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N.Cham. 82.

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Título: Discurso critico na america latina(o).

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277342

BCE
CÂNONE/CONTRA-CÂNONE:
NEM AQUELE QUE É O MESMO
NEM ESTE QUE É O OUTRO

Rita Terezinha Schmidt


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Raul Antelo em seu texto A lógica do contra-cânone e o axioma da


credibilidade refere-se às retóricas canônicas nacionais e às retóricas
anticanônicas como resultantes de operações de unificação e seg­
mentação que se articulam a partir de construções identitárias no
âmbito da história cultural. A partir do reconhecimento de não-coin-
cidência do nacional e do cultural pelo fato de constituírem espaços
distintos para construções identitárias diversas e múltiplas em des-
continuidade ou descompasso histórico, retomo a questão câno-
ne/contra-cânone por ser uma questão que muito tem a ver como
nos imaginamos na cultura e como nos colocamos como cultura.
Proponho que essa questão seja problematizada no âmbito de um
discurso crítico latino-americano que possa, efetivamente, se cons­
truir como um projeto orgânico e dinâmico de intervenção nas
nossas práticas acadêmico-culturais de modo a não nos rendermos
e repetirmos o discurso do mesmo, pautado na ótica da colonização,
e nem tampouco, nos apropriarmos, de forma mecânica, do discurso
do outro, pois é preciso muita cautela com esse horizonte exegético
da diferença construído pelo olhar etnocêntrico, tradicionalmente
investido do poder da representação/poder da significação.
No meu entender, a polarização cânone/contra-cânone que
começa a tomar corpo nos estudos das literaturas nacionais via
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discurso crítico, configura uma afirmação tautológica da autoridade


do centro1 na medida em que a negação dos seus paradigmas de
referência, condição de existência da retórica contra-canônica, im­
plica, mesmo que de uma forma oblíqua, o reconhecimento do
centro como referencial, o que acaba alimentando e reforçando o seu
poder de perpetuar os paradigmas de valor em função dos quais
certas obras são canonizadas e outras relegadas. Essa lógica perver­
sa, calcada em noções de causalidade e de determinação de valores
originários que se tomam modelares, precisa ser desconstruída sob
pena de nosso discurso crítico construir aqui suas próprias periferias.
Há que se pensar não da e na margem, o que viria a ser uma forma
de colonialismo cultural, mas as próprias margens, porque elas são
complexas, irredutíveis à categoria unidimensional do outro. No ato
de explicitar, expor e investigar seus recortes e particularidades
contingenciais e circunstanciais, reside o gesto político-epistemoló-
gico mais significativo que o discurso crítico pode oferecer em
termos de contribuir para a construção de uma identidade latino-
americana plural, diversa e coletiva.
Todo processo de constituição canônica ocorre num contexto
seletivo e, portanto, exclusionário, uma vez que se trata de delimitar
as fronteiras do que uma cultura nacional vem a definir como sendo
seu corpus oficial. O cânone, isto é, um conjunto de textos que passou
pelo teste do tempo e que foi institucionalizado pela educação e pela
crítica como clássicos, dentro de uma tradição, vem a ser o pólo
irradiador dos paradigmas do quê e do como se escreve, do quê e
do como se lê. Tradicionalmente, a sua constituição está pautada no
processo de reprodução do mesmo, pois a força homogeneizadora
que atua sobre a seleção reafirma as identidades e afinidades e
exclui, portanto, as diferenças, uma vez que essas são incompatíveis
com um todo que se quer uniforme e coerente em termos de padrões
estéticos de excelência, argumento geralmente invocado na ratificação
do estatuto canônico de uma obra.
A formação canônica das literaturas nacionais periféricas, fa­
lando particularmente da literatura brasileira, foi um processo que
se desenvolveu em sintonia com o chamado patrimônio cultural

1 Por centro entende um espaço de práticas teórico-discursivas calcadas na perspectiva


eurocêntrica que detém o monopólio dos valores legitimados na cultura ocidental a qual, por
estar associada à categoria do universal, se constitui como pólo irradiador de paradigmas
para o resto do mundo.
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ocidental, referenciado na tradição européia de uma cultura de elite


que se legitimou e se propagou através da identificação dessa mes­
ma cultura com valores ditos universais. Não quero parecer simplis­
ta e reconheço que a canonização desta ou daquela obra é um
processo em que muitos fatores entram em cena, tais como determi­
nações ideológicas, estilos vigentes numa determinada época, gêne­
ro dominante, contexto geo-político-cultural, pertencimento de clas­
se, sexo e raça. Contudo, por trás desses fatores, tem-se uma tradição
crítica, o que significa dizer que a constituição de um cânone é, na
base, uma decorrência do poder de discursos críticos e das institui­
ções que os abrigam. No caso brasileiro, o discurso crítico sempre
esteve atrelado à herança de uma identidade cultural ocidental
européia na medida em que, se espelhando em critérios monocul-
turais de valoração, compactuou com a política das exclusões que
sustenta a lógica canônica perpetuando, assim, as condições de uma
antropologia colonial no campo da cultura nacional.23Como obser­
va, com acuidade, Eduardo Coutinho, em seu ensaio Sem centro nem
periferia: é possível um novo olhar no discurso teórico-crítico latino-ameri­
cano?, apresentado em 1990, no H Congresso da Associação Brasilei­
ra de Literatura Comparada,
O discurso da crítica da literatura, salvo honrosas exceções,
manteve-se, de um modo geral, prisioneiro da perspectiva eu-
rocêntrica anterior, erigindo sempre como referenciais as obras
produzidas na metrópole e limitando-se a ecoar, no plano da
reflexão teórica, as vozes que lá se erguiam?
Os amplos espaços concedidos na mídia nesses dois últimos
meses para a divulgação do lançamento, em tradução para o portu­
guês, da obra O cânone ocidental de Harold Bloom4 impõe certas

2 Lúcia Miguel Pereira em seu artigo "As mulheres na literatura brasileira", publicado na
revista Anhembi 49, v.XVII, dez. 1954, tece comentários sobre o número pequeno de escritoras
mencionadas na monumental História da literatura brasileira de Silvio Romero, publicada em
1882 e reeditada, com revisões, em 1902. A crítica se pergunta: "Mas quem sabe se poderá
acusar de uma tal ou qual misoginia literária o grande crítico que foi Silvio Romero? Se deixa
de citar até Júlia Lopes de Almeida e Carmen Dolores, suas contemporâneas, muitas outras,
mais antigas, há de ter omitido..." (p.18). Em outro momento, comentando uma afirmação
de H.Heine, poeta alemão, Lúcia Miguel Pereira deixa entrever uma visão amarga: "E nada
prova melhor quando somos toleradas como intrusas na literatura do que o supremo elogio
feito a um trabalho feminino: consiste em dizer-se que até parece escrito por homem" (p.24).
3 In: ANAIS do II Congresso da ABRALIC, v.l. Belo Horizonte, 1991, p.623.
4 Ver: "Bloom contra-ataca", Caderno Mais, Folha de São Paulo, 6 de agosto de 1995,4-7, texto
de Arthur Nestrovski, seguido de uma entrevista com Harold Bloom; "A guerra do Cânone
ocidental", de João Almino, Caderno Mais, Folha de São Paulo, 13 de agosto de 1995; "A lista de
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reflexões, pois, na medida em que essa obra celebra e reafirma a


legitimidade do fórum cultural do centro e de seu capital simbólico,
confere autoridade às práticas críticas que, sob o signo do nacional
como espaço cultural monolítico e monológico, aderem ao poder
cultural do discurso do mesmo. A matéria publicada na revista Veja,
de grande circulação nacional, intitulada "Biblioteca Nacional", de
23 de novembro de 1994, é um exemplo ilustrativo desse fenômeno.
Nessa matéria, nove críticos e pensadores de destaque nas letras e
cultura brasileira5 apresentam 180 indicações de obras que resultam
numa lista comum de 22 obras consideradas clássicas. Que essa lista
ratifique o cânone sem levar em conta obras cuja autoria proceda de
outros pertencimentos - étnico, de gênero, de classe - não surpreen­
de. Todavia não deixa de causar inquietação por revelar o compro­
metimento do pensamento crítico que, à revelia da história empírica,
a qual aponta para processos de hibridação, transculturação ou
reconversão cultural imbricados na própria constituição do nacional
em países periféricos,6 articula o conceito de homogeneidade nacio­
nal por força de um passado de origens sacramentado em uma visão
teleológica da tradição literária. Acrescente-se a isso o fato de que a
realidade, na esfera acadêmica, não é diversa. Se formos verificar in
loco os currículos dos programas de pós-graduação e os conteúdos
dos cursos de literatura oferecidos em nossas universidades, vere­
mos que, em sua grande maioria, se inserem num quadro de mode­
los de identificação cultural que fixa, calcifica a retórica canônica a
qual, por sua própria natureza, desconhece rupturas, descontinui-
dades, diferenças: via de regra, lê-se e estuda-se os mesmos autores,
os mesmos textos. Em conseqüência, escreve-se sobre os mesmos
autores e os mesmos textos, num círculo vicioso aã infinitum.

Bloom" de Jason Tércio, Jonwl do Brasil, 23 áe setembro de 1995, Caderno de Sábado, p.5;
"Polêmica americana" de Wilson Martins, Jornal do Brasil, 7 de outubro de 1995, Caderno de
Sábado, p.4. Além de não compreender a base política dos ataques ao "politicamente correto"
(ataques que partem de uma ultra-direita conservadora que sempre deteve o monopólio
sobre a discussão de valores culturais), este crítico não demonstra o mínimo conhecimento
sobre as condições históricas e político-culturais que levaram a uma revisão do cânone da
literatura norte-americana, limitando-se a repetir o rótulo dado por Bloom aos revisionistas,
isto é "escola do ressentimento".
5 Os críticos e homens de letras são os seguintes: Wilson Martins, Celso Furtado, Alfredo Bosí,
João Ubaldo Ribeiro, Roberto Campos, José Paulo Paes, Ferreira Gullar, Francisco Iglesias e
Roberto da Mata.
6 Conforme observaram Fernando Ortiz, que utilizou o conceito de transculturação, Nestor
Garcia Canclini, que desenvolveu o conceito de hibridação em seu Culturas híbridas: estratégias
para entrar e sair da modernidade. México: Gijalbo, 1989.
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Essas constatações me induzem a concluir que, na prática, o


discurso crítico (não digo que não há exceções) se encontra em
desintonia com o contexto das reflexões teóricas desenvolvidas no
campo dos estudos literários contemporâneos que, sob o impacto
das teorias pós-estruturalistas, particularmente no eixo Europa-
América do Norte, a partir dos anos 60, desencadearam uma verda­
deira desestabilização dos referenciais da cultura ocidental. Os des­
dobramentos dos conceitos de diferença e alteridaãe colocaram sob
suspeita não somente os pressupostos fundacionais da noção de
identidade, mas também a questão mesma da representação, bem
como dos critérios de valor que embasam a sua construção. Pergun-
ta-se hoje quem é o sujeito de uma dada representação, quais as
condições de distribuição cultural e política da representação, a quê
interesses servem uma determinada representação, que conheci­
mento produz e qual a sua ética. A emergência da crítica feminista,
por exemplo, voltada para a investigação do caráter gendrado dos
discursos de e sobre a representação, ao expor a cumplicidade da
representação, das estratégias de leitura e de juízos críticos com
ideologias de gênero, responsáveis pela exclusão da produção de
autoria feminina dos cânones nacionais, deu visibilidade a outras
categorias da diferença - raça, classe, sexualidade - que estão na base
de modelos identitários situados fora do campo de referências iden-
titárias hegemônicas.
É nesse contexto que se instalou o debate sobre o cânone,
campo de batalha das chamadas políticas de identidade ou multicultu-
ralismo, movimentos político-culturais que buscam recuperar criti­
camente e colocar em circulação as produções simbólicas ignoradas
ou relegadas por sua diferença, entendida esta em termos de autoria
cujo pertencimento remete a grupos marginalizados, ou em termos
de valores estéticos outros em relação aos valores consagrados pelo
cânone. Hoje não é possível ignorar o fato de que o revisionismo do
cânone, em muitos países europeus e da América do Norte, a par de
certos exageros ou artificialismos - característicos de práticas de
resistência e intervenção - desencadeou uma série extensiva de
estudos e pesquisas que estão alterando o mapa da produção literá­
ria e a própria configuração da historiografia oficiai. A redefinição
de valor literário para acomodar obras escritas em circunstâncias
culturais diferenciadas se impõe no cenário de disputas e questio­
namentos sobre os valores codificados na cultura oficial.
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Minhas considerações finais revolvem em tomo das particula­


ridades de nosso contexto. E evidente que não podemos simples­
mente transplantar referenciais teóricos desenvolvidos no contexto
de processos sócio-culturais que nos são alheios, mas, por outro
lado, não é possível passar ao largo das grandes questões que
mobilizam os debates teórico-críticos contemporâneos. A questão
da diferença, que sustenta o ponto de vista da antropologia contem­
porânea sobre a nossa diversidade cultural, não se materializou no
ponto de vista da história cultural e do discurso crítico. Nestes
espaços, o pluralismo ainda rtão é referência e a identidade está mais
para a identidade do mesmo do que para a identidade da diferença.
O desenvolvimento de nosso discurso crítico, com raríssimas exce­
ções, não chegou a lançar as bases para se postular um revisionismo
amplo, muito menos construir uma retórica contra-canônica. O que
se observa é uma resistência muito grande quando se trata de
questionar os pressupostos que alicerçam nossos critérios estéticos
e juízos de valor, ou mesmo a definição do que institucionalmente
e tradicionalmente se definiu por literatura. Uma das poucas vozes
isoladas que apontavam nessa direção, na década de 70, foi a de
Affonso Romano de Sant'Anna em seu texto Por um novo conceito de
literatura brasileira (Eldorado, 1972). Para que propostas nessa dire­
ção pudessem ter tomado corpo, teria sido imprescindível a realiza­
ção de extensos levantamentos e de estudos críticos de fôlego que
viessem a se constituir em trabalho arqueológico de resgate, o que
viabilizaria, sem dúvida, uma abertura do cânone para as diferenças
que se inscrevem em nosso campo cultural. Como esses estudos são
poucos e esparsos, o debate sobre o cânone, entre nós, ainda é
incipiente, não passando além de abstração teórica.
Reporto-me ao crítico contemporâneo Homi Bhabha, o qual
em sua obra The location ofculture afirma que diferença cultural é o
processo de significação através do qual afirmações da e sobre a cultura
produzem diferenciações, discriminações (no sentido de discernir, distin­
guir, especificar), enfim, autorizam a produção de campos de força, de
referência, de aplicabilidade e capacidade7 (minha tradução). A necessi­
dade de pensar nossa identidade em termos culturais - ocidental?
brasileira? - latino-americana? impõe ao discurso crítico a tarefa de
investigar os processos de significação como um problema de enun-

7 Londres: Routledge, 1994, p.34.


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ciação da diferença. Isso significaria começar a perguntar, por exem­


plo, como e de onde nos fala um texto, que sobre determinações
interagem em seus códigos discursivos e representacionais, enfim,
que leitores são por ele constituídos. Talvez por esse caminho os
chamados critérios estéticos, que são sempre um exercício de poder
cultural e, nesse sentido, poder político, venham a ser redefinidos
de modo que um multiculturalismo verdadeiramente dialógico pos­
sa ser construído quando tivermos condições de, efetivamente, co­
locar em pauta a questão da democratização de nosso cânone.
A simples redução da diferença à polarização cânone/contra-
cânone parece-me ser uma oposição essencialista e improdutiva,
que reproduz o binarismo centro-margem, fixando identidades cul­
turais numa hierarquia imposta ou presumida. Sendo assim, sou
levada a crer que essa polêmica não nos serve. A postura estratégica
mais rentável para descentrar o centro e reconfigurar as margens
reside no processo de disjunção e deslocamento desse referencial,
pois somente dessa forma poderemos assumir a nossa cultura como
registro dos imaginários múltiplos que nos constituem.

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