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ALVES, Wanderson F. Trabalhar adoece? Retorno sobre algumas questões fundamentais na relação
entre trabalho e saúde. In: Silvia Zanolla; Leon Crochick. (Org.). Trabalho, Racionalidade,
Adoecimento. 1ed.Campinas: Mercado de Letras, 2021, v. 1, p. 72-89.

Trabalhar adoece?
Sobre algumas questões fundamentais na relação entre trabalho e saúde
Wanderson Ferreira Alves1

Introdução
Trabalhar adoece? A questão posta nesses termos é capciosa. Ela dá francamente a
entender que o trabalho adoece, o que é verdadeiro em diversas situações, mas dá também
a entender que se furtar ao trabalho possa nos levar ao polo oposto, logo não adoecer.
Uma estranha opção parece então surgir: trabalhar e adoecer ou, não trabalhar, não
adoecer....
Esse gênero de raciocínio que faz economia da dialética – e no qual, curiosamente, se faz
não raramente recurso a Marx, voltarei a isso mais adiante – tem também sua expressão
em uma perspectiva crítica. Ele se apresenta na discussão sobre o caráter educativo ou
não do trabalho no âmbito da sociedade capitalista. Para aqueles que conferem uma
resposta negativa à questão, o trabalho sob o capital não é outra coisa que perda e
negatividade, enfim, deformação da humanidade; mas para os outros, e me refiro aos que
defendem a primeira posição (geralmente são posições que acompanham o pensamento
de Gramsci), o trabalho na sociedade capitalista está eivado de negatividades, mas isto
não suprime seus elementos contraditórios que atuam não somente deformando, mas
também na formação de homens e mulheres mesmo, e inclusive, no trabalho2. Nesse
sentido, portanto, se poderia dizer que o trabalho apresenta uma dimensão educativa. Esta
perspectiva, como se pode depreender, não faz economia da dialética, já a que considera
o trabalho apenas pela negatividade....

1
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFG. Doutor em Educação pela USP com
pós-doutorado em ergologia pela Université d’Aix-Marseille e em sociologia do trabalho pela Université
de Paris X – Nanterre.
2
A obra magna do italiano Ivar Oddone, médico e psicólogo do trabalho que soube tirar o melhor do
pensamento de Gramsci é um exemplo disto. Ele e seus colaboradores constituíram junto aos trabalhadores
da Fiat de Turim processos que aliavam conhecimento e intervenção, no que evidenciavam a riqueza da
experiência de vida e trabalho daqueles homens e mulheres na Itália dos anos 1960/1970. Cf. ODDONE,
Ivar; RE, Alessandra; BRIANTE, Gianni (1981). Redécouvrir l’experience ouvrière: vers une
autre psycologie du travail? Paris: Éditions Sociales.
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Reordenemos, portanto, as questões. Em primeiro lugar, não se trata de considerar que


trabalhar adoece, mas de se perguntar quando trabalhar adoece. Em segundo lugar
envolve pensar o que estamos nominando de trabalho e de saúde, e no que se implicam.
Sem dúvida essas duas questões se apresentam como básicas, no sentido de questões que
estão na base, no fundamento, daquilo que se quer conhecer, mas, como diz um antigo
ditado popular: o diabo está nos detalhes. Argumentarei que é atravessando, por assim
dizer, esses aspectos é que poderemos melhor compreender o tipo de racionalidade
presente no mundo do trabalho contemporâneo e poderemos delinear melhor os modos
de intervir no âmbito do processo saúde-doença.

Quando trabalhar adoece


Os nexos entre trabalho e adoecimento são, como se sabe, estudados há muito tempo. A
obra clássica e incontornável de Bernardino Ramazzini, “As doenças dos trabalhadores”,
publicada em 1700, não é outra coisa que um estudo do adoecimento dos trabalhadores
em diferentes profissões. Ele busca conhecer as doenças das lavadeiras, dos joalheiros,
dos carregadores, dos pescadores, dos salineiros, dos agricultores, dos pedreiros etc.
O fato de uma questão ter uma história antiga não a torna por si resolvida ou mais clara.
De um lado é preciso reconhecer os avanços na capacidade de melhor conhecer os
processos laborais que podem conduzir ao adoecimento: sabe-se hoje, por exemplo, que
as doenças de descompressão, aquelas relacionadas por exemplo ao trabalho em mergulho
profundo, podem incluir surdez, perda de massa óssea e ter implicações neurológicas
irreversíveis. Ademais, vale registrar que no Brasil a instituição do NTEP permitiu a
associação das diferentes profissões com dados estatísticos relativos ao perfil de
adoecimento naquele setor. Como a comprovação da vinculação entre doença e trabalho
envolve relações econômicas e de poder (a relação capital-trabalho), o litígio não era
incomum. O NTEP foi nesse aspecto muito importante. Mas, como veremos a seguir,
nada é simples nesse domínio.
O outro lado da questão, e continuo fazendo referência aqui a identificação de nexos entre
os processos de adoecimento e o trabalho, nos revela que as relações saúde-trabalho
restam, para usar os termos de Dominique Lhuilier (2012), em uma persistente opacidade.
É que, como mostra a referida autora, ao lado das questões clássicas como a de que as
relações entre trabalho e saúde são multifatoriais e que tendem a escapar de uma
atribuição causal unívoca, ao lado, também, da compreensão de que os efeitos do trabalho
na saúde estão em interação com a vida fora do trabalho e se distanciam no tempo.
Além disso, e continuo aqui seguindo Lhuilier de perto, obstáculos ao conhecimento das
relações entre trabalho e saúde se colocam quando se dissolve o trabalho nas condições
de trabalho, quando o fulcro da análise se circunscreve ao emprego, quando a investigação
se limita ao trabalho prescrito e secundariza o trabalho real, ocultando a atividade
impedida. Esses aspectos são já per si são indicadores da complexidade das relações entre
trabalho e saúde. Contudo, um conjunto de complicadores advindos das atuais mudanças
no mundo do trabalho adiciona um outro patamar de dificuldade para a compreensão das
relações entre trabalho e saúde: a constituição e prevalência do que se pode chamar de
concepção gestionária do trabalho, concepção essa que remete as práticas profissionais
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nas situações de trabalho aos bastidores e contribui para a não realização do que precisa
ser realizado naquele meio profissional. Conforme Lhuilier, essa concepção

se alimenta de um imaginário social que combina individualização, culto


da excelência e negação dos limites. Daí, as possibilidades de pensar,
dizer, debater sobre as dificuldades encontradas, e sobre as provas pelas
quais passam a atividade, se reduzem. Por outro lado, novas atividades
se desenvolvem: atividade de simulação de conformidade esperada entre
regras e objetivos, atividades de dissimulação do trabalho real. A
produção de um simulacro põe em cena uma reprodução fraudulenta do
trabalho que contribui maciçamente para o desconhecimento dos
processos de degradação da saúde no trabalho. (LHUILIER, 2012, p.14)

Tudo isso não significa impossibilidade de se estabelecer relações entre trabalho e saúde.
Significa sim que a tarefa é complexa, por vezes mais complexa do que imaginamos. Uma
autora brasileira no campo Saúde Mental & Trabalho, e ela não é a única, há muito insiste
sobre isso, trata-se de Maria Elizabeth Antunes Lima.
Essa autora, seguindo a obra seminal de Louis Le Guillant e corroborando diversos pontos
identificados por ele, nos adverte sobre como é difícil apreender como se dá
concretamente a passagem entre uma situação vivida e o distúrbio psíquico. Trata-se de
algo que, nas palavras de Maria Elizabeth Antunes Lima, “permanece em aberto para todo
o campo das ciências que tratam dos transtornos psíquicos, não se limitando à nossa
disciplina e exige, por isso mesmo, um maior aprofundamento” (2013, p.92). Le Guillant
buscava articular um olhar atento ao registro biográfico (a história de vida global do
sujeito), o contexto de trabalho e seus determinantes.

É essa perspectiva atenta às dimensões objetivas e subjetivas dos processos saúde-doença


que faz desse autor, um pesquisador médico psiquiatra que junto com outros colegas
fundará em meados do séc. XX a psicopatologia do trabalho na França, alguém
incontornável para aqueles que se interessam pelo campo da saúde do trabalhador. Essa
via permanece aberta e muito promissora.

Abordo agora o segundo ponto de minha exposição, trata-se de pensar os termos com os
quais operamos, notadamente o de trabalho e de saúde, e de considerar suas implicações
recíprocas.

Trabalho, saúde: sentidos, implicações, instâncias

Inicio esta seção evocando a noção de trabalho. Ela é muito importante, pois joga papel
determinante na configuração dos dispositivos de intervenção no tocante à saúde do
trabalhador. Marx é um autor fundamental nesse domínio, mas não raramente é alvo de
interpretações dogmáticas. Uma delas está na compreensão de Marx como alguém que
toma o trabalhar como sendo uma pena a ser cumprida, instância na qual o corpo fadiga,
esforço imposto e assumido na venalidade do ato. É fora de propósito nesse espaço
retomar as origens dessa interpretação, gostaria apenas de chamar atenção para o fato de
que tal concepção não é a de Marx, mas de Adam Smith, a quem Marx critica. Nos
Grundrisse, Marx escreve ironizando a concepção puritana de trabalho de Smith:
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“Tu trabalharás com o suor de teu rosto!”, foi a maldição que Jeová
lançou a Adão. E assim, como maldição, A. Smith concebe o trabalho. O
“repouso” aparece como o estado adequado, sinônimo de “liberdade” e
“felicidade”. A. Smith parece muito longe de imaginar que o indivíduo
“em seu estado normal de saúde, força, atividade, habilidade, agilidade”
também tem a necessidade de uma porção normal de trabalho e de
suspensão do repouso. Certamente, a própria medida do trabalho aparece
dada externamente pelo objetivo a ser atingido e pelos obstáculos a serem
superados pelo trabalho para sua consecução. A. Smith sequer suspeita,
porém, que essa superação de obstáculos é em si uma atividade da
liberdade – e que, além disso, as finalidades são despojadas da aparência
de mera necessidade natural externa e são postas como finalidades que,
em primeiro lugar, o próprio indivíduo põe –, logo, como autorrealização,
objetivação do sujeito, daí liberdade real, cuja ação é justamente o
trabalho. (MARX, 2011, p.509)

Mas na outra ponta Marx não perde de vista a dimensão coercitiva e de exploração
presente em muitas formas laborais:

No entanto, A. Smith está certo, já que o trabalho, em suas formas


históricas como trabalho escravo, servil e assalariado, sempre aparece
como repulsivo, sempre como trabalho forçado externo, perante o qual
o não trabalho aparece como “liberdade” e “felicidade”. (id.ibid.)

Nos trechos acima é pertinente notar que Marx não escolhe entre uma forma e outra de
trabalho, não se trata de pensar sua face boa e sua face ruim (essa era a posição de
Proudhon, também criticado por Marx). Nesses textos preparatórios para a redação de O
Capital , Marx já estabeleceu sua concepção definitiva de trabalho (NAVILLE, 1967) e
neles a riqueza das figuras dialéticas – a relação entre parte e todo, a noção de posto e
pressuposto etc.) – mobilizadas deixa o texto incompreensível para aqueles que se guiam
pela lógica do entendimento. Por exemplo, o trabalho abstrato pressupõe o trabalho
concreto, do mesmo modo, para dar outro exemplo, a análise de Marx põe a questão do
trabalho humano no modo de produção capitalista como objeto de relações assimétricas
e de exploração, mas a análise pressupõe uma perspectiva sócio-histórica que evidencia
que o trabalho jamais pode se reduzir à sua forma na sociedade capitalista. Em dialética,
ensina Ruy Fausto (2015), o pressuposto conta.

Em suma, o trabalho não se confunde com emprego, isto é, o quadro de sua gestão no
salariato. Em sentido lato, isto é, sob a rubrica daquilo que podemos nominar como
atividade (a tätigkeit, em Marx), ele diz respeito ao próprio do ser humano, inscrevendo
uma cumulatividade histórica que não é outra coisa que a própria história da humanidade.
Nesse sentido muito preciso o trabalho é algo comum a não importa qual forma social,
do neolítico aos nossos dias; e a humanidade, lembra Schwartz (2007), não esquece nada,
como testemunham os estudos no âmbito da antropologia da técnica cujas investigações
de André Leroi-Gourhan dão provas inequívocas.

Mas, vejamos bem, se isso nos coloca em aviso quanto à confusão entre trabalho e
salariato, ponto em relação ao qual a distinção é um mérito indelével de Marx, não se
deve – e na mesma medida – deixar de reter que o trabalho em sua forma mercantil tem
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um lugar central na sociedade capitalista e na vida das pessoas, o que pode por exemplo
ser visto no drama do desemprego. O trabalho tem para as sociedades humanas um lugar
cardinal e nenhuma especulação filosófica ou jogos de linguagem podem eliminar isso.
Contudo, em que medida trabalho e saúde se implicam? Aqui Georges Canguilhem
continua a ser um autor essencial para uma compreensão ampliada das relações entre
trabalho e saúde e de sua dinâmica.

“A saúde é a vida no silêncio dos órgãos”, dizia um antigo médico-cirurgião francês, René
Leriche (1879-1955). Essa frase replicada por Georges Canguilhem nas páginas do O
Normal e o Patológico é, de muitos modos, interessante. Ela diz do corpo, do corpo que
segue em silêncio e por isso nem nos lembramos que o temos, mas que se torna nítido,
porque agora ele é um problema. Como profissionais atuando em diversos campos –
professores, assistentes sociais, psicólogos etc – que dramas quebram o silêncio dos
nossos órgãos? Na condição de trabalhadores e trabalhadoras, imersos em situações de
vida e trabalho, o que atinge nossa saúde?
Certas políticas educacionais, certas práticas de gestão, certas formas de organização do
trabalho, não são inertes em relação à nossa saúde certamente. Os casos se multiplicam e
em vários países. Exemplificarei com dois depoimentos de professores:
Meu trabalho atualmente não me satisfaz como antigamente, quando
trabalhava com crianças pequenas, porque me sinto culpada cada vez que
faço alguma coisa intuitiva. Isso está certo? Estou fazendo do jeito certo?
Será que abrange o que esperavam que eu cobrisse? Será que deveria
fazer mais alguma coisa? Deveria estruturar mais? Será que é oportuno?
Será que deveria ter feito? Você começa a questionar tudo que faz – hoje
em dia existe uma sensação de culpa no ato de ensinar. Não sei se isto
está ligado especialmente ao Ofsted [Office for Standards in Education,
o órgão responsável pela Inspeção das Escolas na Inglaterra], mas é claro
que isto se multiplica devido ao fato de que o Ofsted vai aparecer, porque
você fica apavorada com a ideia de não conseguir se justificar quando
eles chegarem. (Jeffrey; Woods apud Ball, 2005, p. 550)
[...] nós prestamos serviços pra sociedade que eles não querem, nós
somos os profissionais que o serviço que nós oferecemos é justamente o
serviço que eles não querem receber, porque você vai ao médico, o que
você espera dele? Que ele te examine bem... Então, esse serviço aqui não
tá servindo ninguém... não tá servindo ninguém. (ALVES, 2010, p.178)
Ambos os professores relatam situações que expõem a nu o drama humano que se
constituiu no mundo do trabalho nas últimas décadas. Imersos em crescentes exigências,
por vezes submetidos à contratos precários, inscritos em meios de trabalho no qual a
dimensão coletiva é cada vezes mais ausente e a dimensão individual é inflacionada pelas
práticas meritocráticas, o gesto profissional – algo com forte componente coletivo e
histórico – perde sua força, as situações de sofrimento ganham curso e se multiplicam, a
capacidade de agir nas situações de trabalho reflui.
Em cada um desses casos presentes nos relatos acima temos atos abortados, atos
interditados, gestos amputados. Talvez aqui estejamos diante a faceta mais insidiosa das
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políticas e práticas atravessadas pelo ideário neoliberal, marca do desinvestimento do


estado em relação às suas responsabilidades sociais, e pelas práticas de gestão enredadas
por uma racionalidade gestionária que busca governar o trabalho dos homens e mulheres
a partir do trabalho prescrito. Nesse ponto, curiosamente, um século depois, tais políticas
e práticas reencontram o ideário tayloriano.
Ambas, política neoliberal e racionalidade gestionária, marcas de nosso tempo. Ambas,
presentes no serviço público no Brasil e hoje, talvez mais que nunca, no cenário nacional.
Será que nós bem dimensionamos as implicações dessas políticas e práticas que
funcionam a partir da prescrição?
Eu me reportei agora há pouco a Taylor, quero retomar um aspecto disso. Taylor e suas
proposições, pelo drama que institui na relação entre o homem e o trabalho, de certo modo
faz quebrar o silêncio dos nossos órgãos ao chocar-se com a vida daqueles trabalhadores.
Henri Wallon traz a esse respeito algo que faz pensar. Faço questão de retomar esse autor
porque, como profundo leitor de Marx, ele mobiliza o melhor de seu pensamento para
pensar o trabalho.
Em um texto originalmente publicado em 1947, Wallon (2012) ao analisar o taylorismo
e os princípios que o orientavam chega a conclusões que nos interessam muito. Essas
conclusões interessaram muito também a sociologia do trabalho e sobretudo a psicologia
do trabalho, no qual Wallon colabora para sua renovação. Escreve Wallon,
a inovação de Taylor, que considerava plenamente natural e de uma
evidência incontestável, é de estender aos gestos do homem as mesmas
preocupações de precisão e de economia que no uso da máquina. A todo
o trabalho deve responder certos movimentos particularmente bem
adaptados e que se trata de reconhecer, selecionar, ensinar, impor […]
mesmo o trabalho mais simples não pode escapar a esta lei (2012, p.
45).
Forçando a cadência do trabalho, ele exige mais do operário. Como
fazê-lo consentir esse acréscimo de esforço? O reenvio do recalcitrante
ou do incapaz, primeiro meio. Mas ele precisa também de estimular por
outro meio que não o medo. Aquele que consegue realizar com uma
rapidez maior deve ganhar mais. Mas não proporcionalmente ao seu
rendimento. Porque ganhar demais torna o operário irregular no seu
trabalho e preguiçoso. A necessidade não pode desaparecer das suas
preocupações. Convém atribuir-lhe uma simples bonificação que
alguns calcularam que cobria à justa o preço das calorias suplementares
exigidas pelo aumento da intensidade do trabalho. Definitivamente,
Taylor não cessa de considerar o homem como uma simples máquina
que é preciso utilizar o mais economicamente possível. (id. p.46)

Essas reflexões de Wallon não nos dizem sobre políticas e práticas de gestão? Isso nos
faz lembrar de algo? Em um texto mais antigo, apresentado em uma conferência sobre
educação em 1932 e intitulado Culture générale et orientation professionnelle, ele vai ao
âmago das implicações desses gêneros de iniciativa. É que o sistema tayloriano em vez
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de deixar o homem agir, ele diz, “dissocia a sua atividade ao lhe pedir unicamente um
determinado gesto artificial ou uma vigilância uniforme e sem gestos” (WALLON, 1976,
p. 209).

A atividade do trabalhador não pode ser absorvida na sua totalidade em operações


elementares fragmentadas. A atividade tem um volume que transborda tais margens. Por
essa mesma via é preciso também destacar que um conjunto de prescrições e exigências
não produz por si o trabalho realizado, o trabalho realizado é resultado da atividade do
trabalhador. O trabalho exige, portanto, a presença da atividade, e atividade se opõe a
inércia diz Canguilhem. Conforme bem observou esse médico-filósofo, o próprio do ser
vivo é compor seu meio (2009). É oportuno reter esse aspecto.
Em se tratando de trabalho, pode-se dizer então que os homens e mulheres de certo modo
instituem – e mesmo que de maneira pouco visível – o meio, pois o já instituído é e será
sempre insuficiente para viver. Retomemos o que nos ensinaram mais de 70 anos de
estudos e pesquisa em ergonomia: o trabalho prescrito, esfera do já instituído, não
coincide com o trabalho real. A realização do trabalho nas situações concretas – e é disto
que tratam as minuciosas análises dos ergonomistas – tem a ver então, de certo modo,
com a criação. Nesse ponto chegamos ao coração do problema e Wallon nos ajuda a
compreender ao analisar o taylorismo:
privar o homem da sua iniciativa, amputá-lo da sua iniciativa durante a
sua jornada de trabalho, durante as suas oito ou dez horas de trabalho,
leva ao esforço o mais fragmentado, o mais cansativo, o mais esgotante
que se pode encontrar. (WALLON, 1976, p. 209-210)
Notem que aqui ele bate contra todo um senso comum no imaginário que cerca o trabalho:
a ideia de que a fadiga, o esgotamento se faz somente porque se exige muito do
trabalhador. Wallon mostra que Taylor faz um movimento inverso ao subtrair algo
valioso: o impulso da atividade própria ao trabalhador. Em uma palavra: ele força a
renúncia do ato. Nas palavras de Wallon:
Exige-se dele (do trabalhador) uma renúncia que o amputa de uma
grande parte das suas possibilidades, que remete ao silêncio uma série
de atividades necessárias, de movimentos que são necessários porque
constituem um espécie de todo orgânico com os gestos exigidos. Ora
essa tensão que não se pode dispender em movimentos leva a
perturbações, dissociações que avariam a máquina humana”. (id.
ibid,)
Foi em especial nesse ponto que Wallon não sendo psicólogo do trabalho contribui de
maneira formidável para a renovação da psicologia do trabalho, pois como bem assinalou
Yves Clot, ele ajudou a colocar em evidência que “ninguém pode aniquilar a atividade
pessoal do trabalhador. Na melhor das hipóteses ela é deslocada ou alienada. Mas possui
sua autonomia e não é nunca a simples medida das ações exteriores” (2006, p.14).
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Disso resultou, em Yves Clot, a noção de atividade impedida. É que a atividade tem um
volume que transborda a atividade realizada. A atividade não é, portanto, restrita somente
aquilo que se faz, mas também
o que se tenta fazer sem conseguir – os fracassos - aquilo que se
desejaria ou poderia fazer, aquilo que não se faz mais, aquilo que se
pensa ou sonha poder fazer em outro momento. É necessário
acrescentar aqui – um paradoxo frequente – atividade é aquilo que
se faz para não fazer o que tem que ser feito ou ainda o que se faz
sem desejar fazer. Sem contar o que deve ser refeito. (CLOT, 2006,
p.15)
Tudo isso joga papel importante no que concerne à saúde do trabalhador. A consciência
do trabalho a ser feito e a impossibilidade de sua realização, a percepção do gesto
profissional adequado e, de outra parte, a amputação do gesto; a identificação de uma
necessidade que requer sua atuação e, por outro lado, a interdição a essa atuação, a
consciência do trabalho bem-feito e sua amputação. Tudo isso não fica sem consequências
em matéria de saúde do trabalhador. Aqui, para retomar a ideia que lancei no início desta
seção, algo rompe o silêncio dos órgãos.
Falei em diversos momentos em saúde. Entendo saúde na acepção que lhe emprestava
Georges Canguilhem. Ele dizia:
Eu me sinto bem na medida em que me sinto capaz de portar a
responsabilidade de meus atos, de portar coisas à existência e criar entre
as coisas relações que não lhes aconteceriam sem mim, mas que não seriam
o que são sem elas. Então, preciso aprender a conhecer o que elas são, para
poder mudá-las. (CANGUILHEM, 2005, p.48)
Portar a responsabilidade sobre meus atos, isso é muito importante. Como valor, como
valor vital. É tudo isso nos subtraia o taylorismo, é isso que nos subtrai certas políticas e
práticas de gestão na atualidade. Agir no dia-dia em um meio de vida e trabalho que
projeta nos privar disso não resta sem consequências. Nesse sentido bastante preciso, com
Canguilhem, pode-se dizer que somos atingidos em nossa saúde mesmo sem estarmos
doentes, o que nos coloca evidentemente sob o risco do adoecimento.

Conclusão
Tudo isso que acaba de ser dito está longe de ser uma questão apenas especulativa, uma
sorte de passa tempo intelectual. Bem ao contrário, são questões com implicações teóricas
e práticas importantes. Elas têm a ver com a nossa compreensão do trabalho humano,
nossa compreensão da saúde e nossa compreensão dos processos saúde-doença. Ora, a
concepção que temos de um objeto interfere no modo como ele é interpretado, por
decorrência implica e nos implica no “que fazer” no campo da saúde dos trabalhadores.
É por essa via, e somente por ela, que conseguiremos escapar de práticas de intervenção
que se perdem em um foco excessivamente individual (gestão dos frágeis) ou que se
perdem numa crítica estéril (primazia da denúncia). Uma longa tradição de estudos sobre
trabalho e saúde (Le Guillant, Silvadon, Tosquelles, Oddone, Wisner...) nos dão pistas
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importantes para pensar e repensar nossos modos de conhecer e intervir nos meios
laborais.

Referências:

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professores da escola pública de ensino médio. Trabalho & Educação, vol.18, nº 2, p.81-
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FAUSTO, Ruy. Sentido da dialética – Marx: lógica e política. Petrópolis: Vozes, 2015.

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