Você está na página 1de 15

Colonialidade, Subalternidade e Potência dos Ribeirinhos Colatinenses Pós

Desastre Ambiental no Rio Doce em 2015.

Caroline Vallandro Costa1; Rubiene Callegario Iglesias2; Tawana Maria Oliveira3

Introdução

Após uma era de grandes investimentos em infraestrutura que visaram à aceleração


do crescimento das cidades brasileiras a partir da década de 70, podemos observar
uma série de conflitos relativos à produção do espaço urbano. Mesmo quando houve
planejamento, os resultados da busca por melhores condições de vida nas cidades
parecem pequenos diante dos grandes desafios ainda a serem enfrentados. São
constatados sérios problemas relativos principalmente à má distribuição de recursos,
de bens e serviços e também dos riscos causados pelo acelerado processo de
industrialização. Algumas das dificuldades enfrentadas por planejadores desde
aquela época ainda são visíveis nas cidades atuais, em situações que não estão
restritas apenas a fatores formais: manutenção eficaz do meio urbano, moradia,
transporte, criação de lugares para convivência coletiva, entre outros; mas também
relativos a fatores simbólicos, culturais, no campo das relações sociais urbanas.

Diante deste quadro de promessas da cidade - enquanto espaço democrático, lócus


do bem-estar social e da diversidade, há muito não cumpridas - será possível a
existência de desenvolvimento sem a dominação desigual sobre a formação dos
modos de vida? A multiplicação nas últimas décadas dos debates sobre a
distribuição do ônus e benefício social da expansão das cidades acabou por
fomentar discussões interdisciplinares sobre o sentido de colonização econômica e

1
Professora do curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário do Espírito Santo (UNESC). Mestre
em Arquitetura e Urbanismo. Pesquisadora FAPES.

2
Professora dos cursos de Arquitetura e Urbanismo e Engenharia Civil do Centro Universitário do Espírito Santo
(UNESC). Especialista em Design de interiores.

3
Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Pesquisadora de iniciação científica do Centro Universitário do
Espírito Santo (UNESC).
cultural, que ainda enfrentam muitas das “ex-colônias” na tentativa de se adequarem
às lógicas globais vigentes. Esta relação hegemônica na produção dos modelos de
cidades pós-industriais será aqui problematizada tendo em vista o campo dos
"estudos pós-coloniais" e também a partir da década de 80 e 90 na América Latina
com a contribuição do grupo de estudos subalternos latino-americanos, e com seu
rearranjo na formação do grupo Modernidade/Colonialidade.

Segundo Luciana Ballestrin os estudos pós-coloniais surgem com a identificação de


“uma relação antagônica” entre colonizador e colonizado (BALLESTRIN, 2013:91).
Após a independência das colônias, antes oficialmente conduzidas por grandes
potências, os novos países em formação encontraram-se como que fragmentados
por conflitos internos, muitas vezes gerados pela tentativa forçosa de união entre
suas populações, costumes e linguagens (algumas vezes de grupos rivais), para
conformar um sentido de ‘nação’, de coesão, de certa uniformidade, que deveria
levar em conta uma identidade cultural única. Interlocutores compostos pelas “elites”
locais, anteriormente dominados, mas relativamente próximos aos dominadores,
eram então responsáveis por dar sequência à regulamentação política e cultural dos
países, e também a defenderem a soberania e a posse de seu território. Esta
mudança relativamente arrebatada da relação colonial para a ‘independência’
revelou a manutenção de alguns modelos de dominação apreendidos fora dos
costumes tradicionais anteriores às colônias, dificultando os processos de formação
de identidades locais.

Os que continuaram subalternos - aqueles cuja voz não pôde ser ouvida como
colocado por Spivak (2010), foram alvo constante dos pesquisadores e intelectuais
pós-coloniais, que segundo a mesma autora também geraram outras relações de
dominação ao reproduzirem discursos hegemônicos “essencializados”, a partir de
um ponto de vista europeu etnocêntrico, reduzindo possibilidades de
aprofundamentos importantes pela concessão da visibilidade à voz dos próprios
sujeitos estudados, ou seja, contribuíram para a manutenção das invisibilidades
discursivas (SPIVAK, 2010:43).
Podemos considerar que estas relações de subalternidade ainda estão presentes
em diversas instâncias das relações sociais, econômicas e territoriais que
compartilhamos hoje no Brasil, mesmo após a formação do Estado Nação moderno,
e das elaborações legislativas que conformam o discurso democrático, como a
Constituição Federal da República de 1988 e suas atualizações seguintes.

Para Anibal Quijano (2002), o fim das colônias não significou o fim das “relações de
colonialidade”, mas sim a transformação das mesmas em outros tipos de
dominação. O autor elucida um dos mais importantes desafios na formação das
relações sociopolíticas contemporâneas, o fato de que “estas relações de
dominação e exploração não são sempre claras, muito menos sistêmicas ou
orgânicas” (QUIJANO, 2002:07). É como se a conformação das identidades globais
modernas, o livre mercado, e as possibilidades de desenvolvimento confundissem a
apreensão das dominações inerentes aos seus projetos ditos democráticos.

Assim como para Milton Santos (2002), acredita-se que dentro de uma sociedade
em que os fluxos de informação global são tão velozes que nem sempre chegam a
ser verificados, é necessário identificar de maneira cautelosa e dedicada, de que
forma as experiências e dinâmicas urbanas são afetadas por esses fluxos, como
interferem nas relações de reciprocidade na produção de alteridade (SANTOS,
2002:317).

Neste contexto, buscamos entender a produção dos espaços urbanos para além dos
determinismos e dicotomias históricas como as noções de público e privado, centro
e periferia, global e local, homem e natureza, que devem ser evitados. Observamos
cada vez mais iniciativas que despolitizam o campo de ação das camadas
subalternas que constroem a cidade. Procura-se aqui compreender os territórios
urbanos como uma complexidade relacional, não facilmente decifrável, muito menos
por mecanismos fixos de regulação territorial, e mais como uma desconstrução de
fronteiras e limites, que serão aqui estudados.
O maior desastre socioambiental do Brasil

A ruptura da barragem de rejeitos do Fundão no município de Mariana-MG em 2015


culminou na maior tragédia ambiental do Brasil até a presente data. Relatório
preliminar do IBAMA – Instituto Brasileiro (2015) registrou como impactos imediatos:
mortos, desabrigados, 663 quilômetros de água contaminada na bacia do Rio Doce,
ao menos 1.469 hectares de terras destruídas, invasão do mar pela “lama” de
rejeitos na costa do Espírito Santo, 4 municípios atingidos, entre eles algumas áreas
de preservação permanente (APPs).

As cidades brasileiras, assim como grande parte da América Latina, têm sido
diretamente afetadas por processos de apropriação de mercados industriais globais,
que exploram suas bases ambientais materiais e imateriais, com a promessa não
cumprida de um ‘desenvolvimento sustentável’. Às promessas somam-se uma série
de efeitos danosos ao meio ambiente urbano, que é aqui entendido na relação entre
sociedade e natureza, referente às práticas tradicionais dos seres humanos para
manutenção da vida nas cidades, seus deslocamentos cotidianos e suas
necessidades de subsistência. As dinâmicas econômicas mineradoras estão nesta
pesquisa sendo abordadas como atividades impactantes que, além de fragilizarem o
meio ambiente que exploram, não conseguem compensar os efeitos das suas
dinâmicas de apropriação. A atividade extrativista mineradora tem especialmente
contribuído para a extinção de práticas culturais históricas exercidas por populações
ribeirinhas.

Segundo Henri Acselrad “as tramas urbanas têm se mostrado, no Brasil,


atravessadas por dinâmicas de despolitização e construção de consensos
destinadas a ativar a competição interurbana por investimentos internacionais (...)”
(2012:10). A citação do livro “Cartografia social e dinâmicas territoriais: marcos para
o debate” relata em poucas linhas alguns dos paradigmas enfrentados sobre a
produção dos espaços urbanos: “consensos, despolitização, competição”. Estas três
características, colocadas por Acselrad como inerentes à “trama” das relações
sociais no meio urbano guiarão o eixo temático das reflexões aqui propostas. O
trabalho se dedica, portanto, à visibilização das realidades ribeirinhas impactadas, e
à politização do debate acerca das possibilidades de compensação dos danos
socioambientais e das suas permanências como grupos subalternos.

Como mapear danos que estão pré-identificados pelos agentes promotores ou não
impactados pelo desastre? Diversos relatos de moradores ribeirinhos de Colatina
revelam a falta de cuidado por parte dos órgãos responsáveis pela compensação no
ato da abordagem e entrevista, que por vezes não traduz em uma comunicação
efetiva, capaz de atribuir valor às perdas que são relevantes para os sujeitos
impactados. Esse panorama de dissensos sugere que a metodologia de abordagem
feita junto ao grupo seja uma importante via de debates para pensar as
possibilidades de compensação de danos nem sempre cartografados.

O levantamento e a visibilização de dados acerca dos impactos socioambientais


decorrentes do rompimento da barragem de rejeitos em Minas Gerais (2015) são
aqui entendidos como os meios politizadores deste debate. Como vias à uma
educação não hegemônica que envolva a comunidade nos processos que a
constroem. Além disso, pretende-se aqui analisar o panorama da produção de
conflitos socioambientais levando em consideração os modos de vida: cultura, fazer,
saber, crenças, ou seja, elementos que constroem a identidade cultural dos
ribeirinhos visibilizando os dissensos encontrados no levantamento de danos por
meio de cartografias sociais, segundo o método já aplicado e publicado pelo Instituto
de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional- IPPUR/UFRJ, no Rio de Janeiro
(ACSELRAD, 2012).

Epistemologia da narrativa colonial.

A narrativa tem como prerrogativa um contexto vivenciado pelo narrador ou por


alguém, e outro percurso que remete às escolhas do narrador para contar
determinada história. Em nenhuma dessas instancias haverá imparcialidade, seja na
forma de olhar, seja na forma de narrar. Nas sociedades urbanas que sobrepõem
diversidades sociais e fluxos informacionais, em diferentes velocidades,
problematizar a posição e a duração dos olhares torna-se imprescindível.

Ao permitir os reposicionamentos do olhar, e admitir as complexidades das relações


espaço-temporais, as cartografias sociais são importantes subsídios epistêmico-
metodológicos para experimentação, dissolução e ressignificação de relações de
colonialidade. Algumas delas podem ainda existir junto às instituições da
modernidade, onde o conhecimento científico busca afirmação de suas forças
cognitivas, com linguagens específicas (SANTOS, 2002).

Nos estudos sobre a produção de conhecimento espacial se faz cada vez mais
necessário identificar de maneira cautelosa e dedicada, o modo como os discursos
dominantes podem influenciar as práticas urbanas, como interferem nas relações de
reciprocidade, de alteridade e de comunicação. A busca incessante por outras
formas de olhar, pelo horizonte do outro, reside no interesse em conhecer seus
diferentes arranjos, peculiaridades das relações de produção do espaço
(LEFEBVRE, 2006), e pode ser uma alternativa aos mecanismos de dominação da
linguagem e do conhecimento.

Em Colatina, as dinâmicas dos impactos ambientais junto à comunidade ribeirinha


ativadas pelas indústrias têm sido historicamente o principal vetor de conflitos.
Enquanto a cidade cresce em ritmo acelerado, as dinâmicas mercadológicas
aumentam a exploração sobre o rio, impactando sua capacidade e vazão. Com isso
interferem diretamente nas dinâmicas socioambientais da região com aterros,
dragagens, e poluição, que são parte da história da cidade até os dias atuais. Além
de alterarem a vida e a paisagem em benefício das dinâmicas do mercado global,
não contribuírem de maneira eficaz para o prometido ‘desenvolvimento urbano’.

Este é apenas um exemplo das dificuldades que enfrentam as minorias urbanas


economicamente ‘invisíveis’ da cidade, desafios que influenciam diretamente a
permanência ou não das populações e suas práticas culturais tradicionais – como as
atividades ribeirinhas. Considerando a importância histórica e cultural deste ofício,
viabilizador de dinâmicas sociais de apropriação do espaço urbano, acredita-se ser
necessário um melhor entendimento das relações de força que influenciam suas
possibilidades de resistência, já que o desinteresse pelo tema nos projetos de
compensação de danos tende à invisibilidade dos conflitos, à despolitização do
grupo e ao desaparecimento da atividade.

““a mancha que ficou na sociedade não se apaga”.


Fonte: Tiago, proprietário de horta, 2018.

Entrevistas feitas em campo iniciadas em 2018, durante a elaboração do projeto de


pesquisa e iniciação científica que trata desse tema4, moradores ribeirinhos alegam
que os mecanismos de compensação não têm sido eficientes. A frase de Tiago,
proprietário de horta às margens do rio Doce em Colatina, evidencia a dificuldade de
manutenção do ofício pós desastre ambiental. Segundo ele algumas questões não
podem ser compensadas, como a dificuldade de vender os produtos de sua horta
devido à “má fama” de sua localização.

Logo após a passagem da lama no município, pai e filho pretendiam continuar


atuando nas feiras e entregas nos supermercados, porém sem sucesso. As pessoas
têm rejeição pelas hortaliças produzidas no município, na hora de comprar logo
perguntam se são produzidas em Maria das Graças, bairro atingido. Devido a essa
fama não compram, preferem hortaliças que são plantadas em Santa Maria de
Jetibá, outro município que não fora atingido pela lama.

Outra situação complexa narrada por ribeirinhos é relatada por Diego. Sua família
morava em um terreno nas proximidades do Rio Doce e tinha a pesca como um dos
meios de renda. No ano de 2015, propriamente no período do rompimento da
barragem, Diego se encontrava desempregado e ajudava sua família na pesca. Com
a chegada da lama não se podia mais pescar, não podia ter contato com a água e a
onde se encontrava a horta e outras plantações utilizada para consumo próprio foi
4
Ecologia e Planejamento na Coexistência Socioambiental de Colatina-ES. Cartografia de Impactos a Partir do
Rompimento da Barragem de Rejeitos no Rio Doce (2018-2020). Apoio FAPES.
invadida pela lama. Depois de mais ou menos 10 dias que a lama havia passado, a
horta e as demais plantações que ali se encontravam começaram a morrer.

Após 6 meses do desastre, a família decidiu ir ao local atingido para ver como a
região se encontrava, e queimar o que havia morrido. O contato com local não foi
realizado antes pois os moradores tinham medo de fazer contato com os rejeitos de
lama. Após o trágico acontecimento a família nunca mais plantou onde a lama
passou e apenas o pai do Diego continuou na pesca, porém com um volume de
peixes muito reduzido e a venda precária, pois as pessoas passaram a ter medo de
consumir os peixes do rio Doce.

Devido as consequências da tragédia e por estar desempregado, Diego não tinha


mais como pescar e ajudar na renda da família, se mudou da casa em que morava
para a o centro da cidade de Colatina em busca de trabalho. Devido sua saída, o
dono do terreno demoliu a casa em que Diego morava, pois se encontrava em uma
situação precária. Diego relata que guarda muitas lembranças na memória da casa
em que morava e que hoje não existe mais.

Nestes pequenos exemplos de microdinâmicas urbanas podem ser elucidados


diversos desafios enfrentados por outros países no contexto Latino-americano
quando da expansão de seus mercados industriais globais e por consequência
expulsões de grupos sociais de seus lugares de origem. Assim também
problematiza o Grupo Latino Americano de Estudos Subalternos (1998), que no seu
manifesto inaugural provoca:

“El modo capitalista de producción adquiere uma configuración global que


sobrepasa lo puramente nacional, internacional o multinacional. No son los
estados territoriales quienes jalonan la producción, sino corporaciones
transnacionales que se pasean por el globo sin estar atadas a ningún
territorio, cultura o nación en particular” (Grupo L. de E. S.,1998:05).

No caso das populações ribeirinhas, os conflitos gerados têm sido claramente


subjugados. As governanças locais procuram alternativas de apaziguamento para a
sua retirada imediata, encarado a circulação dos barquinhos como apropriação
problemática. Para agravar o quadro, muitas vezes construções discursivas acabam
por imprimir certo grau de responsabilidade às populações afetadas, (ZHOURI,
2008:99) que por sua vez ainda pouco demonstram poder de reação significativa
frente a todas instâncias de dominação a que estão sujeitas. Como se realmente
existisse a possibilidade de comunicação entre as populações fragilizadas e os
mecanismos de regulação oficial do espaço. Aí podemos identificar um outro
problema: “a retórica como topologia e como persuasão” (SPIVAK, 2010:35). Como
pode o Estado “falar em nome do subalterno” através da escolha dos modos de
compensação, sem desenvolver um entendimento mais profundo das questões
sociais?

Como estes desafios têm influenciado diretamente toda a rede de relações urbanas,
seja pela configuração dos problemas ambientais, econômicos ou estruturais,
acredita-se que uma maior atenção deva ser direcionada para as metodologias de
compartilhamento horizontal dos saberes. A produção do conhecimento pela
linguagem científica dominante é um ponto a ser questionado, já que para haver
conhecimento, há que se ter comunicação (SANTOS, 2002:317). Este é outro
problema paradoxal do discurso da globalização: a imposição das linguagens que se
configuram como excludentes e dificilmente alcançadas por todos, podem configurar
estratégias de dominação que “não são neutras, estão atravessadas por violentas
inclusões e exclusões de todo o tipo” (Grupo L. de E. S.,1998:07).

Estes debates epistemológicos são cada vez mais observados a partir da década de
50, e em 1970 Foucault destaca-se com “A ordem do Discurso”, ao questionar as
noções de caos, acaso e incertezas dentro das ciências legitimadas. Mas poucos
autores chegam a analisar aspectos polêmicos na produção dos conhecimentos das
ciências sociais – como os que estão no campo das subjetividades, sensações, dos
aspectos imateriais cambiantes e contraditórios, ainda a serem investigados. Contra
os abismos das “ciências duras” Boaventura de Souza Santos afirma:
“À luz do que foi dito anteriormente, ficamos com a ideia de que, a
menos que defronte com uma resistência ativa, o pensamento
abissal continuará a auto reproduzir-se, por mais excludentes que
sejam as práticas que origina. Assim, a resistência política deve ter
como postulado a resistência epistemológica. Como foi dito
inicialmente, não existe justiça social global sem justiça cognitiva
global”. (SANTOS, B. S., 2007: 20)

A ideia de associação entre a história do colonialismo e a produção de


subalternidade nas cidades contemporâneas é mostrar de que formas esta relação
de dominação histórica continua acontecendo em determinados níveis, mesmo
quando invisibilizadas ou diluídas pela velocidade dos efeitos da globalização. Como
a história não é fixa, ela incorpora temas e acontecimentos a todo tempo, faz sentido
buscar um melhor entendimento sobre a noção de “um outro espaço-tempo”, que
parece cada vez mais confuso com o advento da pós-modernidade, onde “(...) o
mundo é menor e as distâncias mais curtas, que os eventos em um determinado
lugar têm um impacto imediato sobre pessoas e lugares situados a uma grande
distância” (HALL 2001:69). Isso também aconteceu ao longo do rio Doce, onde uma
única empresa devastou diferentes estados, populações, culturas e modos de vida.

Neste contexto de crise do Estado-Nação, e do próprio conceito de nação, Ajurn


Appadurai usa o conceito de “translocalidades” enquanto um desafio à construção
de “geografias morais” (APPADURAI, 1997:33). Para o autor, localidades são
“mundos da vida constituídos por associações relativamente estáveis, histórias
relativamente conhecidas e compartilhadas e espaços e lugares reconhecíveis e
coletivamente ocupados” que entram em conflito com os projetos de controle da vida
pública do Estado-Nação (APPADURAI, 1997:34). Este controle é exercido muitas
vezes quando se impõe dinâmicas de valorização de indústrias e grandes empresas
internacionais em contextos de riscos socioambientais, vastamente espalhados pelo
território brasileiro.
No contexto da cidade aqui estudada podem ser percebidos alguns sintomas desta
dominação: ao legitimar a exploração abusiva dos recursos naturais com atividades
extrativistas, no monopólio concedido às empresas multinacionais; ao tentar
setorizar a cidade em zonas de morar, de trabalhar, de lazer, que padronizam usos;
ao minimizar a importância de práticas históricas como o ofício ribeirinhos
pescadores e demais populações subalternas. Aqui, portanto, já não podemos mais
falar de efeitos apenas locais, há que se entender uma dinâmica muito mais ampla e
complexa de apropriação de recursos espaciais, informacionais, humanos, entre
outros, que escapam às fronteiras tradicionais entre cidades e municípios - geram
impactos amplos e alteridades sociais reprimidas.

Por Uma Metodologia Antropológica no Campo do Planejamento Urbano.

A produção do espaço enquanto tema comum à várias disciplinas e a importância do


entendimento sobre as relações sociais na conformação de seus territórios
demonstra que este pode ser um campo interessante para exercitar uma confluência
interdisciplinar. Para isso, entende-se que deve haver uma ampliação dos cânones
da ciência com relação às realidades espaciais, e uma pesquisa interdisciplinar,
contra as imposições do conhecimento científico etnocêntrico.

Não estamos aqui buscando uma verdade absoluta sobre a conformação dos
espaços nas cidades brasileiras contemporâneas, mas sim falando de um lugar
específico, repleto de alteridades e múltiplos pontos de vista. Estamos falando,
assim como na antropologia, de um lugar que é experiência etnográfica, ou seja, sua
narrativa ou interpretação pode ser múltipla, porque aceita a variedade de pontos de
vista sobre o mesmo contexto, todos abertos à contestação. Pretende-se aqui fazer
um convite ao debate, à multiplicidade dos encontros e assim buscar a visibilidade
dos conflitos existentes no espaço subalternizado.
Ash Amim em “Telescopic Urbanism And The Poor” critica as interpretações globais
rasas sobre os desafios na conformação dos espaços relacionais contemporâneos e
problematiza a prática interdisciplinar como estratégia para a ampliação do
“telescópio urbano”, reconhecendo as necessidades do desenvolvimento humano, e
a importância das minorias invisíveis economicamente na microescala, identificando
a sua relação com as macroescalas. Segundo ele é preciso “reforçar a sinergia entre
o crescimento, equidade e sustentabilidade, através de intervenções apropriadas no
ambiente construído, econômico e cultural da cidade?” (AMIN, 2013:02).

O desafio que se coloca diante da paisagem da cidade, entendida para além dos
seus aspectos materiais, é a identificação dos cenários consensuais fictícios,
projetados como veículo de manipulação do conhecimento acerca das dinâmicas e
especificidades dos lugares. Esta ‘alienação espacial’ muito interessa às lógicas
hegemônicas de dominação do uso dos espaços, onde se percebem consecutivas
tentativas de padronização e simplificação global. Como colocado por Quijano, e
bem elucida os contextos das cidades portuárias no Brasil:

“(...) se trata de uma reconcentração mundial do controle da


autoridade pública, em escala global. E este é, do meu ponto de
vista, o fenômeno novo mais destacado da chamada “globalização”
do atual padrão de poder mundial”. (QUIJANO, 2002:08)

Este estranhamento também pode ser percebido na escala do pequeno e adensado


centro urbano de Colatina, às margens do rio Doce. A produção espaço urbano
consensualmente voltada para as dinâmicas industriais e para o crescimento
econômico imperam diante de qualquer outra dinâmica tradicional que atrapalhe a
manutenção da ordem vigente. A população local e suas alteridades, costumes e
ofícios são cada vez mais dependentes e cooptados ao estabelecimento de relações
padronizadas, pouco autônomas de preferência pouco politizadas. Percebe-se que
não é do interesse dos organismos oficiais de regulação deste espaço que os
debates sobre a compensação ambiental sejam fomentados.
Diante disso é preciso que os planejadores urbanos entendam de perto as
possibilidades de produção de conhecimentos espaciais para além das
simplificações hegemônicas, aceitando as dificuldades e complexidades de se
trabalhar em uma ótica de contradições e dissensos. Estas tensões estimulam
desejos por novas possibilidades de Planejamento e um melhor embasamento
diante das especificidades dos conflitos locais. Se faz premente um maior
compromisso com a visibilidade destas relações em desequilíbrio na tentativa de
“decolonizar” à luz de Mignolo (2008), Quijano (2002) e Ballestrin (2013), as relações
de produção dos espaços coletivos.

Por ser difícil entender o que está implícito historicamente na dominação de cada
realidade específica, sendo a brasileira uma das mais complexas, é importante
encontrar métodos de levantamento e análise que entendam por que estas injustiças
muitas vezes acontecem legitimadas direta ou indiretamente pelo Estado. Por isso
parecem interessantes as abordagens etnográficas que valorizam a presença das
“vozes antes não ouvidas” (SPIVAK, 2010), uma abordagem do sujeito, que
problematiza outros tipos de conhecimento. Abordagem trabalhada por esta
pesquisa.

Entre os processos de gestão e produção dos espaços sempre foi um desafio lidar
com os interesses e desejos de múltiplos atores, com diferentes origens,
conhecimentos e habilidades individuais. Contra as tentativas de silenciamento e
despolitização, buscamos iniciativas que desconstroem os consensos acerca das
relações socioambientais, para reunir informações antes não percebidas e para
entender como o ônus e o benefício da urbanização e do dito “desenvolvimento” são
distribuídos.

Concorda-se com Canclini ao entender que os dissensos na cidade são potenciais


enquanto movimento contrário às tentativas de padronização global. É preciso
politizar os espaços com métodos que tentem evitar “esta visão conciliadora” do
pensamento científico etnocêntrico, o que pode levar a uma “redefinição da esfera
política” enquanto embates que envolvem as relações sociais (CANCLINI,
2012:135).

A prática etnográfica há muito problematizada pela antropologia e as “etno-


cartográficas” da geografia humana são duas importantes contribuições para os
estudos espaciais que envolvem populações afetadas e o contexto da produção do
espaço urbano. Esta pesquisa buscou problematizar as possibilidades de
contribuição destas metodologias para a o planejamento urbano, e acreditamos que
essa relação multidisciplinar poderá produzir trocas de conhecimento que
qualificarão a comunicação entre pesquisadores e sujeitos, na medida em que as
diferentes linguagens dos diferentes atores do campo sejam “mediadas a ponto de
realmente haver uma comunicação entre eles” (ACSELRAD, 2012), de modo a
acentuar pontos de vista anteriormente desconsiderados ou subalternizados.

Essas questões quando trazidas para as relações acadêmicas de produção do


conhecimento evidenciam a necessidade cada vez maior de uma autocrítica
epistemológica, que estude a conformação das paisagens urbanas enquanto
relações complexas, para além das definições materiais, visualmente apreendidas,
enquanto dinâmicas espaciais e sociais repletas de invisibilidades, que esta
pesquisa buscou evidenciar. Acredita-se que antropologia e a Geografia Humana
têm muito que acrescentar neste sentido, ao problematizar suas metodologias de
forma autocrítica, ao entender que a linguagem da produção do conhecimento
científico no campo social precisa ser revista.

REFERÊNCIAS:

ACSELRAD, Henri (organizador). Cartografia social e dinâmicas territoriais:


marcos para o debate. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, 2012.
AMIN, A. Telescopic Urbanism and the Poor. Forthcoming, City, 2013.
APPADURAI, A. Soberania sem territorialidade: notas para uma geografia pós-
nacional. Novos Estudos Cebrap. n. 49, novembro 1997.

BALLESTRIN, L. América Latina e o giro Descolonial. Brasília: Revista Brasileira


de Ciência Política, nº11. 2013.
CANCLINI, Néstor García. A sociedade sem relato: Antropologia e Estética da
Iminência. Tradução Maria Paulo Gurgel Ribeiro. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2012.
HALL, S. Identidade cultural na pós modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 6ª ed.
2001.
LEFEBVRE, Henri. The production of space. Oxford, U.K.: Blackwell, 2006.
MIGNOLO, W. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado
de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua
e identidade, no 34, p. 287-324, 2008.
PRAKASH, G. Subaltern Studies as Postcolonial Criticism. In: The American
Historical Review, Vol. 99, No. 5 (Dec., 1994), p. 1475-1490.
QUIJANO, A. Colonialidade, Poder, Globalização e democracia. Revista Novos
Rumos, No. 37, Ano 17, 2002.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São
Paulo: Edusp, 2002.
SANTOS, B. de S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma
ecologia de saberes. Eurozine. Viena, 14 de fev. de 2007.
SPIVAK, G. C. Pode o Subalterno Falar? Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.
ZHOURI, A. Justiça Ambiental, Diversidade Cultural e Accountability: desafios
para a governança ambiental. IN; Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 23,
Número, 68, outubro de 2008, pp. 97-107.

Você também pode gostar