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Territorios

ISSN: 0123-8418
editorial@urosario.edu.co
Universidad del Rosario
Colombia

Xavier Pereira, Paulo Cesar


Processos e problemas na urbanização da América Latina: teoria e história
Territorios, núm. 34, 2016, pp. 35-58
Universidad del Rosario
Bogotá, Colombia

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=35744556002

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Territorios 34 / Bogotá, 2016, pp. 35-58
ISSN: 0123-8418
ISSNe: 2215-7484

La fase actual del capitalismo y la urbanización en América Latina (I)

Processos e problemas na urbanização


da América Latina: teoria e história
Processes and problems in Latin American Development:
Theory and History
Procesos y problemas en el desarrollo de América Latina:
teoría e historia

Paulo Cesar Xavier Pereira*

Recebido: 30 de julho de 2015


Aprovado: 27 de agosto de 2015
Doi:
* Faculdade de Arquitetu-
Para citar este artigo ra e Urbanismo, Universi-
Pereira X. P. C. (2016). Processos e problemas na urbanização da América Latina: teoria e história, Territorios, dade de São Paulo. Correo
34, 35-58. Doi: electrónico: pcxperei@usp.br

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RESUMO
Palavras-chave Este artigo analisa as condições históricas da produção da cidade latino-americana e tem como re-
Colonial, globalização, ferência ao desenvolvimento urbano de São Paulo. A discussão objetiva contribuir à compreensão
imobiliário, neoliberal, teórica das peculiaridades dos processos de urbanização e de acumulação industrial na construção
reestruturação. para enfatizar que as relações não capitalistas estão na origem da produção capitalista do espaço ur-
bano e que a persistência histórica de ditas relações em conjunto com as relações capitalistas serviu
tanto à superexploração quanto à supervivência dos trabalhadores. Na atualidade este espaço da
cidade e resulta fundamental para a supervivência do capitalismo garantindo altas ganâncias com a
renda do solo e as taxas de interesse.

RESUMEN
Palabra clave Este artículo analiza las condiciones históricas de la producción de las ciudades en América Latina
Colonial, globalización, y tiene como referencia el desarrollo urbano de São Paulo. El objetivo de la discusión es contribuir
inmobiliario, neoliberal, a la comprensión teórica de las peculiaridades de los procesos de urbanización y de acumulación
reestructuración. industrial en la construcción para enfatizar que las relaciones no capitalistas están en el origen de
la producción capitalista del espacio urbano y que la persistencia histórica de dichas relaciones, en
combinación con las relaciones capitalistas, sirvió tanto a la sobreexplotación como a la supervivencia
de los trabajadores. En la actualidad, este espacio de la ciudad resulta fundamental para la supervi-
vencia del capitalismo, lo que garantiza altas ganancias con la renta del suelo y las tasas de interés.

ABSTRACT
Keyword This article analyzes the historical conditions of production of the Latin American city and its refe-
Colonial, globalization, rence to the urban development of São Paulo. The objective discussion contribute to the theoretical
real estate, neoliberal res- understanding of the peculiarities of the processes of urbanization and industrial accumulation in
tructuring. construction to emphasize that non-capitalist relations are at the root of capitalist production of
urban space and that historical persistence of such relations combined with capitalist relations served
both to overexploitation term survival of workers. At present this area of the city and is essential for
the survival of capitalism guaranteeing high profits with ground rent and interest rates.

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Introdução lação primitiva, bem como a identificação
de problemas relativos à construção, urba-
A referência à cidade de São Paulo dentro nização e crescimento das cidades latino-
do contexto dos estudos sobre a urbani- americanas, permitam reconhecer os fun-
zação na América Latina se justifica tan- damentos pelo qual persistem a dominação
to pelos problemas atuais quanto por sua metropolitana e o poder do colonizador
história. Atualmente, é uma das maiores que fragilizam o direito à cidade.
aglomerações industriais e trata-se do pri- Considera-se que, embora a urbani-
meiro assentamento colonial português a se zação e a construção das cidades apresen-
localizar distante da faixa litorânea. Desde, tem situações particulares importantes, há
o primeiro momento de fundação deste processos que aproximam suas histórias.
núcleo urbano se expressava a intenção Nessa mesma conjunção, os problemas
do capital em expansão de levar adiante apresentam semelhanças e convergem para
a conquista de território e o domínio de o traço comum, que é a desigualdade nas
“gentes da terra” utilizando os métodos da cidades latino-americanas. Essa constatação
chamada acumulação primitiva de capital. é relevante porque a urbanização planejada
A característica dessa forma de acu- poderia minorar a segregação ao imprimir
mulação é a utilização de processos de ex- dinâmica menos perversa à construção des-
propriação, desapropriação ou espoliação sas cidades e à solução do problema habi-
de pessoas vulneráveis que perdem con- tacional, mesmo que capitalista. Vale reter
dições de vida e se veem impedidas de aces- essas considerações iniciais para discussão
sar os bens comuns, quando não são, elas porque “nuestros patrones culturales pare-
mesmas, destituídas da condição de pessoa cen proveer más oportunidades de integra-
e de sua liberdade. Historicamente, a dinâ- ción social que las que solemos atribuirles”
mica da acumulação primitiva se manifesta (Sabatini & Trebilcock, 2013, p. 38) e cer-
de maneira distinta e apresenta particulari- tamente cabe às políticas urbanas, mesmo
dades conforme região, formação urbana, que atendendo de maneira mercantil e ca-
consolidação industrial ou maneira como pitalista as diferenciadas demandas sociais,
concorreu à constituição dos estados na- tornar as cidades mais justas.
cionais. Apesar das diferentes dinâmicas, a Chama à atenção que as políticas públi-
crueldade dos métodos foi um ponto co- cas e os programas habitacionais e de qua-
mum revelando a voracidade dos processos lificação urbana pouco impactam o direito
e como, apesar das reações geradas, não se à cidade: as cidades latino-americanas con-
conseguiu impedir a colonialidade como tinuam sendo injustas e muito desiguais.
maneira de manter as relações entre os po- Historicamente, embora a urbanização
vos colonizados com os centros de poder. tenha apresentado avanços e alguns dos re-
Nesse sentido, pretende-se que a discussão sultados possam ser considerados exemplos
teórica e histórica dos processos de acumu- de integração social, é preciso lembrar que territorios 34
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recente relatório sobre a condição dessas mentos iniciais da colonização se mani-
cidades confirma a persistências de proble- festaram em um processo de acumulação
mas tradicionais e que as “desigualdades originária e tenderam, no transcorrer desses
socioeconómicas en la región también se séculos, a persistir em função das necessi-
hacen evidentes en términos de calidad de dades da emergência da acumulação do
viviendas y del acceso a servicios públicos” capital, que parece não ter fim. Entende-se
(ONU Habitat, 2014, p. 166). Por isso, cabe que por essa perspectiva histórica e crítica
ressaltar que esta é mais uma publicação de será possível melhor compreender como,
importante organismo mundial a indicar nas formas de apropriação e de produção
que a América Latina se constitui na região do espaço ibero-americano, persistiu o uso
mais desigual do mundo, ainda que se possa de relações não capitalistas fomentando a
fazer a ressalva de que, atualmente, o rit- urbanização precária. Essas relações não
mo do crescimento da desigualdade esteja capitalistas consorciadas a processos primi-
diminuindo. tivos de acumulação se afirmam ainda mais
América Latina e Caribe sempre ti- a partir da segunda metade do século XIX,
veram cidades segmentadas social e te- quando se consolidou o desenvolvimento
rritorialmente. Esse artigo tem em vista da produção do espaço, ora afirmando ora
aprofundar o conhecimento histórico sobre negando o caráter capitalista das formas de
a persistência dessa situação e pretende expansão urbana e da industrialização da
refinar a crítica sobre os processos que a construção (Pereira, 1988 e 2004).
produzem. Assim, desigualdade urbana é A discussão desse desenvolvimento
o objeto privilegiado dessa discussão, que ambíguo em que a cidade latino-americana,
é realizada sob a perspectiva da produção como uma totalidade em função das neces-
do espaço e propõe o estudo da “cidade, sidades do capital, é produzida por relações
como um lugar particular da manifestação não capitalistas se mostra decisivo para uma
concreta dos processos sociais e urbanos, perspectiva crítica da urbanização e com-
que materializa em sua característica e seu preensão dos fundamentos da persistente
devenir o resultado histórico no qual se in- desigualdade dessa cidade. Essa compre-
sere” (Pereira, 1985, p. 143). Pretende-se ensão é relevante porque no transcorrer
que a unidade da reconstituição do proces- do século XX as condições de construção da
so urbano com a crítica teórica da expli- cidade industrial moderna aprofundaram
cação dos problemas relativos à construção o caráter desigual desse desenvolvimento
social da cidade e do acesso à habitação combinando exploração do trabalhador
permitirá compreender porque persiste nas com espoliação do morador. E é notável
cidades latino-americanas tamanha injustiça a relevância dessa combinação, nessa pas-
urbana. sagem para o século XXI, quando a nova
Para isso, pretende-se pôr em relevo condição da cidade intensifica os processos
territorios 34 como as relações não capitalistas dos mo- da metropolização e dissolve o urbano em
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espaço metropolitano. Essa transformação Trata-se de pôr em relevo a emergência
é mundial e combina a dissolução das con- de novas condições urbanas e da política de
dições urbanas devido a instrumentalização construção da cidade. Por isto, interessa
do espaço pela economia financeira glo- discutir o que esse quadro emergente pode
balizada, que metamorfoseia a cidade no significar para a cidade latino-americana já
espaço metropolitano (Pereira, 2014). que os métodos da acumulação primitiva
Em face desse desenvolvimento se ve- se mostram persistentes. Assim, busca-se
rifica que, historicamente, a reprodução do esclarecer como a instrumentalização da
capital na construção gerou ganhos de ex- terra tornou-se significativa e porque o
ploração do trabalho que se somaram com espaço se tornou uma condição de sobre-
os ganhos de processos espoliativos, sejam vida do capital. Enfim, considera-se que a
eles urbano, imobiliário ou financeiro. Essa análise dos processos de espoliação permi-
potenciação do trabalho de construir por tirá compreender a precariedade urbana
processos espoliativos foi tradicionalmen- e a exacerbação da desigualdade, como o
te exacerbada na América Latina, onde se maior desafio à justiça e ao direito à cidade.
usou e abusou da massa urbana de trabal-
hadores mal pagos tendo que pagar preço 1. Assentamentos coloniais e a
alto para morar na cidade. A exploração acumulação originaria do capital
e espoliação dessa massa urbana permite
compreender como a construção da cidade São Paulo, fundada em janeiro de 1554,
latino-americana se caracterizou pela com- seguiu o caminho histórico universal que
binação de uma diversidade de formas de caracteriza a inserção das cidades latino-
produção do espaço, que ampliam a oferta americanas no mundo capitalista. Esta ca-
dos produtos da construção e respondem racterística geral é a inserção comercial
às diversas possibilidades de equacionar a subordinada à economia do mundo, que
demanda por habitação. Cabe ainda notar marcaria inclusive a sua evolução, sendo
que cada forma de produção, nessa diver- necessário compreender a sua marca essen-
sidade, busca maximizar o uso da terra e cial: o “sentido da colonização”, conforme
a capitalização das rendas. E fazem com Prado (1979). Enfim esta inserção subor-
que a partir dos anos 1970 se destaquem dinada trata-se de algo problemático, mas
os processos espoliativos, que acabam por persistente tendo se constituído em empe-
marcar a passagem para o século XXI com a cilho para a organização do Estado-Nação
retomada da acumulação primitiva (Pereira, e para a formação industrial caracterizando
2006, 2011). Por isso, torna-se necessário o atrelamento do desenvolvimento latino-
precisar o significado desses processos es- americano ao capitalismo dos países cen-
poliativos financeiro, urbano e imobiliário trais (Pradilla, 2013).
na produção do espaço da cidade contem- Assim, desde o primeiro século da
porânea. colonização, São Paulo, tal como outros territorios 34
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assentamentos ibero-americanos, se colo- a primeira mudança que altera os centros
cou a serviço da reprodução do capital e da acumulação e não, como é frequente,
pode desde sempre ser considerada como discutir essas desvantagens e subordinação
um núcleo da urbanização que se expan- apenas após a Revolução Industrial. Assim,
dia a nível mundial associada ao capital aqui será mantida “a afirmação de Braudel
mercantil. A identificação desse proces- de que a mudança refletiu ‘a vitória de uma
so de urbanização colonial mercantilista nova região sobre uma antiga’, combinada
não quer dizer, porém, que não ocorram com ‘uma vasta mudança de escala’”, tal
“geografias da urbanização” manifestando como foi por Arrighi (1996, p. 15), mas
irregularidades e descontinuidades muito com o agravante de que a América Latina,
diversas dessa história. Trata-se do secular região periférica, continua sendo perde-
processo urbano do capitalismo histórico dora.
manifestando variações mundiais na con- Quanto à particularidade da evolução
figuração do tempo e do espaço, que na do assentamento paulista, cabe relevar que
unidade da produção global do capital no em seus 462 anos a cidade de São Pau-
espaço latino-americano acontece de modo lo foi construída utilizando a técnica de
subordinado e com desvantagem de posi- construção da taipa de pilão e preservan-
cionamento, fazendo persistir relações não do relações não capitalistas de produção
capitalistas. Ressalte-se que é a antípoda do do espaço por cerca de dois terços de sua
que ocorre nas aglomerações do Atlântico história, todos os seus primeiros trezentos
norte onde as: anos. Mas, ainda no último século e meio,
percorrendo, portanto todo século XX, o
[...] vantagens de posicionamento [...] nas crescimento das franjas da urbanização
sucessivas mudanças espaciais que altera- desta cidade, que se transforma em me-
ram os centros dos processos sistêmicos de trópole, está marcado por forte presença
acumulação: ‘Amsterdam copiou Veneza, da relação não capitalista na sua expansão
tal como Londres viria posteriormente a co- territorial. Ainda é visível na paisagem irre-
piar Amsterdam e como Nova York, um dia gular, o contraste entre as construções altas
copiaria Londres.’ [em] que cada mudança e ruas modernas, de um lado, com o casario
esteve associada a uma verdadeira ‘revolução precário e o traçado tortuoso e estreito, de
organizacional’ nas estratégias e estruturas outro. E, apesar de que a análise das esta-
do agente preponderante da expansão capi- tísticas confirme que as relações assalariadas
talista (Arrighi, 1996, p. 14-15). capitalistas tenham se desenvolvido e se
tornado socialmente dominantes, parece
Frente a essas estratégias e estruturas não haver dúvida de que persiste a com-
organizacionais, ganha relevância resgatar binação delas com relações consideradas
o significado das aglomerações latino-ame- “atrasadas”. Pior, em anos recentes, deste
territorios 34 ricanas para a história do capitalismo desde século, tem sido divulgado na imprensa
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diária a existência de situações semelhan- dígenas locais e aprisionados em missões
tes a do trabalho escravo encontradas em jesuíticas no território espanhol (Amaral,
canteiros de obras de grandes empresas 1981) e depois houve a utilização de es-
construtoras realizando edifícios modernos cravos africanos que fez persistir e tornou
em áreas centrais da cidade e na ampliação homogênea, no Planalto Paulista, essa téc-
do aeroporto metropolitano. nica de construção. Assim, internamente,
Assim, se pretende discutir como a “a introdução do trabalho africano não
ambiguidade da combinação e convivên- constitui modificação fundamental, pois
cia dessas relações sociais - simbiose de apenas veio substituir outro escravo efi-
relações capitalista e não capitalista - de- ciente e de recrutamento mais incerto”
termina a configuração da cidade. Em ab- (Furtado, 1964, p. 62).
soluto, não se quer afirmar aqui a existên-
cia de qualquer relação direta e reflexa da Em São Paulo, [inicialmente] a utilização
conformação social sobre a configuração do escravo africano não foi significativa, e o
espacial. Ao contrário, pretende-se que o uso contínuo dos chamados ‘negros da terra’
conhecimento da conformação ambígua foi sempre o predominante, oscilando entre
do urbano além de situar suas marcas no formas diversas de trabalho compulsório,
processo histórico e imediato da produção até o pagamento de ‘mesquinhos salários’.
do espaço apresente a crítica das variações Isto certamente era devido ao fato da pro-
espaço-tempo que precisam ser considera- dução colonial paulista ser secundariamente
das para se compreender os processos e os subordinada à metrópole, a qual contava,
problemas de construção da cidade. Por como fundamental, com a produção açuca-
isso, além da perspectiva histórica, a hipó- reira do Nordeste. No sistema implantado a
tese dessa simbiose tem relevância teórica produção de exportação colonial significava
precisando ser aprofundada tendo em vista produzir para acelerar a acumulação primiti-
melhor caracterizar a desigualdade urbana va de capital que dominava todo o processo
e a diversidade das formas de produção do de colonização moderno (Pereira, 1988,
espaço. Busca-se, portanto, recuperar a pp. 17-18).
tradição da análise histórica e estrutural da
sociedade associada à perspectiva da pro- Inserida nesse projeto de exploração
dução social do espaço, porque entendo colonial, a fundação de cidades no espaço
que ambas estão obscurecidas e caberia ibero-americano respondia às necessidades
propor trabalhos coletivos e de alcance in- da acumulação originária porque significa-
ternacional que pudessem resgata-las com va a possibilidade de acesso a riquezas e a
enfoque capaz de pensar a América Latina. conquista de um território no qual seriam
Nos primeiros séculos da colonização, realizadas atividades econômicas em gran-
São Paulo teve os edifícios de taipa cons- de escala sob a forma: a) de expropriação
truídos com trabalho compulsório dos in- por empresa estrangeira de um bem já territorios 34
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existente, sobretudo mineral; b) exploração Trata-se, segundo Arrighi (1996), de
por estrangeiros de grandes plantações de dois tipos de organização empresarial, que
produtos a serem exportados e c) produção fundamentam as situações de dependên-
agrícola e pecuária para exportação realiza- cia por duas “lógicas maximizadora” de
da por grupos locais (Castells, 1973). Mas, ganhos, uma do lucro da produção do
nunca se limitou apenas a essa dimensão capital e outra das rendas da expansão co-
da reprodução social, pois havia também mercial, que convergem para a “via única”
a produção imediata de construir a cidade de acumulação ampliada do capital. Essa
com uma arquitetura e com espaços ins- acumulação se concentra, como afirmado
titucionais novos e, ainda, a preocupação acima, nos espaços que apresentam “van-
de criar o convívio das pessoas pelas quais tagens de posicionamento” e desenvolvem
se procurava transplantar o evangelho e centralidades. Cria-se, nesse processo, as
outros elementos para a formação da vida situações de domínio sobre os espaços em
colonial. Nesse sentido, os primeiros colo- desvantagem e, historicamente, pode se ve-
nizadores repetiram o que vinha sendo pra- rificar como isso aconteceu. Prado (1979),
ticado desde a Reconquista, assegurando historiador brasileiro, distingue dois tipos
o sucesso do empreendimento comercial de ocupação da América: as colônias de
ibérico. povoamento e as colônias de exploração.
É importante lembrar que o desen- Nessas últimas predominou o trabalho
volvimento de cada uma daquelas confi- compulsório pela escravização de africanos
gurações socioespaciais ibero-americanas ou pela servilização dos naturais da terra,
tende a apresentar implicações regionais di- e estas colônias estavam em maior desvan-
ferentes para a rede urbana e sua articulação tagem e submetidas à lógica de expansão
política com a Metrópole, dependendo mais predatória da colonização: a busca de
da conformação do capital metropolitano rendas da expansão comercial dos países
dominante. Vale lembrar que essas redes se ibéricos. Essas diferenças de lógicas e de
multiplicam e tendem a desigualdade por- posicionamento fizeram nascer a desigual-
que sempre privilegiam polos urbanos onde dade e os processos que se aprofundaram
a transação maximiza o controle e, sobre- e continuam crescendo entre as distintas
tudo, os ganhos dos capitais internacionais, configurações espaciais.
que de início estiveram sob a dominação Nesse sentido, é significativo uma re-
colonial mercantilista e atualmente estão cente crítica da urbanização que afirma
controlados pelas finanças do capital globa- que “lo próprio de la urbanización con-
lizado. Não é por acaso que Arrighi (1996, temporánea no’ es la conformación de una
p. 317) alerta para que não se exagere na red mundial de ‘ciudades globales’ sino
“analogia entre as empresas multinacionais que ‘la extensión desigual de este proceso
do século XX e as companhias de comércio de destrucción creativa capitalista a escala
territorios 34 e navegação dos séculos anteriores”. planetaria” (Sabatini & Trebilcock, 2013,
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p. 50). Para essa formulação, o específico tiago, que se generalizam formas territoriais
não seria a grande concentração espacial desiguais, tão polarizadas em termos de
e do valor, mas a desigual distribuição da valor quanto as que foram caracterizadas
riqueza gerando distanciamento socioes- enquanto formas urbanas surgidas da re-
pacial no território e na cidade, como um estruturação pelos nomes extremos e pola-
problema urbano. rizados de “precariópolis estatal e privató-
Com foco no Estado e na acumulação, polis inmobiliaria”. Nessa caracterização, se
para Arrighi (1996) o problema se coloca assinalou para a necessidade de um esforço
de outra maneira com outra prioridade: a global e local de análise (vertical e horizon-
questão do poder capitalista disperso ou tal), tanto que concluiu que as “ciudades
de um poder concentrado. Enfim, discute no responden de modo homogêneo. Así
como o Estado lida com o capital e pro- los actores que actúan a la escala global
blematiza como a sua organização política pueden ser los mismos pero no en el ámbi-
identifica-se ou não com a organização to local, pues este es expresión además de
capitalista. Por isso, entendo que o resgate la relación produción-capital, de procesos
de sua discussão permitiu destacar os dois históricos, culturales y sociales que trans-
tipos de organização acima mencionados, cienden esa problemática y que otorgan un
e compreender como na via única da acu- marco fundamental para comprender las
mulação a lógica maximizadora do lucro manifestaciones de la expansión metropo-
e a lógica maximizadora da renda se bi- litana en los países latinoamericanos” (Hi-
furcam. E que todo o problema é que essa dalgo, Borsdorf & Zunino, 2008, p. 190).
“bifurcação cria um campo de turbulência” Assim, sem descartar as implicações do
(Arrighi, 1996, pp. 238-239) e disputas reordenamento socioespacial das escalas pa-
de forças políticas no enfrentamento de ra o desenvolvimento de cada uma daque-
crises sistêmicas, pontos de ruptura, des- las conformações regionais, cabe retomar
continuidade, enfim de instabilidades que a importância na perspectiva da hipótese
organizações capitalistas e não capitalistas desse artigo notando que há inflexões na
procuram equacionar conforme suas metas produção do espaço latino-americano em
de maximização e escala de atuação. O in- que as cidades alteram o seu significado,
teresse dessa rápida recuperação foi apontar abrindo-se a possibilidade de não continua-
para a necessidade de aprofundar o estudo rem coloniais: “São Paulo é um espaço par-
dessas organizações e lógicas reescalonando cial do Brasil, originariamente irrelevante,
a produção global e a produção imediata do posteriormente dominante” (Novy, 2002,
espaço e do valor. pp. 190). Ela, desde a fundação do assen-
Nessa direção, observo que foi consi- tamento colonial, significava politicamente
derando a escala local e a produção imedia- a presença do poder metropolitano para o
ta do espaço que se observou em diversas qual deveria garantir a ordem e a conquista
metrópoles, como do caso chileno de San- territorial, o que significava controlar o uso territorios 34
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econômico de um território para o qual ela tráfico de escravos sinaliza o fim da riqueza
servia como correia de transmissão. Esse baseada na propriedade de escravos e o co-
duplo significado político e econômico do meço do que chamou de cativeiro da terra
assentamento colonial tinha implicações na (Martins, 1979). Trata-se de transformação
organização de um espaço mais amplo do profunda e não de mera passagem para uma
que as atividades que ocorriam nos limites nova simbiose do trabalho e da técnica de
de seu espaço. Assim, a cidade começou construção com a terra no desenvolvimen-
como representação da política, sobretu- to da urbanização (Pereira, 1988). Por que
do, do poder econômico metropolitano não uma revolução imobiliária? Uma aco-
para o qual deveria garantir internamente modação da lógica maximizadora da renda
a ordem e o domínio do território. Apenas capitalizada da terra correndo no sentido
aos poucos, no espaço latino-americano, a de negar no espaço latino-americano o
cidade, tal como São Paulo, se tornou lugar tempo imposto pela Revolução Industrial,
de vida plural e formação social do povo. tanto que essa capitalização da renda afirma
Embora, ainda, seja um espaço incipiente a moderna propriedade da terra na genera-
para o cidadão exercer seus direitos. lização da forma mercadoria, mas é negação
A cidade, no século XIX, passa por uma do lucro na produção da mais valia.
metamorfose urbana, quando começa a Ainda que em algumas cidades tal sim-
ser produzida como mercadoria. Por isso, biose da produção capitalista, imediata e
moderna e fragmentada em propriedades globalizada, do espaço urbano possa se
começa a ser comercializada aos “pedaços” apresentar menos desenvolvida, cabe ter em
em lotes com preços maiores ou meno- conta que a urbanização é um metabolismo
res, conforme o comércio de aluguel. O social. Trata-se de uma transição a partir da
avanço desses negócios foi substituindo qual emerge uma articulação entre o capi-
o de escravos tornando-se comum alugar tal, o trabalho e a terra (“a mãe natureza”)
“casinhas” e cortiços. Essa substituição in- para a produção capitalista do espaço e do
clui a formação do mercado de compra e valor. E, é envolta em tal entrelaçamento
venda de terras e de edifícios estimulando que vemos progredir a produção capitalista
a produção do espaço urbano como parte com a presença de relações não capitalistas
de um complexo de negócios imobiliá- e a partir da reprodução dessa coexistência
rios (Pereira, 2004). No transcorrer desse se pode compreender como persiste na
século começaram a mostrar importân- América Latina, apesar da transição capi-
cia os melhoramentos urbanos, levando talista, a reprodução dessa simbiose, que
à realização de obras de saneamento, ar- embora funcional à reprodução capitalista
borização, abertura de ruas e praças. Em manifesta irracionalidades tanto na urbani-
São Paulo, como em outras cidades, essa zação quanto na industrialização.
transformação significou uma metamorfo-
territorios 34 se da riqueza que associada à proibição do
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2. Transição capitalista e relações e urbana associada ao incremento do po-
não capitalistas na cidade do capital der econômico da cafeicultura a partir dos
meados do século XIX.
A história de São Paulo apresenta particu- Cabe lembrar que, mesmo muito antes
laridades em sua construção, mas como da Independência, já ocorria na Colônia
o desenvolvimento urbano de qualquer um enfraquecimento político dos laços com
cidade revela um caminho que, como o de a metrópole, que se fragilizavam interna
tantas outras cidades latino-americanas, e externamente com as crises do mercan-
permite identificar momentos em que há tilismo e mostravam sinais de uma lenta
caracteres que tipificam a urbanização da ruptura com o chamado Sistema Colonial.
América Latina. Todavia foi na primeira década do século
Em São Paulo se ressalta que em seus XIX, com a vinda da Família Real e depois
primeiros séculos, a construção da cidade com a permanência no Brasil do herdeiro
foi toda realizada com taipa de pilão. In- do trono português, que se consolida uma
clusive os edifícios “monumentais” como ruptura com a antiga ordem colonial. A
a implantação da Casa de Câmara e Cadeia, fundação do Império Brasileiro significa
foram construídos com essa técnica rudi- uma importante política de superação da
mentar mesmo que simbolicamente eram situação colonial porque nega o Poder
edifícios que serviam para materializar na Metropolitano, mas não o nega completa-
Colônia a representação do poder portu- mente, até porque o que era novo surgia
guês. A vila colonial se organizava com como continuidade do velho: saiu o pai e
simplicidade, mas com forte dominação permanecia o filho herdeiro. Todavia a ri-
metropolitana visando efetivar as estraté- queza e a sociedade se modernizaram, mas
gias da conquista e de exploração territo- de maneira incompleta porque sem qual-
rial. Essas relações de domínio econômico quer ruptura política que revolucionasse a
e político se efetivavam com uma produção relação entre a economia e o poder, como
insipiente onde predominou o uso do tra- estava acontecendo com o aburguesamen-
balho compulsório, primeiro com colonos to da sociedade europeia (Martins, 1994,
e jesuítas disputando os “negros da terra” p. 30).
e depois pela introdução de pessoas escra- Em simultâneo a esses processos ins-
vizadas e trazidas da África. Assim, a vila titucionais da organização política inter-
de São Paulo permaneceu por séculos com nacional pelo qual se formamos estados
uma vida provinciana bastante acanhada, nacionais, há a constituição de relações ca-
até se ver transformada pela modernização pitalistas características das sociedades mo-
da riqueza, quando o monopólio da pro- dernas. Trata-se de um processo social que
priedade capitalista da terra substitui o transita para o predomínio econômico de
da propriedade de escravos. Nessa lenta relações capitalistas de produção, em que a
transição, emergia uma nova ordem social vida, inclusive nas antigas colônias, passa a territorios 34
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materializar, expressar e projetar no espaço me de propriedade levando e a afirmação
produzido e no uso capitalista do território, da renda capitalista da terra, mesmo para a
os conflitos manifestos na emergência de propriedade dos edifícios modestamente
uma economia de mercado. alugados a presença dessa renda capitaliza-
Enquanto, na Europa, nos princi- da passa a ser uma premissa da economia
pais centros econômicos se construíam as urbana em transição. Desde então, pode-se
“grandes cidades” como Londres e Paris, e considerar que o preço da terra manifesta-
aconteciam as revoluções técnicas e sociais se, conforme Marx, determinado pela ca-
de caráter capitalista, no espaço latino- pitalização das rendas futuras.
americano a negatividade desse movimento A novidade dessas manifestações da
burguês e industrial, significativamente, es- transição capitalista favorecia a urbanização,
tabelecia o fetiche da mercadoria capitalista, ainda na cafeicultura e inicios da industria-
mas não as virtualidades revolucionárias lização fabril. O aumento do número e
dessa nova classe em emergência. Na Amé- do porte das cidades paulistas, o fortaleci-
rica Latina, a imposição da equivalência mento da presença do trabalho assalariado
das mercadorias pela acumulação mundial em contraste com o trabalho aplicado no
metamorfoseava a riqueza social brasileira. campo e, também, a incipiente constituição
A propriedade da riqueza nova passava a de infraestrutura em redes, desde o sa-
ser representada pela renda territorial ca- neamento até os vapores transatlânticos,
pitalizada, pelas fazendas e engenhos que passando pelas ferrovias, que adentram e
se tornavam as mais importantes industrias reorganizam o território aumentando a
de exportação, tendendo a romper com o possibilidade de inclusão da renda da terra
que era, até então no Brasil, a maior repre- no sistema econômico nacional. Talvez
sentação de riqueza: a renda capitalizada da por essa presença forte da forma renda, no
propriedade de escravos. Essa formulação Brasil, a superação da escravidão foi morosa
sintética da transição para relações capi- e a implantação do trabalho livre manteve-
talistas permite compreender porque, no se lenta, e só foi impulsionada quando a
primeiro século da colonização portugue- economia primária exportadora capitalista
sa, a posse de terras nada valia e o decisivo com base na forma lucro do cálculo do fa-
era a posse de escravos (Pereira, 1988). E, zendeiro da cafeicultura do chamado Oeste
também, porque a partir desse momento Paulista começou a se expandir e a utilizar
com a superação da antiga instituição das predominantemente o trabalho imigrante,
sesmarias, que era uma herança colonial, se opondo ao tradicional complexo cafeeiro
e a afirmação da moderna propriedade da escravista do Vale do Paraíba.
terra, por meio da Lei de Terras de 1850, É conhecido que esse desenvolvimento
começa-se a impactar no acesso e custos da da produção capitalista com trabalho livre
construção imobiliária. A partir dessa legis- em substituição dos escravos na cafeicultura
territorios 34 lação moderna ocorre a mudança do regi- provocava um enriquecimento febril sob
46 PAULO CESAR XAVIER PEREIRA

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a forma de renda territorial capitalizada, versificam os seus investimos em inúmeras
que no conjunto da economia cafeeira era atividades industriais, fazendo avançar a re-
gerada pelas enormes plantações de café produção capitalista nos poros da economia
que funcionavam como uma verdadeira cafeeira (Martins, 1979). O forte da indus-
“indústria de fazendas” (Martins, 1979). trialização corre em direção à substituição
A generalização da propriedade territorial de importações, criando fábricas, obras
como mercadoria transformava, simulta- urbanas e demandando infraestrutura. Am-
neamente, o significado econômico da pro- pliava-se o quadro da reprodução social ca-
priedade da terra para o uso agrícola e dos pitalista já com alguma aglomeração fabril,
terrenos para a construção em São Paulo. que reunia estabelecimentos com produção
E, por isso, impactou a construção da cida- significativa e unidades especializadas em
de eliminando os edifícios de taipa e a sua alguns bairros paulistanos. A diversificação
aparência colonial, num processo que foi dos investimentos estimulava a homogenei-
denominado por Lemos (1985) de implan- zação da produção industrial nos diferentes
tação da “alvenaria burguesa”. Abrangendo setores da economia e transformava a cida-
um período mais longo Fernandes (1965) de de São Paulo de pequena capital da Pro-
fala em constituição do burgo durante o víncia em um centro comercial, financeiro
século XIX: “São Paulo aparecia como o e base da concentração industrial regional
primeiro centro urbano especificamente (Pereira, 1988).
burguês”. O ano de 1872, início da admi- Outro aspecto dessa transição que
nistração de Theodoro, ficou conhecido também ganha relevância social é o no-
como de uma Segunda Fundação da Cida- tável branqueamento da população posto
de de São Paulo não só pela nova relação em destaque por Fernandes (1965), que
da arquitetura com a urbanização associada começa lento, mas se consolida com a che-
ao uso da alvenaria de tijolo, mas principal- gada de grandes levas de europeus. Desde
mente porque tinha a ver com mudanças meados do XIX, a presença de imigrantes
significativas no trabalho, na propriedade no Porto de Santos preparava a Abolição e,
da terra na função econômica da cidade com os que permaneciam na Capital paulis-
(Pereira, 1998 e 2004). ta procurando escapar do trabalho nas fa-
Foi em meio a essa movimentação apa- zendas de café, se montava na cidade tanto
rentemente desconexa, na passagem dos um mercado de trabalho como de aluguel
meados do século XIX para o XX, que a de casinhas, significando alguma mudança
economia paulista aprendeu a acumular o no mercado de terras, de casas e na enco-
capital industrial, mesclando a economia da menda para construir, muitas vezes, para
grande agricultura de exportação com a da alugar. Por isso, parte desses imigrantes, em
industrialização urbana. O domínio dessa sua maioria italianos acabava dominando
forma de acumulação tem origem no café, o mercado incipiente, permanecendo nas
inclusive porque logo os fazendeiros di- atividades de construção e participando da territorios 34
PROCESSOS E PROBLEMAS NA URBANIZAÇÃO DA AMÉRICA LATINA: TEORIA E HISTÓRIA 47

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realização de obras de qualificação urbana criadas fábricas e oficinas embrionárias de
no centro e bairros de São Paulo. A urbani- um forte segmento de materiais de cons-
zação floresceu tanto que a cidade recebeu trução, que gerava internamente produtos
nomes tais como Cidade dos italianos ou de madeira cerâmicos, metálicos, e outros.
São Paulo dos Fazendeiros, que expres- A introdução de conhecimentos da tecno-
savam a percepção das diferenças sociais. logia moderna de construção se mostrou
Todavia ficou conhecida a expressão: “São tão expressiva como na indústria em geral,
Paulo quem te viu e quem te vê”, que mar- mas o progresso nas construções beneficiou
cava a ruptura radical que ocorria na cidade, principalmente uma parte da cidade, que
na construção e na arquitetura de seus edi- ficou mais bem servida por obras e serviços
fícios públicos e privados (Pereira, 2004). urbanos e tendeu a concentrar a construção
Essa expressão difundida em 1900 era de edifícios mais altos, que vieram se asso-
uma imagem eficaz da impressão que cau- ciar ao uso intensivo de alguns materiais
sava o dinamismo das obras urbanas e da de construção, especialmente do cimento.
construção imobiliária como projeto da A altura desses edifícios, principalmente
elite cafeeira, que se urbanizava e buscava a na área central das cidades, contornava e
industrialização fabril. Essa expansão física implicava na alta dos preços dos terrenos,
e econômica da cidade associava-se a um que já estavam em espaços adequadamente
aumento significativo da participação de urbanizados. Por isso, vale lembrar que os
europeus, particularmente de italianos, no primeiros edifícios em altura foram signifi-
conjunto da população que passou de pou- cativamente chamados de “gaiolas de ou-
co mais de 30 mil, em 1872, para cerca de ro”, porque apenas poucos podiam pagar,
200 mil habitantes na virada do século. Essa e as casas superlotadas e encortiçadas de
movimentação demográfica “europeizava” “caxotins humanos”, onde famílias se co-
a fisionomia da cidade, que revigorada pelo tizavam para alcançar o preço do aluguel.
desenvolvimento dos negócios comerciais, As famílias abastadas podiam continuar
bancários e industriais gestados no orde- encomendando palacetes, mas criava-se um
namento capitalista da economia cafeeira, novo contexto, em que famílias remedia-
atingiu, em 1930, o primeiro milhão de das e menos abonadas puderam se benefi-
habitantes. ciar da produção moderna de materiais de
No bojo desses processos de concen- construção à medida que estas mudanças
tração industrial, a atividade do complexo industriais barateavam a construção ou até
da construção não se diferenciou das de- criavam facilidades técnicas para a cons-
mais atividades da indústria e acompanhou trução da casa. De certa maneira pode se
a reorganização da produção de materiais considerar que estas famílias estavam em
e equipamentos da construção civil com situação melhor do que quando a única
caráter fabril. Assim, na virada e primei- opção do morador, por absoluta falta de
territorios 34 ras décadas do século XX, acabaram sendo recursos, era apenas improvisar uma cons-
48 PAULO CESAR XAVIER PEREIRA

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trução e ocupar de maneira absolutamente fabril, apresentando uma industrialização
improvisada algum lote “disponível”. Na que ainda precisa ser historicamente melhor
diversidade das soluções de moradia criadas observada sob o ponto de vista das formas
pela urbanização e pela industrialização a sociais de produção do espaço, e não pode
questão do acesso à casa manteve-se como ser reduzida ao ponto de vista apenas da
centro dos conflitos e item das demandas técnica da construção. Não é excessivo en-
nas lutas urbanas. Assim, já no início do fatizar a importância do estudo das formas
século e principalmente após os anos 1930, de produção do espaço proposta por Jara-
a casa a ser adquirida pela compra se tornou millo (1982) definidas a partir da articu-
menos acessível, tendo sido a moradia um lação dos agentes no processo de produção
problema desde o princípio solucionado e circulação do espaço urbano construído.
com alternativas não capitalistas de acesso Note-se que as formas de produção (auto-
ao lote. E, por isso, em meio ao cresci- construção, por encomenda, mercado e es-
mento da cidade e da indústria se recriava tatal), conforme o citado autor, apresentam
uma mescla de relações não capitalistas articulações dos interesses dos agentes que
com relações capitalistas desenvolvidas. as definem e permite compreender a razão
Essa mescla assegurava a continuidade da do chamado “atraso da construção”.
reprodução do capital, agora industrial e O uso reticente da maquinaria e da
urbano, apresentando uma nova realidade, técnica na indústria da construção difere
agora mais intrincada e complexa. Assim, do que ocorre na fabricação de produtos
não há nenhum dualismo ou dicotomia na industriais e permitiu o entendimento de
formulação dessa mescla, mas a sugestão de que o setor da construção seria um ramo
um refinado entendimento das intrincadas industrial atrasado. Trata-se de uma visão
relações da reprodução social do capital. que coloca os sistemas construtivos em
Não se trata, portanto, de pensar como contraposição aos sistemas de fábrica con-
a modernização da construção da cidade siderados mais avançados e tecnicamente
capitalista supera a segmentação dessas modernos, sem considerar as particularida-
relações, mas de lembrar que é o próprio des da construção. Tanto que das frequen-
capital e seu desenvolvimento que cria a he- tes comparações com a fabricação têxtil,
terogeneidade e recria a combinação dessas que é atividade industrial que usa maqui-
relações. Sendo importante ressaltar que nário de modo expressivo, concluíram que
do ponto de vista setorial da Construção, a construção é “atrasada”. Entretanto, essa
essa dificuldade na homogeneização do conclusão, por se reduzir à visão fabril, se
desenvolvimento técnico e econômico ca- mostra equivocada no exame da indústria
racteriza a compreensão das particularida- da construção porque obscurece as suas
des da indústria da construção. Este setor, particularidades chegando a ignorar a di-
embora industrial, não apresenta um des- versidade das formas de produção, o que
envolvimento semelhante ao da indústria no mínimo oculta o imbricamento dessa territorios 34
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indústria com a propriedade da terra e com curece o que precisaria ser compreendido
a urbanização. Foi na observação histórica considerando a especificidade do desenvol-
desse duplo processo de industrialização e vimento técnico da indústria da construção
de urbanização que se considerou, como e da articulação das suas diferentes formas
emergem as formas de produção domés- de produção.
tica, produção por encomenda, produção Importante é reter que Jaramillo
para mercado e produção estatal na cons- (1982) estudou a coexistência das formas
trução imobiliária em São Paulo (Pereira, de produção que distinguem o desenvolvi-
1988 e 2004). mento da construção do modelo do indus-
Na polêmica sobre a industrialização trial fabril, mas justamente para demonstrar
da construção, aparentemente, a interpre- que entre as razões do atraso da construção
tação do atraso poderia ser justificada pela estava a propriedade da terra como um obs-
existência, nas cidades latino-americanas, táculo ao desenvolvimento industrial. Por
de uma massa de trabalhadores com dispo- essa interpretação, sua análise dá um passo
sição a se empregar por salários reduzidos. à frente e outro para traz, porque destaca as
Assim, considerando que o uso intenso do formas de produção, mas não nega a visão
trabalho industrial é sinal de insuficiência industrial; antes a reafirma porque foca a
técnica, a causa do “atraso” industrial da questão da terra apenas como um obstácu-
construção seria a abundância de mão de lo à reprodução industrial do capital e não
obra barata (Singer, 1978). De um lado, observa que com a propriedade da terra se
a possibilidade de utilizar trabalhador mal cria uma particularidade na valorização do
pago na produção explicaria o pouco uso capital na construção. Assim, ainda é pre-
de maquinários e de técnicas modernas na ciso esclarecer que “o processo de trabalho
construção, e o desinteresse do empresá- na construção se particulariza no processo
rio em investir capital fixo nos canteiros de de valorização, por ser potenciado pela va-
obras. De outro, o assalariado mal pago (in- lorização imobiliária e não concorrer para
dependente do setor) não encontra mora- redução do tempo de trabalho social” (Pe-
dia com aluguel que possa pagar senão em reira, 1984, p. 15).
local precário e inadequado. De maneira De maneira que por essa interpretação
que a ideia de atraso na construção parece prevalece o obscurecimento que não com-
encontrar justificativa, também, na visível preende as particularidades da industria-
quantidade de casas construídas pelo pró- lização da construção em seus vínculos
prio trabalhador em fuga do aluguel. Mas, com a urbanização e nem se aprofunda em
tal visibilidade não evidencia a articulação como ocorre a instrumentalização do uso
entre o urbano e o industrial que precisaria da terra no setor pelas diferentes formas
ser estabelecida pela análise dos elementos de produção. Assim, a visão industrial obs-
interpretados. Tanto que induz a um con- curece o entendimento das ambiguidades
territorios 34 vencimento precoce onde o visível obs- do desenvolvimento moderno das cidades
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latino-americanas, porque ora é o excesso tiva da dimensão urbana. A visão industrial
de mão-de-obra barata que se apresenta não compreende o que é urbanização e im-
como impasse ao desenvolvimento indus- pede o conhecimento das particularidades
trial da construção, e ora é a propriedade da que assume a construção em cidades latino-
terra que se apresenta como um obstáculo americanas, onde por razões históricas se
a industrialização. Tal entendimento cega a tornou persistente a forma de produção
relação entre o capital, a terra e o trabalho, doméstica: o morador construindo sua casa
homogeneizando as relações de proprie- própria. E por ser a forma predominante na
dade de coisas distintas e naturalizando a estrutura urbana dessas cidades tipificou
explicação do atraso na construção, como a presença de relações não capitalistas na
se fosse um fenômeno industrial-fabril. produção do espaço capitalista: uma urba-
Torna crível que seria o rentismo - um nização dependente. Nenhuma novidade,
ganho ocioso proporcionado pela simples trata-se de uma produção não mercan-
retenção da terra - a explicação de toda til da casa que é construída pelo próprio
inoperância do empresariado industrial e morador, que se tornou conhecida com o
da gestão urbana. Assim, a retenção da te- nome de autoconstrução. Mas, como essa
rra ociosa seria o fundamento de todas as interpretação reduz a forma de produção
mazelas da cidade e não um resultado de ao de um autoconsumo, não a entendeu
como a construção da cidade é instrumen- como esta forma de produção capitalista de
talizada para a reprodução do capital. Aliás, cidade não apresenta relações capitalistas de
é essa interpretação redutora, naturalizada e produção apesar de produzir o espaço mais
conservadora do desenvolvimento urbano habitado das cidades latino-americanas.
transposta à industrialização que faz com E, assim, por não entende-la articulada na
que a visão industrial atribua à habitação estrutura urbana com as outras formas de
a pecha de problema insolúvel. Hoje, sa- produção capitalista, tem dificultado que
bemos que mesmo as experiências de polí- a análise do processo global da produção
ticas habitacionais de mercado subsidiado do espaço avance no exame das diferentes
com a presença de grandes construtoras situações urbanas como uma totalidade:
amplamente apoiadas pelo Estado, como segmenta o estudo das formas de produção
aconteceu recentemente no México e no capitalista da construção e obscurece como
Brasil, não aumentaram a capacidade em a forma mais “moderna” se articula com a
solucionar pelo mercado o problema social mais “atrasada” na construção da cidade.
da habitação. Na América Latina, essa combinação
Por isso, é importante frisar que na de relações não capitalistas com relações ca-
crítica a essas interpretações conservadoras pitalistas ocorre tanto nas relações de pro-
há necessidade de superar a visão industrial dução, como nas relações de apropriação e
para compreender a construção da cidade acesso à moradia. Não seria essa articulação
como um processo não fabril e na perspec- de diferentes relações uma importante territorios 34
PROCESSOS E PROBLEMAS NA URBANIZAÇÃO DA AMÉRICA LATINA: TEORIA E HISTÓRIA 51

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peculiaridade da produção do espaço nas tor. Além disso, as formas de produção do
cidades latino-americanas? Aliás, tal como espaço tendem a se multiplicar, conviver e
foi essa peculiar combinação de relações têm encontrado maneiras de entrelaçar a
que particularizou a ocupação territorial e a diversidade de suas formas com a exigência
colonização ibero-americana, não seria esta econômica do capital quanto ao desenvol-
mescla um elemento essencial para conhe- vimento técnico, social e urbano. Mas, essa
cer a simultaneidade e entrelaçamentos das maneira com que se realiza a construção da
várias formas de produção do espaço nas cidade não tem respondido às necessidades
cidades? E, é devido a essa incompletude de preservar a natureza e nem à dignidade
da modernização que, na maioria das vezes, do habitar humano. Por isso, o que está em
mesmo o assalariado de grandes empresas questão é a totalidade do desenvolvimento
industriais, ainda atualmente, só obtém o da produção do espaço urbano latino-ame-
acesso a casa por meio de uma produção ricano. Não se trata apenas da precariedade
não mercantil ou, mais recentemente, por de uma casa ou de um bairro, mas sim da
meio de políticas habitacionais apoiadas desigualdade urbana na dimensão da ci-
com fortes subsídios públicos. A unidade dade em uma formação espacial específica
desses processos que envolvem relações que precisa ser pensada como um espaço
sociais distintas —combinando relações supranacional —um conjunto de países—
capitalistas e não capitalistas— como uma que, historicamente, foram colocados na
totalidade implicam em desafios para o periferia do desenvolvimento da economia
avanço da compreensão histórica e da dis- mundial pela persistência dos métodos da
cussão teórica da realização contemporânea acumulação primitiva de capital.
da formula trinitária do valor na periferia do Assim, num nível, a história da pro-
capitalismo, e de como a terra, o trabalho dução do espaço da cidade latino-ameri-
e o capital na América Latina se inseriram, cana se insere na acumulação primitiva tal
historicamente, na economia mundo. como está acumulação, atualmente, se in-
Para isso, primeiro cabe relevar que sere na construção da precariedade urbana
essa situação de aparente “atraso” da cons- como produção não mercantil, numa socie-
trução da cidade não é mera permanência dade cada vez mais produtora de mercado-
de algo superado, nem que representaria rias. Daí será possível concluir dizendo que
mera persistência ou apenas sobrevivência na produção do espaço das cidades latino-
de algo do passado. Trata-se de um proces- americanas, apenas mudaram-se os rótulos
so histórico particular que se repõe como de maneira a manter persistente as antigas
questão atual, e para a qual não é menos desigualdades. Será, então, que apesar da
importante considerar que apresenta um precariedade da urbanização contemporâ-
aspecto setorial, ou seja, se constitui em nea, pobres e moradores em condição de
particularidade de como se realiza e avança rua só agravam as mesmas interdições pró-
territorios 34 a produção capitalista em determinado se- prias da condição de existência colonizada e
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apenas atualizam os fundamentos do antigo do capital despertaram ainda maior atenção
conceito de colonizado. porque desencadearam crises de alcance
Assim, num nível, a história da pro- mundial e intensificaram reações políticas
dução do espaço da cidade latino-ame- com diferentes calibres visando reformas
ricana se insere na acumulação primitiva neoliberais com ajustes no trabalho, no
tal como está acumulação, na atualidade, imobiliário e no financeiro.
se insere na construção da precariedade De maneira que nas últimas décadas
urbana como produção não mercantil, nu- “la ‘ideología neoliberal’ se há asentado
ma sociedade cada vez mais produtora de ahora en la mayor parte del mundo, quizás
mercadorias. De maneira que a constituição con la excepción de algunos países lati-
das formas urbanas ocorrem combinadas, noamericanos del arco bolivariano, como
reescalonadas e involucradas merecendo un fundamento naturalizado” (Hidalgo
aprofundamento em pesquisas para que o & Janoschka, 2014, p. 8). Essa ideologia
conhecimento sobre as relações capitalistas apresenta orientação muito precisa buscan-
em simbiose com relações não capitalistas do escancarar os limites da política urbana
na produção do espaço seja reinterpretado para o capital e aprofundar os processos
e os fundamentos da questão melhor com- espoliativos financeiros e imobiliários. Es-
preendidos. Será possível, então, finalizar ses processos já não se limitam à tradicional
perguntando se na produção do espaço das espoliação urbana e de trabalhadores de
cidades latino-americanas, apenas muda- famílias vulneráveis que não conseguem
ram-se os rótulos para manter persistente pagar por uma habitação digna recebendo
as antigas desigualdades. Será que pela pre- pouco por seu trabalho conforme análise de
cariedade da urbanização contemporânea, Kowarick (1979 e 2000) da luta social na
pobres e moradores em condição de rua produção do espaço. Por isso, é relevante
apenas agravam as mesmas interdições pró- compreender como na urbanização latino-
prias da condição de existência colonizada americana estão presentes diferentes pro-
e só atualizam os fundamentos do antigo cessos espoliativos resultantes de coalizões
conceito de colonizado. de forças específicas, que ainda precisam
ser melhor conhecidas, até porque as novas
Considerações finais: globalização políticas estão implicando em um urbanis-
financeira e a reestruturação mo empresarial privatista, que apresenta
imobiliária equações peculiares a cada país e cidade.
Assim, tal como o equacionamento
Desde os anos 1970, com diferentes ritmos dessas políticas em São Paulo pode se dis-
e intensidades, ocorreram diversas reestru- tinguir daquele do Rio de Janeiro, cabe
turações associadas a economia globaliza- notar que ambos tendem a se diferenciar
da. Nos anos 2000, sob hegemonia das daqueles que se realizam em Bogotá, Lima,
finanças globalizadas, esses movimentos Santiago do Chile assim como de outras ci- territorios 34
PROCESSOS E PROBLEMAS NA URBANIZAÇÃO DA AMÉRICA LATINA: TEORIA E HISTÓRIA 53

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dades. Apesar dessas diferenças, o relevante nando o investimento (i)líquido (Hidalgo
a considerar é que tais equações se fundam & Janoschka, 2014).
em movimentos contraditórios que combi- Nessa mesma direção, esses autores
nam processos de exploração do trabalho frisam que os investimentos imobiliário-
com o que foi denominado por Harvey financeiros manipulam a produção do es-
(2004) de acumulação por espoliação. De paço fazendo com que se consolide um
maneira que esses movimentos se manifes- padrão mais desigual de segregação urbana
tam mundialmente ora como instrumen- como verdadeira fragmentação social. De
talização, tradicional, da terra pelo capital, forma que estes processos imobiliários,
ora como instrumentalização de espaços, por viabilizarem a reprodução do capital
metamorfoseados, na reprodução do capi- em condições sociais tão perversas mani-
tal na cidade contemporânea. festam e impulsionam a atual dissolução
Embora de dimensão planetária esses urbana. Assim, como tentativa de síntese se
conflitos urbanos são localizados e apresen- poderia dizer que o capitalismo histórico,
tam homogeneidade regional que resulta que tinha sido forjado na sua origem com
da movimentação capitalista mundial sendo a utilização de métodos não capitalistas,
significativo notar que as tendências recen- atualmente não dispensa o convívio com es-
tes de crise associadas à reestruturação de sas relações de apropriação e captura típicas
políticas imobiliárias e financeiras, inclusive da acumulação primitiva para manter sua
habitacionais como a crise dos subprime reprodução social com maior intensidade e
(Harvey, 2011). O artifício continua sen- desigualdade. Por isso, a mescla predatória
do a instrumentalização da privatização da dessas relações persistem no espaço latino-
terra, do espaço e o resultado a reconfigu- americano apesar da reprodução expansiva
ração da cidade como elemento estratégico do capital mundial manifestar-se com uma
de sobrevida e recuperação da rentabilidade hierarquia especificamente capitalista que
do capital (Lefebvre, 1970, 1972, 1973). se apoia na homogeneização das relações
Devido a esse fundamento na propriedade sociais (Lefebvre, 1980). Verifica-se, por-
imobiliária foram paulatinamente destruí- tanto, a permanência de uma produção
dos os obstáculos sociais e legais para a va- capitalista de relações não capitalistas que
lorização imobiliária e se priorizou superar faz conviver a reconfiguração da cidade
as situações de crise por meio da realização contemporânea com a reestruturação da
de megaprojetos (Pereira, 2011). O que construção imobiliária (e de infraestrutu-
fortaleceu os laços rentistas do financeiro ras) como produção de espaços metropo-
com a atividade da construção porque a litanos extremamente desiguais. Não é por
rentabilidade dos negócios imobiliários acaso, que a publicação da ONU (2014)
não poderia significar, por muito tempo, ressalta que embora se possa dizer que
imobilidade de capital na propriedade tor- o ritmo do crescimento da desigualdade
territorios 34 esteja diminuindo, atualmente, a América
54 PAULO CESAR XAVIER PEREIRA

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Latina se constitui na região mais desigual lização do movimento pela globalização
do mundo. financeira se consorcia com a produção
A reestruturação imobiliária exacerba imediata do espaço exatamente para pro-
e manipula essas desigualdades, que reve- duzir os mais altos preços monopolistas,
lam-se como fragmentos urbanos e sociais. aqueles de maior rentabilidade ao pôr em
Instrumentalizada por coalizões (im)postas relevo os novos artefatos arquitetônicos
pelas movimentações recentes do capital, em espaços urbanos inovadores. A ele-
aprofunda a segmentações que produzem vação desses preços “aparentemente sem
o espaço segregado e privatista destruindo fim” consolida um espaço metropolitano,
a cidade existente. É conhecido que a pri- numa aglomeração cada vez maior e mais
vatização imobiliária ressignifica a cidade, desigual, instrumentalizando a distribuição
o planejamento e as intervenções urbanas segregada dos grupos sociais no espaço.
como mero negócio espoliativo. Esse é o Nesse espaço metropolitano, o urbanismo
sentido da reestruturação em que a discus- empresarial, liberal e privatista emula a
são dos atuais processos imobiliários vem fragmentação, a expansão e (im)põem co-
apoiando-se em novos instrumentos das mo “caos urbano” o que na verdade é uma
políticas públicas, como as operações urba- organização hierárquica das coalizações da
nas e parcerias que priorizam o megaproje- ordem próxima com a ordem mais distante
to, porque este movimenta maior volume uma hierarquização do espaço. Não mais
de investimento e maximiza a capitalização urbano, porque esse espaço é produzido
da renda da terra e do capital globalizado. em função das necessidades da reprodução
No bojo desse movimento destaque-se do capital e em prejuízo da força de tra-
os chamados condomínios, que indepen- balho.
dente do uso, emergem como uma forma Espaços confinados, megaprojetos iso-
de apropriação do espaço que potencializa a lados, mas planetariamente conectados por
mercantilização da vida e a sua privatização. frágeis fluxos mundiais que revelam a força
Porque a forma condomínio exacerba a e a fraqueza que unifica o setor imobiliário
instrumentalização da cidade não só por e o poder das finanças globalizada, con-
intensificar a homogeneização urbana de forme Chesnais (2005), no rentismo do
maneira predatória, mas por maximizar as patrimônio imobiliário e do patrimônio
diferenças na captura de rendas. Tal ho- do mobiliário. A titulação das hipotecas
mogeneidade, apesar de monótona, forja incentiva o endividamento e a criação de
a sedução imobiliária elevando preços pela negócios derivados do consórcio entre o fi-
manipulação de pessoas em negócios onde nanceiro e o crédito imobiliário de maneira
o preço de monopólio faz o patrimônio inimaginável (Daher, 2013). Um negócio
imobiliário e financeiro gerar rendas cada patrimonial em que a propriedade mobi-
vez maiores. Essa reestruturação tem uma liária, como a imobiliária, torna-se fonte
dimensão global em que a internaciona- de rendas e ambas as propriedades fun- territorios 34
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cionam como “capital patrimonial”, que 2004). Da mesma maneira, no transcorrer
viabilizam a captura de excedente criado do século XX, com a expansão industrial
em outra esfera (Chesnais, 2005). Nesse e consolidação da cidade de São Paulo,
sentido, a externalidade desses movimen- manteve-se a coexistência combinada das
tos atualiza e revela o fundamento para formas de exploração do trabalho e das
compreender a mistificação da forma valor formas de espoliação, o que diversificou
e da capitalização das rendas. Isso porque as soluções habitacionais e as formas de
a valorização do capital envolve tanto o produção. Essa pluralidade de formas de
processo global de produção do valor e do produção do espaço revelada tanto pela
espaço quanto o processo imediato desta riqueza urbana como pela precariedade
produção, portanto, de mera construção implica numa multiplicidade de situações
da cidade torna-se a um processo total de que indicam como a urbanização desigual
produção em que as relações sociais são favorece a industrialização: eleva ao máxi-
transformadas em propriedades das coisas, mo os preços imobiliários aumentando o
um “fetichismo da mercadoria”, conforme excedente para a reprodução do capital e,
Marx, pelo qual os rendimentos aparecem simultaneamente, a precariedade reduz ao
como resultado das “coisas”. Enfim, espaço mínimo os custos da reprodução da força
e capital mobilizados pela privatização do de trabalho.
valor (i)mobilizam-se em diferentes níveis Aparentemente contraditório, mas for-
da (re)produção social e fundamentam, mulação típica aos processos da América
mundialmente, o fetichismo do patrimônio Latina porque no setor fabril desenvolveu-
(i)mobiliário. se uma visão industrial moderna e no da
Historicamente, a acumulação primi- construção uma visão patrimonial rentista,
tiva manifestou-se como origem e cons- que se mostraram funcionais à acumulação,
tituição das relações capitalistas, porém até os anos 1970. Até então, para resolver
cabe considerar que essas relações per- problemas da industrialização foi significa-
sistiram não como “atraso”, porque fun- tivo a redução do custo da força de trabalho
cionais ao capital desde a colonização. A e a (in)solução do problema habitacional
combinação dessas relações “primitivas” proporcionado pela urbanização precária.
(supostamente decadentes) e “modernas” Porém, nas últimas décadas, a construção
se mostram relações fundamentais, desde imobiliária (e de infraestruturas) sob a he-
o século XIX, uma vez que se verifica que, gemonia da acumulação financeira exacer-
na transformação da cidade de taipa para bou os ganhos rentistas proporcionados
a alvenaria de tijolos, houve a emergência pelo patrimônio imobiliário e mobiliário.
de relações especificamente “burguesas” Há ganhos patrimoniais tanto com a ex-
tanto do trabalho quanto da propriedade pansão territorial como na requalificação de
da terra na condução do domínio do capital espaços modernos degradados. A dimensão
territorios 34 sobre a cidade (Fernandes, 1965; Pereira, do investimento imobiliário-financeiro si-
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naliza uma instrumentalização do espaço Fernandes, F. (1965). A integração do negro
que reconfigura os problemas da cidade, na sociedade de classes. São Paulo: Do-
antes de soluciona-los. minus/USP.
Enfim, se reitera a necessidade de atua- Furtado, C. (1964). Formação econômica
lizar a noção de acumulação primitiva ou do Brasil. Río de Janeiro: Fundo de
originária para compreender a coexistência Cultura.
dos processos espoliativos, sobretudo, fi- Harvey, D. (2014). Cidades Rebeldes. Do di-
nanceiros e imobiliários com a exploração reito da cidade à revolução urbana. São
“moderna” do trabalho. Essa compreensão Paulo: Martins.
leva à considerar que a combinação desses Harvey, D. (2011). O enigma do capital e
processos na passagem para o século XXI, as crises do capitalismo. São Paulo: Boi-
significa que a globalização financeira e a tempo.
reestruturação imobiliária tornam a cidade Harvey, D. (2004). O novo imperialismo. São
ainda mais injusta, segregada e excludente. Paulo: Loyola.
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