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Introdução
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Professora do curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário do Espírito Santo (UNESC). Mestre
em Arquitetura e Urbanismo. Pesquisadora FAPES.
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Professora dos cursos de Arquitetura e Urbanismo e Engenharia Civil do Centro Universitário do Espírito Santo
(UNESC). Especialista em Design de interiores.
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Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Pesquisadora de iniciação científica do Centro Universitário do
Espírito Santo (UNESC).
cultural, que ainda enfrentam muitas das “ex-colônias” na tentativa de se adequarem
às lógicas globais vigentes. Esta relação hegemônica na produção dos modelos de
cidades pós-industriais será aqui problematizada tendo em vista o campo dos
"estudos pós-coloniais" e também a partir da década de 80 e 90 na América Latina
com a contribuição do grupo de estudos subalternos latino-americanos, e com seu
rearranjo na formação do grupo Modernidade/Colonialidade.
Os que continuaram subalternos - aqueles cuja voz não pôde ser ouvida como
colocado por Spivak (2010), foram alvo constante dos pesquisadores e intelectuais
pós-coloniais, que segundo a mesma autora também geraram outras relações de
dominação ao reproduzirem discursos hegemônicos “essencializados”, a partir de
um ponto de vista europeu etnocêntrico, reduzindo possibilidades de
aprofundamentos importantes pela concessão da visibilidade à voz dos próprios
sujeitos estudados, ou seja, contribuíram para a manutenção das invisibilidades
discursivas (SPIVAK, 2010:43).
Podemos considerar que estas relações de subalternidade ainda estão presentes
em diversas instâncias das relações sociais, econômicas e territoriais que
compartilhamos hoje no Brasil, mesmo após a formação do Estado Nação moderno,
e das elaborações legislativas que conformam o discurso democrático, como a
Constituição Federal da República de 1988 e suas atualizações seguintes.
Para Anibal Quijano (2002), o fim das colônias não significou o fim das “relações de
colonialidade”, mas sim a transformação das mesmas em outros tipos de
dominação. O autor elucida um dos mais importantes desafios na formação das
relações sociopolíticas contemporâneas, o fato de que “estas relações de
dominação e exploração não são sempre claras, muito menos sistêmicas ou
orgânicas” (QUIJANO, 2002:07). É como se a conformação das identidades globais
modernas, o livre mercado, e as possibilidades de desenvolvimento confundissem a
apreensão das dominações inerentes aos seus projetos ditos democráticos.
Assim como para Milton Santos (2002), acredita-se que dentro de uma sociedade
em que os fluxos de informação global são tão velozes que nem sempre chegam a
ser verificados, é necessário identificar de maneira cautelosa e dedicada, de que
forma as experiências e dinâmicas urbanas são afetadas por esses fluxos, como
interferem nas relações de reciprocidade na produção de alteridade (SANTOS,
2002:317).
Neste contexto, buscamos entender a produção dos espaços urbanos para além dos
determinismos e dicotomias históricas como as noções de público e privado, centro
e periferia, global e local, homem e natureza, que devem ser evitados. Observamos
cada vez mais iniciativas que despolitizam o campo de ação das camadas
subalternas que constroem a cidade. Procura-se aqui compreender os territórios
urbanos como uma complexidade relacional, não facilmente decifrável, muito menos
por mecanismos fixos de regulação territorial, e mais como uma desconstrução de
fronteiras e limites, que serão aqui estudados.
O maior desastre socioambiental do Brasil
As cidades brasileiras, assim como grande parte da América Latina, têm sido
diretamente afetadas por processos de apropriação de mercados industriais globais,
que exploram suas bases ambientais materiais e imateriais, com a promessa não
cumprida de um ‘desenvolvimento sustentável’. Às promessas somam-se uma série
de efeitos danosos ao meio ambiente urbano, que é aqui entendido na relação entre
sociedade e natureza, referente às práticas tradicionais dos seres humanos para
manutenção da vida nas cidades, seus deslocamentos cotidianos e suas
necessidades de subsistência. As dinâmicas econômicas mineradoras estão nesta
pesquisa sendo abordadas como atividades impactantes que, além de fragilizarem o
meio ambiente que exploram, não conseguem compensar os efeitos das suas
dinâmicas de apropriação. A atividade extrativista mineradora tem especialmente
contribuído para a extinção de práticas culturais históricas exercidas por populações
ribeirinhas.
Como mapear danos que estão pré-identificados pelos agentes promotores ou não
impactados pelo desastre? Diversos relatos de moradores ribeirinhos de Colatina
revelam a falta de cuidado por parte dos órgãos responsáveis pela compensação no
ato da abordagem e entrevista, que por vezes não traduz em uma comunicação
efetiva, capaz de atribuir valor às perdas que são relevantes para os sujeitos
impactados. Esse panorama de dissensos sugere que a metodologia de abordagem
feita junto ao grupo seja uma importante via de debates para pensar as
possibilidades de compensação de danos nem sempre cartografados.
Nos estudos sobre a produção de conhecimento espacial se faz cada vez mais
necessário identificar de maneira cautelosa e dedicada, o modo como os discursos
dominantes podem influenciar as práticas urbanas, como interferem nas relações de
reciprocidade, de alteridade e de comunicação. A busca incessante por outras
formas de olhar, pelo horizonte do outro, reside no interesse em conhecer seus
diferentes arranjos, peculiaridades das relações de produção do espaço
(LEFEBVRE, 2006), e pode ser uma alternativa aos mecanismos de dominação da
linguagem e do conhecimento.
Outra situação complexa narrada por ribeirinhos é relatada por Diego. Sua família
morava em um terreno nas proximidades do Rio Doce e tinha a pesca como um dos
meios de renda. No ano de 2015, propriamente no período do rompimento da
barragem, Diego se encontrava desempregado e ajudava sua família na pesca. Com
a chegada da lama não se podia mais pescar, não podia ter contato com a água e a
onde se encontrava a horta e outras plantações utilizada para consumo próprio foi
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Ecologia e Planejamento na Coexistência Socioambiental de Colatina-ES. Cartografia de Impactos a Partir do
Rompimento da Barragem de Rejeitos no Rio Doce (2018-2020). Apoio FAPES.
invadida pela lama. Depois de mais ou menos 10 dias que a lama havia passado, a
horta e as demais plantações que ali se encontravam começaram a morrer.
Após 6 meses do desastre, a família decidiu ir ao local atingido para ver como a
região se encontrava, e queimar o que havia morrido. O contato com local não foi
realizado antes pois os moradores tinham medo de fazer contato com os rejeitos de
lama. Após o trágico acontecimento a família nunca mais plantou onde a lama
passou e apenas o pai do Diego continuou na pesca, porém com um volume de
peixes muito reduzido e a venda precária, pois as pessoas passaram a ter medo de
consumir os peixes do rio Doce.
Como estes desafios têm influenciado diretamente toda a rede de relações urbanas,
seja pela configuração dos problemas ambientais, econômicos ou estruturais,
acredita-se que uma maior atenção deva ser direcionada para as metodologias de
compartilhamento horizontal dos saberes. A produção do conhecimento pela
linguagem científica dominante é um ponto a ser questionado, já que para haver
conhecimento, há que se ter comunicação (SANTOS, 2002:317). Este é outro
problema paradoxal do discurso da globalização: a imposição das linguagens que se
configuram como excludentes e dificilmente alcançadas por todos, podem configurar
estratégias de dominação que “não são neutras, estão atravessadas por violentas
inclusões e exclusões de todo o tipo” (Grupo L. de E. S.,1998:07).
Estes debates epistemológicos são cada vez mais observados a partir da década de
50, e em 1970 Foucault destaca-se com “A ordem do Discurso”, ao questionar as
noções de caos, acaso e incertezas dentro das ciências legitimadas. Mas poucos
autores chegam a analisar aspectos polêmicos na produção dos conhecimentos das
ciências sociais – como os que estão no campo das subjetividades, sensações, dos
aspectos imateriais cambiantes e contraditórios, ainda a serem investigados. Contra
os abismos das “ciências duras” Boaventura de Souza Santos afirma:
“À luz do que foi dito anteriormente, ficamos com a ideia de que, a
menos que defronte com uma resistência ativa, o pensamento
abissal continuará a auto reproduzir-se, por mais excludentes que
sejam as práticas que origina. Assim, a resistência política deve ter
como postulado a resistência epistemológica. Como foi dito
inicialmente, não existe justiça social global sem justiça cognitiva
global”. (SANTOS, B. S., 2007: 20)
Não estamos aqui buscando uma verdade absoluta sobre a conformação dos
espaços nas cidades brasileiras contemporâneas, mas sim falando de um lugar
específico, repleto de alteridades e múltiplos pontos de vista. Estamos falando,
assim como na antropologia, de um lugar que é experiência etnográfica, ou seja, sua
narrativa ou interpretação pode ser múltipla, porque aceita a variedade de pontos de
vista sobre o mesmo contexto, todos abertos à contestação. Pretende-se aqui fazer
um convite ao debate, à multiplicidade dos encontros e assim buscar a visibilidade
dos conflitos existentes no espaço subalternizado.
Ash Amim em “Telescopic Urbanism And The Poor” critica as interpretações globais
rasas sobre os desafios na conformação dos espaços relacionais contemporâneos e
problematiza a prática interdisciplinar como estratégia para a ampliação do
“telescópio urbano”, reconhecendo as necessidades do desenvolvimento humano, e
a importância das minorias invisíveis economicamente na microescala, identificando
a sua relação com as macroescalas. Segundo ele é preciso “reforçar a sinergia entre
o crescimento, equidade e sustentabilidade, através de intervenções apropriadas no
ambiente construído, econômico e cultural da cidade?” (AMIN, 2013:02).
O desafio que se coloca diante da paisagem da cidade, entendida para além dos
seus aspectos materiais, é a identificação dos cenários consensuais fictícios,
projetados como veículo de manipulação do conhecimento acerca das dinâmicas e
especificidades dos lugares. Esta ‘alienação espacial’ muito interessa às lógicas
hegemônicas de dominação do uso dos espaços, onde se percebem consecutivas
tentativas de padronização e simplificação global. Como colocado por Quijano, e
bem elucida os contextos das cidades portuárias no Brasil:
Por ser difícil entender o que está implícito historicamente na dominação de cada
realidade específica, sendo a brasileira uma das mais complexas, é importante
encontrar métodos de levantamento e análise que entendam por que estas injustiças
muitas vezes acontecem legitimadas direta ou indiretamente pelo Estado. Por isso
parecem interessantes as abordagens etnográficas que valorizam a presença das
“vozes antes não ouvidas” (SPIVAK, 2010), uma abordagem do sujeito, que
problematiza outros tipos de conhecimento. Abordagem trabalhada por esta
pesquisa.
Entre os processos de gestão e produção dos espaços sempre foi um desafio lidar
com os interesses e desejos de múltiplos atores, com diferentes origens,
conhecimentos e habilidades individuais. Contra as tentativas de silenciamento e
despolitização, buscamos iniciativas que desconstroem os consensos acerca das
relações socioambientais, para reunir informações antes não percebidas e para
entender como o ônus e o benefício da urbanização e do dito “desenvolvimento” são
distribuídos.
REFERÊNCIAS: