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Doi: 10.5212/Emancipacao.v.18i1.

0007

Pobreza e território usado: aproximações às


estratégias de sobrevivência na Região Central
Histórica de Santos

Poverty and geographic space: approximations of


the survival strategies of Historical Central Region
of Santos

Nathália Franco Macedo*


Anita Burth Kurka**

Resumo: Este artigo apresenta uma reflexão sobre as estratégias de sobrevivência


de um grupo de mulheres, atendidas por uma organização socioassistencial e
moradoras da Região Central Histórica de Santos, município do litoral sul de São
Paulo, frente às transformações socioterritorial, geradoras de desigualdade social
e pobreza. Como metodologia optou-se pela abordagem qualitativa, envolvendo
observação de campo, entrevista semi-estruturada e revisão bibliográfica e
documental. Os resultados deste trabalho apontam para o estabelecimento de
uma rede dinâmica e articulada entre os serviços das políticas sociais e a utilização
do território de modo estratégico pela população, na tentativa de dar respostas às
suas demandas e necessidades.
Palavras-chave: Estratégias de Sobrevivência. Pobreza. Transformações
Socioterritoriais.

Abstract: This article presents a reflection on the survival strategies of a group


of women, assisted by a social welfare organization and residents from Historical
Central Region of Santos, a city on the south coast of São Paulo, facing socio -
spatial transformations, generators social inequality and poverty. We, opted for
the qualitative approach methodology, involving field observation, semi-structured
interview, bibliographical and documentary review. The results of this work point
to the establishment of a dynamic and articulated network between the services of
social policies and the use of the territory in a strategic way by the population, in an
attempt to respond to their demands and needs.
Keywords: Survival Strategies. Poverty. Social Space.
Recebido em 04/02/2018. Aceito em 23/03/2018

*
Possui graduação em Serviço Social pela Universidade Federal de São Paulo. Atualmente é estudante de pós-graduação no Programa
de Pós-graduação em Serviço Social e Políticas Sociais da Universidade Federal de São Paulo. E-mail: nframacedo@gmail.com.
Possui doutorado em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestrado em Serviço Social pela Pontifícia
**

Universidade Católica do Rio de Janeiro. Graduação em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense. Professora adjunta
da Universidade Federal de São Paulo-campus Baixada Santista do curso de Serviço Social do Instituto Saúde e Sociedade. E-mail:
anitakurka@gmail.com.

112 Emancipação, Ponta Grossa, 18(1): 112-124, 2018. Disponível em <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/emancipacao>


Pobreza e território usado: aproximações às estratégias de sobrevivência na Região Central...

Introdução ou progressista, se costuram na cultura local e


projetam-se nas ações tomadas pelos grupos
Este artigo tem como objetivo refletir sobre sociais (LINS, 1999).
aspectos da Região Central Histórica de Santos, Atualmente, a região central histórica não
município localizado no litoral sul de São Paulo, abriga pontos específicos, mas uma rede diver-
em suas características históricas e de ocupação sificada de serviços socioassistenciais públicos
do seu território, tendo em vista as estratégias e privados voltada ao atendimento da população.
de sobrevivência de um grupo de mulheres re- Ao mapeá-la em levantamentos anteriores, cons-
sidentes atendidas por uma organização socio- tatamos, contudo, que algumas das mudanças
assistencial. A questão que norteou o campo que ocorrem em seus projetos de atuação po-
investigativo da pesquisa, dando origem a este dem estar relacionadas com as necessidades e
trabalho, ocupou-se das ações dos moradores propostas dos próprios sujeitos atendidos, tendo
da região, que buscam dar respostas às suas em vista suas demandas e necessidades, e não
demandas utilizando-se do território, em um con- somente na intencionalidade unidirecional que
texto de transformações socioespaciais em que regula as propostas caritativas.
as lógicas de mercado geradoras de desigualdade Nesse sentido, relatamos aqui a situação
e pobreza ganham destaque. de um grupo de mulheres, mães, atendidas por
A Região Central Histórica de Santos, com- uma organização socioassistencial1 da região,
posta pelos cinco bairros mais antigos da cidade que frente às mudanças na cidade e nas relações
(Centro, Paquetá, Valongo, Vila Mathias e Vila sociais estabelecidas relatadas acima, passa-
Nova), é lugar de uma paisagem diversificada, ram a solicitar um programa específico capaz de
na qual se localiza a parte mais antiga do Porto acolher e desenvolver um trabalho socioeduca-
de Santos, a linha do trem para escoamento de tivo com seus filhos adolescentes, evitando ou
carga, contêineres empilhados e empresas de diminuindo sua permanência nas ruas durante
exportação que se mesclam, durante o dia, com o período de atividades cotidianas das mães e,
o centro de comércio formal e informal. Durante consequentemente, possíveis envolvimentos com
a noite, pela diminuição da atividade portuária o tráfico de drogas local, que costuma servir-se
e do comércio, sobressaem as movimentações de jovens meninos como “aviãozinho2”.
relacionadas a prostituição e ao tráfico de drogas, Observa-se, portanto, que as necessidades
bem como ganham evidência a população em da população atendida refletem no processo de
situação de rua e moradores locais. Trata-se de formação, estabelecimento e atuação da orga-
uma região constituída por casarões antigos, nização socioassistencial em foco, revelando-se
construídos pela elite santista no início do século como expressões da Questão Social3, como a
XX antes de sua migração para região da Orla, pobreza o trabalho infantil associado ao tráfico
apropriados posteriormente por parte da popu- de drogas e a prostituição.
lação em condições de pobreza, formando um Estas expressões, portanto, estão relacio-
aglomerado de cortiços insalubres. nadas com as transformações socioterritoriais
A expressão “à pátria ensinamos a liberda- ocorridas durante a urbanização e expansão da
de e a caridade”, inscrita no brasão de municí- cidade de Santos, e as implicações nas novas
pio, é representativa do processo subsequente dinâmicas de mercado das relações sociais e eco-
à urbanização da Orla e ocupação da região nômicas estabelecidas. Em decorrência percebe-
central histórica por populações vulneráveis a -se o acirramento da desigualdade socioespacial
riscos sociais e revela, por um lado, a presença
e força dos ideias de caridade na construção da
cidade pela elite santista e no estabelecimento 1
Por razões éticas o nome não será revelado.

de instituições filantrópicas, e por outro, ainda 2


Termo empregado, na linguagem local, para se referir à pessoa
que em aparente contradição, a assimilação das que faz a mediação ou o transporte da droga entre o comprador
lutas, resistências, movimentos progressistas e e o traficante.

a participação dos cidadãos nas mais diferentes 3


A questão social é entendida como expressão do conjunto de
épocas em busca da transformação da cidade. desigualdades e exploração de uma classe social pela outra,
As intervenções, sejam elas de caráter caritativo engendradas pelas relações de produção (capital/trabalho)
constitutivas do capitalismo (NETO, 2001).

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assim como novas demandas e oportunidades Pobreza e Urbanização


oferecidas pelas políticas públicas, como por
exemplo a inserção de pessoas de baixa renda Entender a pobreza pressupõe o movimen-
no sistema de ensino superior público e privado, to indispensável de conhecê-la para além do cam-
através do Sistema de Seleção Unificada (SISU) po estatístico e econômico. É necessário tomá-la
Programa Universidade Para Todos (PROUNI) como uma questão historicamente determinada,
e Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) a na qual sua medida só pode ser dada através da
partir de 2004. explicitação dos projetos sociais e econômicos
Percebe-se que o público atendido nas que a sociedade elege como prioridade na atu-
organizações, moradores da região, antes de alidade (SANTOS, 2013).
constituírem um grupo homogêneo, coeso e es- Os conceitos e recursos teóricos e técnicos
tático preconizado pela ideologia da vida em utilizados para a compreensão da pobreza deve-
comunidade e nas justificativas das ações assis- riam ser dinâmicos e articulados entre si, dado
tencialistas e de ajuda, é marcado por processos que isoladamente não dão conta da discussão.
socioterritoriais complexos, que geram mudanças A noção de pobreza não pode ser única e imutá-
do ponto de vista econômico, político e cultural. vel, mas demanda um conjunto de articulações
Deste modo, frente ao que foi apresentado, teóricas que nos aproximem da realidade nos
adotamos como principal referencial teórico a territórios. Pois “os recursos postos à disposição
discussão sobre pobreza realizada por Santos do homem, em termos de sua posição em escala
(2013), Silva (2010) e Yazbek (2012); a discus- social, mudam com o tempo e lugar” (SANTOS,
são sobre urbanização brasileira realizada por 2013, p 17).
Maricato (1996) e Santos (2005); a concepção A concepção de pobreza adotada neste
teórica sobre território proposta por Santos (2017) artigo leva em conta sua compreensão enquanto
e os estudos sobre a ação e desenvolvimento uma expressão da questão social, que por sua
local elaborado por Zaoual (2006), Ribeiro (2013) vez, pode ser tomada como o conjunto de expres-
e Sawaia (2001). sões da desigualdade social gerada e alimentada
Como metodologia de pesquisa realizamos pelo modelo de produção capitalista. Sua causa
um levantamento bibliográfico e documental so- principal é o conflito entre capital e trabalho que
bre a Região Central Histórica de Santos para advém do processo de produção cada vez mais
analisar suas transformações socioterritoriais coletivo e que tem o produto final monopolizado
e identificar a relação destas com as principais e privatizado pelas classes detentoras dos meios
demandas da população. Também realizamos de produção (IAMAMOTO, 1998) .
observações de campo sistematizadas e uma Deste modo, a pobreza é um fenômeno
entrevista semiestruturada com a assistente complexo, multidimensional e estrutural em uma
social da organização sócio-assistencial citada sociedade capitalista na qual o sistema de produ-
anteriormente. ção se institui na e pela expropriação e explora-
Este artigo está estruturado em três partes: ção da força de trabalho. O capitalismo para sua
1. Pobreza e Urbanização que procura traçar uma reprodução reparte o produto de modo desigual
discussão sobre a pobreza e sua relação com entre as classes sociais, instituindo um processo
os processos da urbanização brasileira; 2. Ação, excludente que gera, reproduz e faz a manuten-
Território Usado e práticas sociais, que busca ção da pobreza (SILVA, 2010). Pode-se dizer,
compreender a relação entre ação e território, contudo, que a pobreza não se resume apenas
situando a importância desta articulação para à privação de bens materiais, mas também a
movimentos de resistência; por fim, 3. Algumas privação ou a “carência de direitos, de oportuni-
aproximações sobre as estratégias de sobrevi- dades, de informações, de possibilidades e de
vência dos moradores da Região Central Histórica esperanças” (MARTINS, apud YAZBEK, 2012 p
de Santos frente à pobreza e transformações 03). Enquanto forma de inserção na vida social,
socioterritoriais, com uma proposta de articula- a pobreza não pode ser naturalizada, mas deve
ção entre o campo teórico-conceitual e os dados ser pensada historicamente e socialmente cons-
obtidos em campo. truída em torno da desigualdade e de relações
de gênero, raça, classe, etnia (YAZBEK, 2012).

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A pobreza pode também ser analisada, em latifúndios e favorece o crescimento da especu-


conjunto com as relações de produção capitalis- lação imobiliária em determinados espaços do
tas, diante do modelo espacial de urbanização meio urbano, estabelecendo relações territoriais
brasileira. Durante séculos o Brasil foi um país de extrema desigualdade social (SILVA 2010).
marcado por uma estrutura agrícola. Nosso pro- As cidades brasileiras, desde sua gênese,
cesso de urbanização se constituiu de forma têm uma tendência de ordenamento que passa
seletiva, na qual os primeiros centros urbanos por acordos entre o Mercado e o Estado, em
surgiram na região litorânea, em específico no que a lógica do primeiro e suas necessidades
nordeste do país. Este quadro começa a sofrer de ampliação do consumo se sobressaem. Tal
mudanças significativas na segunda metade do movimento institui uma estrutura física de distri-
século XIX, com o crescimento da produção de buição de recursos e serviços desigual, gerando
café, que para além de tornar o estado de São e contribuindo para a manutenção da pobreza e
Paulo um grande polo produtivo, também de- impedindo, por vezes, o acesso da população aos
mandou a implantação de meios técnicos para seus direitos (SANTOS, 2005). Trata-se de uma
agilizar o escoamento da mercadoria, como as urbanização e seu gerenciamento a serviço da
estradas de ferro, a modernização dos portos e a especulação econômica, que carrega como prin-
criação de meios de comunicação. Sob incentivo cipal contradição uma urbanização desordenada
do Estado, têm início grandes transformações nas periferias das cidades e o adensamento das
nas cidades para adaptá-las às necessidades expressões da questão social, como a pobreza,
de administração e exportação que o mercado para as populações que nelas habitam.
agrícola exigia na época. Estas transformações Entretanto, as cidades também são agluti-
instituíram uma nova fluidez ao território bra- nadoras de lugares que carregam possibilidades
sileiro, que somada à abolição da escravidão de resistências manifestadas a partir das ações
e emergência da mão-de-obra livre, contribuiu humanas políticas, sejam elas organizadas ou de
para a chegada de outras formas capitalistas caráter de sobrevivência, focalizadas na resolu-
de produção, trabalho e consumo, facilitando a ção de necessidades tidas como individuais. Com
expansão urbana (SANTOS, 2005; MARICATO, essa percepção, faz-se importante desdobrar as
1996). relações entre território e ação, buscando cami-
Assim, no início do século XX, as cidades nhos para melhor compreender as resoluções
brasileiras eram vistas como sinônimo de avanço elaboradas pelos sujeitos diante das necessi-
e modernidade, carregando em si a promessa de dades e demandas concretas por eles vividas.
um desenvolvimento nacional com expectativa
de superação da herança colonial e da escra- Ação, Território usado e práticas sociais
vidão. Em 1930, o Estado brasileiro começa a
incentivar a industrialização, a construção de A ação ultrapassa uma compreensão in-
uma infraestrutura própria e outras medidas que dividual, e ganha contornos mais densos como
somadas à regulamentação do trabalho urba- estratégia política. Nesse sentido, para Ribeiro
no e o desprezo pelas relações trabalhistas do (2003), pensar a ação política como estratégia de-
campo, reforçaram o movimento migratório da manda uma relação com o uso do território como
população para a cidade. O futuro estava na ci- espaço das relações construídas pela sociedade.
dade. Entretanto, este futuro revelou-se, no final Aqui, estreitamos o diálogo com a geografia
do século XX, em uma associação das cidades humana de Milton Santos (2017), que indica uma
brasileira com a violência, poluição, enchentes, forma de análise do território e da sociedade,
extensas áreas de concentração de pobreza, que rejeita a noção clássica da dimensão física
população em situação de rua, dentre outras do espaço, dando ênfase para sua constituição
características próprias de um desenvolvimento pela via dos usos feitos pelos sujeitos, através
desigual (MARICATO, 2003). das relações e dinâmicas sociais estabelecidas.
Portanto, a pobreza no Brasil também é Portanto, trata-se de analisar o espaço geográ-
uma consequência de um desenvolvimento na- fico, o território usado, como um conjunto in-
cional que centraliza toda riqueza socialmente dissociável de sistemas de objetos, instituídos
produzida, detém uma grande concentração de historicamente pela humanidade ou os naturais,

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e sistemas de ação, que se refere ao campo dos e pela expulsão de populações. Entretanto, o
projetos, intenções e transformações. desenvolvimento local é uma noção na qual seus
Em outras palavras, o território é composto conteúdos estão em disputa por diferentes inte-
por objetos construídos pelos seres humanos resses, sejam eles econômicos, políticos, pelos
como os cortiços, empresas, porto, ruas e ave- mediadores do tecido social juntamente com a
nidas, no caso da Região Central Histórica de administração pública, como no caso de organi-
Santos, e objetos naturais, morros, mangue e zações socioassistenciais, igrejas, movimentos
mar, elementos que compõe a relevo natural. Os sociais, partidos, sindicatos, entre outros.
objetos irão estabelecer uma relação sistêmica Para uma melhor compreensão a respeito
indissociável com a ação, intencionalidade hu- desta disputa é necessário compreender a histo-
mana que conferem usos sobre a cidade, e irão ricidade dos lugares e das transformações que os
compor a esfera social em suas contradições e diferentes projetos provocam. Para isso Hassan
desigualdades socioespaciais. Zaoual (2006) trabalha com aspecto simbólico do
Nenhuma abordagem sobre território pode local, que escapa, por vezes, às análises que o
deixar de considerar as peculiaridades do sistema tomam apenas em sua dimensão socioeconô-
capitalista: o mercado, na ocupação e distribuição mica. São exemplos desse aspecto simbólico
socioespacial das populações; a centralidade do as práticas dos sujeitos em sua relação com os
trabalho; a influência política das instituições e do mitos fundadores, os valores partilhados, os so-
Estado. Nesse sentido o território usado também frimentos, as experiências e revoluções do grupo
deve ser analisado enquanto um campo de forças humano que ali habita. Estão presentes também
contraditórias em constante embate, atravessado os conhecimentos comuns, empíricos ou teóricos,
pelas mais diversas intencionalidades das esferas organizados como modelos de comportamento
políticas, econômicas e sociais. Ou seja, como e de ação.
uma arena onde Estado, mercado e sociedade Os lugares são uma concepção evolutiva
civil se opõem, disputam ou compartilham recur- do mundo, no qual são feitas as seleções de
sos e informações (SOUZA, 2001). elementos que chegam de fora para relacionar-
À essas relações contraditórias, Santos -se com o que já existe na tradição, contribuindo
(2017) irá apontar a coexistência de horizontali- para a efetivação de práticas locais. Sendo as-
dades e verticalidades. As horizontalidades são sim, projetos e planejamentos que chegam aos
as contiguidades das relações dentro do território, lugares, sejam a partir de uma lógica global sem
que constituirão a base da vida comum, enquanto articulação com as dinâmicas locais ou sejam
que as verticalidades são desordenadas, pontos pela lógica de desenvolvimento local, passam
distantes uns dos outros instalados em regiões, por uma seleção através da ética dos lugares,
ligados aos serviços e interesses do mercado filtrando elementos que podem ser utilizados
que tendem, através da exploração de recursos, e adaptados para a renovação e avanço local,
a desgastar as horizontalidades e contribuir para contribuindo para a resolução de problemas co-
o adensamento da pobreza e outras expressões tidianos (ZAOUAL, 2006).
da questão social. A partir do discutido e da tentativa de evi-
Para Ribeiro (2013), no caso do Brasil e denciar as contradições e dinâmicas locais, pode-
de outros países periféricos, as lógicas globais -se dizer que existe nos lugares do território certa
que se impõem sobre os lugares, sem qualquer arte, “a arte de ‘resolver’ a vida” nas palavras de
relação com a população, acabaram por tornar Ribeiro (2013, pg.118). Esta, apesar de conter
cada vez mais distante um projeto efetivo de elementos que evidenciam a desigualdade da
desenvolvimento nacional. Portanto, existe nas sociedade, sem dúvida indica possibilidades de
últimas décadas uma tentativa de elaboração construção da autonomia dos sujeitos, que ela-
de projetos para superar esta problemática: o boram suas liberdades e criam estratégias diante
desenvolvimento local. Trata-se uma recusa às da vida. Desta forma, a luta contra a desigualdade
lógicas de desenvolvimento que não se relacio- pode se somar com a resistência e solidariedade
nam com a vida local e que historicamente foram dos habitantes que constroem o lugar.
responsáveis pela extinção de culturas e sabe- Cada ação humana possui uma intencio-
res locais, pela exaustão de recursos naturais nalidade e um conjunto de valores reveladores

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da expectativa que lhe confere significado e, por maior ou menor potência de ação, a depender
fim, delimitam as possibilidades de decisão na das mediações sociais [...] sua condição de
vida diária. Nessa perspectiva a vontade não é existência é relacionar-se e ser configurado
descartada enquanto um componente da ação. A pelas mediações sociais” (SAWAIA, 2001 p.
122).
vontade, articulada a condições e necessidades,
gera demandas e projetos no coletivo, criando A seguir, à luz do referencial teórico, procu-
raremos realizar aproximações reflexivas que
possibilidades para a ação transformadora, o
apontam para uma análise das estratégias de
que complexifica sua compreensão, inserindo
sobrevivência como ação dos sujeitos, mora-
na relação entre demandas e projetos coletivos, dores da região da cidade.
os afetos como mais um componente (RIBEIRO,
2015; GRAMSCI apud KURKA, 2008).
Sawaia (2001), em diálogo com o filósofo Algumas aproximações sobre as
Espinosa, propõe que cada ação, seja individual estratégias de sobrevivência dos
ou coletiva, contém também um componente moradores da Região Central Histórica de
afetivo. O afeto é, portanto, determinante na cons- Santos frente à pobreza e transformações
trução de valores éticos. Deste modo, tomando socioterritoriais.
a participação como uma das faces da ação po-
lítica, entender que a vontade e a subjetividade4 A Vila de Santos se inicia na metade do
são inerentes à ação, é aceitar que agir é uma Século XVI e até o final do sec. XVIII pouco se
necessidade do sujeito e “é imanente da condição expandiu. Seu desenvolvimento se deu basica-
humana”, pois “é a paixão que leva os homens mente pela economia de subsistência, tornando a
comporem com outros homens” (ibidem, p. 123). região menos valorizada para a exportação. Por
Neste sentido o sujeito é o sujeito da paixão essas razões, segundo registros resgatados por
e do afeto, que sente o mundo e o interpreta nos Mello (2008) a vila de Santos era pouco povoada
diferentes modos de participar na sociedade. e tinha pouca importância econômica, o porto de
O que o impulsiona é também o desejo de ma- Santos, sendo constituído de trapiches, servia
ximizar sua potência de ação, o desejo de ser como um “apêndice” do porto do Rio de Janeiro.
livre e feliz5. O crescimento e a urbanização de Santos
Estas reflexões nos levam a pensar em se intensifica quando a economia cafeeira passa
um sujeito que se constrói em suas relações, a ser valorizada e a região sudeste começa a ser
que não é único, determinado, nem universal ou o centro das lavouras de café. Por demanda para
a-histórico, mas situado relacionalmente no lugar o escoamento do café do planalto, Santos passa
e atravessado por processos históricos, sociais, a ser o principal foco de exportação, exigindo uma
econômicos e culturais. Portanto, a produção de expansão e modernização o porto. Durante os
um sujeito é inseparável das marcas sociais, pois: anos de 1856 a 1859, inicia-se um estudo para
a implantação de uma malha ferroviária ligando
“O sujeito não é desencarnado, um ponto de Santos ao Planalto e em 1867-1868 é inaugurada
ocorrência das contingências sociais que mo- a estrada de ferro Santos x Jundiaí, conhecida
bilizam a participação social, ele é um sujeito como São Paulo Railway. O processo de valoriza-
de carne e osso, que se apropria delas, com
ção, a implementação da ferrovia e modernização
do porto provocou uma explosão populacional
entre os anos de 1890 e 1900, multiplicando por
4
Subjetividade e objetividade são entendidas aqui como parte de
uma mesma substância que irá constituir o sujeito. Neste sentido a
cinco o número de habitantes da cidade em dez
subjetividade não é mais compreendida como algo incontrolável do anos, chegando à 50.393, representando 93%
campo das emoções, paixões e afetividade que deve ser negada do total da população que existia nas cidades de
para uma maior efetividade da ação.
Santos e São Vicente. Para além da valorização
5
Para autores espinosanos o ser humano que usa sua razão da cidade como um polo de exportação, vale
de modo adequado é aquele que busca a maximização de sua pontuar que o crescimento populacional também
potência, de modo que a paixão é transformada em ação para
tornar-se livre. A felicidade é, portanto, compreendida enquanto se deve às atividades abolicionistas que existi-
sinônimo da liberdade, que pode ser alcançada a partir do uso ram na região, contando com dois quilombos:
adequado da razão, na busca da transformação dos desejos e
paixões em ação (LIMA, 2008).
Jabaquara, situado no bairro do Valongo e o Pai

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Nathália Franco Macedo e Anita Burth Kurka

Felipe, situado na Vila Mathias. Estima-se que classes, com as elites habitando a orla da praia
entre o período de 1890-1900, cerca de 2.000 e a decadência da economia cafeeira, a Região
pessoas, população negra e indígena recém abo- Central Histórica começa a perder sua importân-
lida, estavam na região (MELLO, 2008; SANTOS, cia econômica.
2007; ROSEMBERG, 2004). Um ponto importante a salientar aqui é
Em 1911 ocorre a ampliação da Estrada de que existe pouca bibliografia sobre a região no
Ferro Brazilian Railway ligando a cidade também período da ditadura militar (1964-1985), sendo
a região sul do país, e em 1922 é inaugurada que o que se encontra disponível são algumas
a Bolsa do Café, consolidando a cidade como produções sobre o desenvolvimento do porto e
um grande centro comercial. Entretanto o cres- crônicas sobre a chamada zona (Boca de Santos)
cimento da cidade de Santos, com o aumento e a prostituição. Em 1964, ano da instituição da
populacional se deu com um olhar insignificante Ditadura Militar, Santos não declarou apoio às
para mudanças sanitárias necessárias. A estrutu- forças recém empossadas do Estado Ditatorial
ra urbana e a característica de mangue e áreas devido à forte resistência do movimento sindica-
pantanosas da região facilitaram o alastramento lista local. A cidade tornou-se área de segurança
de várias epidemias como cólera, febre amarela, nacional, não podendo eleger seus prefeitos de-
varíola e tuberculose vindas pelos navios que mocraticamente até o ano de 1985.
chegavam (MELLO, 2008). Em 1970, o porto recebe investimento
O crescimento urbano também reforçou para a construção do corredor de exportação.
medidas segregacionistas no zoneamento dos Começam a se instalar empresas como COSIPA
novos bairros, Carriço (2012) em diálogo com e ULTRAFÉRTIL no final do cais com terminais de
Rolnik irá chamar esse movimento de “muralhas embarcação próprios. No mesmo período é inau-
invisíveis” no qual a demarcação eficaz de um gurada uma nova estrada para comunicação da
território social é orientada pelo preço das terras região com o planalto, a Rodovia dos Imigrantes,
regulando o acesso aos loteamentos. que acabou por ligar também com outros estados
Assim, como aponta Mello (2008), ao lon- como Rio de Janeiro e a Região Sul do país. A
go da primeira metade do século XX a Região industrialização, obras no porto e o crescente
Central, apesar de ainda ser uma região rica em mercado imobiliário na cidade de Santos atraíram
comércio, foi sofrendo um processo de substitui- trabalhadores com baixa qualificação e pouca
ção de classes sociais. As elites com o aumento renda, impossibilitados de acessar o perímetro
populacional já estavam se afastando para bairros burguês da cidade, iniciou-se um processo de
contíguos como Vila Nova e Vila Mathias. Com ocupação de áreas ambientais frágeis por favelas
a pouca efetividade do controle das epidemias, e o adensamento dos cortiços na Região Central
começaram a se distanciar ainda mais da região Histórica (CARRIÇO, 2002; CARRIÇO, 2004).
portuária, iniciando o processo de urbanização Portanto, entre as décadas de 1930 e
da orla marítima, também sustentado pelo ideal 1940 até início dos anos 2000, a Região Central
estético europeu de vista para o mar trazido pelo Histórica de Santos esteve fora da atenção da
capital estrangeiro que chegava na cidade. prefeitura e do percurso de parte da sociedade
Em 1929 houve a quebra da Bolsa de Nova santista, exceto por algumas intervenções e traba-
York e os efeitos da crise foram sentidos pela lhos durante a década de 80-90. Com esse aban-
população santista em 1931 quando, por iniciativa dono, acentuou-se a pobreza, a periculosidade,
do Conselho Nacional do Café em conjunto com as zonas de prostituição, o tráfico e consumo de
o Governo, se deu a incineração de toneladas drogas, e há um aumento de cortiços, trabalho
de café na região do porto. Esses fatos estão infantil e demais características que marcam a
documentados nas nos jornais que circulavam na região ainda hoje (KURKA et al. 2013).
época como A Tribuna (1931) e a Folha da Manhã Como Araújo e Pereira (2008) assinalam
(1931). Esta última chegou a narrar a decadência os antigos casarões que eram habitados pelas
da economia cafeeira e o “sufocamento da praça famílias ricas, perdem seu valor imobiliário, pas-
do comércio de Santos”. sando a ser sublocados por diversas famílias.
A crise de 1929 e seus efeitos podem ser Inicia-se então um lento processo de aglomeração
considerados o marco final da substituição de de habitações coletivas, os famosos cortiços,

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Pobreza e território usado: aproximações às estratégias de sobrevivência na Região Central...

que permanecem como parte viva da história projeto de higienização do espaço que implica
da região. A entrevistada, em um trecho, relata na expulsão de pessoas e atividade que não se
as dificuldades no que tange morar dentro das enquadram na nova organização do espaço que
habitações coletivas. segue às ordens da economia global.
Frente às dificuldades de habitar um cortiço
“Posso dizer que hoje é mais gritante a ques-
e ao projeto de revalorização da região que acaba
tão habitação porque tem cortiço aqui que é
esse espaço [metade de um quarto] e eles por aumentar a especulação imobiliária, surgem
cobram 600 reais. O banheiro é coletivo, as movimentos organizados na luta por moradia, que
vezes até falta água e luz, ficam nessa situa- se revelam uma estratégia coletiva em busca de
ção.” (Entrevista com a Assistente Social rea- solucionar o problema de moradia.
lizada no dia 25 de novembro de 2016) Desta forma, a luta por moradia no centro
de Santos teve início em 1996 com a fundação
Para além da exploração dos locatários da Associação de Cortiços do Centro (ACC). A
das casas sobre as famílias, existe também a primeira mobilização da ACC ocorre em 2001,
insalubridade. quando o governo do Estado de São Paulo pro-
“[...] as mães que frequentam a organização move através da Companhia de Desenvolvimento
colocam muito questões referentes à habita- Habitacional e Urbano (CDHU) o Programa de
ção, por que estão pagando para os outros e Atuação em Cortiços (PAC-CDHU). O programa
as vezes tem umidade, e outros problemas. visava a construção de 600 moradias no centro
Se consertam elas perdem o pouco dinheiro histórico entre 2001 e 2006, entretanto foi des-
que tem, o dono da casa fala que se refor- continuado, deixando apenas 113 unidades cons-
mar é por conta delas, ele não desconta do truídas. A descontinuidade do PAC-CDHU levou
aluguel.” (Entrevista com a Assistente Social
a associação a buscar, através da autogestão,
realizada no dia 25 de novembro de 2016)
formas de assegurar a moradia digna para os
Em fevereiro de 2003 a Prefeitura Municipal habitantes da região (CENTRO GASPAR GARCIA
deu início ao programa Alegra Centro6, buscando DE DIREITOS HUMANOS, 2012).
aperfeiçoar as áreas já estruturadas e melhorar A entrevistada comenta sobre a organiza-
a infraestrutura urbana para adequar a região ção autogestionada dos moradores:
frente a modernização da cidade.
“...se organizaram um tempo por causa da
Malavski (2011) aponta que as intervenções habitação, tanto que elas tinham um dia na
municipais e seus programas de revitalização, semana que diziam que tinham que ir para a
ao carregar um paradigma empresarial, trans- obra fazer um mutirão, não sei te responder
formam parte da Região Central Histórica em o que foi que aconteceu, de repente isso su-
uma mercadoria inserida no circuito da economia miu, elas mesmas se sentiram frustradas. ”
global. Realiza-se um processo de (re)valorização (Entrevista com a Assistente Social realizada
que acabam por garantir a “venda” deste espaço no dia 25 de novembro de 2016)
para iniciativas dos setores privados, de cultura
Em 2005 a Associação de Cortiços do
e lazer. Com isso há também um reforço de um
Centro organizou a Comissão de Habitação, que
tinha como principal responsabilidade “conhecer
6
Lei Complementar nº 470 de 05 de fevereiro de 2003 que
experiências de outros movimentos de moradia e
cria o programa Alegra Centro em seu Art. 5º discorre sobre buscar parcerias para viabilizar empreendimento
seus objetivos: “I – promover intervenções urbanas na área habitacional com autogestão” (CENTRO GASPAR
de abrangência visando melhoria na paisagem urbana; II –
criar incentivos fiscais para investidores privados interessados GARCIA DE DIREITOS HUMANOS, 2012, p.65).
em recuperar ou conservar os imóveis instalados na área de Com isso a associação estabelece parceria com a
abrangência; III – promover a preservação e recuperação do
Ambienta - Assessoria e Desenvolvimento Local,
meio ambiente construído, do patrimônio cultural, histórico,
artístico e paisagístico; IV - desenvolver ações que potencializem a organização que presta assessoria para mo-
implantação de atividades econômicas, turísticas e culturais na área vimentos de moradia. Inicia-se a construção,
de abrangência; V – (VETADO) VI – incentivar a implantação de
comércio varejista de qualquer natureza e prestações de serviços
através de mutirões, de um conjunto habitacional
nos logradouros públicos destinados para funcionamento destes em um terreno concedido pela Secretaria do
estabelecimentos pelo período de 24 (vinte e quatro) horas nas
áreas de abrangência.”

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Nathália Franco Macedo e Anita Burth Kurka

Patrimônio da União. Entretanto, atualmente as que existe mais vida nesta parte da cidade do
obras encontram-se paralisadas. que eu imaginava, puxei mais assunto com o
vendedor: para quem você vende de dia e a
noite?, “ah a noite eu vendo para caminhonei-
Trabalho e Renda
ros, prostitutas, para qualquer um que passa
Santos apresenta índices de desenvolvi- na rua; durante o dia as pessoas estão cor-
mento comparáveis aos dos países europeus, rendo e não notam a minha presença. (trecho
do diário de campo, do dia 26 de novembro
como por exemplo, sua pirâmide etária com um
de 2016).
desenho invertido representando a queda das ta-
xas de natalidade e mortalidade do e um aumento Em relação às mulheres atendidas pela
da população idosa. Ainda assim, estes indica- assistente social da organização socioassistencial
dores analisados de modo geral não conseguem localizada no bairro Vila Nova, a entrevistada re-
dar conta da realidade das regiões mais pobres lata os desafios implicados na responsabilidade
da cidade como os Morros, Zona Noroeste e a de ser mãe, na ausência de redes de suporte e
Região Central Histórica. Dados do Diagnóstico ajuda para criação dos filhos, e as dificuldades do
Socioterritorial do Município de Santos (2014) trabalho noturno informal como ambulante. Dessa
apontam que estas regiões ainda concentram forma, se desenha uma rede informal composta
baixas taxas de envelhecimento e altas taxas por mulheres que assumem, em troca de dinheiro,
de nascimento, bem como uma grande parcela a responsabilidade de cuidado temporário dos
da população ainda em idade produtiva e em filhos de outras mulheres; estratégia forjada na
condições de pobreza e trabalho informal. relação entre os sujeitos habitantes do local e
Ao analisar os dados do referido Diagnóstico que reflete a necessidade de obter renda diante
sobre as entradas de famílias nos Centros de da falta de um emprego estável.
Referência da Assistência Social (CRAS) da ci-
dade, é possível apontar que o CRAS-Centro “As mães, a maioria delas, é mãe e pai, e aí
elas não tinham com quem deixar os filhos e
concentra o maior número de registros ativos,
ficavam desesperadas para pode trabalhar,
com um total de 3.161 famílias, totalizando 10.352
fora o absurdo do valor que eles [vizinhos]
pessoas. A renda per capita inferior ou igual a cobravam, R$ 25 reais por criança, para ficar
setenta reais compõe a realidade de 70% das com elas. E ai, como é que ficavam essas
famílias da região. mães? Trabalhando e trabalhando apenas
A partir da observação de campo, percebe- para pagar alguém para cuidar dos filhos.”
mos que o centro de Santos possui um grande (Entrevista com a Assistente Social realizada
número de estabelecimentos comerciais onde os no dia 25 de novembro de 2016).
trabalhadores são moradores de outras regiões e
Entre as décadas de 1930 a 1970 iniciou
cidades vizinhas. Em diálogos espontâneos na
na região uma forte movimentação noturna, com
rua, foi possível entrar em contato com sujeitos
as casas de shows conhecidas pelos teatros de
moradores da região que relataram sua trajetória
cabaré e pelas propagandas como “served by
e conhecimento dos fluxos cotidianos, através
girls”. Crônicas publicadas no jornal A Tribuna
do trabalho informal7 no comércio ambulante.
por Bandeira Junior (1962) mapeiam a região
[...] no bairro Paquetá, um senhor vendedor que ficou conhecida como “Boca de Santos” (em
ambulante, comentou “parece que não, mas referência à famosa Boca do Lixo de São Paulo)
vendo mais a noite, de madrugada, do que que se estende do início ao fim da Rua General
de dia!”, perguntei: é mesmo, e o que o se- Câmara no bairro Paquetá, ocupando pequenas
nhor vende?, “chup chup natural, já fiz 60 re- ruas adjacentes. Facilitado pela região portuária,
ais por aqui andando ao redor, vendo por 1
tratava-se de um comércio diverso de restauran-
real e acredita, que faturo mais a noite que de
dia?”, fiquei parada por um tempo refletindo
tes, bares, casas de shows e discretos bordéis
que atraiam a população da cidade, de outras
partes do país e de imigrantes que chegavam
7
Autores como Martins (1998) e Santos (1992) realizaram
na década de 1990 trabalhos de pesquisa com moradores e
nos navios do porto. A movimentação da Boca de
trabalhadores informais, como carrinheiros e prostitutas, na Região Santos colaborou para a instituição da prostituição
Central Histórica.

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Pobreza e território usado: aproximações às estratégias de sobrevivência na Região Central...

na Região Central Histórica de Santos. Estes aqui, sendo cuidados, e elas podem apro-
fatos, hoje, fazem parte da narrativa histórica veitar para estudar. Com o estudo elas viram
presente no cotidiano das famílias. outras oportunidades que ninguém nunca ofe-
Esta população que trabalha no circuito receu, a não ser como trabalhadora do sexo.”
(Entrevista com a Assistente Social realizada
informal da prostituição apresenta características
no dia 25 de novembro de 2016).
e demandas muitas vezes atendidas pelas orga-
nizações assistenciais que as percebem através
do convívio cotidiano na região. Acesso a rede de serviços
“Muitas das trabalhadoras do sexo nunca ti- socioassistenciais
veram nenhuma oportunidade de estudar, a
É possível perceber através de algumas
gente fez parceria com o curso de Educação
falas da entrevistada, a dificuldade de acesso a
para Jovens e Adultos (EJA). Então elas per-
ceberam outras oportunidades e saíram da serviços da rede de atendimento das políticas
rua. De dez mulheres que trabalhavam no pe- sociais como parte do cotidiano das famílias. A
ríodo noturno, só duas continuaram, porque organização socioassistencial, pela proximidade
disseram que era uma função que elas gos- e vínculo com as usuárias no período noturno,
tavam, mas a gente conseguiu que elas pelo acabam atendendo às outras demandas expres-
menos terminassem o ensino médio, porque sas, revelando um grau de escuta singular das
chegaram aqui com o ensino fundamental in- demandas, expressões da questão social.
completo” (Entrevista com a Assistente Social
realizada no dia 25 de novembro de 2016). “Atendemos 50 famílias, fora os avulsos, que
são os antigos que qualquer coisa que preci-
Dados do Diagnóstico Socioterritorial do sam vem, e a gente faz atendimento. Porque
Município de Santos (2014) indicam também que o que acontece, como nosso projeto é notur-
a taxa de trabalho infantil na região, na faixa etária no, depois das 17hr “tu” não tem pra onde cor-
dos 10 aos 13 anos, é a maior da cidade, com rer, ai acabam vindo para cá porque o CRAS
um índice de 3,5%, quase 1% maior do que nas tá fechado, o CREAS tá fechado, o Conselho
outras regiões. Os dados também apontam que a Tutelar agora tá mudando o término do turno
das 18 horas para 19 horas, então qualquer
região tem um dos maiores índices de população
problema acabam parando aqui, porque eu
não-alfabetizada8 da cidade, junto de outras em sempre fico mais próximo ao período noturno.
condições de pobreza e vulnerabilidade social, ” (Entrevista com a Assistente Social realizada
como os Morros e Zona Noroeste. no dia 25 de novembro de 2016).
É possível dizer, a partir da fala da entre-
vistada, que o trabalho infantil na região abrange Chama a atenção que as mulheres inseri-
também a prostituição. Incentivada por mulheres das nos projetos da organização socioassistencial
adultas que também tiveram o mesmo percurso, em foco façam indicações do serviço para seus
a prostituição é naturalizada como possibilidade pares e conhecidos convidando para participar
de projeto de vida e como uma forma de sus- outras mulheres que também necessitam de
tentar a família. Contudo, através da educação orientação e cuidado; movimento este que evi-
outras escolhas e oportunidades podem ser dencia o funcionamento de um diálogo solidário
experienciadas. entre os moradores da região.

“Uma boa parte das mulheres foram iniciadas “Também uma traz a outra quando vem aqui,
na prostituição pelas próprias mães, então ai quando você vai ver.... teve uma época que
elas só conhecem isso como trabalho. Eu tive eu fiz um levantamento, eu atendia mais de
algumas usuárias que fizeram o ensino fun- 100 famílias.”
damental e outras não, eram analfabetas, e
a gente estimulou os estudos. [...] o trabalho Pela entrevista é possível ter uma percep-
delas iniciava a partir das 23hs, mas das 19 ção de que, em certa medida, a organização
às 23 horas tem esse espaço onde filho fica também têm estratégias para o atendimento das
famílias e dialogam entre com as usuárias para
formular melhores respostas aos atendidos, assim
8
De 10.352 pessoas atendidas no CRAS-Centro, 16,13% não são
alfabetizadas, ou seja, cerca de 1.670 pessoas. como a estratégia de manter a “ porta aberta

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Nathália Franco Macedo e Anita Burth Kurka

“, para que a população se utilize do espaço financeiros de sujeitos, com maior poder eco-
quando necessitar. nômico, interessados em obter lucro a partir da
demanda local por moradia, estabelecendo altos
“Com a comunidade no geral é sempre assim,
preços para sublocação de quartos pequenos e
as portas estão abertas, as vezes a gente não
pode ajudar financeiramente ou com alguma insalubres. Entretanto, frente aos problemas de
coisa, mas a gente pode ajudar com uma moradia, é possível encontrar ações coletivas em
orientação da minha parte, um caminho, ligo busca de solucionar o problema, um exemplo é
para o CRAS, as vezes para uma outra insti- o crescimento de movimentos sociais locais que
tuição que pode estar sabendo de algo que a lutam por moradias.
gente não sabe.” (Entrevista com a Assistente Existe na região um déficit educacional, que
Social realizada no dia 25 de novembro de segundo a análise do Diagnóstico Socioterritorial
2016). (2014), colabora para o adensamento das situ-
Diante destas aproximações reflexivas ações de vulnerabilidade. Através dos dados
sobre as estratégias de sobrevivência dos mo- obtidos é possível perceber que parte dos sujeitos
radores da Região Central Histórica de Santos atendidos pela organização socioassistencial tem
frente à pobreza e as transformações socioter- o ensino fundamental incompleto ou não são al-
ritoriais percebemos inúmeras temáticas trans- fabetizados, exercendo trabalhos na prostituição
versais para serem aprofundadas em trabalhos ou no setor informal, como no caso dos vende-
posteriores. dores ambulantes. Esses dados nos aproximam
da realidade do subemprego e exploração da
população local.
Considerações Finais
A rede de serviços públicos e privados so-
O trabalho levantou questões temáticas cioassistenciais da região serve de apoio para os
importantes e complexas sobre os sujeitos que moradores. Se estabelece em certa medida, uma
habitam a Região Central Histórica de Santos, dinâmica entre os moradores e as organizações
assim como sua dinâmica cotidiana, recursos que tentam se aproximar das transformações
disponíveis, necessidades e demandas dos mo- locais. Os serviços podem constituir-se enquan-
radores. Foi possível identificar que as dinâmicas to oportunidades para os sujeitos que habitam
socioterritoriais presentes na região são constitu- na região e que se mobilizam estrategicamente
ídas por projetos individuais e coletivos, muitas para a criação de novas possibilidades de ações,
vezes antagônicos, que se sobrepõe, formando sejam individuais ou coletivas, no enfrentamento
uma relação complexa com dificuldades, opor- das mudanças socioterritoriais.
tunidades e possibilidades que se materializam Se no passado a percepção de um grupo
no lugar. ou organização socioassistencial levava ao en-
No que diz respeito às estratégias de tra- tendimento, preponderantemente, de uma cultura
balho e renda dos sujeitos, é possível observar e ideologia nas suas ações centradas apenas na
um grande campo informal que se desenha como filantropia, hoje a realidade social com suas trans-
uma economia própria do lugar, abrangendo des- formações e a presença de um marco regulatório,
de o comércio ambulante, até a prostituição e como a Política Nacional de Assistência Social
o tráfico de drogas. O setor informal é utilizado (PNAS), influencia estas mesmas organizações
enquanto uma possibilidade dos sujeitos se sus- à uma outra postura. Nesta situação relatada, o
tentarem no lugar, assim como uma estratégia público atendido é acolhido também na percep-
para sobreviver à pobreza e mudanças na re- ção das suas demandas e intencionalidades,
gião operadas a partir de interesses econômicos possibilitando o fortalecimento de vínculos entre
descolados da dinâmica das vidas locais, muitas a população, organização socioassistencial e
vezes atrelados ao porto de Santos e ao turismo território.
nas praias.
Sobre a questão da habitação, vê-se que Referências Bibliográficas
os cortiços são moradias historicamente popu-
ARAUJO, Larissa Oliveira Gonçalves de; PEREIRA,
lares utilizados como estratégias para ganhos
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122 Emancipação, Ponta Grossa, 18(1): 112-124, 2018. Disponível em <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/emancipacao>


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