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Foucault escritor: o arquivista e o eu-enunciado na

arqueologia

Foucault writer: the archivist and the I-enunciated in archeology

Carla Luzia Carneiro BORGES


Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)

Renailda Ferreira CAZUMBÁ


Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)

https://orcid.org/0000-0002-3396-1962

RESUMO: Em “A Arqueologia do saber”, Michel Foucault (2004) destaca, ao se definir como


escritor e arquivista, o sujeito como um ser das dispersões e contradições, entre saber e poder,
confrontos e medos, interdições e resistências, determinações e acontecimentos. Colocando em
questão a própria razão de por que escrever aquele livro, o Foucault insurgente, faz aparecer um
eu-enunciado e arquivista. Analisamos este processo de subjetivação de Foucault, seu
movimento em espiral, no interior de sua obra, destacando os enunciados que acusam o
acontecimento da escritura foucaultiana. Este artigo visa dar mais visibilidade a este sujeito que
enuncia a si, a fim de explicar e desenvolver um método de trabalho (o arqueológico), no qual o
autor se confronta com elementos de um dispositivo que produz linhas de força. Essas linhas
enfocam seu projeto de empreender o quadro teórico-metodológico da produção do saber.
PALAVRAS-CHAVE: Foucault; subjetivação; Eu-enunciado; arquivo; Arqueologia.

ABSTRACT: In The Archeology of Knowledge, Michel Foucault (2004) highlights, by defining


himself as a writer and an archivist, the subject as a being of dispersions and contradictions,
between knowledge and power, confrontations and fears, interdictions and resistance,
determinations and events. Questioning the reason itself on why writing that book, the insurgent
Foucault as an I-statement and archivist. We analyze Focault’s process of subjectivation, his
spiral movement, within his work, emphasizing the statements which accuse the event on the
foucauldian writing. This article aims to improve visibility concerning the enunciative subject,
in order to explain and develop a working method (the archeological one) in which the author
confront himself with elements of a device that produces lines of force. These lines focus on his
project to undertake the theoretical and methodological framework of knowledge production.
KEYWORDS: Foucault; subjectivation; I-statement; archive; Archeology.

Introdução

Na escrita, não se trata da manifestação ou da


exaltação do gesto de escrever; não se trata da
amarração de um sujeito em uma linguagem;
trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito
que escreve não para de desaparecer
(FOUCAULT, 2015, p. 272).

Recebido em: 15/08/2020


Aceito em: 11/11/2020
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Pesquisadores de diversas áreas celebraram com entusiasmo, em 2019, o
cinquentenário de “A Arqueologia do saber” (2004) e ressaltaram a importância desta
obra para a compreensão do pensamento de Michel Foucault de maneira tal que a
análise arqueológica demarca uma das facetas da teoria do pensador francês. Neste
livro publicado originalmente com o título “L'archéologie du Savoir” (Paris Gallimard,
1969), Foucault evidencia os caminhos, conceitos e métodos de análise que batizou de
“arqueologia”. Ao delinear a utilidade dessa nova analítica do discurso, vemos o
sujeito-escritor que se examina no ato da escritura e se interroga sobre o funcionamento
da descrição arqueológica, hesita diante da proposição de conceitos e expõe
questionamentos dirigidos à própria análise que propõe e, sobretudo, duvida se as
análises que empreende seriam distintas de outras que já descreveram e analisaram a
linguagem: o “que outras descrições não seriam capazes de dar? Qual é a recompensa
de tão árdua empresa?” (FOUCAULT, 2004, p. 154). Neste caso, o eu sujeito-
arquivista também se enuncia, dando a ver que existe um já-dito sobre o discurso no
trajeto dos estudos da linguagem e da filosofia.
“A Arqueologia do Saber” é um livro primordial para a compreensão do
pensamento de Michel Foucault e não representa uma leitura acessível, na medida em
que a forma de construção textual obedece à descontinuidade e à não-linearidade que
caracterizam o pensamento e a escrita do autor. Ao escrever, Foucault deixa evidente
este movimento singular que nomeia de descrição arqueológica. Noções como as de
discurso vêm acompanhadas de outras noções como as de “formações discursivas”,
“enunciados”, “positividade”, “arquivo”. Foucault ainda mobiliza domínios conceituais
que estão nas bases de seu trabalho arqueológico como “campo enunciativo” e
“práticas discursivas”, os quais o autor afirma ser na verdade um “estranho arsenal”,
uma “bizarra maquinaria”, com a qual vem trabalhando para compor a especificidade
da análise arqueológica (FOUCAULT, 2004, p. 153- 154).
Dessa forma, conceitos como os de descontinuidade, dispersão, positividade, a
priori histórico compõem a singularidade do método ao qual Foucault acrescenta outros
componentes investigativos para o estudo da linguagem e são delineados no decorrer
do texto na forma de questionamentos constantes, hesitações, retornos e suposições que
marcam o modo como Foucault constrói sua escritura quase de forma narrativa.
O desafio de ler “A Arqueologia do Saber” reside em entrar o leitor em contato
com a perspectiva nova de tratar os fatos da linguagem da qual Foucault se encarrega,
mas, sobretudo, com o desafio do sujeito-escritor e do arquivista que emerge no trajeto

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da escrita, enquanto elabora a análise discursiva que não trata apenas dos fatos da
linguagem, mas de objetos como o livro e a obra, das disciplinas como a medicina, a
literatura e a história; da definição “não os pensamentos, as representações, as imagens,
os temas, as obsessões que se ocultam ou se manifestam nos discursos”, mas tratar dos
“próprios discursos enquanto práticas que obedecem a regras” (FOUCAULT, 2004, p.
157). Reitera em outro texto: “[...] meu objeto não é a linguagem, mas arquivo, ou seja,
a existência acumulada dos discursos” (p. 74).
Desta forma, quando pensamos hoje as discursividades que envolvem as
práticas de leitura e escrita literárias, consideramos a rede de posições e relações de
saber/poder que envolvem os sujeitos e sujeitas que leem e escrevem, as instituições
como as escolas e as editoras e, especialmente, os enunciados efetivamente
pronunciados sobre a leitura e literatura que formaram arquivos e balizam a nossa visão
do que é /como e quem lê e escreve literatura hoje. Por isso, amparamo-nos em
Foucault quando este ressalta que a arqueologia é análise do discurso em sua
modalidade de arquivo, ou seja, o conjunto dos discursos que foram efetivamente
produzidos e que são retomados, ampliados, esquecidos e lembrados na sociedade a
partir de uma lei de descontinuidade. O interesse é saber como os discursos têm se
manifestado em enunciados, mantidos e transformados nos diferentes domínios do
saber.
A noção foucaultiana de arquivo funciona como um conceito operacional, a
partir do qual o autor estabelece as descontinuidades das unidades discursivas presentes
no campo das ciências humanas, sobretudo para refletir sobre a positividade do
discurso das ciências. Com base na noção de arquivo, os enunciados abordados são
aqueles efetivamente pronunciados com base nas regras de seu surgimento na
sociedade. Na lei do arquivo, os enunciados são descritos segundas as leis de
surgimento, de existência e de funcionamento coerentes com as leis de atualização e
transformação históricas. No arquivo, os enunciados não teriam existência apenas
enquanto o acúmulo de fatos que falariam por si e teriam funcionamento no passado.
O autor propõe que a descrição dos discursos tenha o poder de analisar o que
realmente foi dito e que foi inscrito na trama singular da história a partir de um
funcionamento do que é dito como textos preservados num espaço físico tampouco em
forma de sequências linguísticas, proposições ou frases. Com base no arquivo, Foucault
institui que a análise discursiva trata o que é dito como eventos originais que se
instituem na rede de eventos discursivos e não-discursivos. Por este caminho, o que

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importa na análise dos discursos é a singularidade do que é dito, pois os enunciados não
representam elementos residuais da linguagem. A descrição dos enunciados pressupõe
observar nas práticas discursivas os “sistemas que instauram os enunciados como
acontecimentos” (FOUCAULT, 2004, p. 146) e que possibilita ao analista do discurso a
reflexão sobre o que somos no momento presente. O arquivo são, segundo Foucault,
“sistemas de enunciados”, configuram-se como “acontecimentos (tendo suas condições
e seu domínio de aparecimento) e coisas (compreendendo sua possibilidade e seu
campo de utilização)” (p. 146).
Na rede discursiva da análise enunciativa, o dito é tratado na perspectiva de
monumentos, de acontecimentos únicos, irrepetíveis, isto é, singulares como
enunciados: “chamarei de arquivo não a totalidade de textos que foram conservados por
uma civilização [...] mas o jogo de regras que, em uma cultura, determinam o
aparecimento e o desaparecimento de enunciados, sua permanência e seu apagamento
sua existência paradoxal de acontecimentos e coisas” (FOUCAULT, 2013, p 98-99).
Com base na noção de arquivo, o filósofo delibera sobre o funcionamento dos discursos
na sociedade para que se perceba que o que é dito está sujeito a atualizações e a
retomadas no curso dos acontecimentos discursivos. O arquivo, para Foucault, não
possui uma existência física, material e não pode ser encontrado na totalidade dos
textos que foram preservados por uma civilização, nem no conjunto das marcas que se
puderam salvar de suas ruínas. O arquivo na perspectiva da análise foucaultiana,
subsiste no jogo e no conjunto de regras que determinam, em uma cultura, o
surgimento e o desaparecimento de enunciados, sua remanescência e eliminação, sua
existência paradoxal de acontecimentos e de coisas.
O arquivo constitui uma forma de memória, mas uma memória constituída
como monumento, reelaborada no presente, sincrônica porque pressupõe o embate de
vozes dissidentes à memória oficial, construída por processos de atualização e
dinamismo, cortes e fissuras às narrativas eleitas pelos discursos institucionais, ligada à
reflexão das transformações do tempo presente, mas que, acima de tudo, implica
relações de saber/poder que instituem o que será lembrado e esquecido.
Perguntamo-nos, então, inicialmente, como se constitui este arqueólogo-
arquivista na escrita de “A Arqueologia do Saber”? Seguimos o percurso da leitura
sobre o enunciado na descrição arqueológica de Foucault-arquivista, entretanto,
mediada também pelo olhar lançado por Gilles Deleuze sobre a arqueologia no ensaio
“Foucault”, publicado em 1986. Depois, apresentaremos algumas pistas para se pensar

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a noção de eu-enunciado, concebida a partir do movimento feito por Foucault,
enquanto escritor de “A Arqueologia do Saber”.

1. O arquivista e o Enunciado n’ A arqueologia


De início, comparemos a escrita de Foucault sobre o enunciado em “A
Arqueologia do Saber” ao movimento de uma serpente ao deslizar pelo caminho
traçando uma linha sinuosa numa estrada, numa areia fina que é riscada e cortada pela
marca efêmera do corpo do animal na procura, caça ou captura de uma presa. Esta é a
sensação que temos ao lermos o capítulo “O enunciado e o arquivo”. Observamos o
escritor e o filósofo que caminham como a serpente deixando o rastro de curvas,
descontinuidades, retornos ao começo, hesitações e cortes que insinuam seu percurso
textual e teórico desconcertante. Olhemos para ambos: o filósofo e o escritor
interrogam o próprio caminho que traçaram do início para abordar o discurso da forma
como têm pensado, quando aceitam o “risco” de “articular a grande superfície os
discursos” e as figuras um tanto “pouco estranhas das formações discursivas”.
Foucault, filósofo e escritor, assume a medida de precaução do seu texto que denuncia
a posição singular do seu discurso, enunciado no “espaço branco de onde falo” e ainda
“incerto e tão precário”, conforme alega na “Introdução”. Este “espaço branco” que
Foucault assume se inscreve no embate discursivo e do saber, do qual ele falava ainda
com precaução, porque antevia os perigos e limites de mover-se na ordem instituída
dos métodos e conceitos das ciências e das disciplinas: “Daí, a maneira precavida,
claudicante deste texto: a cada instante, ele se distancia, estabelece medidas de um lado
e de outro, tateia em direção a seus limites, se choca com o que não quer dizer, cava
fosso para definir seu próprio caminho” (FOUCAULT, 2004, p. 19). Foucault admite
que abriu mão, por um tempo, por questão de “método” das medidas e caminhos
convencionais de abordar a linguagem: “as unidades tradicionais do livro e da obra”; “a
unidade de leis de construção do discurso” [...] e a organização formal que disso
resulta; “a situação do sujeito falante” e “o a priori de um conhecimento”
(FOUCAULT, 2004, p. 89) que são relacionados às definições de discurso marcando o
sujeito e o lugar das experiências, ao mesmo tempo em que marca o seu lugar deste eu-
sujeito que escreve.
Mediante uma construção perigosa do período e texto, pois refuta conceitos e
orientações teóricas antes de apresentar os princípios que condizem com a arqueologia,
o escritor e filósofo, também arquivista vai revisitando temas pertinentes à ciência da

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linguagem que se propôs a contrapor e vai retomando as proposições que trouxe desde
o início do livro como o limiar de sua forma de ir pensando, sobre por qual obra “A
Arqueologia do Saber” será conhecida definitivamente na trajetória do pensamento de
Foucault: esteira e lastro dos conceitos foucaultianos. O escritor-filósofo-arquivista não
se apieda do leitor e apenas levanta suspeita, apenas insinua o caminho que pretende
realmente traçar para a abordagem discursiva: “as regras de formação” do discurso; “o
sistema de emergência dos objetos” e de “aparecimento e de distribuição dos modos
enunciativos”. (FOUCAULT, 2004, p. 89). Depois de escorregar pela escrita sinuosa de
retomada de conceitos e refutação de proposições, Foucault anuncia o propósito que
vinha perseguindo até este ponto da obra: descrever os “enunciados”. Buscando
conduzir à noção de enunciado, mas sem dar essa pista ao leitor, o arquivista pergunta:
“se o enunciado é a unidade elementar do discurso, em que consiste?” Quais sãos os
seus traços distintivos? Cauteloso se mostra e nos informa que foi construindo o
conceito, à medida que ia avançando no texto para evitar uma ingenuidade do seu ponto
de partida. E nos damos conta de que no decorrer do livro, enquanto definia o discurso,
abordava o conceito de “formação”. Foucault explica que o enunciado é uma formação
que se liga a uma série de enunciados que o precedem e aos quais se refere,
atualizando-os. O campo associado, ou domínio de memória, segundo o autor, é
condição para a existência e para a atualização de um enunciado.
A abordagem discursiva desenvolvida por pelo filósofo, a partir de conceitos
como o de enunciado e de arquivo, provocaram reações adversas na filosofia. Sem
nomear de forma direta “as pessoas rancorosas” que o comparam a um novo
representante do estruturalista, no ensaio “Foucault”, Gilles Deleuze (2005) discorre
sobre as reações surgidas quando da irrupção das ideias e dos métodos da arqueologia,
reações que o nomearam de “novo arquivista”. A leitura de Deleuze (2005, p.13)
incide sobre a noção de enunciado e enfatiza o quanto este conceito é caro na trajetória
do autor: “[...] dizem que é um epígino de Hitler”. Deleuze fala do desconforto que a
teoria foucaultiana causou em diferentes campos do conhecimento, a ponto de o autor
ser comparado a um opositor dos direitos do homem e um “farsante” que se apoia nos
textos sagrados e nem cita os grandes filósofos. Outros, para Deleuze, por outro lado,
celebram algo novo na filosofia.
Deleuze faz uma avaliação positiva sobre o método que Foucault desenvolve na
prática arqueológica, particularmente no que se refere à abordagem foucaultiana do
enunciado neste livro interessado na positividade do saber. Mostra-se irônico como se

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risse da forma como Foucault constrói a sua arqueologia sem dar pistas ao leitor que,
entretanto, intuirá e fará leituras possíveis para a obra do autor. Deleuze conforta o
leitor: “É normal que sintamos certa inquietude. Pois o arquivista, de propósito, não dá
exemplos” (DELEUZE, 2005, p.14). É, entretanto, incisivo na defesa de Foucault por
descartar as frases e as proposições e se ocupar exclusivamente do enunciado: “O novo
arquivista anuncia que só vai se ocupar dos enunciados”. (IDEM, p. 13). Para Deleuze,
a arqueologia funciona como base para a compreensão da linguagem, porém em um
nível diferenciado dos aspectos formais e internos da língua. Em vista da abordagem
discursiva com base na descrição do enunciado, Deleuze descreve Foucault como o
novo arquivista.
Deleuze elucida como Foucault adota a descrição do enunciado como caminho
principal para a configuração do método arqueológico. De tal modo, Deleuze revisita
uma passagem do texto na qual Foucault demonstra que uma sequência de elementos
linguísticos apenas constitui-se em um enunciado se estiver imersa em um campo
enunciativo, em que essa mesma sequência apareça como elemento singular. Deleuze
concentra-se na definição do enunciado delineada na arqueologia foucaultiana e
comenta o fato de que o enunciado é singular, mas que repetição é uma caraterística
que distingue melhor o enunciado de outras formações do discurso. Tal repetição do
enunciado se constitui “de forma estrita” e não é “em virtude das” condições externas
que possam afetá-lo, mas em razão da “própria materialidade interna que faz da
repetição a força característica do enunciado” (DELEUZE, 2005, p. 23). Esclarece-nos
que “o enunciado se define sempre através de uma relação específica como uma outra
coisa de mesmo nível que ele, isto é, uma outra coisa que concerne a ele próprio” (p.
23; grifos do autor). A leitura de Deleuze não nos esclarece muito até este ponto do
texto. Mas seguimos persistentes.
Desta forma, no parágrafo seguinte, Deleuze ajuda-nos a compreender que
existe uma condição de “identidade” e de “diferença” que constitui o enunciado: “O
enunciado é em si mesmo repetição, embora o que ele repete seja ‘outra coisa’ – que
pode, contudo, ser-lhe estranhamente semelhante e quase idêntica” (p. 23). É assim que
a série das letras A, Z, E, R, T disposta no teclado de uma máquina de escrever não
constitui um enunciado, mas seria o campo enunciativo no qual aparece como elemento
singular e não é mais uma sequência de letras traçada ao acaso e de forma aleatória. O
enunciado supõe sempre uma singularidade.

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A partir da reflexão de Deleuze, entendemos que o problema teórico de
Foucault incidia em “saber em que consistem essas singularidades que o enunciado
supõe” (FOUCAULT, p. 23). Para Deleuze, tal questionamento não é solucionado por
Foucault e permanece sem solução até o final de “A Arqueologia do Saber”, pois esta
questão “ultrapassa os limites do ‘saber’” (p. 23; grifos do autor) e já anuncia a questão
do poder a ser apresentada nas obras seguintes escritas por Foucault. Neste caminho, a
exposição de Deleuze sobre o Foucault arquivista deixa evidente que o leitor precisa
intuir sobre o problema do poder associado ao saber, como uma questão que
corresponde ao “novo domínio” do pensamento foucaultiano, mas que a será tratado
apenas nas obras posteriores.
Deleuze ressalta que o enunciado pressupõe raridade, na medida em que “não
apenas poucas coisas sejam ditas”, mas, “porque poucas coisas realmente possam ser
ditas” (DELEUZE, 2005, p. 15; grifos do autor). A exaustiva leitura de Deleuze mostra
que os enunciados existem dentro de três fatias de espaço que permitem a sua
singularidade que, entretanto, promovem acúmulo ou efeito dessa raridade: O primeiro
é o espaço colateral, associado ou adjacente, formado por outros enunciados do mesmo
grupo; o segundo é espaço correlativo: que trata da relação do enunciado com os seus
sujeitos, seus objetos e seus conceitos; a terceira fatia, explica Deleuze, é o espaço
complementar, ou formações não-discursivas, quais sejam, “instituições,
acontecimentos políticos, práticas, processos econômicos” (p. 21; grifos do autor). É
dessa forma que Foucault define o discurso como sendo “um conjunto de enunciados,
na medida em que se apoia na mesma formação discursiva” (2004, p. 132). Foucault
ainda esclarece que o discurso “não forma uma unidade retórica ou formal,
indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar (e
explicar, se for o caso) na história” (p.132). Constitui-se “de um número limitado de
enunciados” (p. 132) e segundo regras de existência no campo indeterminado da
história:

O discurso, assim entendido, não é uma forma ideal e atemporal que


teria, além do mais, uma história; o problema não consiste em saber
como e por que ele pode emergir e tomar corpo um determinado ponto
do tempo; é, de parte a parte, histórico - fragmento de história,
unidade e descontinuidade na própria história, que coloca o problema
de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos
modos específicos de sua temporalidade, e não de seu surgimento
abrupto em meio às cumplicidades do tempo. (FOUCAULT, 2004, p.
133).

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Assim, ressaltamos com Deleuze que, na perspectiva foucaultiana, a análise
enunciativa é, pois, uma análise histórica: aos enunciados pergunta-se “de que modo
existem, o que significa para eles o fato de se terem manifestado, de terem deixado
rastros e, talvez, de permanecerem para uma reutilização eventual”; o que é para elas o
fato de terem aparecido – e nenhuma outra em seu lugar (Foucault, 2004, p. 124)
Para os estudos gramaticais uma unidade elementar pode ser isolada em uma
frase ou em uma proposição, descrever essas unidades significa isolá-las e caracterizá-
las gramatical e estruturalmente. Entretanto, nos estudos discursivos foucaultianos,
descrever um enunciado significa definir as condições pelas quais uma série de
elementos sígnicos apresentou uma existência específica. A formação discursiva é,
portanto, a unidade que se constata nas regularidades entre objeto, conceito, teoria e
sujeito, numa série de enunciados, o que permite definir, por exemplo, o discurso sobre
a educação, a leitura, a literatura.
É neste caminho que nos perguntamos quais sujeitos estão envolvidos, em quais
posições e o que enunciam sobre a leitura/quais arquivos de enunciados são formados a
partir dessas leituras e os que são excluídos, apagados, silenciados nessa prática?
O enunciado pressupõe uma função de existência e apresenta quatro
características: a primeira delas é a de que o enunciado possui um referencial
constituído de leis de possibilidade, ou regras de existência para os objetos que se
encontram nomeados ou descritos e para as relações que se encontram nomeados ou
descritos e para as relações que se encontram confirmadas ou negadas; a segunda
característica diz respeito a existência de em um sujeito que fala, mas não um sujeito
transcendental ou antropológico, mas uma posição de sujeito funcionando, que pode ser
ocupada por diferentes indivíduos, sob certas condições.
Como terceira característica de existência dos enunciados, Foucault ressalta que
está ligado a um domínio associado ou domínio de memória que lhe apresenta relações
com o passado e lhe abre um futuro eventual e que é constituído pelo conjunto de
formulações no interior das quais o enunciado se inscreve e com os quais poderá se
apagar ou ser valorizado, conservado, cristalizado, repetido, modificado, atualizado e
oferecido como objeto a discursos futuros. Por fim, o enunciado possui existência
material repetível que lhe é constitutiva e é da ordem da Instituição, ao mesmo tempo
em que entram em redes; coloca-se em campos de utilização, transformação e a
modificações possíveis.

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Pensemos, hoje, nos enunciados “Quem matou Marielle Franco?”, “Quem
mandou matar Marielle Franco?”, “Marielle, presente!”, “Quem matou Marielle e
Anderson Silva?”. Como/quanto foram e são muitas vezes repetidos e retomados após o
assassinato da vereadora e ativista carioca e o motorista Anderson, para dizermos que
tais enunciados já fazem parte do arquivo da história recente da política no país. Estes
se associam a outros ditos singulares e únicos no momento atual das lutas e resistências
das sujeitas negras, tais como: “Resistimos” “Marielles”, “Não vão nos calar” e a
outros movimentos que se fortaleceram nas lutas contra o genocídio negro e a favor dos
direitos das mulheres e homens negras e negros, estão nas histórias das mulheres e
homens e atualizam os lugares materiais e simbólicos anteriores – quilombos, Zumbis e
Dandaras – são atualizados, associados às suas lutas e sua inscrição nos corpos dessas
sujeitas e sujeitos negras/os na história política do país hoje. Nessa direção de pensar o
enunciado em sua relação com o processo de subjetivação, tomemos agora o espaço de
escrita do próprio Michel Foucault, a partir da noção de eu-enunciado que estamos
desenvolvendo, considerando a posição de sujeito de uma escritura, para entender o
funcionamento do sujeito-autor de “A Arqueologia do Saber”.

2. O escritor e o eu-enunciado n’ A Arqueologia


Ler Foucault é muito desafiador. Não é somente uma leitura para obter
conhecimento, para fundamentar nossas questões de pesquisa, para nos enquadrar num
campo teórico e ter reconhecimento acadêmico. Ler Foucault é ser desafiado a cada
linha escrita. É estar em confronto com outro eu que nos instiga, nos incomoda, nos
irrita, nos faz infames leitores por percebermos nossa pequenez conteudística. Ler
Foucault é nos encontrar no limiar dos atravessamentos possíveis, na instabilidade dos
sentidos produzidos, no lugar da tessitura filosófica, nas amarras das teias de saberes e
poderes que nos constituem cotidianamente.
Ler Foucault opera deslocamentos. Isso é o que nos move para um outro lugar: o
da escritura foucaultiana, como espaço de produção de uma linguagem ao infinito,
natural da posição de autor que lança sua flecha, cuja discursividade implicada inicia
um movimento não-linear, disperso, mas que acusa uma posição de autor em
funcionamento. Começamos, então, a olhar para o movimento feito pelo Foucault
escritor desde a orelha do livro, destacando a seguinte pergunta :

Com que propósito escrevi este livro? Para explicar o que quis fazer
nos livros precedentes em que tantas coisas ficaram obscuras? Não
só, nem exatamente, mas, indo um pouco mais longe, para retornar

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como que por uma nova volta de espiral, a um ponto anterior ao que
havia empreendido; mostrar de onde eu falava; demarcar o espaço
que torna possíveis essas pesquisas e outras talvez que jamais
concluirei; em suma, para dar significação à palavra arqueologia que
eu havia deixado vazia. (FOUCAULT, 2004).
Um esclarecimento feito por Foucault? Uma satisfação para seus leitores
curiosos? Não. Um torcer-se sobre si, uma dobra que parece própria da posição
foucaultiana de escritor. A “nova volta de espiral” para demarcar espaço. Foucault
escritor dobra-se para falar de si, constituindo-se neste movimento em espiral. A
escritura tem esta função enunciadora de nos torcer sobre nós mesmos, dizendo quem
somos, ao falar de outras coisas, ao falar de arqueologia(s).
Este movimento espiralar acontece exatamente para “dar significação à palavra
arqueologia”, palavra que ele considera perigosa, na continuidade de seu texto-orelha do
livro, pois “evoca rastros caídos fora do tempo”, tratando-se de descrever discursos, não
livros, não teorias, mas conjuntos familiares e enigmáticos, nas palavras do próprio
Foucault, unidades que formam domínios autônomos, mas não independentes, regrados,
em contínua transformação e sem sujeitos, mesmo integrando obras individuais.
Retomamos aqui essa escritura para fazer aparecer um lugar de autor, não da ordem do
nome próprio, que assina uma obra, mas um lugar de escritura que subjetiva, produz
sujeitos e produz uma discursividade nova, sem molduras fixas, sem o estriamento
próprio das normalizações escriturísticas, uma escritura arqueológica, cujos saberes
produzidos se dão na dispersão dos enunciados.
Cabe insistir em perguntar qual o lugar do enunciado n’ A Arqueologia? O
enunciado compõe uma engrenagem juntamente com os discursos e os sujeitos
produzidos. Esta engrenagem arqueológica foucaultiana acusa a natureza instável,
sempre em movimento do enunciado, que não é da ordem do linguístico, como já
dissemos, mas da ordem dos acontecimentos e possui certa regularidade que é
responsável por sua (trans)formação. “Assim, o enunciado circula, serve, se esquiva,
permite ou impede a realização de um desejo, é dócil ou rebelde a interesses, entra na
ordem das contestações e das lutas, torna-se tema de apropriação ou de rivalidade
(FOUCAULT, 2004, p. 119)”.
O enunciado foucaultiano é da ordem do funcionamento discursivo e da
subjetivação e está diretamente ligado à produção dos discursos que, por sua vez,
constitui o arquivo. Este reúne as condições históricas para existência dos enunciados,
sua produção, (des)aparecimento, sujeições e rupturas. O arquivo, claro, está sujeito às

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relações de saber/poder, podendo funcionar no interior de um dispositivo, de acordo
com toda rede de elementos discursivos ou não-discursivos que buscam exercer o
controle dos sujeitos.

Por esse termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto


decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas,
morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos
do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre
estes elementos (FOUCAULT, 2015, p. 364).
A língua funcionando como controle dos sentidos produzidos, das formas
delineadas, dos sujeitos autores. Necessário se faz acompanhar, portanto, o movimento
foucaultiano de escrituração de seus textos, na direção de resistir e reinventar-se nesta
luta com o espaço sempre cheio de contornos que é a escritura, onde insurge o eu-
enuciado foucaultiano.
Na introdução desta obra, Foucault continua apresentando os indícios de sua
escritura em espiral. Defendendo uma perspectiva da história não-linear, Foucault
anuncia sua “empresa”, cujo perfil foi traçado pela “História da loucura”, “Nascimento
da clínica” e em “As Palavras e as coisas”, que ele ressalta ter feito “muito
imperfeitamente”:

Trata-se de uma empresa pela qual se tenta medir as mutações que se


operam, em geral, no domínio da história; empresa onde são postos
em questão os métodos, os limites, os temas próprios da história das
ideias; empresa pela qual se tenta desfazer as últimas sujeições
antropológicas; empresa que quer, em troca, mostrar como essas
sujeições puderam-se formar. Estas tarefas foram esboçadas em uma
certa desordem, e sem que sua articulação geral fosse claramente
definida. Era tempo de lhes dar coerência – ou, pelo menos, de
coloca-las em prática. O resultado desse exercício é este livro.
(FOUCAULT, 2004, p. 17).
Foucault escritor fala de seu projeto de escritura, que resulta na produção de “A
Arqueologia do Saber”. De uma escrita que não cristaliza, não imobiliza, mas dá conta
de movimentações, desconstruções e (des)subjetivações, que dá conta de estabelecer a
coerência de tarefas “esboçadas numa desordem”, na dispersão de suas obras, como
exercício que resulta no livro d’A arqueologia. Na linha deste desafiar-se na escritura,
Foucault, ainda na introdução do livro, insurge com um diálogo, ou melhor, talvez um
duelo:
- Você não está seguro do que diz? Vai novamente mudar, deslocar-
se em relação às questões que lhe são colocadas, dizer que as
objeções não apontam realmente para o lugar que você se pronuncia?

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Você se prepara para dizer, ainda uma vez, que você nunca foi aquilo
que em você se critica? Você já arranja a saída que lhe permitirá, em
seu próximo livro, ressurgir em outro lugar e zombar como o faz
agora: não, não, eu não estou onde você me espreita, mas aqui de
onde o observo rindo. (FOUCAULT, 2004, pag. 19).
- Como?! Você pensa que eu teria tanta dificuldade e tanto prazer em
escrever, que eu teria me obstinado nisso, cabeça baixa, se não
preparasse – com as mãos um pouco febris – o labirinto onde me
aventurar, deslocar meu propósito, abrir-lhe subterrâneos, enterrá-lo
longe dele mesmo, encontrar-lhe desvios que resumem e deformam
seu percurso, onde me perder e aparecer, finalmente, diante de olhos
que eu não terei mais que encontrar? Vários, como eu sem dúvida,
escrevem para não ter mais rosto. Não me pergunte quem sou e não
me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela
rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de
escrever. (FOUCAULT, 2004, p. 20)

Este diálogo-duelo é esplêndido para pensar no Foucault escritor e seu processo


de subjetivação pela escritura. Marca-se o lugar do sujeito que escreve, afastando-se de
si ao enunciar-se, ao se encontrar na posição de autor. Movimento semelhante ao do
pintor no quadro de Velazquez, Las meninas, o qual se afasta para olhar para fora de sua
obra, coincidindo seu olhar com o de quem o vê pintar uma cena. Quanto mais distante
de si, mais insurge seu eu-enunciado, eu-autor. O embate também é institucional,
rejeitando e resistindo a esta posição de escritor como algo fixo, louvável, da ordem
moral de um estado civil: “Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever”
(FOUCAULT, 2004, p. 20). Uma verdadeira insurreição escriturística. Engana-se quem
acha que está preso ao sistema de escrita, ao sistema gramatical, linguístico, ao sistema
de autoria. O eu-enunciado encontra suas brechas e resiste.
Faremos, como Foucault, um retorno, um movimento sobre o si da escritura de
“A Arqueologia do Saber” para acompanhar este movimento do autor. Vamos à versão
inédita, não publicada, da introdução da obra, disponibilizada no “Cahier de l’Harne”,
por Artières, Bert, Gros e Revel (2004). A consideração desta versão é de extrema
importância, por ter sido base para a perspectiva do eu-enunciado que, neste artigo, se
faz emergente para pensar na subjetivação de Foucault como autor. Serão apresentadas,
a seguir, algumas imagens feitas de quatro páginas da referida obra, nas quais é possível
acompanhar este movimento do Foucault escritor.
Trata-se da primeira versão manuscrita do capítulo de abertura do que se tornaria
“A Arqueologia do Saber”. Os autores destacam que só foram retranscritas as passagens
não riscadas por Foucault e que a transcrição foi realizada por Frédéric Gros. Intitulado

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“O livro e o sujeito”, o texto inicia remetendo à ideia de empresa que destacamos
alhures.

(ARTIÈRES, BERT, GROS, REVEL, 2014, p. 40)

Nesta primeira versão não publicada, Foucault inicia alertando: “Não é


absolutamente um programa” (ARTIÈRES et al, 2014, p. 40), como também diz não ser
um balanço. O livro “A Arqueologia do Saber” define-se, nas palavras do autor,
“inteiramente pelas relações que mantém com estudos já feitos, com outros que serão,
talvez, acabados um dia, com outros também cujo projeto será logo apagado”. Este
alerta anunciado já funciona marcando o lugar insurgente do sujeito escritor e de sua
relação com o livro, em seu movimento de aproximação e distanciamento da escrita
produzida. O sujeito da escritura é, portanto, um sujeito insurgente, dado a resistir,
infiltrar-se nas ordens escriturísticas para propor novas direções, meadas inusitadas que
possibilitam dar visibilidade aos pontos que não estavam evidentes.
Continuamos seguindo as pistas destes movimentos de Foucault, na direção do
que o constitui sujeito-enunciado, sujeito que a cada produção escriturística, ao invés de
sujeitar-se a uma ordem que o nomeia como autor de uma obra, distancia-se desta
linguagem que o identifica, sendo subjetivado por ela, pois, na posição de autor apenas
lançará a flecha, possibilitando a produção de uma discursividade ao infinito:
(...) O espelho ao infinito que toda linguagem faz nascer assim que
ela se insurge verticalmente contra a morte, a obra não o tornava
visível sem rechaçá-lo: ela colocava o infinito fora dela mesma –
infinito majestoso e real do qual ela se fazia o espelho virtual,
circular, rematado em uma bela forma fechada. (...) Escrever, hoje,
está infinitamente próximo de sua origem. Isto é, desse ruído

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inquietante que no fundo da linguagem anuncia, logo que se abre um
pouco ao ouvido, aquilo contra o que se resguarda e ao mesmo tempo
a quem nos endereçamos. (FOUCAULT, 2015, p. 53).

Foucault, sempre se colocando neste lugar de pensar a relação


sujeito/linguagem, numa luta nada vã com as palavras, mas numa luta que desestrutura,
incomoda, desafia, inquieta e faz insurgirem novos elementos. Na introdução não
publicada de “A Arqueologia do Saber”, fica bem visibilizada esta forma de Foucault se
posicionar diante do que escreve, ou melhor, de se dar conta de que não está numa
posição privilegiada:

(ARTIÈRES, BERT, GROS, REVEL, 2014, p. 42)

Ao mesmo tempo em que reconhece certo sujeitamento à publicação “em seu


nome”, a uma ordem do sistema de publicação, coloca-se no lugar de quem “sabe” que
tudo isso foi por escolher tratar do que o agradou e o possibilitou “sacudir a poeira”,
dando-lhe a impressão de dar a ver ao leitor muitas coisas, pela primeira vez. No fundo,
esta é a posição que Foucault ocupa: de falar das brechas, das inquietações, das
margens. E é desse lugar “não privilegiado” que Foucault se confronta, começando a
fazer aparecer este eu-enunciado, que vai se (des)subjetivando ao longo de sua escritura,
serpenteando em meio ao autor que precisa nomear a si, mas reconhece este eu que o
persegue:

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(ARTIÈRES, BERT, GROS, REVEL, 2014, p. 48)

“Há já 10 páginas e mais de um dia que eu digo “Eu”, obstinadamente, sem ser
capaz, parece-me, de pronunciar uma só frase impessoal. Devo reconhecer, no entanto,
que é um "eu” bem abstrato” (ARTIÈRES, BERT, GROS, REVEL, 2014, p. 48).
Fiquemos atentos a esta distinção: o Eu com maiúscula, da escrita, que enuncia a si
num tempo/espaço da escritura em seu fazer-se, e o “eu”, abstrato que, como Foucault
ressalta, não é sua biografia intelectual que empreende, à moda de como universitários
alemães o praticavam, nem juntar à escrita o que tem de mais perto dele como seu
presente, ainda que falasse do que desejava, do que tinha esperado ou ignorado. E se
fosse isso o que desejasse fazer, não seria desta maneira. Enfim, nesta introdução não
publicada, não enunciada, invisibilizada, mas rascunhada, estava aquilo que hoje
estamos chamando de eu-enunciado.
Como avaliar este lugar de fala? Seria um “eu” abstrato, que também não
intenciona uma biografia? Há um eu, que é enunciado e que, provavelmente, se
distingue pelo exercício de saber/poder, a partir do qual a linguagem é uma força que
incide sobre outros sujeitos, pela distinção estabelecida. E retomando e parafraseando a
epígrafe deste artigo, neste gesto de escrita, ao contrário, o sujeito que escreve não pára
de desaparecer. Quanto mais enuncia a si, mais desaparece o “eu sou” da escrita. Este
‘eu’ seria, então, não um eu-institucional, um eu que se institui a si, mas um eu
diferente, que se constitui como eu-enunciado foucaultiano. Vejamos:

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(ARTIÈRES, BERT, GROS, REVEL, 2014, p. 49)
“Esse “eu” que aparece agora um pouco contra minha vontade está muito mais
longe do que eu temia quando o vi aparecer; muito mais perto do que eu escrevi”
(ARTIÈRES, BERT, GROS, REVEL, 2014, p. 49). Este “eu-enunciado” é da contra-
ordem do desejo, é da ordem do seu desaparecimento. Longe da vontade de ser
enunciado e perto do ser escriturado. Este eu que não resulta na ascese de um ser do
discurso “espontaneamente anônimo”, como destaca Foucault, mas se configura como
este “suporte indelével” de tudo que disse e dirá, que não é presença em sua vida, mas a
obscuridade de sua própria experiência que irrompe, traindo seu lugar inconsciente de
partida, sendo uma função de seu discurso. Retomando, mais uma vez, a epígrafe deste
artigo, “o sujeito que escreve não para de desaparecer”.

Considerações finais
Relembramos nosso objetivo inicial de dar visibilidade ao Foucault escritor e
arquivista, como sujeito que enuncia a si, ao desenvolver seu método arqueológico em
“A Arqueologia do Saber”. Para tanto, tomamos a orelha e introdução da obra, da
edição de 2004, para destacarmos o processo de subjetivação do Foucault escritor,
confrontando-se com elementos de um dispositivo que produz linhas de força sobre seu
projeto de empreender o quadro teórico-metodológico da produção do saber.
Olhamos para onde Foucault olhou ao propor enunciar a si enquanto autor, neste
movimento sinuoso, não-linear, sempre atento, desconfiado, propondo novos percursos
de escritura quando se dá conta dos atravessamentos que se impõem como força
controladora de sua escritura. Neste momento, seu projeto de escritura rompe com as

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amarras institucionalizadoras dos sistemas de escrita. A escrita de “A Arqueologia do
Saber”, ao mesmo tempo em que deu conta de preencher determinados espaços que
Foucault julgara ainda vazios, na rede de seus “projetos” de escritura, também insurgiu
como espaço para pensar e propor um novo modo de ler a história e a constituição dos
saberes, inclusive sobre o ser da linguagem, sobre a produção de enunciados e a
constituição de arquivos.
Por fim, ao tomar como leitura a versão da introdução que não foi publicada,
mas tornada pública em 2014, numa publicação organizada conjuntamente por Artières,
Bert, Gros e Revel, na qual é disponibilizada a versão manuscrita e a sua transcrição,
pudemos conhecer um Foucault que, entre outros pontos de sua escritura, tematizou e
fez aparecer o eu-enunciado, num gesto de quem quanto mais escreve, mais desaparece.
Consideramos este olhar para o Foucault escritor e arquivista, portanto, como uma
abordagem relevante para se pensar nas práticas discursivas com leitura e escritura, bem
como para análise da produção foucaultiana em si, pelos seguintes pontos: i) por
apontar para uma estética autora, que se subjetiva ao olhar para si, na insurgência de um
duplo da/na linguagem ii) por reunir elementos para uma prática escriturística
arqueológica, que explica o modo como Foucault escreve; iii) por marcar a posição de
autor como não subordinada a uma ordem institucional da escritura, mas como
insurgente.
Referências
ARTIÈRES, Philippe, BERT, Jean-François, GROS, Frédéric, REVEL, Judith (orgs.). Michel
Foucault. Revisão técnica de Manoel Barros da Motta. Tradução de Abner Chiquieri. 1ª edição.
Rio de Janeiro: Forense, 2014.
DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução Claudia Sant’Anna Martins; revisão da tradução Renato
Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2005.
FOUCAULT. Michel. Ditos e Escritos II - Arqueologia Das Ciências e História Dos Sistemas
de Pensamento. Organização e seleção de textos Manoel Barros da Motta; tradução Elisa
Monteiro. – 3. ed. – Rio de janeiro: Forense Universitária, 2013.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7ª
edição. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
FOUCAULT, Michel. Estética: literatura, pintura, música e cinema. Organização e seleção
de textos Manoel Barros da Motta; Tradução Inês Autran Dourado Barbosa. 4ª edição. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2015. (Ditos e escritos III)
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica de
Roberto Machado. 2ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.
GREGOLIN, Maria do Rosário. O dispositivo escolar republicano na paisagem das cidades
brasileiras: enunciados, visibilidades, subjetividades. Revista Moara – Edição 43 – jan - jun
2015, Estudos Linguísticos.

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