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Entre iguais: os “condomínios-cidade” da Barra da Tijuca e a nova

face da segregação residencial carioca1

Rodrigo Cerqueira Agueda (PPGSA-UFRJ)

Resumo

Grande parte da urbanização do Rio de Janeiro ocorre em função da busca por opções de
moradia pelas camadas médias e altas. Após Copacabana passar de uma opção de status para um
exemplo de caos urbano, a Barra da Tijuca ganhou protagonismo no cenário habitacional a partir
dos anos 70 (Leitão, 1999). Em função da demanda por homogeneidade, segurança e tranquilidade,
a aposta imobiliária na região se deu principalmente nos grandes condomínios residenciais,
seguindo a crescente global do fenômeno das gated communitites (Blakely & Snyder, 1997).
Destes, o modelo dos “condomínios-cidade” chama a atenção por incorporar uma ideia de
autossuficiência à promessa de autossegregação, transformando o cotidiano das classes altas na
cidade e levantando questões sobre novas possibilidades de sociabilidade, de um novo estilo de
vida e de uma reconfiguração do espaço, com a elaboração de novas fronteiras urbanas. Nossa
inquietação, portanto, é de investigar o papel desses empreendimentos na vida urbana da cidade e
sua participação na face contemporânea da segregação residencial, buscando compreender de que
forma eles estão relacionados com noções de segurança, de desigualdade, de democracia e
imaginários urbanos.

Palavras-chave: condomínio, segregação, Barra da Tijuca, urbano, enclaves.

1
44º Encontro Anual da ANPOCS. SPG 2 – A Sociologia das Cidades entre as crises urbanas e ambientais no século
XXI.
Introdução

Grande parte da urbanização do Rio de Janeiro ocorre em função da busca por opções de
moradia pelas camadas médias e altas. Após Copacabana passar de uma opção de status para um
exemplo de caos urbano, a Barra da Tijuca ganhou protagonismo no cenário habitacional a partir
dos anos 70 (Leitão, 1999). Em função da demanda por homogeneidade, segurança e tranquilidade,
a aposta imobiliária na região se deu principalmente nos grandes condomínios residenciais,
seguindo a crescente global do fenômeno das gated communitites (Blakely & Snyder, 1997).
Destes, o modelo dos “condomínios-cidade” chama a atenção por incorporar uma ideia de
autossuficiência à promessa de autossegregação, transformando o cotidiano das classes altas na
cidade e levantando questões sobre novas possibilidades de sociabilidade, de um novo estilo de
vida e de uma reconfiguração do espaço, com a elaboração de novas fronteiras urbanas. Nossa
inquietação, portanto, é de investigar o papel desses empreendimentos na vida urbana da cidade e
sua participação na face contemporânea da segregação residencial, buscando compreender de que
forma eles estão relacionados com noções de segurança, de desigualdade, de democracia e
imaginários urbanos.
Pensar o papel que os “condomínios-cidade” possuem no processo mais geral de
urbanização do Rio de Janeiro e de criação de um modo de vida atrelado à Barra da Tijuca requer
uma investigação anterior. A etapa de transformações urbanas na cidade que culminou com a
expansão da malha urbana seguindo o caminho da orla em direção à Zona Oeste, passando por São
Conrado até chegar a Barra da Tijuca, possui muitas especificidades que merecem nossa atenção.
Atentar para essas especificidades, assim como para as relações com outras etapas e processos, nos
possibilita ter uma visão privilegiada sobre a construção, material e simbólica, do bairro e,
consequentemente, da forma urbana que toma protagonismo em seu desenvolvimento: os grandes
condomínios residenciais.
Este trabalho, portanto, se baseia em uma pesquisa que venho realizando no âmbito do meu
mestrado acerca da emergência dos grandes condomínios residenciais na Barra da Tijuca e do
processo mais geral de transformações urbanas em direção à Zona Oeste no que tange as classes
altas. Para tanto, venho realizando pesquisas em jornais das décadas de 1960 e 1970 que dão conta
da construção de um dos maiores exemplos desses empreendimentos eu surgem no bairro: o
Condomínio Novo Leblon. Através do material relativo à esse condomínio específico podemos
pensar a construção de imaginários relativa à ocupação da Barra da Tijuca, os ideais por trás desses
condomínios, os contextos das classes e médias e altas urbanas na cidade e seus anseios, a relação
com o planejamento urbano que se materializou no “Plano Lúcio Costa” e com a arquitetura
modernista, a crescente preocupação com a violência urbana e o medo do crime, a construção do
que viria a ser um estilo de vida “barrense”, dentre tantos outros aspectos que tangem os estudos
urbanos.
O processo de urbanização da Barra da Tijuca lança luz sobre diversas crises, tanto
ecológicas e urbanas como de imaginários. Por mais que meu foco não seja nos impactos
ambientais, a relação entre natureza e espaço urbano tem protagonismo no processo. A contradição
entre a promessa de uma vida bucólica e a rápida transformação na paisagem de mangues e restinga
em uma planície de concreto ilustra essa relação, em um processo que se ancora em uma crise
urbana para a criação de uma alternativa – com o discurso em prol do planejamento e contra o caos
urbano de Copacabana e da Zona Sul de forma mais geral – mas cuja alternativa em si é o motor
para um crise ambiental. O sistema lagunar de Jacarepaguá rapidamente deixa de ser sustento dos
mais antigos moradores da região, conforme o esgoto toma conta. Áreas de proteção ambiental são
transformadas em campos de golfe. Mas, ainda assim, o capital imobiliário usa a lagoa como
aspecto de valorização dos imóveis, e um paisagismo elaborado que evoca um retorno à natureza.
Em uma região onde o urbano e o natural se entrelaçam no cotidiano, onde taxis aquáticos e balsas
servem como modais de transporte, praia e cachoeiras são atrativos ao lado de complexos
residenciais gigantescos e shopping centers elitizados, as crises se retroalimentam. Se atrelam
também a uma crise de imaginários, onde um ethos de elite entre em choque com um ethos
emergente (Lima, 2007), frente à tentativas emancipatórias diversas – entre um plebiscito de 1988
pela emancipação da Barra da Tijuca e um projeto ainda em trâmite pela renomeação de uma região
adjacente à Barra da Tijuca como “Barra Olímpica” – refletindo a desigualdade da Zona Oeste
carioca e do processo de produção da cidade.

Pela orla em direção à Barra

O processo de construção da Barra da Tijuca como alternativa para as camadas médias e


elites cariocas, assim como o processo de construção de seus condomínios, tem início antes mesmo
de suas construções físicas. Décadas antes do bairro virar alvo do poder público e do capital
imobiliário, o desenvolvimento urbano carioca já se baseava em promessas de um espaço novo
bucólico, exclusivo e em contraposição à um urbano negativo, na expansão para o bairro de
Copacabana. Esses mesmos ideais seriam depois evocados na mídia em relação à Barra da Tijuca,
quando Copacabana rapidamente passa de uma promessa à um caos urbano, em uma “ordem
temporal de sucessivas repetições” (Balthazar, 2020, p. 92).
A ocupação de Copacabana já se fez atrelada à criação de um status associado ao bairro,
em contraponto com categorias urbanas vinculadas à outras áreas da cidade, em especial os
subúrbios (O’Donnell, 2013). A cultura urbana associada ao bairro, das camadas médias que muito
rapidamente se encontravam frente aos problemas urbanos associados à intensa verticalização,
entra em choque quando a possibilidade de ocupação do bairro encontra-se quase que esgotada,
necessitando de outras áreas de expansão para reprodução da mesma distinção que ali já não se
fazia da mesma forma (Velho, 1989). Com a orla como principal atrativo e símbolo de distinção,
antes por questões sanitárias e depois pela vista e pelo lazer, a ocupação dos adjacentes bairros de
Ipanema e Leblon seguiu o mesmo caminho. Ocupados pelas elites cariocas, os bairros rapidamente
encontraram seus problemas associados à urbanização, em grande medida relativos à proximidade
com muitas favelas que existem na Zona Sul carioca. É ai, então, que começa a construção da Barra
da Tijuca e do Novo Leblon.
Um dos achados da pesquisa no material de jornal foi a menção ao termo “novo leblon”
muito antes da construção do mesmo. O termo indicava um conjunto de prédios no bairro do
Leblon, referido como “Parque Residencial Novo Leblon”. O local, um conjunto cercado de
prédios com uma praça ao centro, com a entrada controlada, é o que depois viria a se tornar a “Selva
de Pedra”, uma espécie de condomínio que surge no centro do Leblon. O interessante da pesquisa
foi encontrar que esse empreendimento surgiu no lugar que antes era ocupado pela favela Praia do
Pinto, cujo fim se deu por meio de um incêndio misterioso em 1969. Esse evento nos indica
algumas coisas interessantes para pensar o surgimento da Barra da Tijuca e dos condomínios:
existia no Leblon um desejo, seja por parte dos moradores ou do capital imobiliário, da construção
de espaços novos, fechados de certa maneira ao espaço público; a expansão pra Zona Oeste está
vinculada à eliminação de espaços de moradia de baixa renda da Zona Sul, caracterizada não só
pelo incêndio na Praia do Pinto como também pelas diversas remoções que ocorriam na região na
época; existiam interesses contrários a existência de uma heterogeneidade no Leblon, talvez
vinculada à presença das favelas; espaços novos para a reprodução do capital imobiliários estavam
escassos na região. Tais indícios correspondem à muitos dos ideais levantados pelas propagandas
dos condomínios que começariam a surgir logo depois, em São Conrado e na Barra, que exaltavam
exclusividade, segurança, fechamento à rua, planejamento e uma oposição ao que se tornava a Zona
Sul do Rio.
A partir do material analisado nos jornais, o apelo por espaços mais fechados e
diferenciados já surgia no Leblon no começo da década de 1970. O discurso do Leblon e da Zona
Sul como “problema urbano”, porém, surge com mais intensidade quando atrelado às alternativas,
um indício da relação dessas crises com o interesse do capital imobiliário. As propagandas do
condomínio Village São Conrado, por exemplo, que se encontra no bairro que fica entre o Leblon
e a Barra da Tijuca, apontam para essa contraposição entre uma “velha Zona Sul” e uma “nova
Zona Sul”. Tais propagandas focam em alguns aspectos do que depois viria a construir os grandes
condomínios que surgem na Barra, sendo um meio termo entre o início da demanda de espaços
fechados e segregados que nasce no Leblon e os “condomínios-cidade” que emergem na Barra
como principal protagonista da urbanização da área nobre da Zona Oeste. Noções como a de
espaços de convívio internos ao condomínio e a “exclusão” da rua, de uma área ainda não muito
urbanizada e com um planejamento prévio que evitaria tal urbanização exagerada que teria tomado
conta da Zona Sul, assim como de espaços exclusivos para classes mais abastadas aparecem como
privilégios de São Conrado como “a Zona Sul passada à limpo”.
Os próprios anúncios referentes aos condomínios de São Conrado, bairro bem menor do
que a Barra da Tijuca, já fazem referências diretas à Barra, seja em função dos novos
empreendimentos que estão sendo construídos ou em função do Plano urbanístico do Lúcio Costa,
um dos principais pilares do processo de urbanização do bairro. São Conrado, porém, se encontra
a uma distância muito menor da Zona Sul, tendo acesso fácil e sendo visto como bairro mais
“habitável” do que a Barra, que ainda carregava um status de “sertão carioca” e de um espaço
distante. Talvez disso surge a necessidade de empreendimentos que tragam, para além da
exclusividade, fechamento e planejamento já presentes nos condomínios de São Conrado, outros
aspectos que façam com que uma vida no bairro se torne “possível” para as camadas médias e elites
cariocas. Ainda se fazendo valer de imaginários bucólicos, ligação com a natureza e afastamento
da cidade, a necessidade se dá por espaços que incorporem tais ideais às infraestruturas urbanas
que compõem um viver cômodo, espaços que aliem uma fuga da cidade às facilidades dos centros
urbanos, espaços que ofereçam mais que moradia mas sem a necessidade de sair à rua. Nascem
assim os “condomínios-cidade” como espaços amplos voltados para as classes médias e altas,
pensado sob a ótica modernista como núcleos urbanos ou “bairros planejados”, que se propõem a
aliar uma autossuficiência à uma autossegregação.

Do caos aos condomínios

A literatura internacional acerca dos suburbs e gated communities norte-americanas nos


ajuda a compreender o contexto de surgimento dos grandes condomínios no Rio de Janeiro. A
partir do pós-Segunda Guerra Mundial, uma intensificação do processo de urbanização nos Estados
Unidos gerou comunidades majoritariamente brancas e de classes altas afastadas da cidade,
enquanto os bairros centrais ficaram economicamente desfavorecidos e com uma concentração de
minorias (Vesselinov & Le Goix, 2012). Esses subúrbios se diferenciavam das áreas centrais da
cidade principalmente por uma menor densidade ocupacional, maior percentual de proprietários,
maior distancia em relação ao local de trabalho e uma distinção quanto à status, classe e raça
(Jackson, 1987). Essa “fuga branca” das cidades heterogêneas e densas refletia um crescente
sentimento “anti-urbano” associado ao medo da violência e do crime, assim como à uma busca por
homogeneidade, status e segurança, fazendo dos subúrbios “enclaves de exclusão” (Low, 2001).
Essa divisão cidade- subúrbio, que passou a ser o foco dos cientistas sociais para estudar as cidades,
porem, não é mais suficiente para se pensar a segregação residencial nos Estados Unidos
(Vesselinov & Le Goix, 2012), e talvez nunca tenha sido suficiente para se tratar da América Latina
e do Brasil.
A crescente diversificação dos subúrbios americanos, a partir da década de 1970 (Logan &
Schneider, 1984) fez com que as elites buscassem novas formas de viver em homogeneidade,
recorrendo às gated communities como uma “nova camada de suburbanização” (Vesselinov & Le
Goix, 2012). Esse novo modelo residencial, portanto, nasce de uma tentativa de fuga tanto dos
centros urbanos quanto da diversidade, e seus reflexo ao redor do mundo aparentam seguir a mesma
logica (Atkinson & Blandy, 2017; Bauman, 2009; Caldeira, 2000; Roitman, 2011). O condomínio
residencial é, de forma geral, um lugar social e idealmente isolado da cidade, independente da sua
localização geográfica. É um isolamento físico sim, pelos diversos mecanismos criados nesse
sentido, mas é um isolamento dos considerados socialmente inferiores ou “estrangeiros” mais do
que algo associado à distancia mensurável (Bauman, 2009).
“A intenção desses espaços vetados é claramente dividir, segregar,
excluir, e não criar pontes, convivências agradáveis e locais de encontro, facilitar
as comunicações e reunir os habitantes da cidade [...]Na paisagem urbana, os
espaços vedados transformam- se nas pedras miliárias que assinalam a
desintegração da vida comunitária, fundada e compartilhada exatamente ali”.
(Idem, 2009, p. 42–23).

A partir desse modelo das gated communities, a tradução para as formas que esse fenômeno
tem tomado para além do “norte global” precisa ser realizada. Pensando em escalas de
conceitualização, para entender a especificidade dos condomínios que surgem na Barra da Tijuca
é necessário pontuar que o conceito mais geral tem suas particularidades regionais. Como ressalta
Patriota de Moura, precisamos “problematizar a utilização de conceitos e modelos construídos a
partir de casos específicos para compreender outros processos também específicos” (2010, p. 209).
O conceito de “enclaves fortificados” de Caldeira, por exemplo, é um efeito do fenômeno
estadunidense, mas com especificidades como a possível localização no meio dos centros urbanos
ou de incluir espaços que não são de moradia, como shopping centers e conjuntos empresariais.
Ele trata da “fuga da cidade” ao mesmo tempo que é uma resposta ao que é viver na cidade, na São
Paulo contemporânea. De maneira semelhante, a ideia de “islas urbanas” latino-americanas 2,
especificas do crescimento horizontal e do uso ineficiente das terras urbanas no continente
(Roitman, 2011) ou a noção de “domestic fortress” de Atkinson e Blandy (2017) para tratar das
“McMansions” inglesas3, são conceitos derivados do fenômeno das gated communities, esculpidos
a partir da empiria de seus locais e contextos. É com esse mesmo intuito que busco investigar os
condomínios residenciais da Barra da Tijuca, como uma expressão de um fenômeno global mas
que possui importantes especificidades que influenciam e são influenciados por um conjunto de
valores e estilos de vida, e que moldam uma nova maneira de se morar.
Os grandes condomínios residenciais da Barra da Tijuca, então, constituem um novo
modelo de enclaves de segregação, específicos do contexto carioca e inéditos. Chamo-os de
“condomínios-cidade” tanto por sua dimensão territorial, que corresponde muito mais às edge cities
(Garreau, 1991) do que aos condomínios fechados tradicionais brasileiros, quanto por sua relação

2
“Estas islas urbanas están compuestas por conjuntos de equipamientos urbanos que incluyen centros comerciales,
instituciones educativas privadas, hospitales privados y urbanizaciones cerradas.” (Roitman, 2011, p. 23).
3
“New detached homes are being built to a higher density and have become larger, swallowing up Garden space
with their expanded floor plans and doube or triple garages” (Atkinson & Blandy, 2017, p. 6).
dialética com a cidade, em seu sentido mais abstrato e no caso específico da cidade do Rio de
Janeiro. Eles se constituem, como têm mostrado o material empírico da pesquisa, a partir de um
imaginário bucólico e natural em oposição ao meio urbano e seu caos, ou às características clássicas
da cidade moderna. Ao mesmo tempo, eles garantem as infraestruturas de uma cidade em meio a
um “vazio”, um espaço tido como rural ou “não-urbano”, com promessas de todos os serviços
essenciais em seu interior, sem a necessidade de ir “para a rua”. Pensados por seus criadores como
“bairros planejados” eles possuem características muito mais associadas ao imaginário de cidade
do que ao imaginário do bairro, compreendendo diversos círculos de sociabilidade, uma
heterogeneidade interna, divisão de espaços e quase que todos os tipos de serviços em seu interior,
atendendo aos anseios mais variados. A coexistência de escola pública e privada, de vendedores de
“quentinhas” e de restaurantes extremamente caros, de apartamentos de dois quartos à casas com
piscinas, quadras esportivas e elevadores próprios, atrelam a esses espaços uma noção de uma
cidade em si, mesmo que na prática saibamos que eles estão totalmente atrelados à cidade e à sua
produção, sendo apenas uma peça do quebra-cabeça urbano que é a metrópole contemporânea,
especialmente no sul global.
Com esse novo modelo de condomínio surge também um novo estilo de vida. O termo
nativo barrense circula por moradores da cidade para tratar dos moradores da Barra da Tijuca e
seus cotidianos baseados em pouco contato com os outros, em trajetos de carros no lugar do andar
na rua e do convívio limitado à espaços fechados e privados. Tendo a praia como uma exceção, a
concentração de atividades de lazer e de serviços em shopping centers, por exemplo, são traço
desse estilo de vida. As grandes avenidas do bairro, presentes no desenho original do plano
urbanístico junto aos condomínios, enfatizam esse cotidiano baseado em trajetos de automóvel. O
que a pesquisa têm sugerido é que esse estilo de vida está estritamente ligado aos imaginários por
trás dos “condomínios-cidade”, sendo também um retrato de anseios por segurança e
homogeneidade que cresciam exponencialmente entre as classes médias e altas da cidade. Na
Barra, o projeto modernista utópico de Lucio Costas - quem acreditava que a região iria acabar
com a divisão desigual carioca entre um norte pobre e um sul rico – se choca com os interesses
privados do capital imobiliário, contribuindo para um espaço extremamente segregado e desigual.
A constituição do que a Barra da Tijuca é hoje, como bairro e como portadora de um estilo
de vida específico, se deu por uma multiplicidade de atores, por aspectos físicos e simbólicos da
construção do bairro. Como laboratório de experimentação de projetos desenvolvimentistas para
um “paraíso urbano” (Gorelik, 2015 apud Balthazar, 2020) que encontrou concretude em um
projeto utópico modernista em uma época de milagre econômico, o planejamento urbano esse
deparou com um capital imobiliário inflado pela grilagem de terras na região e uma crescente
preocupação das classes altas com insegurança, com caos urbano e com uma convivência
heterogênea na cidade. A evocação de um capital simbólico ambiental e uma volta à um passado
a-histórico (Balthazar, 2020) se mesclam com a crescente dependência sobre infraestruturas
urbanas e com o fenômeno da urbanização planetária (Brenner e Schmid, 2011) que questionam o
sentido da divisão entre urbano e rural na atualidade. A retórica do progresso e do futuro se choca
com a imaginação de um passado pré-caos, assim como a “estranha e bela [...] paisagem intocada”
(Costa, 2010), de maneira contraditória, vira a principal área de expansão urbana da cidade.
Como têm mostrado a pesquisa em jornais relativa ao condomínio Novo Leblon, as
propagandas apresentam temas principais que se repetem constantemente, principalmente entre os
anos de 1976 e 1978, ano do lançamento do empreendimento e ano em que ele efetivamente ficou
“pronto” respectivamente. O foco em criar uma nova geração, a “geração Novo Leblon” (Jornal do
Brasil, 1977), focando nas crianças e nas possibilidades que o condomínio apresentaria para criar
seus filhos, como a possibilidade de ir a escola e ao clube sem sair do condomínio, é um desses
pontos, amparado na ideia de uma autossuficiência. A vida toda seria possível dentro de um espaço
“fechado” e seguro, sem os riscos que existiam na Zona Sul a cada vez que as pessoas saiam de
seus prédios. Outro foco é na homogeneidade, principalmente analisando as imagens exibida nos
anúncios, amparada na ideia de autossegregação.
Condomínio com 8 edifícios, 11 vias públicas, 200 terrenos destinados à casas, duas
escolas, um country club e diversas áreas verdes, para além do acesso direto à 3 shopping centers,
o Novo Leblon é o maior exemplo do que seriam esses “condomínios-cidade”. Possibilitando uma
vida quase completa no interior de suas grades vigiadas, ele contribui para o estabelecimento do
estilo de vida barrense. Como um dos primeiros empreendimentos lançados na região (como
mostra a imagem abaixo), que até então era um “vazio” em meio a natureza, suas propagandas
faziam constante referência ao planejamento e às infraestruturas urbanas que seriam possíveis ali.
Através dele é possível investigar os processos que se dão na cidade do Rio de Janeiro na segunda
metade do século XX: ele é produto e produtor das transformações urbanas e sociais da cidade,
relativa tanto à expansão da malha urbana, à evocação de novos imaginários, ao estabelecimento
de novos estilos de vida e relações com a cidade.
Imagem da Barra no começo da década de 1970, com o condomínio Novo Leblon ao fundo. Fonte: Instagram. Autor
desconhecido.

Perspectivas de pesquisa

A investigação do surgimento desses grandes empreendimentos imobiliários na Barra da


Tijuca desde a última metade do século XX é relevante para uma melhor compreensão do que
estava em jogo na época, assim como para entendermos sob que respaldo emergiu o estilo de vida
específico do bairro. Hoje o bairro das grandes avenidas, dos condomínios e dos shopping centers,
a Barra da Tijuca - com sua ausência de pedestres e de lojas de rua, assim como seus grandes
enclaves de moradia, em que as entradas dos prédios e das casas defrontam não as ruas da cidade
mas sim o interior de um espaço murado - constitui uma paisagem urbana que se difere dos bairros
tradicionais da Zona Sul, como Leblon, Ipanema e Copacabana não só pelos seus desenhos
urbanísticos, como também, e principalmente, pelo modo de vida a ela atrelado.
Ao estabelecermos que existe uma forma urbana inédita que emerge no bairro e que toma
conta do crescimento atual da Zona Oeste, e que essa forma urbana possui determinados valores e
imaginários à ela atrelados, podemos seguir no caminho de buscar entender esse novo modo de
vida que emerge, o porque desse surgimento e como impacta o cotidiano da cidade. Parte integrante
do desenho de Lúcio Costa para o planejamento urbano da região, esses “condomínios-cidade”,
com sua ideia de autossuficiência, faz com o andar pela cidade não seja tão necessário. Os grandes
shopping centers, ao substituírem as lojas de rua e os botequins, fazem com que o contato com o
outro se dê em espaços protegidos, vigiados exclusivos. Tal relação direta entre o desenho urbano
planejado do bairro e a cotidiano que dela emerge é o passo inicial para pesquisas que visem
entender esse novo cotidiano. Porque o bairro é compreendido como espaço dos “emergentes”
(Lima, 2007) e de que forma essa distinção é feita em relação aos ricos tradicionais da Zona Sul?”
Como a vida murada e protegida interfere no dia a dia da cidade e nas concepções e políticas
públicas sobre a violência urbana? Como e de que maneira as formas de sociabilidade se alteram,
e que custo essa transformação tem para a cidade? Qual tipo de cidade e de espaço pública emerge
com essa nova, e em constante reprodução, forma urbana? Essas e outras perguntam estão no
horizonte de pesquisa que foca na Zona Oeste como fronteira simbólica dos estudos urbanos
cariocas, e encontra suporte em pesquisas que, como a que inspira esse trabalho, se esforçam para
compreender os significados implicados nos processos de transformações urbanas recentes, e as
muitas forças e urbanismos que agem na constante produção da cidade.

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