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Significado do Protesto Popular na Bolívia

Luis Estenssoro

É preciso dizer sobre a Bolívia quais as questões que estão em jogo no

conturbado cenário político atual. A questão democrática está evidentemente em destaque,

mas devemos investigar quais os determinantes subjacentes que contrapõem as forças

políticas da institucionalidade democrática, representada pelo Presidente Carlos Mesa, e do

protesto popular, representado principalmente pelo Movimento ao Socialismo (MAS) de

Evo Morales.

Em primeiro lugar, está a questão social: a Bolívia é uma sociedade capitalista

de classes sociais em conflito. Mas, ao contrário do Brasil, que é um país relativamente rico

onde, para diminuir a pobreza, basta distribuir a riqueza já existente, a Bolívia é um país

pobre onde a classe dominante pode ser denominada de “lumpem-burguesia”, de acordo

com a terminologia usada por André Gunder-Frank. Os ciclos econômicos da Bolívia (a

prata durante a Colônia e o estanho no século XX) não representaram o desenvolvimento

do país, sendo que a enorme riqueza exportada enriqueceu a metrópole e os capitais

estrangeiros, além de uma oligarquia diminuta (denominada de “rosca” na época do

estanho), sem nenhum benefício para o resto da população. Se a própria burguesia

boliviana é relativamente pobre, fica claro que as massas bolivianas são miseráveis.

Aí entra a segunda questão, a questão nacional. Atualmente se discute a

necessidade de reter pelo menos 50% da riqueza econômica representada pelo gás natural

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existente na Bolívia como única forma possível de promover o desenvolvimento nacional.

A experiência boliviana com a prata e o estanho, que Fernando Henrique Cardoso

denominaria de “economias de enclave”, não pode ser repetida com o gás natural, sob pena

de perpetuar a situação de dependência econômica e miséria social indefinidamente. O

desenvolvimento nacional da Bolívia depende da exploração e distribuição das riquezas

naturais em benefício da população, uma vez que a indústria e a agricultura bolivianas não

são pujantes como no Brasil. A existência de outros complicadores, como a dificuldade de

transportes, o diminuto mercado interno e a falta de uma saída para o mar (perdida na

guerra com o Chile no século XIX), reforçam a necessidade e importância do controle

nacional sobre o gás natural.

Em terceiro lugar, temos a questão indígena. A Bolívia tem uma maioria

esmagadora de índios e “cholos” (mestiços) na sua população, oriunda principalmente dos

povos aymará e quéchua. A Revolução de 1952 iniciou o reconhecimento do caráter

indígena da Bolívia, inclusive com uma reforma agrária que devolveu a terra para o índio.

No entanto, o racismo e os obstáculos sociais para os não-brancos persistem, perpetuando a

exploração econômica da maioria indígena, naquilo que Pablo Gonzáles Casanova

chamaria de “colonialismo interno”. Não é necessário dizer que a maior parte dos índios

são pobres e a maior parte dos pobres são índios.

O protesto popular reúne, portanto, as questões social, nacional e indígena e

consubstancia-se na reivindicação de reter 50% das riquezas provenientes da exploração do

gás natural entre a população. Esta reivindicação tem raízes muito profundas, decorrentes

da triste experiência do povo boliviano com a exploração do estanho. O MAS tem sido

intransigente nesta defesa de importância histórica.

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Por sua vez, o Presidente Mesa diz que não pretende usar a força militar para

reprimir o protesto popular, o que representa uma inflexão da tendência da história política

do país, repleta de crises políticas que se resolveram com golpes de Estado. Desta forma,

Mesa diferencia-se inclusive do seu antecessor, Gonzalo Sánchez de Lozada, que reprimiu

sangrentamente o protesto popular, sendo que em razão disto foi deposto teve que sair do

país. Entretanto, o impasse persiste na medida em que Mesa aceita apenas 18% de

royalties, acrescidos de um imposto de 32%, numa interpretação discutível do resultado do

plebiscito sobre a Lei de Hidrocarburos, que aprovou a opção da Bolívia ficar com 50% da

riqueza do gás natural.

A questão democrática, então, consiste em saber se a institucionalidade política,

cristalizada no Presidente Mesa, irá ou não viabilizar as reivindicações populares históricas,

cujo principal porta-voz é o MAS. As questões social, nacional e indígena vinculam-se,

assim, com a resolução do conflito por via democrática. A confluência destas questões

revela a importância histórica do momento atual para a Bolívia como Nação.

A posição do governo brasileiro, em boas relações com Mesa e com Morales,

não deve ser subestimada na sua influência sobre a situação e a dinâmica do processo

político boliviano. Ao contrário do governo dos Estados Unidos, que apoiou firmemente

Gonzalo Sanchez de Lozada, embora sem dar-lhe a verba que este pretendia, o governo

brasileiro foi contra o massacre promovido por este ex-presidente e apoiou uma solução

institucional para a anterior crise, que resultou na presidência de Mesa.

A liderança do Brasil em relação à Bolívia, que na época da ditadura militar era

denominada por Ruy Mauro Marini de “subimperialismo brasileiro”, tem sido de outra

índole nos últimos governos. Mas não é o bastante. Os investimentos e acordos que o Brasil

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mantêm com a Bolívia, inclusive para a exploração de gás natural pela Petrobrás, devem ser

entendidos como uma oportunidade para ajudar no desenvolvimento da Bolívia. O Brasil

deve estruturar sua liderança entre os países latino-americanos com uma atuação que leve

em conta, por exemplo, as importantes e justas reivindicações manifestas neste momento

político crucial pela maioria pobre e indígena boliviana. A integração latino-americana e a

viabilização na prática do Mercosul passam pela resolução deste impasse político

contemplando, necessariamente, os interesses do povo boliviano. A integração latino-

americana ou será popular ou não será integração.

Luis Estenssoro, 37, Mestre em Integração da América Latina e Doutor em

Sociologia pela Universidade de São Paulo. E-mail: luisestenssoro@hotmail.com

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