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A Construção de uma Reflexão em Sociologia Política

Luis Estenssoro1

A ciência é a crítica da realidade. O conhecimento científico procura as causas


dos acontecimentos e busca compreender e explicar a realidade apresentando os fatores que
determinam a existência do evento, fato social ou fenômeno (objeto em estudo). Por um
lado, a ciência é uma forma sistematicamente organizada de pensamento objetivo. Neste
sentido, deve-se garantir, na pesquisa, a generalidade do conhecimento científico, isto é,
sua validade em outras situações. A pesquisa é, assim, a ação de se propor um projeto de
conhecimento e empreender as atividades que conduzam a esse conhecimento de maneira
científica, isto é, por meio da objetividade e da sistematização de informações
fragmentadas. Por outro lado, a ciência é também resultado de um processo social. Deve-se
proceder à divulgação dos resultados da investigação para que tenha lugar o exercício da
intersubjetividade na esfera pública, ou seja, aconteça uma discussão pública da pesquisa
científica. Desta forma, conhecer os fatos e as relações entre eles é uma atividade que se
desenvolve no grupo e que recebe condicionamentos sociais. Por causa desta necessidade
de discussão pública dos resultados do processo de observação, análise e interpretação feito
pelo cientista, este deve contar como chegou a eles, evidenciando qual caminho seguiu para
obter esses resultados, isto é, relatando o método científico utilizado, bem como os motivos
para seguir estes caminhos e não outros.

As tendências metodológicas no processo de produção do conhecimento, que


implicam diferentes visões da ciência, são objeto da epistemologia, estudo das diferenças
nos modos de entender e produzir o conhecimento científico. Não nos aprofundaremos
neste campo, pois temos aqui uma preocupação mais modesta que se trata da discussão
sobre os pressupostos e requisitos para a construção de uma reflexão em sociologia política,
mas, inicialmente, contextualizaremos esta nossa abordagem.

Superando a dicotomia entre o empirismo de Bacon e Locke, que cuida dos


problemas da indução científica baseada na experiência sensorial, e o racionalismo de
Descartes e Leibniz, que se preocupa com a dedução científica baseada no primado da

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Administrador Público pela FGV de São Paulo, Mestre em Integração da América Latina e Doutor em
Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP).
razão sobre a experiência sensorial, surge o interacionismo enquanto entendimento do
conhecimento como uma relação entre o homem (sujeito que se propõe conhecer algo) e
algum aspecto da realidade (objeto a ser conhecido). Construído a partir do discurso da
modernidade iniciado por Hegel, o interacionismo afirma que o conhecimento é produzido
no quadro da interação entre sujeito e objeto, sendo o produto da ciência, portanto, um
resultado de inter-relações do sujeito com a realidade a partir de práticas sociais (a prática
da ciência, entendida como ação social). Ora, enquanto prática social, a ciência está sujeita
a pressupostos da cultura e da ideologia predominantes na sociedade em dado momento
histórico. A compreensão do conhecimento como sendo historicamente determinado passa
a questionar a neutralidade científica, pondo em dúvida a objetividade da ciência.

Este entendimento questiona nas suas bases o positivismo inaugurado por


Comte, segundo o qual a sociedade é um fenômeno natural, evolutivo, e sujeito a leis
invariáveis; nesta interpretação, o fato social é valorizado enquanto coisa. O positivismo
sociológico valoriza também a observação e a experiência, e sustenta a compreensão de que
a totalidade pode ser observada pelas partes, sendo possível a segmentação da realidade.
Afirma também que a observação científica pode ser neutra, objetiva e desligada dos
fenômenos sociais. Por isso, o método da sociologia seria semelhante ao das ciências da
natureza. A sociologia, entendida como estudo dos fenômenos sociais, seria simétrica à
biologia, enquanto estudo dos fenômenos naturais.

O esquema conceitual positivista conduz à uma análise em ciências sociais de


caráter funcionalista. Nela, a conduta política, por exemplo, é concebida
independentemente dos interesses dos indivíduos como representantes de grupos e
correntes sociais. Trata-se de uma interpretação formal e a-histórica, pois remete a
explicação da conduta política a uma “consciência geral” ou “leis naturais”, ignorando que
não existem nos seres humanos qualidades que possam ser concebidas separadamente do
sujeito. As ciências sociais, ao contrário das ciências naturais, precisam conceber sujeito e
objeto em sua relação orgânica, restabelecendo a unidade entre sujeito histórico e seu
pensamento.

Como explica Florestan Fernandes, a indagação naturalista em ciências sociais,


de um lado, introduz um elemento subjetivo, o critério naturalista de verdade, e, de outro

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lado, coloca o problema da ação humana em bases inadequadas, como produto de uma
experiência com a natureza e não com a sociedade. Em relação à primeira questão, o
critério naturalista de verdade, que nas ciências naturais constitui um critério legítimo de
reconhecimento da realidade e um critério válido de verdade, nas ciências sociais pode-se
tornar matéria de opinião (sendo, portanto, um elemento subjetivo). A aplicação do critério
naturalista de verdade em ciências sociais conduz a uma deturpação dos dados empíricos e
à violação da própria norma positivista de submissão à realidade, pois nas ciências sociais
há um entrelaçamento entre a teoria e a prática como condição sine qua non do pensamento
científico.

Quanto à segunda questão, pode-se dizer que as ciências sociais positivistas têm
como ideal resolver o problema da ação humana de modo uniforme, baseado no
determinismo como princípio universal (ocorrendo, portanto, tanto na natureza como na
sociedade). Seria preciso descobrir o mecanismo causal que rege a vida do homem em
sociedade, utilizando para este objetivo o mesmo método que se usa para descobrir o
mecanismo causal da natureza. Ora, desta forma se ignora que a ação humana está
condicionada por configurações histórico-sociais concretas e que ela não se manifesta de
acordo com um princípio determinista universal. Transforma-se o homem, de sujeito da
ação, em objeto de determinações sociais. Neste sentido, percebe-se que o positivismo
sociológico se preocupa mais com o ajustamento dos indivíduos ao meio social do que com
o reajustamento da organização social a novas condições de vida.

Contrapondo-se a esta visão, a dialética hegeliana, segundo a qual o real existe


como movimento contraditório e processual, e o materialismo histórico-dialético de Marx,
que sustenta que as idéias devem ser analisadas a partir da compreensão do modo de
produção que caracteriza um determinado momento histórico de uma sociedade,
possibilitaram a crítica do conhecimento que se pretende neutro, denunciando seu caráter
ideológico, ao afirmarem que a razão é histórica: as idéias apresentadas como entidades,
verdades eternas e como universais a-históricos são, na verdade, produzidas em função da
estrutura e dinâmicas de classes sociais existentes na sociedade. Nesse ponto de vista, o
conhecimento científico só tem sentido enquanto ferramenta de compreensão e
transformação da realidade baseada na análise crítica das formações sociais históricas em
função da perspectiva dos oprimidos. Se o conhecimento a-histórico se apresenta como

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aparência, a análise histórica e dialética revela a essência dos fenômenos e suas inter-
relações com outros fenômenos a partir dos quais se constituem totalidades dinâmicas.

Segundo Octavio Ianni, Marx compreendia que o ideal não é senão o material
traduzido e transposto na mente do Homem. Ou seja, Marx descobrira os encadeamentos e
as determinações recíprocas entre as condições de existência social e as idéias que
expressavam essas condições. Para Marx, a consciência social exprime e constitui, ao
mesmo tempo, as relações sociais. A análise dialética das relações capitalistas exige que a
interpretação apanhe sempre a maneira pela qual os homens pensam-se uns aos outros. São
as relações básicas de dependência, alienação e antagonismo que fundam a existência e a
consciência do operário e do capitalista. Como a autoconsciência somente é possível no
espelho do outro, o seu reconhecimento recíproco é, ao mesmo tempo, uma condição
fundamental da existência e negação recíprocas.

Neste sentido, a análise dialética tenta compreender a maneira pela qual se


relacionam, encadeiam e determinam reciprocamente as condições de existência social e as
distintas modalidades de consciência. Para conhecer as relações de produção, base material
da existência em sociedade, é preciso examinar desde o grau de desenvolvimento das forças
produtivas e das relações de produção até as relações e estruturas jurídico-políticas. Para
compreender a sociedade é preciso levar em conta as especificidades e encadeamentos
recíprocos entre as forças produtivas, as relações de produção, as estruturas políticas e as
modalidades de consciência. Ocorre que as várias modalidades de consciência (entre elas a
ciência) constituem-se, segundo as posições relativas das pessoas, grupos ou classes sociais,
nas relações de dependência, alienação e antagonismo em que se acham inseridas. Há um
descompasso e um divórcio entre as aparências e as essências. É isto que torna necessária a
análise dialética.

Por outro lado, a crítica de Nietzsche cria questionamentos adicionais à ciência


na sua produção de conhecimentos. Nietzsche faz uma crítica ao projeto moderno de
ciência (valorização da permanência e separação entre sujeito e objeto), criticando a
concepção cartesiana do sujeito do conhecimento e a própria concepção de realidade. Sua
crítica à concepção metafísica de verdade leva em conta o papel da linguagem na
constituição do conhecimento e das verdades, na sua forma tradicional de elaboração de

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conceitos enquanto signos de reconhecimento da realidade. Nietzsche evidenciou o jogo de
poder no qual se situa a ciência, na sua tentativa de dominar a natureza e as relações entre
os homens a partir de critério inventados, e não descobertos. Neste ponto de vista, a
realidade é um processo de transformação permanente que se apresenta de modo
contingente e particular no existir de cada individualidade, não sendo possível uma redução
do particular para o universal.

Para Nietzsche, o amor pela verdade, a vontade de verdade, e a crença


metafísica na antinomia dos valores, base de todos os procedimentos lógicos, fundavam a
ciência até então. Mas “atrás de toda lógica e da aparente liberdade de seus movimentos, há
valorações, ou melhor, exigências fisiológicas impostas pela necessidade de manter um
determinado gênero de vida”. Toda hipocrisia e rigidez virtuosa dos filósofos escondem,
para ele, uma moral que é um testemunho claro e decisivo da “hierarquia que segue nele[s]
os instintos mais íntimos de sua natureza”. Isto denota a falsidade dos juízos. Mas
Nietzsche vai além e pretende admitir o não-verdadeiro como condição da vida, base de
uma filosofia “além do bem e do mal”. A filosofia e a ciência seriam apenas expressão do
instinto tirânico de dominar a natureza, a vontade de potência em seu aspecto mais
intelectual, a vontade de criar o mundo e implantar nele a causa primeira.

Denunciando as descobertas científicas como invenções, Nietzsche se levanta


contra o “atomismo psíquico” e a “necessidade metafísica” em favor de uma nova filosofia
que, em oposição à “superstição dos lógicos”, reconheça que a vontade, o querer, funda a
moral que, por sua vez, é entendida como conceito de uma ciência dominante. Coloca-se,
portanto, contra o “atavismo” dos filósofos que lutam para ocupar seu posto “dentro de um
determinado esquema prévio das possíveis filosofias”. Estas, por sua vez, seriam
aparentadas pelas semelhanças gramaticais (parentesco lingüístico). Os filósofos e os
cientistas, então, acabariam por criar mitologias inventadas sobre ficções convencionais
como as noções de causa e efeito. Desta forma, Nietzsche critica o subjetivismo dos
filósofos e da ciência e nos alerta que “poderia surgir alguém com intenções opostas e com
muitos outros artifícios de interpretação”.

A crítica da razão de Nietzsche é continuada pela via da destruição da


metafísica por Heidegger e pela via da destruição das ciências históricas por Foucault. A

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fenomenologia de Heidegger opõe-se à separação do sujeito produtor do conhecimento e do
objeto da investigação, afirmando que toda consciência é intencional. Para este ponto de
vista, o conhecimento é o resultado da interação entre o sujeito observador e o sentido que
ele fornece à coisa percebida, não havendo, portanto, observação independente dos
significados que o sujeito atribui à realidade. Os fenômenos, como algo que aparecem para
as consciências, só existem no plano da intencionalidade das consciências. Heidegger tem
uma concepção da história do ser como acontecimento da verdade, fusão entre aspiração
sem constrangimento à validade e aspiração autoritária do poder. O ser acontece devido à
sua vontade de poder. Para Habermas, a originalidade de Heidegger está no fato de situar a
dominação moderna do sujeito de um modo histórico-metafísico, base de sua crítica ao
subjetivismo moderno. No entanto, o impasse da sua filosofia do sujeito, que se nega a
aceitar a atribuição relacionada com o “esforço para a resolução de problemas”, estaria
ligado à sua opção pelo nacional-socialismo.

Já Foucault despoja a história das regras de constituição do discurso de toda


autoridade que valida as modificações que se produzem nas formas discursivas. A sua
arqueologia do saber reconstrói a camada das regras que constituem o discurso e sua
genealogia tenta explorar a seqüência descontínua de ordens de signos, explicando a
proveniência de formações discursivas de práticas de poder que se entrelaçam na sua
disputa pela dominação. Como crítico da vontade de verdade, enquanto chave da relação
interna entre o saber e o poder, Foucault vai para além das ciências humanas através de
uma historiografia que se apresenta como anticiência. Segundo Habermas, a teoria
iconoclasta de Foucault deságua numa historiografia genealógica irremediavelmente
subjetivista, num “irracionalismo confesso’, cometendo um erro simétrico ao “objetivismo
irremediável” do positivismo. Desta forma, a anticiência presentista, relativista e permeada
por uma parcialidade arbitrária de Foucault se inclui no arsenal dos “maoístas desiludidos”.

Continuando a tradição marxista, a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, que


faz sua avaliação dos processos sociais do nosso tempo que exprimem a crise da razão
(nazismo, fascismo, stalinismo, capitalismo), igualmente critica o positivismo na sua
tentativa de considerar a realidade como objeto a ser dominado e instrumentalizado. Ou
seja, a Teoria Crítica, enquanto crítica da ideologia, tenta desmascarar a teoria suspeita que
se esconde numa mistura “ilícita” de poder e validade. Nesta teoria suspeita, as exigências

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de validade são determinadas por relações de poder. Este uso da razão instrumental, que dá
uma aparência formal racional a um discurso que justifica, por exemplo, a exploração
capitalista, leva o projeto iluminista à falência, uma vez que se trata de algo irracional. O
mesmo vale para discursos que justificam a violência e o desrespeito. Entretanto, a crítica
da ideologia contesta a verdade da teoria suspeita, mas também estende sua crítica à própria
razão. Desta forma, a crítica de autores como Adorno e Horkheimer torna-se total, volta-se
não somente contra a irracionalidade dos ideais burgueses e contra o positivismo, mas
também contra a razão instrumental, o próprio potencial de razão da cultura burguesa ou
entendimento calculador.

Segundo Cohn, Adorno coloca em causa a racionalidade burguesa na sua


acepção mais ampla: não só aquela produzida pela sociedade burguesa, mas a que a
reproduz. A tese básica é que a razão burguesa, ao combater de modo irrefletido o mito,
acaba convertendo-se ela própria em mito, sem, no entanto, deixar de apresentar-se como
razão. A preocupação é com a crítica interna do Iluminismo, da razão burguesa, não para
desqualificá-la, mas “para cobrar dela a realização de seus princípios e de suas promessas”.
A relação entre a razão iluminista e o mito é de “cumplicidade”. A ideologia não é algo que
se impõe de fora a sujeitos passivos. Ela envolve uma “secreta cumplicidade” e sempre
demanda um investimento de energia daqueles que a sustentam. A ideologia submete e
ilude os homens colocando-os a seu serviço. Neste sentido, o estudo sobre a personalidade
autoritária, que tenta descobrir as relações entre os sistemas de personalidade e o conjunto
de idéias e valores relacionados com os movimentos fascistas, se constrói de um ponto de
vista sociológico, e não psicológico, com base na noção de que, na personalidade,
articulam-se fatores sociais e representações ideológicas. Neste sentido, a indagação básica
não é sobre a dinâmica intrapsíquica, mas sobre o caráter socialmente necessário de
manifestação da personalidade autoritária, em condições dadas.

No entanto, Habermas acredita que Adorno e Horkheimer dificilmente abrem


qualquer perspectiva de escapar ao mito da racionalidade orientada para fins (razão
instrumental) tornada força objetiva. O problema é que, ao se confrontar com o argumento
de Nietzsche, que explica a assimilação da razão ao poder consumada pela modernidade, e
desejando prosseguir a crítica, Adorno e Horkeheimer, denunciam a corrupção de todos os
padrões racionais, mas preservam um deles como intacto. Desta forma, passam a praticar a

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negação determinada, na forma de uma dialética negativa. Com este movimento em falso,
para Habermas, estes autores entregaram-se a um “ceticismo desenfreado perante a razão”,
que não pondera os motivos que permitem duvidar desse próprio ceticismo, descartando
desta forma as aquisições do racionalismo ocidental.

A Teoria Crítica propõe que o conhecimento seja entendido como um processo


dinâmico, histórico, mutável e dialético, onde há movimentos concomitantes de
permanência e de transformação. Os acontecimentos humanos têm uma “historicidade
imanente”. Retirar-lhes essa propriedade em favor de um princípio de identidade, da
permanência dos fenômenos ou da justificação da ordem social capitalista seria
“irracional”. A Escola de Frankfurt luta, portanto, contra a naturalização da realidade a
partir de pressupostos metafísicos sobre a regularidade dos fenômenos. Entende também
que a realidade é um processo histórico e o conhecimento produzido com ciência é uma
construção social, na qual a realidade é elaborada tendo em vista as múltiplas
determinações históricas que a constituem. Trata-se da perspectiva interacionista, na qual
se inclui Habermas, que afirma que não há neutralidade científica e junta-se à luta “contra a
morte do sujeito crítico”.

De acordo com a perspectiva epistemológica de Habermas, não há


neutralidade nas ciências, pois o interesse está presente no processo de conhecimento: seja
como interesse técnico de dominação da natureza, que se traduz na ação instrumental, seja
como interesse da comunicação, presente nas ciências sociais, que se traduz na ação
comunicativa, cujo objetivo é o entendimento mútuo entre os homens. Se o “conhecimento
instrumental” permite ao homem satisfazer suas necessidades perante a natureza; o
“conhecimento comunicativo” o impele a emancipar-se de todas as formas de repressão
social. Este conhecimento comunicativo produz enunciados em um discurso teórico que
são considerados legítimos ou ilegítimos quando o discurso prático desemboca num
consenso. A função da ideologia é exatamente “impedir a abertura de discursos práticos”,
impossibilitando que as normas e instituições sejam “tematizadas discursivamente” na
medida em que estas são objetos de visões de mundo religiosas ou metafísicas. Na luta por
um modelo de ação comunicativa pura (forma de interação e de organização social
caracterizada pela eliminação de todas as formas de coação externa e interna), a
argumentação comunicativa (dos discursos práticos “discursivamente competentes”) não

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prescinde da ação estratégica (aquela que visa a competição pelo poder) nem da
elucidação pedagógica (discurso “terapêutico”) a fim de neutralizar a ideologia
tecnocrática atual. Assim, Habermas concilia a interação social emancipadora com a
argumentação comunicativa compartilhada intersubjetivamente, na forma de discursos
práticos que se articulam com a ação estratégica de movimentos políticos e com o discurso
terapêutico para combater os mecanismos sociais ideológicos das forças conservadoras da
sociedade.

O interacionismo é defendido, no campo da sociologia do conhecimento, pelo


construcionismo de Mannheim, que também reinterpreta Marx a partir dos questionamentos
de Nietzsche. Coloca-se em posição contrária ao representacionismo, concepção de que o
sujeito representa ou descreve a realidade tal como ela é. Considerando o papel estruturador
da linguagem, o construcionismo considera que tanto o sujeito quanto o objeto do
conhecimento são construções sociais e históricas. A maneira como o sujeito percebe o
objeto é datada, da mesma forma que o objeto também é datado e localizado no espaço.
Assim, os modos pelos quais se percebe a realidade são perspectivas socialmente
construídas. Do pesquisador se requer, quando reconhece a realidade e produz
conhecimento, uma desconstrução na forma de uma discussão e combate de crenças e
processos de dominação. Se as verdades humanas estão cristalizadas em convenções
sociais, estas, por sua vez, existem com o intuito de controlar o comportamento humano.
Ao estudar a sociedade humana, o pesquisador deve explicitar estas convenções na maneira
como elas acontecem: como relações sociais e históricas. Esta crítica às convenções sociais
é estendida também às verdades produzidas pelas ciências, que são entendidas igualmente
como convenções que podem ser discutidas. Não havendo verdades absolutas, cabe ao
sujeito-investigador desconstruir as relações sociais para desvendar as convenções sociais,
uma vez que sujeito e objeto são construções sociais. Trata-se da perspectiva interacionista
levada às últimas conseqüências.

Segundo Florestan Fernandes, a inclinação de Mannheim para o humanismo e


seu empenho para transformar a sociologia do conhecimento numa disciplina de síntese,
proporcionou-lhe a disposição de criticar o positivismo, o apriorismo formal, o apriorismo
fenomenológico, e o historicismo. Baseado no pressuposto de que os produtos mentais
podem ser interpretados no seu conteúdo e em termos de realidade, especialmente na

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função social que preenchem, Mannheim propunha duas tarefas para a sociologia do
conhecimento: oferecer uma descrição mais aproximada possível das perspectivas
intelectuais coexistentes em dado momento, traçando seu desenvolvimento histórico; e
evidenciar o papel funcional do pensamento, condicionado que é pela realidade histórica e
pela existência humana. Assim, “os problemas da sociologia do conhecimento são
entendidos de um ponto de vista dinâmico, e as técnicas de investigação empírico-indutivas
desta disciplina são concebidos em termos histórico-sociológicos”. Desta forma, procura
mostrar que as alterações nos padrões de pensamento são produtos das transformações da
existência social e da prática, embora aparentemente se expliquem apenas pelo processo
acumulativo de conhecimentos intelectuais. Baseado nestas premissas, Mannheim não se
deixa confundir pelas interpretações que identificam a objetividade científica com a
neutralidade dos investigadores.

A análise sociológica de Mannheim, baseada numa crítica construtiva da


contribuição do pensamento alemão pós-hegeliano, constitui-se numa síntese metodológica
que enfrenta o problema da limitação violenta na perspectiva das ciências sociais pela ação
restritiva e conservadora do mecanismo adaptativo da cultura baseado no modelo das
ciências matemático-naturais. Contrariamente a esse modelo, Mannheim propõe-se o
problema da ciência de uma perspectiva histórico-social. O meio de controle proposto para
controlar o irracionalismo da própria ciência é a investigação dos motivos inconscientes da
discussão científica, através do conhecimento dos motivos histórico-sociais que levam o
homem, em situações concretas, à descoberta, desenvolvimento e aplicação da ciência.
Desta forma, sujeita-se a própria ciência a um controle racional, explicitando os interesses
políticos definidos que estão na concepção do mundo em que repousa o conhecimento
científico. Neste sentido, a ciência que explora as possibilidades do positivismo está
historicamente associada com uma concepção de mundo de caráter burguês liberal e
racionalista. No lado contrário, as descobertas do condicionamento social do pensamento
humano e do mecanismo de pensamento ideológico, realizadas por Marx, estão associadas
com as críticas contra a mentalidade burguesa e a orientação naturalista em ciências sociais.
São também os primeiros passos históricos na direção da investigação sociológica do
conhecimento. Assim, “o que era um arsenal intelectual de um partido comunista se
converte num método de investigação social e intelectual”.

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O reconhecimento da limitação do critério de realidade do modelo das ciências
matemático-naturais quando aplicado em ciências sociais evidencia a relatividade do
conceito de “científico”, expondo as conexões entre a teoria e a prática e demonstrando que
a investigação científica faz parte da conduta política. Ao contrário de explicar essa
conduta política como expressão de uma “consciência geral” determinada por “leis
naturais”, Mannheim concebe o sujeito e o objeto em sua relação orgânica. Isto não
significa abdicar da objetividade científica, pelo contrário, alcança-se um novo tipo de
objetividade mediante a “verificação crítica e o controle das valorações”, e não pela sua
“exclusão”, como pensa fazer o positivismo. A contribuição de Mannheim caracteriza-se,
não pela exclusão do subjetivismo, mas pelo seu aproveitamento crítico na análise
sociológica. Conforme explica Florestan Fernandes, o elemento subjetivo é, através dos
fatores que o explicam, parte de uma situação concreta e, como tal, um aspecto ativo do
processo social.

“Somente estudando situações histórico-sociais concretas e


restabelecendo a relação orgânica de sujeito e objeto, podem-se
compreender os motivos reais da ação humana e estender nossos meios de
controle racional daqueles motivos. Assim, os fatores inconscientes, que
determinam socialmente a conduta dos homens, são elevados à zona de
observação direta e consciente” (Fernandes, 1970: 255)

Este entendimento traz conseqüências importantes para a concepção de ciência e


para a própria realidade social: 1) os intelectuais, como autores de sínteses políticas e
sociais, em virtude de sua posição social, estão vinculados, pelas suas contribuições
científicas, a determinados interesses coletivos que, por sua vez, estão sujeitos ao controle
explícito e consciente; 2) a própria investigação científica torna-se parte da situação total,
dependendo da consciência dos propósitos (valorização), da validade e da eficiência do
conhecimento obtido; 3) a síntese dialética apresenta-se como uma compreensiva
concepção real de situações histórico-sociais, estabelecendo uma relação entre o
pensamento político e conhecimento científico do cientista social. Assim, estes três pontos
decorrentes da análise de Mannheim “evidenciam que o conhecimento teórico e as
possibilidades práticas constituem limites e funções da própria realidade social”. O objetivo
do cientista não é apenas o conhecimento da mudança social, mas o seu controle. O

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conhecimento das tendências do processo social liga-se à consciência dos fatores e forças
sociais que conduzem os indivíduos à ação.

Desta forma, Mannheim contesta igualmente o determinismo social do


naturalismo sociológico e, do lado oposto, a indeterminação e imprevisibilidade do
historicismo, pois demonstra que a investigação sociológica, ao contrário da análise lógica,
concebe o pensamento e a situação de grupo, bem como o pensamento e a ação, em sua
unidade concreta, pois desvenda os vínculos estabelecidos entre o indivíduo como ser
social e a sociedade como uma realidade concreta. Neste sentido, diz Florestan Fernandes,
a autoconsciência dos motivos sociais da conduta constitui um alargamento de nosso
horizonte mental e uma extensão de nossa capacidade de compreensão do mundo ambiente.
A consciência da função social do conhecimento científico revela a problemática da
sociologia como “autoconsciência científica de uma realidade social”.

Segundo Octavio Ianni, há dois estilos principais de produção intelectual


classificados segundo as implicações e tendências políticas predominantes na produção
sociológica: a sociologia crítica e a sociologia técnica. Na sociologia técnica, incluem-se
os trabalhos cujas descrições e interpretações tomam os fatos como coisas, sendo que a
pesquisa não está interessada em transbordar o “nível imediato da objetividade imediata das
coisas”. Os dados apresentados pela pesquisa conferem-lhe uma objetividade que é apenas
aparente, na medida em que não se ultrapassa este nível de teste e comprovação dos
resultados. Esta forma de trabalho sociológico tem escasso ou nulo interesse pela
investigação dos fenômenos em seu processo de formação, desenvolvimento e
transformação para além do presente imediato. “Os fenômenos são explicados no princípio
de causação funcional, que não é sensível às modificações de duração, a não ser no curto
prazo”. Trata-se, portanto, de uma sociologia que reforça e aperfeiçoa o status quo,
rechaçando qualquer questionamento estrutural como ideológico. Na verdade, este tipo de
pesquisa produz uma análise que reifica o seu objeto de estudo, produzindo um
conhecimento ideológico sob a forma de explicação científica. Com uma objetividade
emprestada das ciências naturais e da estatística, estas investigações ficam no meio do
caminho da pesquisa propriamente sociológica, sendo que a postura crítica é substituída
pelo que Ianni chama de “fetichismo metodológico”: a transformação do trabalho
sociológico em técnica de reificação, de produção ideológica.

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Por outro lado, a sociologia crítica (crítica da ordem social), aborda os
fenômenos em termos de relações, processos, significações, configurações históricas,
estruturas e não se restringe aos fatos sociológicos, mas sim aos fatos significativos,
estejam eles dentro ou fora da sociologia propriamente dita. A pesquisa crítica vai
permanentemente das aparências para as essências dos fatos, revelando o que não era
evidente sem análise. Neste tipo de investigação, os dados são examinados em situações
múltiplas várias vezes, até que se tornem claras e transparentes todas as suas significações.
Para isto é preciso trabalhar com o princípio da contradição e entender a realidade, não
como um sistema a ser aperfeiçoado, mas como uma configuração histórica em
transformação. Para Ianni, na sociologia crítica, a primazia no processo de produção
intelectual cabe ao objeto de estudo. A objetividade científica não é menosprezada, porém
evita-se a reificação dos meios de pesquisa. Pelo contrário, buscam-se novos modos de
conhecer a realidade e suas categorias e relações sociais, preservando a integridade do
objeto de trabalho científico.

Vista em termos históricos, a realidade social organiza-se e se reproduz


antagonicamente em função das suas contradições. Uma pesquisa crítica em sociologia
deve trabalhar com o princípio da contradição e focalizar a realidade como uma
configuração histórica em movimento. Afinal, “é na própria realidade social que o princípio
da contradição está presente”. Evidenciá-lo como mecanismo do processo de
transformação social é uma tarefa da sociologia crítica. Por outro lado, toda sofisticação
metodológica e todo rigor contribuem para o progresso científico se o sociólogo não se
esquecer de analisar as relações, os processos e as estruturas no contexto de totalidades
sociais significativas. A análise de indicadores, fatores ou variáveis deve estar em função
desta análise de relações, processos e estruturas. Em suma, uma pesquisa crítica deve estar
estruturada para evidenciar as condições e possibilidades das ações dos homens,
“descobrindo as leis que regem os complexos socioculturais e suas conexões com a
realidade como configuração histórica”. Deve estar presente uma preocupação explicativa
que produz a síntese dos componentes do universo sócio-econômico e cultural. Segundo
Ianni, há necessidade de hipóteses interpretativas, nesse nível, para impulsionar o
progresso da reflexão científica, mesmo no caso da simples reconstrução descritiva.

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Nesse sentido, a sociologia crítica de Florestan Fernandes inaugura um novo
estilo de pensar a realidade social brasileira e latino-americana. Para Ianni, este estilo passa
a fazer parte dessa ciência social como uma das suas principais correntes, constituindo-se
em um de seus paradigmas mais importantes, pois cria um padrão de pensar a realidade
social concreta em cada formação social histórico-estrutural. Da mesma forma, a própria
sociologia produzida anteriormente na América Latina torna-se um elemento inscrito nesta
realidade social. Compreendendo teoria e história, a sua sociologia crítica sintetiza uma
maneira de pensar a realidade social: trata-se do resgate de um ponto de vista crítico da
sociologia clássica e moderna, com base nos ensinamentos marxistas. A seguir tentaremos
entender as bases metodológicas desta sociologia crítica de Florestan Fernandes, que se
inclui na perspectiva interacionista.

A explicação sociológica, segundo Florestan Fernandes, repousa e depende da


fundamentação empírica, obtida por meios indutivos. Ou seja, além da obtenção dos fatos
pelo processo de investigação propriamente dito, deve ocorrer a interpretação positiva dos
mesmos por meio de um processo intelectual. Assim, o processo de observação da
realidade nas ciências sociais “une os procedimentos para reunião dos dados com um
tratamento analítico dos mesmos, que permite passar das imagens sensíveis aos fenômenos
para as imagens unitárias ou analíticas de suas propriedades e das condições em que são
produzidos”. Portanto, há necessidade de reconstruir, empiricamente, o objeto da
investigação. O processo de observação dos fenômenos sociais na sociologia consiste então
na reconstrução da realidade.

Os processos intelectuais do processo de investigação, que culminam na


descrição sintética da realidade, passam por dois momentos: 1) primeiramente a Pesquisa:
a construção analítica de casos típicos; e 2) em segundo lugar, a Teoria: o tratamento
interpretativo das instâncias empíricas. Na fase da Pesquisa, o processo de observação
abrange três espécies de operações intelectuais: a) acumulação de dados brutos; b)
identificação e seleção dos fatos com significação na produção dos fenômenos; e c) a
determinação, isolamento e codificação das instâncias empíricas relevantes para
reconstrução e explanação dos fenômenos.

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Assim, ocorre a construção de tipos empíricos, ao se “converterem
analiticamente as verificações sobre atributos e propriedades dos fenômenos em
conhecimentos primários sobre os mesmos”. Passa-se do fenômeno concreto ao fenômeno
puro pela representação dos fenômenos por meio de exemplares empíricos puros. Desta
forma, a realidade deixa de ser percebida como algo caótico e ininteligível, podendo ser
descrita pelo sujeito-investigador por propriedades e atributos essenciais coerentes e
interdependentes.

Na fase da Teoria “ampliam-se os quadros da investigação”, de modo a repor os


fenômenos reconstruídos em contextos empíricos nos quais eles sejam relacionados com as
variáveis de sua produção. Isto se faz por meio de processos analíticos de observação: os
métodos monográfico, ecológico, histórico e estatístico. Cabe ao tratamento analítico dos
fenômenos estudados o alargamento do campo de observação, tornando evidentes e
inteligíveis os aspectos da realidade social. Somente com essa matéria-prima é que pode
ocorrer a generalização científica.

Este processo de observação é precedido da definição do objeto da


investigação, fase na qual é preciso uma noção clara do que se pretende “conhecer” ou
“explicar”, e é seguido da elaboração interpretativa das evidências empíricas e dos
conhecimentos descobertos durante o processo observação. Segundo Florestan Fernandes, a
interdependência entre as fases de emprego das técnicas e dos métodos de investigação
(pesquisa) e utilização dos procedimentos de generalização (teoria) é garantida pelas
implicações teóricas das proposições iniciais (definição do objeto da pesquisa) e pela
natureza das evidências empíricas, que se tornam acessíveis ao sujeito-investigador
somente a partir dos resultados cognitivos da reconstrução analítica da realidade
(elaboração interpretativa). Com base nas evidências empíricas, selecionadas, comprovadas
e testadas por meios analíticos qualitativos e quantitativos, é que se pode “descrever” e
“explicar” a realidade social na sociologia.

“Só podemos conhecer a realidade social pela análise”, pois cabe a ela
converter os dados primários da investigação (dados imediatos da experiência) em dados
manipuláveis pelo raciocínio científico, que exige matéria-prima própria (diferente do
senso comum) para representar objetivamente as ocorrências observadas. Esse

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conhecimento objetivo será o ponto de partida natural e o próprio sistema de referência
empírico da explicação científica (pesquisa empírica sistemática). Como a realidade é
descontínua e mutável, é preciso que se defina o objeto de pesquisa e os alvos cognitivos do
sujeito-investigador de modo a determinar, com precisão, um sistema fechado de referência
empírica. Segundo Florestan Fernandes, os limites do sistema fechado (universo empírico
restrito da investigação) geralmente coincidem com os de sistemas socioculturais concretos.

Dado que “os fenômenos sociais não podem ser reduzidos a um sistema
universal de referência empírica, nem o sujeito-investigador está imune a escolher
arbitrariamente a posição da qual observará a realidade”, a passagem da caracterização
empírica da realidade para a explicação sintética e generalizadora nas ciências sociais “se
dá pela presunção de admitir que as propriedades e regularidades são essenciais dos
próprios fenômenos observados, portanto, são propriedades e regularidades gerais”. Assim,
a caracterização empírica da realidade elimina o circunstancial e o contingente da esfera
da representação da realidade, pois as evidências empíricas dizem respeito a propriedades e
regularidades essenciais à manifestação dos fenômenos. A partir da caracterização
empírica (conhecimento analítico) é que pode se passar para a explanação sintética
(conhecimento sintético).

“O passo decisivo na direção da explanação sintética e


generalizadora se dá quando o investigador pode relacionar as
propriedades dos fenômenos a certas conexões de sentido, de estrutura ou
de função e consegue estabelecer que espécie de relações determinam as
regularidades inerentes às condições de manifestação deles (por
conseguinte, se tais regularidades podem ser descritas como dependências
estruturais, uniformidades de coexistência ou uniformidades de
seqüência).” (Fernandes, 1980: 30).

Todavia, o conhecimento resultante da elaboração interpretativa das


evidências que caracterizam empiricamente as conexões e as relações focalizadas, é um
conhecimento capaz de descrever a ordem existente na manifestação dos fenômenos,
“somente dentro dos limites do sistema fechado de caracterização empírica, que foi
considerado redutível a formulações sintéticas”. Desta forma, este conhecimento visa
explicar como os fatores atuantes em um sistema social dado se combinam entre si, em
certas condições de tempo e espaço, e como contribuem para determinar a forma de

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integração e o grau de estabilidade do sistema como um todo. Assim, atingem-se os
verdadeiros objetivos teóricos da pesquisa descritiva, possibilitando que o objeto da
investigação possa ser reconstruído como um todo, tanto na sua estrutura como no seu
funcionamento. Esse tipo de conhecimento constitui uma “transcrição abstrata do
concreto”. Mesmo assim, e ao contrário de Durkheim, Florestan Fernandes afirma que “as
explicações descobertas são exclusivamente válidas nos limites dos sistemas sócio-culturais
concretos”.

Podemos, então, resumir em que consiste a reconstrução da realidade nas


ciências sociais: 1) em primeiro lugar, na caracterização empírica dos fenômenos
observados; 2) em seguida, na análise e unificação dos resultados da caracterização
empírica; e 3) por último, na elaboração interpretativa e síntese, plano no qual o sujeito-
investigador descobre as condições e os fatores responsáveis pela ordem existente na
produção dos fenômenos e, portanto, sua “explicação”. Esse tipo de conhecimento pode ser
chamado de explanação descritiva. Uma contribuição descritiva, portanto, envolve a
combinação de análise com a interpretação. A reconstrução sintética da realidade é,
portanto, a fase intermediária entre a caracterização empírica e a explanação
interpretativa.

Se a explanação descritiva é a exploração das perspectivas teóricas abertas


pelos resultados da reconstrução, a passagem sistemática dos resultados da reconstrução
para formas mais abstratas de explicação dos fenômenos é chamada de explanação
interpretativa. A possibilidade de complementação dos resultados da explanação
descritiva pela explanação interpretativa indica um padrão próprio das ciências sociais no
estudo dos sistemas psicossociais ou socioculturais concretos.

Três métodos de interpretação são destacados neste contexto: 1) método da


compreensão, cuidando dos problemas da socialização e interação social, permite operar
num campo a-histórico; 2) método objetivo, genético-comparativo ou funcionalista,
focaliza problemas da classificação das estruturas sociais e permite operar num campo
supra-histórico; e 3) método dialético, tratando das relações existentes entre as atividades
socialmente organizadas e a alteração dos padrões da ordem social, permitindo abstrair
variáveis operativas de um campo histórico. Estes três métodos “põem ao alcance das

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ciências sociais recursos interpretativos que permitem construir, por via sintética, sistemas
unívocos de referência empírica, de acordo com os quais a consistência empírica, a
validade e o grau de generalidade das explicações descobertas podem ser controlados
objetivamente”. Estes sistemas de referência empírica cortam transversalmente ou são
representativos de vários sistemas socioculturais concretos, fatos que lhes conferem
sustentação adequada.

Ainda segundo Florestan Fernandes, o progresso das ciências sociais depende


da combinação dos trabalhos de reconstrução da realidade com as tentativas mais ou menos
amplas de síntese. O significado da reconstrução na sociologia, em oposição ao
historicismo e ao empirismo estrito, é dado pela caracterização empírica dos fenômenos
(reconstrução analítica) seguida da explanação da realidade, que pode se dar por meio da
explanação descritiva, pela qual se obtém a reconstrução sintética da realidade, ou pela
explanação interpretativa, pela qual se obtém o conhecimento sintético globalizador. Este
último implica na perda da especificidade e da generalidade das explanações, o que se tenta
evitar pela criação de outros modelos de explicação.

Sinteticamente, a reconstrução da realidade deve ser entendida como


representação analítica, fase essencial da investigação positiva dos fenômenos sociais, e
também precisa ser encarada como representação sintética, isto é, forma de conhecimento
empírico-indutivo da realidade nas ciências sociais. Ou seja, a observação, a análise e a
interpretação dos fenômenos sociais na sociologia constituem a reconstrução da realidade,
enquanto produto final das atividades de sujeito-investigador e processo pelo qual esse
produto intelectual é obtido.

Dito isto, vejamos como Florestan Fernandes define a Sociologia: esta seria “a
ciência que tem por objeto estudar a interação social dos seres vivos nos diferentes níveis
de organização da vida”. Como alvos teóricos fundamentais dessa disciplina, ele cita, em
primeiro lugar, a necessidade de descobrir explanações que permitam descrever e
interpretar os fenômenos sociais em termos da ordem existente, e, em segundo lugar, o
procedimento de pôr em evidência as relações dinâmicas da ordem social ou de fatores
sociais com as formas de vida. Ou seja, as estruturas sociais, a ordem, no seu
relacionamento com os agentes, e a relação destes entre si.

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Ora, propor como centro da disciplina a interação social, significa entender que
“existe algum grau positivo de tolerância mútua e de interdependência recíproca entre os
seres vivos”, disposições que exprimem o tipo de sociabilidade e associação entre os
organismos, o que identifica um nível de organização da vida susceptível de provocar uma
caracterização propriamente sociológica, dado que se trata de uma esfera social. Entre os
seres humanos, a esfera puramente social da vida constitui uma “fonte autônoma de
exigências dinâmicas que condicionam quase todos os processos vitais básicos”. A vida em
sociedade caracteriza-se pela interação entre os seres humanos. Se a interação social pode
ser considerada como base dos demais processos da vida, cabe ao sociólogo explorar
teoricamente esta perspectiva.

Tendo como objeto a interação social, a explanação sociológica, que pode ser
uma generalização empírica ou uma explicação causal, representa conceitualmente a
realidade através de propriedades que são essenciais para a descrição empírica pura da
ordem existente na manifestação dos fenômenos sociais. Por isso, a explicação sociológica
assume duas características relevantes para situar a sociologia como disciplina científica: a)
toma formas abstratas e generalizadoras; e b) produz um conhecimento que se funda
objetivamente na natureza dos processos sociais investigados. Esta dupla característica
acontece por duas razões: por um lado, porque está baseada na pesquisa empírica
sistemática; e, por outro lado, porque suas conclusões são inacessíveis ao conhecimento do
senso comum, dado que este último não trabalha com generalizações abstratas fundadas
objetivamente na investigação.

O senso comum não se caracteriza por utilizar conceitos que representam a


realidade a partir de propriedades recolhidas pela observação, analisadas criticamente e
interpretadas teoricamente. Trata-se, como afirma Pedro Demo, de um conhecimento
acrítico e imediatista, que acredita na superficialidade. A ciência não somente se distingue
do senso comum como também da ideologia, dado que escapa do caráter justificador deste
tipo de conhecimento, que justifica a realidade tal como ela é, buscando adesão à ordem
social, sem tentar entender e argumentar criticamente por detrás das aparências dos
fenômenos. A ciência, ao contrário, caracteriza-se por ser um discurso estruturado em
termos de coerência, consistência, originalidade e objetividade. Porém, não esqueçamos
que há possibilidade, como vimos, de que se produza um conhecimento ideológico sob a

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forma de explanação científica. No campo da sociologia este é o caso da sociologia técnica,
na qual se reifica o objeto de estudo e se promove o fetichismo metodológico como formas
de produzir um discurso de adesão à ordem social travestido de ciência.

Podemos, portanto, considerar a ciência tanto como forma sistematicamente


organizada de pensamento objetivo, quanto como o resultado de um processo social. Ou
seja, o processo de conhecer os fatos e as relações entre eles é uma atividade que se
desenvolve no grupo e que recebe condicionamentos sociais. Assim, a pesquisa, enquanto
ação de se propor um projeto de conhecimento e empreender as atividades que conduzam a
esse conhecimento, com objetividade e sistematização das informações fragmentadas, tem a
característica metodológica fundamental, na sociologia, que é dada pelo fato de que o
sujeito e o objeto do conhecimento se confundem. Mesmo diante desse fato, Perseu
Abramo afirma que é possível fazer-se pesquisa científica em sociologia porque “os
acontecimentos humanos históricos e sociais não se dão por acaso, ao contrário, estão
sempre interligados por relações, embora tendenciais ou de probabilidade, e mesmo que tais
relações não sejam explícitas, evidentes ou conscientes”.

Segundo Fernandes, ainda se consideramos apenas os processos sociais


irracionais, verificamos que a análise sociológica visa submeter ao “controle consciente” os
determinantes inconscientes do comportamento humano, pois possibilita o conhecimento da
determinação da conduta política por fatores sociais. Este esforço, que está relacionado
com o controle da realidade social, permite “tornar racionais e realizáveis” os objetivos de:
1) controlar das forças ou correntes sociais, 2) melhor ajustar-se às condições sociais de
existência, e 3) ampliar a capacidade de autocrítica e autoconsciência dos motivos da
conduta humana. Antes de ser possível o controle da realidade, está colocada a questão de
descobrir os meios racionais de controle da realidade social. Justifica-se, então, em
Mannheim, o interesse pelo conhecimento empírico-pragmático dos homens de ação,
enquanto “métodos de penetração experimental e intelectual do mundo”, por eles
desenvolvidos e que, submetidos a uma análise científica sistemática, revelam-se sínteses
dialéticas que acompanham o ritmo das mudanças sociais e a direção do processo social.

Desta forma, a investigação sociológica desvenda os vínculos estabelecidos


entre o indivíduo como ser social e a sociedade como uma realidade concreta. Mais ainda,

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a consciência da função social do conhecimento científico revela a problemática da
sociologia como “autoconsciência científica de uma realidade social”. Em suma, a
autoconsciência dos motivos sociais da conduta, seja ela política ou científica, constitui um
alargamento de nosso horizonte mental individual e coletivo e uma extensão de nossa
capacidade de compreensão do mundo.

Na medida em que a consciência do Mundo e a consciência de si próprio se


mesclam com os interesses individuais e coletivos na interação social, inseridos que estão
nos processos históricos, a política como ciência, na forma de uma sociologia política, tem
a tarefa de restabelecer os nexos entre o homem como sujeito histórico e o seu pensamento.
Segundo Mannheim, este vínculo fundamental foi rompido pelo racionalismo matemático
aplicado às ciências sociais, na forma de um positivismo científico, cuja ânsia de enquadrar
a realidade segundo padrões quantificáveis de espaço e tempo traduziu, invariavelmente, a
concepção burguesa e racionalista do mundo. A ciência sociológica positivista representou,
historicamente, interesses políticos classistas, quando negou o fato de o produto do
pensamento científico ser derivado do interesse, do juízo de valor, e da concepção do
mundo do sujeito histórico.

O resgate necessário da perspectiva de totalidade do processo, na qual o


conhecimento é entendido como desdobramento dinâmico de forças em conflito, deve ser a
preocupação permanente da sociologia política, na qualidade de ciência dos fenômenos
políticos. Neste resgate, deve-se entender que o conhecimento científico surge da
participação ativa do pesquisador no processo histórico da realidade concreta, como
síntese dinâmica a partir das perspectivas existentes. Em outras palavras: no campo da
política, a percepção cognitiva dos sujeitos contribui para dar forma ao processo histórico
no qual estamos inseridos. Portanto, a tentativa de compreender a totalidade do processo
social que se pesquisa, objetivo permanente da investigação científica crítica, terá como
resultado, necessariamente, a inserção do pesquisador neste processo, para o qual
contribuirá com sua observação e interpretação dos fenômenos segundo a sua perspectiva.

* * *

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