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ALVES, Wanderson F. Trabalhar adoece? Retorno sobre algumas questões fundamentais na relação
entre trabalho e saúde. In: Silvia Zanolla; Leon Crochick. (Org.). Trabalho, Racionalidade,
Adoecimento. 1ed.Campinas: Mercado de Letras, 2021, v. 1, p. 72-89.
Trabalhar adoece?
Sobre algumas questões fundamentais na relação entre trabalho e saúde
Wanderson Ferreira Alves1
Introdução
Trabalhar adoece? A questão posta nesses termos é capciosa. Ela dá francamente a
entender que o trabalho adoece, o que é verdadeiro em diversas situações, mas dá também
a entender que se furtar ao trabalho possa nos levar ao polo oposto, logo não adoecer.
Uma estranha opção parece então surgir: trabalhar e adoecer ou, não trabalhar, não
adoecer....
Esse gênero de raciocínio que faz economia da dialética – e no qual, curiosamente, se faz
não raramente recurso a Marx, voltarei a isso mais adiante – tem também sua expressão
em uma perspectiva crítica. Ele se apresenta na discussão sobre o caráter educativo ou
não do trabalho no âmbito da sociedade capitalista. Para aqueles que conferem uma
resposta negativa à questão, o trabalho sob o capital não é outra coisa que perda e
negatividade, enfim, deformação da humanidade; mas para os outros, e me refiro aos que
defendem a primeira posição (geralmente são posições que acompanham o pensamento
de Gramsci), o trabalho na sociedade capitalista está eivado de negatividades, mas isto
não suprime seus elementos contraditórios que atuam não somente deformando, mas
também na formação de homens e mulheres mesmo, e inclusive, no trabalho2. Nesse
sentido, portanto, se poderia dizer que o trabalho apresenta uma dimensão educativa. Esta
perspectiva, como se pode depreender, não faz economia da dialética, já a que considera
o trabalho apenas pela negatividade....
1
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFG. Doutor em Educação pela USP com
pós-doutorado em ergologia pela Université d’Aix-Marseille e em sociologia do trabalho pela Université
de Paris X – Nanterre.
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A obra magna do italiano Ivar Oddone, médico e psicólogo do trabalho que soube tirar o melhor do
pensamento de Gramsci é um exemplo disto. Ele e seus colaboradores constituíram junto aos trabalhadores
da Fiat de Turim processos que aliavam conhecimento e intervenção, no que evidenciavam a riqueza da
experiência de vida e trabalho daqueles homens e mulheres na Itália dos anos 1960/1970. Cf. ODDONE,
Ivar; RE, Alessandra; BRIANTE, Gianni (1981). Redécouvrir l’experience ouvrière: vers une
autre psycologie du travail? Paris: Éditions Sociales.
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nas situações de trabalho aos bastidores e contribui para a não realização do que precisa
ser realizado naquele meio profissional. Conforme Lhuilier, essa concepção
Tudo isso não significa impossibilidade de se estabelecer relações entre trabalho e saúde.
Significa sim que a tarefa é complexa, por vezes mais complexa do que imaginamos. Uma
autora brasileira no campo Saúde Mental & Trabalho, e ela não é a única, há muito insiste
sobre isso, trata-se de Maria Elizabeth Antunes Lima.
Essa autora, seguindo a obra seminal de Louis Le Guillant e corroborando diversos pontos
identificados por ele, nos adverte sobre como é difícil apreender como se dá
concretamente a passagem entre uma situação vivida e o distúrbio psíquico. Trata-se de
algo que, nas palavras de Maria Elizabeth Antunes Lima, “permanece em aberto para todo
o campo das ciências que tratam dos transtornos psíquicos, não se limitando à nossa
disciplina e exige, por isso mesmo, um maior aprofundamento” (2013, p.92). Le Guillant
buscava articular um olhar atento ao registro biográfico (a história de vida global do
sujeito), o contexto de trabalho e seus determinantes.
Abordo agora o segundo ponto de minha exposição, trata-se de pensar os termos com os
quais operamos, notadamente o de trabalho e de saúde, e de considerar suas implicações
recíprocas.
Inicio esta seção evocando a noção de trabalho. Ela é muito importante, pois joga papel
determinante na configuração dos dispositivos de intervenção no tocante à saúde do
trabalhador. Marx é um autor fundamental nesse domínio, mas não raramente é alvo de
interpretações dogmáticas. Uma delas está na compreensão de Marx como alguém que
toma o trabalhar como sendo uma pena a ser cumprida, instância na qual o corpo fadiga,
esforço imposto e assumido na venalidade do ato. É fora de propósito nesse espaço
retomar as origens dessa interpretação, gostaria apenas de chamar atenção para o fato de
que tal concepção não é a de Marx, mas de Adam Smith, a quem Marx critica. Nos
Grundrisse, Marx escreve ironizando a concepção puritana de trabalho de Smith:
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“Tu trabalharás com o suor de teu rosto!”, foi a maldição que Jeová
lançou a Adão. E assim, como maldição, A. Smith concebe o trabalho. O
“repouso” aparece como o estado adequado, sinônimo de “liberdade” e
“felicidade”. A. Smith parece muito longe de imaginar que o indivíduo
“em seu estado normal de saúde, força, atividade, habilidade, agilidade”
também tem a necessidade de uma porção normal de trabalho e de
suspensão do repouso. Certamente, a própria medida do trabalho aparece
dada externamente pelo objetivo a ser atingido e pelos obstáculos a serem
superados pelo trabalho para sua consecução. A. Smith sequer suspeita,
porém, que essa superação de obstáculos é em si uma atividade da
liberdade – e que, além disso, as finalidades são despojadas da aparência
de mera necessidade natural externa e são postas como finalidades que,
em primeiro lugar, o próprio indivíduo põe –, logo, como autorrealização,
objetivação do sujeito, daí liberdade real, cuja ação é justamente o
trabalho. (MARX, 2011, p.509)
Mas na outra ponta Marx não perde de vista a dimensão coercitiva e de exploração
presente em muitas formas laborais:
Nos trechos acima é pertinente notar que Marx não escolhe entre uma forma e outra de
trabalho, não se trata de pensar sua face boa e sua face ruim (essa era a posição de
Proudhon, também criticado por Marx). Nesses textos preparatórios para a redação de O
Capital , Marx já estabeleceu sua concepção definitiva de trabalho (NAVILLE, 1967) e
neles a riqueza das figuras dialéticas – a relação entre parte e todo, a noção de posto e
pressuposto etc.) – mobilizadas deixa o texto incompreensível para aqueles que se guiam
pela lógica do entendimento. Por exemplo, o trabalho abstrato pressupõe o trabalho
concreto, do mesmo modo, para dar outro exemplo, a análise de Marx põe a questão do
trabalho humano no modo de produção capitalista como objeto de relações assimétricas
e de exploração, mas a análise pressupõe uma perspectiva sócio-histórica que evidencia
que o trabalho jamais pode se reduzir à sua forma na sociedade capitalista. Em dialética,
ensina Ruy Fausto (2015), o pressuposto conta.
Em suma, o trabalho não se confunde com emprego, isto é, o quadro de sua gestão no
salariato. Em sentido lato, isto é, sob a rubrica daquilo que podemos nominar como
atividade (a tätigkeit, em Marx), ele diz respeito ao próprio do ser humano, inscrevendo
uma cumulatividade histórica que não é outra coisa que a própria história da humanidade.
Nesse sentido muito preciso o trabalho é algo comum a não importa qual forma social,
do neolítico aos nossos dias; e a humanidade, lembra Schwartz (2007), não esquece nada,
como testemunham os estudos no âmbito da antropologia da técnica cujas investigações
de André Leroi-Gourhan dão provas inequívocas.
Mas, vejamos bem, se isso nos coloca em aviso quanto à confusão entre trabalho e
salariato, ponto em relação ao qual a distinção é um mérito indelével de Marx, não se
deve – e na mesma medida – deixar de reter que o trabalho em sua forma mercantil tem
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um lugar central na sociedade capitalista e na vida das pessoas, o que pode por exemplo
ser visto no drama do desemprego. O trabalho tem para as sociedades humanas um lugar
cardinal e nenhuma especulação filosófica ou jogos de linguagem podem eliminar isso.
Contudo, em que medida trabalho e saúde se implicam? Aqui Georges Canguilhem
continua a ser um autor essencial para uma compreensão ampliada das relações entre
trabalho e saúde e de sua dinâmica.
“A saúde é a vida no silêncio dos órgãos”, dizia um antigo médico-cirurgião francês, René
Leriche (1879-1955). Essa frase replicada por Georges Canguilhem nas páginas do O
Normal e o Patológico é, de muitos modos, interessante. Ela diz do corpo, do corpo que
segue em silêncio e por isso nem nos lembramos que o temos, mas que se torna nítido,
porque agora ele é um problema. Como profissionais atuando em diversos campos –
professores, assistentes sociais, psicólogos etc – que dramas quebram o silêncio dos
nossos órgãos? Na condição de trabalhadores e trabalhadoras, imersos em situações de
vida e trabalho, o que atinge nossa saúde?
Certas políticas educacionais, certas práticas de gestão, certas formas de organização do
trabalho, não são inertes em relação à nossa saúde certamente. Os casos se multiplicam e
em vários países. Exemplificarei com dois depoimentos de professores:
Meu trabalho atualmente não me satisfaz como antigamente, quando
trabalhava com crianças pequenas, porque me sinto culpada cada vez que
faço alguma coisa intuitiva. Isso está certo? Estou fazendo do jeito certo?
Será que abrange o que esperavam que eu cobrisse? Será que deveria
fazer mais alguma coisa? Deveria estruturar mais? Será que é oportuno?
Será que deveria ter feito? Você começa a questionar tudo que faz – hoje
em dia existe uma sensação de culpa no ato de ensinar. Não sei se isto
está ligado especialmente ao Ofsted [Office for Standards in Education,
o órgão responsável pela Inspeção das Escolas na Inglaterra], mas é claro
que isto se multiplica devido ao fato de que o Ofsted vai aparecer, porque
você fica apavorada com a ideia de não conseguir se justificar quando
eles chegarem. (Jeffrey; Woods apud Ball, 2005, p. 550)
[...] nós prestamos serviços pra sociedade que eles não querem, nós
somos os profissionais que o serviço que nós oferecemos é justamente o
serviço que eles não querem receber, porque você vai ao médico, o que
você espera dele? Que ele te examine bem... Então, esse serviço aqui não
tá servindo ninguém... não tá servindo ninguém. (ALVES, 2010, p.178)
Ambos os professores relatam situações que expõem a nu o drama humano que se
constituiu no mundo do trabalho nas últimas décadas. Imersos em crescentes exigências,
por vezes submetidos à contratos precários, inscritos em meios de trabalho no qual a
dimensão coletiva é cada vezes mais ausente e a dimensão individual é inflacionada pelas
práticas meritocráticas, o gesto profissional – algo com forte componente coletivo e
histórico – perde sua força, as situações de sofrimento ganham curso e se multiplicam, a
capacidade de agir nas situações de trabalho reflui.
Em cada um desses casos presentes nos relatos acima temos atos abortados, atos
interditados, gestos amputados. Talvez aqui estejamos diante a faceta mais insidiosa das
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Essas reflexões de Wallon não nos dizem sobre políticas e práticas de gestão? Isso nos
faz lembrar de algo? Em um texto mais antigo, apresentado em uma conferência sobre
educação em 1932 e intitulado Culture générale et orientation professionnelle, ele vai ao
âmago das implicações desses gêneros de iniciativa. É que o sistema tayloriano em vez
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de deixar o homem agir, ele diz, “dissocia a sua atividade ao lhe pedir unicamente um
determinado gesto artificial ou uma vigilância uniforme e sem gestos” (WALLON, 1976,
p. 209).
Disso resultou, em Yves Clot, a noção de atividade impedida. É que a atividade tem um
volume que transborda a atividade realizada. A atividade não é, portanto, restrita somente
aquilo que se faz, mas também
o que se tenta fazer sem conseguir – os fracassos - aquilo que se
desejaria ou poderia fazer, aquilo que não se faz mais, aquilo que se
pensa ou sonha poder fazer em outro momento. É necessário
acrescentar aqui – um paradoxo frequente – atividade é aquilo que
se faz para não fazer o que tem que ser feito ou ainda o que se faz
sem desejar fazer. Sem contar o que deve ser refeito. (CLOT, 2006,
p.15)
Tudo isso joga papel importante no que concerne à saúde do trabalhador. A consciência
do trabalho a ser feito e a impossibilidade de sua realização, a percepção do gesto
profissional adequado e, de outra parte, a amputação do gesto; a identificação de uma
necessidade que requer sua atuação e, por outro lado, a interdição a essa atuação, a
consciência do trabalho bem-feito e sua amputação. Tudo isso não fica sem consequências
em matéria de saúde do trabalhador. Aqui, para retomar a ideia que lancei no início desta
seção, algo rompe o silêncio dos órgãos.
Falei em diversos momentos em saúde. Entendo saúde na acepção que lhe emprestava
Georges Canguilhem. Ele dizia:
Eu me sinto bem na medida em que me sinto capaz de portar a
responsabilidade de meus atos, de portar coisas à existência e criar entre
as coisas relações que não lhes aconteceriam sem mim, mas que não seriam
o que são sem elas. Então, preciso aprender a conhecer o que elas são, para
poder mudá-las. (CANGUILHEM, 2005, p.48)
Portar a responsabilidade sobre meus atos, isso é muito importante. Como valor, como
valor vital. É tudo isso nos subtraia o taylorismo, é isso que nos subtrai certas políticas e
práticas de gestão na atualidade. Agir no dia-dia em um meio de vida e trabalho que
projeta nos privar disso não resta sem consequências. Nesse sentido bastante preciso, com
Canguilhem, pode-se dizer que somos atingidos em nossa saúde mesmo sem estarmos
doentes, o que nos coloca evidentemente sob o risco do adoecimento.
Conclusão
Tudo isso que acaba de ser dito está longe de ser uma questão apenas especulativa, uma
sorte de passa tempo intelectual. Bem ao contrário, são questões com implicações teóricas
e práticas importantes. Elas têm a ver com a nossa compreensão do trabalho humano,
nossa compreensão da saúde e nossa compreensão dos processos saúde-doença. Ora, a
concepção que temos de um objeto interfere no modo como ele é interpretado, por
decorrência implica e nos implica no “que fazer” no campo da saúde dos trabalhadores.
É por essa via, e somente por ela, que conseguiremos escapar de práticas de intervenção
que se perdem em um foco excessivamente individual (gestão dos frágeis) ou que se
perdem numa crítica estéril (primazia da denúncia). Uma longa tradição de estudos sobre
trabalho e saúde (Le Guillant, Silvadon, Tosquelles, Oddone, Wisner...) nos dão pistas
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importantes para pensar e repensar nossos modos de conhecer e intervir nos meios
laborais.
Referências:
FAUSTO, Ruy. Sentido da dialética – Marx: lógica e política. Petrópolis: Vozes, 2015.