Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Luis Estenssoro1
1
Administrador Público pela FGV de São Paulo, Mestre em Integração da América Latina e Doutor em
Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP).
razão sobre a experiência sensorial, surge o interacionismo enquanto entendimento do
conhecimento como uma relação entre o homem (sujeito que se propõe conhecer algo) e
algum aspecto da realidade (objeto a ser conhecido). Construído a partir do discurso da
modernidade iniciado por Hegel, o interacionismo afirma que o conhecimento é produzido
no quadro da interação entre sujeito e objeto, sendo o produto da ciência, portanto, um
resultado de inter-relações do sujeito com a realidade a partir de práticas sociais (a prática
da ciência, entendida como ação social). Ora, enquanto prática social, a ciência está sujeita
a pressupostos da cultura e da ideologia predominantes na sociedade em dado momento
histórico. A compreensão do conhecimento como sendo historicamente determinado passa
a questionar a neutralidade científica, pondo em dúvida a objetividade da ciência.
2
lado, coloca o problema da ação humana em bases inadequadas, como produto de uma
experiência com a natureza e não com a sociedade. Em relação à primeira questão, o
critério naturalista de verdade, que nas ciências naturais constitui um critério legítimo de
reconhecimento da realidade e um critério válido de verdade, nas ciências sociais pode-se
tornar matéria de opinião (sendo, portanto, um elemento subjetivo). A aplicação do critério
naturalista de verdade em ciências sociais conduz a uma deturpação dos dados empíricos e
à violação da própria norma positivista de submissão à realidade, pois nas ciências sociais
há um entrelaçamento entre a teoria e a prática como condição sine qua non do pensamento
científico.
Quanto à segunda questão, pode-se dizer que as ciências sociais positivistas têm
como ideal resolver o problema da ação humana de modo uniforme, baseado no
determinismo como princípio universal (ocorrendo, portanto, tanto na natureza como na
sociedade). Seria preciso descobrir o mecanismo causal que rege a vida do homem em
sociedade, utilizando para este objetivo o mesmo método que se usa para descobrir o
mecanismo causal da natureza. Ora, desta forma se ignora que a ação humana está
condicionada por configurações histórico-sociais concretas e que ela não se manifesta de
acordo com um princípio determinista universal. Transforma-se o homem, de sujeito da
ação, em objeto de determinações sociais. Neste sentido, percebe-se que o positivismo
sociológico se preocupa mais com o ajustamento dos indivíduos ao meio social do que com
o reajustamento da organização social a novas condições de vida.
3
aparência, a análise histórica e dialética revela a essência dos fenômenos e suas inter-
relações com outros fenômenos a partir dos quais se constituem totalidades dinâmicas.
Segundo Octavio Ianni, Marx compreendia que o ideal não é senão o material
traduzido e transposto na mente do Homem. Ou seja, Marx descobrira os encadeamentos e
as determinações recíprocas entre as condições de existência social e as idéias que
expressavam essas condições. Para Marx, a consciência social exprime e constitui, ao
mesmo tempo, as relações sociais. A análise dialética das relações capitalistas exige que a
interpretação apanhe sempre a maneira pela qual os homens pensam-se uns aos outros. São
as relações básicas de dependência, alienação e antagonismo que fundam a existência e a
consciência do operário e do capitalista. Como a autoconsciência somente é possível no
espelho do outro, o seu reconhecimento recíproco é, ao mesmo tempo, uma condição
fundamental da existência e negação recíprocas.
4
conceitos enquanto signos de reconhecimento da realidade. Nietzsche evidenciou o jogo de
poder no qual se situa a ciência, na sua tentativa de dominar a natureza e as relações entre
os homens a partir de critério inventados, e não descobertos. Neste ponto de vista, a
realidade é um processo de transformação permanente que se apresenta de modo
contingente e particular no existir de cada individualidade, não sendo possível uma redução
do particular para o universal.
5
fenomenologia de Heidegger opõe-se à separação do sujeito produtor do conhecimento e do
objeto da investigação, afirmando que toda consciência é intencional. Para este ponto de
vista, o conhecimento é o resultado da interação entre o sujeito observador e o sentido que
ele fornece à coisa percebida, não havendo, portanto, observação independente dos
significados que o sujeito atribui à realidade. Os fenômenos, como algo que aparecem para
as consciências, só existem no plano da intencionalidade das consciências. Heidegger tem
uma concepção da história do ser como acontecimento da verdade, fusão entre aspiração
sem constrangimento à validade e aspiração autoritária do poder. O ser acontece devido à
sua vontade de poder. Para Habermas, a originalidade de Heidegger está no fato de situar a
dominação moderna do sujeito de um modo histórico-metafísico, base de sua crítica ao
subjetivismo moderno. No entanto, o impasse da sua filosofia do sujeito, que se nega a
aceitar a atribuição relacionada com o “esforço para a resolução de problemas”, estaria
ligado à sua opção pelo nacional-socialismo.
6
de validade são determinadas por relações de poder. Este uso da razão instrumental, que dá
uma aparência formal racional a um discurso que justifica, por exemplo, a exploração
capitalista, leva o projeto iluminista à falência, uma vez que se trata de algo irracional. O
mesmo vale para discursos que justificam a violência e o desrespeito. Entretanto, a crítica
da ideologia contesta a verdade da teoria suspeita, mas também estende sua crítica à própria
razão. Desta forma, a crítica de autores como Adorno e Horkheimer torna-se total, volta-se
não somente contra a irracionalidade dos ideais burgueses e contra o positivismo, mas
também contra a razão instrumental, o próprio potencial de razão da cultura burguesa ou
entendimento calculador.
7
negação determinada, na forma de uma dialética negativa. Com este movimento em falso,
para Habermas, estes autores entregaram-se a um “ceticismo desenfreado perante a razão”,
que não pondera os motivos que permitem duvidar desse próprio ceticismo, descartando
desta forma as aquisições do racionalismo ocidental.
8
prescinde da ação estratégica (aquela que visa a competição pelo poder) nem da
elucidação pedagógica (discurso “terapêutico”) a fim de neutralizar a ideologia
tecnocrática atual. Assim, Habermas concilia a interação social emancipadora com a
argumentação comunicativa compartilhada intersubjetivamente, na forma de discursos
práticos que se articulam com a ação estratégica de movimentos políticos e com o discurso
terapêutico para combater os mecanismos sociais ideológicos das forças conservadoras da
sociedade.
9
função social que preenchem, Mannheim propunha duas tarefas para a sociologia do
conhecimento: oferecer uma descrição mais aproximada possível das perspectivas
intelectuais coexistentes em dado momento, traçando seu desenvolvimento histórico; e
evidenciar o papel funcional do pensamento, condicionado que é pela realidade histórica e
pela existência humana. Assim, “os problemas da sociologia do conhecimento são
entendidos de um ponto de vista dinâmico, e as técnicas de investigação empírico-indutivas
desta disciplina são concebidos em termos histórico-sociológicos”. Desta forma, procura
mostrar que as alterações nos padrões de pensamento são produtos das transformações da
existência social e da prática, embora aparentemente se expliquem apenas pelo processo
acumulativo de conhecimentos intelectuais. Baseado nestas premissas, Mannheim não se
deixa confundir pelas interpretações que identificam a objetividade científica com a
neutralidade dos investigadores.
10
O reconhecimento da limitação do critério de realidade do modelo das ciências
matemático-naturais quando aplicado em ciências sociais evidencia a relatividade do
conceito de “científico”, expondo as conexões entre a teoria e a prática e demonstrando que
a investigação científica faz parte da conduta política. Ao contrário de explicar essa
conduta política como expressão de uma “consciência geral” determinada por “leis
naturais”, Mannheim concebe o sujeito e o objeto em sua relação orgânica. Isto não
significa abdicar da objetividade científica, pelo contrário, alcança-se um novo tipo de
objetividade mediante a “verificação crítica e o controle das valorações”, e não pela sua
“exclusão”, como pensa fazer o positivismo. A contribuição de Mannheim caracteriza-se,
não pela exclusão do subjetivismo, mas pelo seu aproveitamento crítico na análise
sociológica. Conforme explica Florestan Fernandes, o elemento subjetivo é, através dos
fatores que o explicam, parte de uma situação concreta e, como tal, um aspecto ativo do
processo social.
11
conhecimento das tendências do processo social liga-se à consciência dos fatores e forças
sociais que conduzem os indivíduos à ação.
12
Por outro lado, a sociologia crítica (crítica da ordem social), aborda os
fenômenos em termos de relações, processos, significações, configurações históricas,
estruturas e não se restringe aos fatos sociológicos, mas sim aos fatos significativos,
estejam eles dentro ou fora da sociologia propriamente dita. A pesquisa crítica vai
permanentemente das aparências para as essências dos fatos, revelando o que não era
evidente sem análise. Neste tipo de investigação, os dados são examinados em situações
múltiplas várias vezes, até que se tornem claras e transparentes todas as suas significações.
Para isto é preciso trabalhar com o princípio da contradição e entender a realidade, não
como um sistema a ser aperfeiçoado, mas como uma configuração histórica em
transformação. Para Ianni, na sociologia crítica, a primazia no processo de produção
intelectual cabe ao objeto de estudo. A objetividade científica não é menosprezada, porém
evita-se a reificação dos meios de pesquisa. Pelo contrário, buscam-se novos modos de
conhecer a realidade e suas categorias e relações sociais, preservando a integridade do
objeto de trabalho científico.
13
Nesse sentido, a sociologia crítica de Florestan Fernandes inaugura um novo
estilo de pensar a realidade social brasileira e latino-americana. Para Ianni, este estilo passa
a fazer parte dessa ciência social como uma das suas principais correntes, constituindo-se
em um de seus paradigmas mais importantes, pois cria um padrão de pensar a realidade
social concreta em cada formação social histórico-estrutural. Da mesma forma, a própria
sociologia produzida anteriormente na América Latina torna-se um elemento inscrito nesta
realidade social. Compreendendo teoria e história, a sua sociologia crítica sintetiza uma
maneira de pensar a realidade social: trata-se do resgate de um ponto de vista crítico da
sociologia clássica e moderna, com base nos ensinamentos marxistas. A seguir tentaremos
entender as bases metodológicas desta sociologia crítica de Florestan Fernandes, que se
inclui na perspectiva interacionista.
14
Assim, ocorre a construção de tipos empíricos, ao se “converterem
analiticamente as verificações sobre atributos e propriedades dos fenômenos em
conhecimentos primários sobre os mesmos”. Passa-se do fenômeno concreto ao fenômeno
puro pela representação dos fenômenos por meio de exemplares empíricos puros. Desta
forma, a realidade deixa de ser percebida como algo caótico e ininteligível, podendo ser
descrita pelo sujeito-investigador por propriedades e atributos essenciais coerentes e
interdependentes.
“Só podemos conhecer a realidade social pela análise”, pois cabe a ela
converter os dados primários da investigação (dados imediatos da experiência) em dados
manipuláveis pelo raciocínio científico, que exige matéria-prima própria (diferente do
senso comum) para representar objetivamente as ocorrências observadas. Esse
15
conhecimento objetivo será o ponto de partida natural e o próprio sistema de referência
empírico da explicação científica (pesquisa empírica sistemática). Como a realidade é
descontínua e mutável, é preciso que se defina o objeto de pesquisa e os alvos cognitivos do
sujeito-investigador de modo a determinar, com precisão, um sistema fechado de referência
empírica. Segundo Florestan Fernandes, os limites do sistema fechado (universo empírico
restrito da investigação) geralmente coincidem com os de sistemas socioculturais concretos.
Dado que “os fenômenos sociais não podem ser reduzidos a um sistema
universal de referência empírica, nem o sujeito-investigador está imune a escolher
arbitrariamente a posição da qual observará a realidade”, a passagem da caracterização
empírica da realidade para a explicação sintética e generalizadora nas ciências sociais “se
dá pela presunção de admitir que as propriedades e regularidades são essenciais dos
próprios fenômenos observados, portanto, são propriedades e regularidades gerais”. Assim,
a caracterização empírica da realidade elimina o circunstancial e o contingente da esfera
da representação da realidade, pois as evidências empíricas dizem respeito a propriedades e
regularidades essenciais à manifestação dos fenômenos. A partir da caracterização
empírica (conhecimento analítico) é que pode se passar para a explanação sintética
(conhecimento sintético).
16
integração e o grau de estabilidade do sistema como um todo. Assim, atingem-se os
verdadeiros objetivos teóricos da pesquisa descritiva, possibilitando que o objeto da
investigação possa ser reconstruído como um todo, tanto na sua estrutura como no seu
funcionamento. Esse tipo de conhecimento constitui uma “transcrição abstrata do
concreto”. Mesmo assim, e ao contrário de Durkheim, Florestan Fernandes afirma que “as
explicações descobertas são exclusivamente válidas nos limites dos sistemas sócio-culturais
concretos”.
17
ciências sociais recursos interpretativos que permitem construir, por via sintética, sistemas
unívocos de referência empírica, de acordo com os quais a consistência empírica, a
validade e o grau de generalidade das explicações descobertas podem ser controlados
objetivamente”. Estes sistemas de referência empírica cortam transversalmente ou são
representativos de vários sistemas socioculturais concretos, fatos que lhes conferem
sustentação adequada.
Dito isto, vejamos como Florestan Fernandes define a Sociologia: esta seria “a
ciência que tem por objeto estudar a interação social dos seres vivos nos diferentes níveis
de organização da vida”. Como alvos teóricos fundamentais dessa disciplina, ele cita, em
primeiro lugar, a necessidade de descobrir explanações que permitam descrever e
interpretar os fenômenos sociais em termos da ordem existente, e, em segundo lugar, o
procedimento de pôr em evidência as relações dinâmicas da ordem social ou de fatores
sociais com as formas de vida. Ou seja, as estruturas sociais, a ordem, no seu
relacionamento com os agentes, e a relação destes entre si.
18
Ora, propor como centro da disciplina a interação social, significa entender que
“existe algum grau positivo de tolerância mútua e de interdependência recíproca entre os
seres vivos”, disposições que exprimem o tipo de sociabilidade e associação entre os
organismos, o que identifica um nível de organização da vida susceptível de provocar uma
caracterização propriamente sociológica, dado que se trata de uma esfera social. Entre os
seres humanos, a esfera puramente social da vida constitui uma “fonte autônoma de
exigências dinâmicas que condicionam quase todos os processos vitais básicos”. A vida em
sociedade caracteriza-se pela interação entre os seres humanos. Se a interação social pode
ser considerada como base dos demais processos da vida, cabe ao sociólogo explorar
teoricamente esta perspectiva.
Tendo como objeto a interação social, a explanação sociológica, que pode ser
uma generalização empírica ou uma explicação causal, representa conceitualmente a
realidade através de propriedades que são essenciais para a descrição empírica pura da
ordem existente na manifestação dos fenômenos sociais. Por isso, a explicação sociológica
assume duas características relevantes para situar a sociologia como disciplina científica: a)
toma formas abstratas e generalizadoras; e b) produz um conhecimento que se funda
objetivamente na natureza dos processos sociais investigados. Esta dupla característica
acontece por duas razões: por um lado, porque está baseada na pesquisa empírica
sistemática; e, por outro lado, porque suas conclusões são inacessíveis ao conhecimento do
senso comum, dado que este último não trabalha com generalizações abstratas fundadas
objetivamente na investigação.
19
forma de explanação científica. No campo da sociologia este é o caso da sociologia técnica,
na qual se reifica o objeto de estudo e se promove o fetichismo metodológico como formas
de produzir um discurso de adesão à ordem social travestido de ciência.
20
a consciência da função social do conhecimento científico revela a problemática da
sociologia como “autoconsciência científica de uma realidade social”. Em suma, a
autoconsciência dos motivos sociais da conduta, seja ela política ou científica, constitui um
alargamento de nosso horizonte mental individual e coletivo e uma extensão de nossa
capacidade de compreensão do mundo.
* * *
21
Bibliografia:
ABRAMO, Perseu. “Pesquisa em Ciências Sociais”. In: HIRANO, Sedi (Org.). Pesquisa
Social: Projeto e Planejamento. São Paulo, Queirós, 1979, pp. 21-88.
COHN, Gabriel (Org.). Adorno: Sociologia. São Paulo, Ática, 1994, Col. Grandes
Cientistas Sociais.
DEMO, Pedro. Metodologia Científica em Ciências Sociais. São Paulo, Atlas, 1985.
IANNI, Octavio (Org.). Marx: Sociologia. São Paulo, Ática, 1996, Col. Grandes Cientistas
Sociais.
FORACCI, Marialice (Org.). Mannheim: Sociologia. São Paulo, Ática. 1982, Col. Grandes
Cientistas Sociais.
22
MICELI, Sérgio (Org.). Temas e Problemas da Pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo,
Sumaré, 1992.
WEBER, Max. Ciência e Política: Duas Vocações. São Paulo, Cultrix, 1967.
23