricas, alojamentos de operários, casernas, escolas, hospitais e prisões.
O papel das ciências humanas, enquanto amálgama de poder e
saber, seria prolongar e aprofundar o efeito deste dispositivo de disciplinas
corporais até atingir a subjetividade das pessoas. Trata-se de alguma maneira
de uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições, o
que supõe que o poder nelas exercido não é concebido como uma propriedade,
mas como uma estratégia, cuja dominação aparece mais como uma atividade do
que como uma apropriação. Esse poder é um poder que se exerce, e não um poder que
se possui. Neste aspecto, as relações de poder interessam como condições de
formação e como efeitos sociais do saber científico.
“Ora, o estudo desta microfísica supõe que o poder nela
exercido não seja concebido como uma propriedade, mas
como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não
sejam atribuídos a uma “apropriação”, mas a disposições, a

44 Foucault, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes, 1987, pp. 25-26.

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21

manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos; que se


desvende nele antes uma rede de relações sempre tensas,
sempre em atividade, que um privilégio que se pudesse
deter; que lhe seja dado como modelo antes a batalha
perpétua que o contrato que faz uma cessão ou a conquista
que se apodera de um domínio. Temos em suma que admitir
que esse poder se exerce mais que se possui, que não é
“privilégio” adquirido ou conservado da classe dominante,
mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas - efeito
manifestado e às vezes reconduzido pela posição dos que são
dominados. ” 45

Foucault tende a renunciar a toda uma tradição que pensa que só


pode haver saber onde as relações de poder estão ausentes, e que o saber só
pode desenvolver-se fora de suas injunções, de suas exigências e de seus
interesses. O saber é orientado por interesses muito concretos, e, como tais,
dependentes de relações de poder. Nesse contexto as relações de poder interessam
como condições constitutivas do saber científico.
“Temos antes que admitir que o poder produz saber (e
não simplesmente favorecendo-o porque o serve ou
aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão
diretamente implicados; que não há relação de poder sem
constituição correlata de um campo de saber, nem saber que
não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de
poder. Essas relações de “poder-saber” não devem então ser
analisadas a partir de um sujeito do conhecimento que seria
ou não livre em relação ao sistema do poder; mas é preciso
considerar ao contrário que o sujeito que conhece, os objetos
a conhecer e as modalidades de conhecimentos são outros
tantos efeitos dessas implicações fundamentais do poder-
saber e de suas transformações históricas. Resumindo, não é
a atividade do sujeito de conhecimento que produziria um
saber, útil ou arredio ao poder, mas o poder-saber, os
processos e as lutas que o atravessam e que o constituem,
que determinam as formas e os campos possíveis do
conhecimento. ”46

Para Habermas, o conceito básico de poder em Foucault força o


encontro do pensamento idealista da “síntese transcendental” com os
pressupostos de uma “ontologia empírica”. Esta abordagem não pode, portanto,
conduzir já a uma saída nos marcos da filosofia do sujeito, porque “o conceito de
poder, que deve propor um denominador comum para componentes semânticas
contrárias, foi ele próprio retirado do repertório da filosofia da consciência”.
Acrescenta que, para a filosofia da consciência “há basicamente duas, e apenas
duas” espécies de relações que o sujeito pode adotar perante o mundo de
objetos representáveis e manipuláveis:
A. Relações cognitivas que são reguladas pela verdade dos juízos, e
B. Relações práticas que são reguladas pelo sucesso das ações.

45 Op. Cit., pp. 26-27.


46 Idem Ibidem.

21
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A definição cabal de relação de poder pode ser conceituada da


seguinte forma: “o poder é aquilo com que o sujeito atua sobre objetos em
ações bem-sucedidas”. Assim, o sucesso da ação depende da verdade dos juízos
que entram no projeto da ação. E, portanto, através do critério de sucesso da ação, o
poder permanece dependente da verdade.
Ora, Habermas afirma que Foucault inverte esta dependência da
verdade relativamente ao poder, numa dependência do poder relativamente à verdade.
Então o poder fundador já não precisa de estar ligado às competências dos
sujeitos atuantes e julgadores. Desta forma, o poder deixa de ter sujeito.
“Mas ninguém pode fugir aos constrangimentos
estratégicos conceptuais da filosofia do sujeito pela simples
execução de operações de inversão sobre seus conceitos
básicos. ”47

A seguir acompanhamos a crítica que Habermas faz ao “irritante


papel duplo” das argumentações de Foucault quanto à sua genealogia das
ciências humanas e ao seu conceito básico de poder:
“Por um lado, desempenha o papel empírico de uma
análise das tecnologias de poder que devem explicar o
contexto social da função da ciência sobre o Homem; neste
aspecto, as relações de poder interessam como condições de
formação e como efeitos sociais do saber científico. E, por
outro lado, esta mesma genealogia desempenha o papel
transcendental de uma análise das técnicas de poder que se
propõe explicar como é que são possíveis os discursos
científicos sobre o homem em geral. Nesse contexto as
relações de poder interessam como condições constitutivas
do saber científico. (...) A historiografia genealógica deve ser
as duas coisas ao mesmo tempo - ciência social funcionalista
e investigação histórica sobre a constituição dos saberes. ”48

Assim, a genealogia tem o mesmo destino das ciências sociais:


acaba sendo uma pseudociência “presentista, relativista e cripto-normativa”: 49
1) Presentista porque permanece presa à situação de partida, onde se
admite que não há conhecimento que não assente na injustiça, e que,
portanto, no conhecimento não há um direito à verdade nem
qualquer fundamentação do verdadeiro;
2) Relativista porque, na sua hipótese fundamental da teoria de poder,
por ser auto referencial, “deve, se for justa, destruir também o fundo
de validade das investigações que inspira”; e
3) Cripto-normativa porque a parcialidade arbitrária da sua crítica não
consegue justificar os seus fundamentos normativos.

47 Habermas (1990), pp. 258-259.


48 Op. Cit., p. 259.
49 Idem, p. 262.

22
23

Desta maneira, pelo entendimento manifestado por Habermas, se


as ciências humanas se extinguem num “objetivismo irremediável”, a genealogia
de Foucault se esgota num “subjetivismo irremediável”.
A partir destas observações podemos avaliar o significado do
fato de Foucault tentar construir uma capacidade crítica perante o poder
negando, como vimos na citação inicial, as necessidades fundamentais do
homem, isto é, qualquer concepção política humanista. Trata-se de um auto
exclusão que pretende evitar a razão enquanto centro estruturante de um
sujeito único ou universal. Ou seja, é, no limite, um gesto na direção do irracional.
Ora, este movimento produz uma verdade enquanto produto de uma resistência.
Mas esta acaba sendo equiparada à verdade enquanto produto de um regime de
poder, pois, para Foucault, “a resistência tem de ser como o poder. ” 50
Portanto, podemos raciocinar da seguinte forma:
a) Se o poder é uma rede produtiva de relações sociais que atravessa
toda a sociedade; e
b) A prática social historicamente determinada que é o poder diz
respeito ao sujeito universal; então
c) Foucault intervém no debate enquanto sujeito falante, produzindo
enunciados (discurso) e desencadeando agenciamentos (poder).
Neste papel, Foucault seria, segundo a sua própria teoria (que é
auto referencial), uma parte do dispositivo de poder que presta serviços ao sujeito
universal que afirma combater.
Além disso, se Foucault assume que toda verdade é produto de
poder, não deveria ser diferente com o que ele diz acreditar. Assim, vemos que
as críticas ao relativismo e ao presentismo da genealogia revelam por si só o
caráter cripto-normativo de uma teoria parcial e arbitrária na sua argumentação,
caráter que a leva a um subjetivismo que pode ser considerado uma
hipocrisia intelectual: se Foucault se distingue do “positivismo engagé”51 de
Max Weber, que pretendia separar o juízo de valor, como conceito
declaradamente resultante de uma escolha pessoal, das observações
conduzidas de forma objetiva e neutra, que estruturariam análises científicas
livres de juízos de valor, as quais possibilitariam descobrir os significados da ação
social; se ele igualmente se distingue de Karl Marx, que desmascarou a auto
compreensão humanística da modernidade ao perseguir o conteúdo
normativo dos ideais burgueses; se nega ser niilista, ao acreditar na verdade e
na razão; se nega ser anarquista, pois as necessidades fundamentais do homem
não lhe são fundamentais na sua teoria e prática política; resta-lhe, nesta
fronteira do pensamento, assumir-se então como representante deste poder
soberano do sujeito universal, ou, ao menos, entender sua posição como uma
resistência exercida como um sujeito falante ou atuante. Porém, isto ele também
nega! Ele não deseja ser identificado, localizado por este poder do qual faz

50 Idem, p. 265.
51 Idem Ibidem.

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parte, não deseja assumir a responsabilidade de estar construindo o poder-


saber, o poder disciplinar, o biopoder.
Nesse sentido, a pergunta subjacente da problemática da pobreza
(como o pobre pode ser cidadão?), acaba sendo esvaziada se for adotado o
olhar auto referencial (qual o modelo democrático de controle social queremos?).
A. Na primeira pergunta, trata-se de construir uma alternativa à ordem
socioeconômica estabelecida, por meio de uma viabilização política dos
das camadas pobres da sociedade, enquanto sujeitos falantes de uma
linguagem pública, isto é, enquanto uma capacidade de realização do
indivíduo na coletividade sob condições de uma intersubjetividade
comunicativamente compartilhada. 52
B. Na segunda questão, há um contrassenso inicial entre um modelo
democrático que se deseja (qualquer que seja), e a necessidade de controle
social que se impõe, necessariamente total, pois trata-se de um poder
disciplinar ao qual estamos nos referindo.
Ora, isto conduz irremediavelmente a um impasse. Foucault não
quer fazer frente às patologias da modernidade, nem dialogar com sujeitos
falantes de uma teoria política moderna, “ele quer furtar-se à modernidade e aos
seus jogos de linguagem. ” 53 Mas percebe-se que esse seu desprendimento da
modernidade termina por significar um abandono de todas as teorias
concorrentes em nome de um projeto inconsistente e circular, ou, no mínimo,
vago. Combate-se um humanismo hipócrita por querer apenas “incluir” os
pobres, luta-se contra um anarquismo libertário por que este defender as
necessidades fundamentais do homem; ataca-se o positivismo; critica-se o
marxismo; descarta-se a sociologia weberiana, mas o que se defende é
simplesmente a fórmula obscura de uma justiça pós-moderna que estaria
“liberta do princípio de soberania”.

OS CONCEITOS A PROCURA DE UMA TEORIA


Não me parece suficiente, como programa político, colocar-se a
favor de uma estratégia discursiva que posiciona os agentes sociais de forma a
esvaziar o conceito de soberania e a própria noção de sujeito individual
consciente e racional, noção que foi historicamente constituída desde a
antiguidade, e que Foucault, ousadamente, a ela se refere com a denominação
de sujeito universal. Não me parece adequado porque esta estratégia discursiva
não supera a sua condição de ser, ela mesma, parte inscrita no próprio sistema
de poder-saber relatado, desconstruído e criticado como sendo uma articulação
de dispositivos repressivos e poderes disciplinares que atuam sobre o corpo social, o
corpo dos indivíduos, e até sobre os comportamentos e intenções das pessoas
nas suas ações sociais.

52 McCarthy, Thomas. La Teoria Crítica de Jürgen Habermas. Tecnos, 1987, p. 461.


53 Habermas (1990), p. 265.

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Digo isto porque uma sociologia reflexiva baseada na linha teórica


de Max Weber poderá provar a adaptação desses agentes sociais dessa estratégia
discursiva à engrenagem dos poderes constituídos que predominam na
sociedade, pois não é outra a orientação de sua ação social. Uma análise marxista
constatará a aderência política dos sujeitos dessa lógica discursiva esvaziada de
soberania às estruturas socioeconômicas prevalecentes nas formações sociais
consideradas, nelas inscritas pela realidade concreta historicamente constituída.
Mais ainda, a falta de valores humanistas dentro de um projeto político
consequente que vise a superação das opressões e constrangimentos sobre as
pessoas, impostas por uma realidade social concreta que se deseja transformar,
indica a ausência de vontade política para operar a mudança social nesta
estrutura de classes sociais por parte dessa arqueologia do saber e,
principalmente, dessa genealogia do poder assim descritas.
Vale dizer que a opressão exercida pela realidade social concreta
não se limita ao fato de os Estados Nacionais personificarem o poder soberano,
expressão do monopólio da força física que detêm sobre os cidadãos, mas no fato
de assim permanecerem enquanto ordem jurídico-política correspondente à
organização da produção econômica em empresas de propriedade privada que, por sua
vez, estão inseridas em um sistema capitalista monopolista globalizado que,
atualmente, se caracteriza pelo predomínio do capital financeiro.
Neste sentido, a arqueologia do saber e a genealogia do poder nos
moldes propostos por Foucault, devem ser reconhecidas como duas tarefas
perfeitamente compatíveis de sujeitos políticos que se enquadram como
formadores, agentes e parte integrante desta ordem socioeconômica, na qual se
integram e se posicionam segundo as classes sociais das quais participam.
Estas, como sabemos, coexistem em permanente contradição, e enfrentam à
sua maneira, e dentro de suas possibilidades assimétricas, as diversas crises
econômicas, os variados vetos sociais e os infindáveis conflitos políticos que
acontecem em nossas sociedades. A caracterização desses sujeitos falantes,
atuantes e críticos instruídos a partir de uma estratégia discursiva “esvaziada de
soberania”, não impede que se identifique estes agentes políticos, por exemplo,
como “maoístas desiludidos”, o que é muito mais do que uma ironia política,
não muito diferente da zombaria da qual foram vítimas os “trotskistas da
velha guarda”.
Para ser sincero, os agentes do atual padrão de acumulação de
capital têm conseguido se impor socialmente, precisamente por sua aceitação e
promoção de tarefas compatíveis com a natureza sistêmica concentradora de renda
e riqueza, e a sua associação ativa com os processos de exclusão social. Neste
contexto, tornam-se o próprio centro dirigente da atividade deste sistema
econômico de classes sociais em conflito, não somente no que se refere à dinâmica
sistêmica da economia, mas também no que diz respeito à própria estrutura
piramidal da sociedade. Coincidentemente, por causa de sua inconsistência
política, o horizonte pragmático da estratégia discursiva em questão é
compatível com o status quo imperante de subordinação marginal de massas
empobrecidas e, como se não bastasse, concorre também para promover a

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estigmatização de sujeitos com vontade política própria (soberana), derivada


de uma crítica social que contesta este padrão de desenvolvimento econômico
baseado na acumulação e concentração de capital e na injustiça social.
Na verdade, o sistema capitalista atual é o verdadeiro produto
destes dispositivos e estratégias dispersas do poder e do saber moderno e
contemporâneo, na medida em que estes se tornaram pilares da ordem
sociopolítica, ou foram absorvidos pela ordem socioeconômica, ou ainda porque
não conseguiram superar a lógica sistêmica deste modo de produção, que
reproduz e aumenta as extremas desigualdades sociais que existem em nossas
sociedades. Historicamente, portanto, o discurso que apenas constata os
dispositivos disciplinadores e repressivos, mesmo que os desconstrua teoricamente,
ou até porque o faz, configura-se como uma estratégia discursiva – que
obviamente não se limita aos seguidores de Foucault – que se liga às
estruturas, mecanismos e dinâmicas socioeconômicas dominantes e aos
poderes constituídos exatamente pela sua falta de definição política e sua
recusa em ser “identificada”.
Esse olhar crítico, na verdade, não se dirige à construção de uma
trajetória de mudança social que compreenda a resistência, o combate e a
superação do sistema capitalista, seja na sua lógica econômica, seja no “ranking”
de valores socialmente aceitos. Ao contrário, o gesto típico associado à prática
política desta estratégia discursiva “negativa” se inscreve na realidade social
concreta como o próprio fato social que traduz o impedimento dos discursos
transformadores, marginalizando-os e até borrando-os do espaço público. Isto
acontece porque esse gesto recorrente, dissimulado e anônimo reincide na
tentativa de caracterizar os discursos decorrentes de vontades políticas
soberanas (porque baseadas em análises críticas de sujeitos políticos atuantes)
como “historicamente ultrapassadas” ou como “desejos reprimidos” de sujeitos
falantes que devem ser (e são) oprimidos por dispositivos disciplinadores.
Infelizmente, o horizonte político desta estratégia discursiva consiste em
segregar e isolar todo pensamento crítico transformador como se este apenas
consistisse em algum tipo de “loucura psíquica” de sujeitos incapacitados
socialmente, assim definidos pela sua inadequação ao sistema social baseado em
dispositivos discursivos complexos e também por dispositivos concretos dotados de
tecnologias disciplinadoras.
Por mais barroco que possa ser o estilo artístico ou o caráter
abstrato desta estratégia discursiva associada a um dispositivo ativo na engrenagem
socioeconômica vemos que o que se impõe como resultado é a confrontação com
discursos que visam a transformação social, que partem invariavelmente do
campo da esquerda do espectro político. A prática dessa estratégia ativa,
dispersa e plural que consiste na desconstrução, na crítica e na denúncia de
“discursos soberanos” do sujeito único e universal, cristaliza-se,
consequentemente, em uma política de segregação, isolamento, internação e
encarceramento de sujeitos ainda não diluídos nesta “modernidade líquida”.
Desta forma, o próprio sistema criticado em seus mecanismos de
saber e poder, é reforçado pela destruição sistemática de projetos políticos

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alternativos e críticos à essa indeterminação dos dispositivos socais


disciplinadores, sendo que estes, como vimos, são os próprios pilares da ordem
capitalista historicamente construída. Como resultado destes fenômenos sociais
observados, a prática política progressista que consiste em organizar a
sociedade para reformar o caráter do Estado, visando a transformação deste em
instrumento de mudança social da ordem econômica vigente em nossas sociedades,
está condenada, de antemão, a enfrentar os seus dois inimigos: o sistema e os
‘agentes críticos’ do sistema.
Qualquer paralelo que se faça com o fato indicado pela Teoria da
Dependência como sendo característico das sociedades periféricas, qual seja, a
existência de um processo de desenvolvimento capitalista de dupla face, isto é, por
um lado o imperialismo e, por outro, a dependência, não será mera
coincidência! Este é um dado de realidade que deve ser reconhecido: a
associação das elites econômicas, sociais e políticas dos países periféricos, sejam
estas oligarquias rurais ou industriais urbanos, com a burguesia internacional
dos países do centro do sistema capitalista, é uma relação orgânica historicamente
antiga e espacialmente ramificada nas nossas nações. Não somente que o
sistema imperial tem os seus recursos à disposição, mas também a dependência
associada criou contrapartidas que reforçam o discurso, as práticas, as
dinâmicas, os mecanismos e as estruturas da ordem política, social e
econômica na qual vivemos: o capitalismo dependente.
Há uma corrente de transmissão direta e sequencial entre o
centro econômico do sistema e a mais remota periferia capitalista,
provocando uma sucessão de resultados que se acumulam para criar vetos
sociais ao progresso de projetos de mudança estrutural na ordem socioeconômica.
Daí a dificuldade que os movimentos e partidos progressistas encontram no
seu caminho que aponta para a transformação estrutural necessária na
concepção do atual padrão de acumulação de capital que caracteriza as
formações sociais latino-americanas. Culminando o retrato do panorama adverso,
cumpre destacar três vetores importantes da revolução industrial técnico-
científica contemporânea que concorrem para beneficiar este estado de coisas:
1) Os avanços tecnológicos na robótica, telemática, nanotecnologia, etc.,
permitem um aumento da acumulação de capital por meio da mudança
na composição orgânica do capital54, permitindo um aumento da
lucratividade55 dos empreendimentos capitalistas intensivos em
tecnologia e, em especial, dos mercados e produtos criados pelo
capitalismo financeiro, cuja rentabilidade56 t em aumentado
consideravelmente;
54 A composição orgânica do capital (K) é expressa pela fórmula K=C/V, onde (C) é o capital constante (bens
de produção, ou “estoque de trabalho”) e (V) é o capital variável (força de trabalho remunerada).
55 O conceito de lucratividade expressa a taxa de mais-valia (S), isto é, a exploração do trabalho apropriada

no processo de produção, cuja fórmula é: S=P/V. Onde (P) é o lucro e (V) é o capital variável. A taxa de
mais-valia, portanto, calcula-se tendo em conta o valor das mercadorias e o valor da força de trabalho. O valor
das mercadorias se refere à esfera da produção. A tecnologia diminui a necessidade de capital variável.
56 A rentabilidade é, basicamente, a taxa de lucro (R) dos empreendimentos capitalistas, expressa pela

fórmula: R=P/(C+V), onde (P) é o lucro, (C) é o capital constante e (V) é o capital variável. A taxa de lucro
depende do preço das mercadorias e do salário pago. O preço dos produtos se refere à esfera da circulação.

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2) A nova divisão internacional do trabalho entre as nações que define as


possibilidades de especialização produtiva de cada país segundo a
hierarquia tecnológica internacional que se consolida nos diversos polos de
tecnologia de ponta da economia mundial; e
3) A reorganização produtiva dos fatores de produção (capital e trabalho)
promove a reconfiguração da distribuição espacial dos setores
industriais e empresas transnacionais na economia mundial, que,
acrescida dos processos de concentração e centralização de capital,
consolida mercados, ramos industriais e empresas dominantes,
aumentando assim os limites do poder econômico e determinando o
tamanho, a estrutura e a dinâmica do mercado de trabalho em cada país.
Vemos assim, que é exatamente pelas razões estruturais inerentes
ao modo de produção capitalista que este modelo econômico concentrador e
socialmente excludente gera cada vez mais desigualdade social e pobreza nas
sociedades periféricas. Mais ainda: as sociedades submetidas à hegemonia do
capitalismo internacional, também se caracterizam por mecanismos internos de
dominação que se desenvolvem ao longo do tempo e do espaço. Por exemplo: a
dominação de classe que se exerce por meios ideológicos nas sociedades
capitalistas, também se incrementa com a sofisticação cultural que acontece
nas sociedades modernas, sofisticação que se desenvolve inclusive no campo
da Teoria Política Moderna.
Nada mais natural, portanto, que exista um veto político à
mudança social desejada pela esquerda progressista, muito bem formulado e
conceituado teoricamente, e que este tenha se tornado um elemento
reconhecido e visível na paisagem urbana da nossa civilização.
Inicialmente, o observamos como uma estratégia discursiva,
mutável e dispersa, mas que se destaca por ser um elemento com grande
atividade e resiliência impressionante.
Depois, foi possível estudá-lo e examiná-lo mais a fundo,
revelando a incidência e severidade deste veto político do poder estabelecido às
possibilidades de progresso social, sendo que testemunhamos a extensão e
profundidade de sua prática política de enfrentamento cotidiano aos
movimentos e organizações populares que mantém demandas de mudanças sociais
estruturais na ordem econômica estabelecida.
Posteriormente, pudemos assistir como, quando e onde esta
estratégia discursiva de negação e confronto se dispunha a combater as
organizações políticas progressistas, estabelecendo um padrão de reação
biopolítica implacável e em escala crescente, o que permitiu que se
transformasse em um dispositivo complexo de dominação política e
apropriação econômica.
Este último não conteve seu caráter e comportamento autoritário,
que observamos, por exemplo, na sua propensão a encarcerar os adversários
em dispositivos de tecnologia disciplinar avançada. O mesmo revelou ainda sua
consciência estratégica retrógrada, expressa em olhares críticos e gestos típicos de

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um corpo social doentio ligado e devotado à organização econômica da iniquidade


social na qual vivemos, cuja árvore genealógica fizemos questão de registrar..
Ao observarmos o comportamento social dos sujeitos políticos,
falantes, atuantes e críticos diante dos mecanismos econômicos, dos processos sociais
e do sistema político, instituições sociais estas que integram a realidade concreta
do sistema capitalista, revelou-se uma impressionante dimensão de alcance
ideológico, no interior da estratégia discursiva do dispositivo hegemônico
complexo, exatamente quando se configura a diferenciação entre os sujeitos
políticos críticos ao sistema, que o confrontam, em oposição aos sujeitos
políticos críticos do sistema, isto é, que o apoiam e o reforçam.
Esta diferenciação ousamos defini-la apenas metaforicamente,
baseada em uma passagem bíblica que, estamos convencidos, trata-se da
conhecida história antiga alusiva a uma estátua de um (a) bezerro (a) de ouro,
venerado (a) por um grupo de incrédulos (as) de um povo fugido do Egito, em
um momento de crise e adversidade.
Como queríamos demonstrar, a natureza babilônica do veto político
a que nos referimos, é um reconhecimento das pretensões divinas do sujeito
universal, qualidade espiritual perseguida por mais pessoas do que
imaginamos.

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BIBLIOGRAFIA UTILIZADA:

ADORNO, Sérgio. Introdução ao Curso “Legalidade e Moralidade na Construção da


Ordem Social Burguesa”. Curso ministrado na Universidade de São
Paulo (FFLCH-USP), Mimeo, 1998.
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FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo, Perspectiva, 1997.
. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1995.
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HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. Lisboa, Dom
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McCarthy, Thomas. La Teoria Crítica de Jürgen Habermas. Tecnos, 1987.
TELLES, Vera da Silva. “Direitos Sociais: afinal de que se trata? ”. Revista USP,
São Paulo, nº37, pp. 34-45, mar/mai 1998.

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