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Vozes que Denunciam Opressões: estudos de gênero, saúde mental e alucinação


auditiva

Henrique Campagnollo Dávila Fernandes


Valeska Zanello

Gênero é uma categoria analítica que nos fornece uma perspectiva transversal
para a área da saúde, especialmente a saúde mental, campo que carrega em seu bojo a
psicopatologia tradicional. Esta ciência foi estruturada a partir de fundamentos de uma
medicina organicista, na passagem dos tempos medievais aos modernos, e foi ganhando
contornos positivistas que permitiram localizar e explicar as disposições afetivas
humanas com base em questões biológicas. Porém, quando pensamos que problemas de
saúde podem ser ocasionados por determinantes sociais, ou seja, por condições sociais
em que os indivíduos trabalham e vivem1, torna-se necessário avaliarmos o sofrimento
humano considerando seus contextos existenciais, em meio aos quais se destacam os
valores de gênero.
Pesquisas no campo da saúde mental (PHILLIPS; FIRST, 2008; ZANELLO;
FIUZA; COSTA, 2015; CAMPOS; ZANELLO, 2016; ZANELLO, 2018) apontam a
participação de valores e estereótipos de gênero na configuração de diversos sintomas
descritos nos transtornos mentais, nos manuais classificatórios. Isso ocorre tanto na
forma de expressão, quanto no conteúdo que se manifesta às vezes na mesma forma de
sintoma. Como exemplo do primeiro caso, pode-se citar o comportamento do choro,
aceitável, em sociedades sexistas como a brasileira, para mulheres, mas vista como um
elemento que fere o ideal de masculinidade, para os homens. Nesse sentido, o modo de
expressão da tristeza, no universo masculino, ocorre, muitas vezes, pela agressividade e
violência (ZANELLO, 2018) e não pelo choro, como é comum entre mulheres.
No segundo caso, temos a discussão sobre os delírios e as alucinações. Zanello e
Bukowitz (2011) apontaram em seu estudo em um hospital psiquiátrico brasileiro, o
quanto os temas das queixas e dos delírios era diferente entre homens e mulheres. No
caso dos homens, prevaleceram temas como trabalho, dinheiro, fama e sexualidade
ativa. Já no caso das mulheres, destacaram-se as queixas relacionais, que tiveram como
objeto a vida amorosa e a família. Como podemos entender a patoplastia no caso das

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Segundo a Organização Mundial da Saúde, envolvem fatores econômicos, étnicos/raciais, culturais,
psicológicos e comportamentais (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007).
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alucinações, sobretudo no que diz respeito ao gênero? Este é o tema de estudo do


presente capítulo.
Porém, mais do que fixarmo-nos no escrutínio exclusivo dos sintomas, é
necessário compreendermos sua relação como o páthos e os modos de vida, bem como
com os eventos desencadeadores da “quebra” psíquica. Ou seja, o quanto os sintomas
não apenas refletem valores e ideais culturais, mas modos de sofrimento específicos,
marcados por advires particulares. Nesse sentido, Zanello (2018) ressalta, no caso de
sociedades sexistas como a brasileira, a necessidade de se pensar em caminhos
privilegiados de subjetivação distintos, os quais foram configurados historicamente e
que constróem pontos identitários de maior vulnerabilização: os dispositivos amoroso e
materno, no caso das mulheres, e o dispositivo da eficácia, para os homens.
“Dispositivo” foi definido como o “conjunto decididamente heterogêneo que
engloba discursos, instituições (...) leis, medidas administrativas, enunciados científicos,
proposições morais, filantrópicas” (FOUCAULT, 2010, p. 244). O dispositivo amoroso,
segundo Zanello (2018), significa que o “ser” mulher se dá em uma relação afetiva com
um homem que a escolha: “em nossa cultura, os homens aprendem a amar muitas coisas
e as mulheres aprendem a amar, sobretudo, e principalmente, os homens” (p. 84). Ou
seja, o amor, ou certa forma de amar, se constitui em fator identitário para as mulheres.
O dispositivo amoroso é marcado por uma metáfora que Zanello (2018) nomeou
como “prateleira do amor” (p. 84). Quanto mais próxima do ideal estético2 - que é
jovem, louro, branco e magro -, maior a possibilidade de a mulher ser escolhida; quanto
mais afastada dele, maiores os riscos de ficar com baixa autoestima, e sentir-se
abandonada ou “encalhada”.
Já o dispositivo materno diz respeito ao ideal da mulher como reprodutora e
cuidadora (ZANELLO, 2018). Esse ideal se fortaleceu no século XVIII, quando se
passou a naturalizar nas mulheres a capacidade de maternagem (BADINTER, 1985;
DEL PRIORE, 2009). As mulheres passaram a priorizar o cuidado dos outros (filhos,
maridos, ambiente doméstico) em detrimento de si mesmas, subjetivando-se, assim, em
um heterocentramento (ZANELLO, 2018). O principal sintoma da efetividade desse

2
Segundo Del Priore (2000), esse padrão é decorrente de uma ideologia burguesa de higiene moral
surgida no século XX, que consiste em associar a juventude e a magreza como fatores indispensáveis à
saúde. Uma das categorias de análise referentes às ouvidoras de vozes que participaram deste estudo
tratará dessa questão.
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dispositivo é o sentimento de culpa, que surge frente a não consecução de deveres e


ideais socialmente prescritos (ZANELLO, 2018).
O dispositivo da eficácia, por sua vez, diz respeito à exigência de virilidade
laborativa e sexual para os homens. Ou seja, o verdadeiro homem seria um trabalhador e
um “pegador” de mulheres (ZANELLO, 2018). O “ser homem”, em nossa cultura, deve
atender a uma performance que se afaste da passividade (como na homossexualidade,
segundo o imaginário popular) ou de estereótipos associados ao “mundo” feminino.
Além disso, o trabalho se apresenta como pilar da virilidade (e, portanto, da identidade)
masculina, e serve para subjugar outros homens e prover as necessidades familiares
(ZANELLO, 2018).
Nos serviços de saúde mental é comum mulheres e homens apresentarem
demandas relacionadas aos dispositivos (ZANELLO; SOUSA, 2009; ZANELLO;
BUKOWITZ, 2011; ZANELLO et al., 2015), e seus conteúdos e temas pervadem
vários dos sintomas que comparecem no dia a dia dos serviços, como é o caso da
alucinação auditiva3 – que se caracteriza pela percepção de vozes e/ou outros sons, por
somente uma pessoa, sem que um estímulo externo tenha os eliciado. A cultura exerce
papel crucial em sua estruturação (FERNANDES; ZANELLO, 2018a) e alguns estudos
procuraram correlacionar acontecimentos que infligiram grande sofrimento e o
surgimento desse sintoma (LONGDEN; WATERMAN, 2012; KRÅKVIK et al., 2015).
Nesse sentido, há que se destacar o movimento da Rede Internacional de
Audição de Vozes (em inglês, Hearing Voices Network), considerando que o mesmo
não compreende esse fenômeno como sintoma de doença mental, mas como uma forma
de linguagem – que denuncia questões relacionadas a sexismo, racismo e outras formas
de opressão (BLACKMAN, 2015). Assim, alucinar é uma solução psicológica
vantajosa, já que as vozes agem como uma defesa contra emoções e memórias
dolorosas, enquanto que, ao mesmo tempo, clamam a necessidade de que elas sejam
ressignificadas (ROMME; ESCHER, 2000).
Cabe também ressaltar que, em razão da importância da exploração de variáveis
topográficas – características das vozes como identidade e conteúdo - para a
compreensão do fenômeno e para o cuidado clínico (FERNANDES; ZANELLO,

3
Neste estudo também utilizaremos o termo “audição de vozes” em referência às alucinações, termo que
se adequa mais à forma como o fenômeno é sentido.
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2018b), é necessário que o cuidador esteja atento a questões de gênero para conduzir o
seu manejo, principalmente em países como o nosso, caracterizado pelo sexismo e
misoginia (WAISELFIS, 2015; CERQUEIRA et al., 2019). Do contrário, há
possibilidade de que as pessoas sofram por não compreenderem suas vivências, e sejam
medicadas ou conduzidas a caminhos terapêuticos que não tenham muita resolutividade
– o que teria como efeito a permanência ou o agravamento da condição clínica.
Assim, em função da necessidade de uma escuta e de um manejo clínico da
audição de vozes que privilegie elementos que fazem parte do contexto cultural e
relacional do ouvidor, como possibilidade de maior abertura para a compreensão do
fenômeno, este artigo teve como objetivo analisar de que forma questões de gênero
contribuem para estruturar experiências de audição de vozes. Para tal, foram analisadas
narrativas de ouvidoras e ouvidores de vozes que faziam parte de um grupo destinado ao
manejo da alucinação auditiva em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS),
conforme os procedimentos descritos a seguir.

Método

Este artigo se estruturou a partir de uma proposta de estudo de casos múltiplos


(Yin, 2005), de ouvidoras e ouvidores de vozes que frequentavam um grupo destinado
ao cuidado do fenômeno da alucinação auditiva em um CAPS II, de uma capital
brasileira. Os dados utilizados neste trabalho foram coletados a partir de duas fontes: a)
um roteiro de entrevista semiestruturado, o qual foi empregado para obtermos
informações sobre a trajetória biográfica, as primeiras experiências de audição de vozes,
situações que poderiam ter contribuído para o surgimento e a permanência das vozes, as
estratégias que eram utilizadas para lidar com as manifestações, as variáveis
topográficas, e a relação com familiares; e b) 62 registros em áudio, feitos pelo
pesquisador após o término das sessões do grupo de ouvidores de vozes, os quais foram
transcritos posteriormente em formato de diário de campo. Nesses registros foram
relatados diversos aspectos dos encontros, tais como temas dialogados, demandas,
narrativas dos ouvidores de vozes – sob a forma literal e do ponto de vista do
pesquisador - e trocas de experiências entre os participantes, dentre outros
acontecimentos.
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Participaram da entrevista 10 ouvidores de vozes (seis mulheres e quatro


homens), e os diários de campo envolveram um total de 44 pessoas. Desse quantitativo,
apenas 20 (11 mulheres e nove homens, incluindo os que participaram da entrevista)
tiveram seus relatos analisados, por terem frequentado o grupo por pelo menos um mês.
Quanto ao perfil desses 20 ouvidores, fatores como condição socioeconômica,
etnia/raça, escolaridade, religião, e diagnósticos psiquiátricos foram heterogêneos, e as
idades variaram entre 23 e 65 anos.
Os dados foram analisados por meio da Análise de Conteúdo (BARDIN, 2016),
já que tal método permite a apreensão dos sentidos das experiências dos sujeitos de
pesquisa. Considerando o eixo de referência deste estudo – saúde mental e dispositivos
de gênero (ZANELLO, 2018) -, o critério de categorização escolhido foi o semântico,
com os dados tendo sido classificados dentro de categorias temáticas, como será visto
no próximo tópico. Informações que pudessem levar à identificação dos participantes
foram omitidas e/ou trocadas, a fim de resguardar o sigilo. Este estudo foi aprovado
pelos comitês de ética em pesquisa da Instituição de Ensino Superior e da Secretaria de
Estado de Saúde responsáveis através dos códigos CAAE: 52032315.6.0000.5540 e
52032315.6.3001.5553.

Resultados e discussão

Os dados foram organizados segundo cinco categorias. Três delas são relativas
às mulheres, e foram nomeadas como: a) “mal-estar silenciado”; b) “ideal estético”; c)
“maternar”. As outras duas são relativas aos homens: “d) ser homem é (querer) foder
mulheres”; “e) ser homem é ser trabalhador e provedor”. Serão apresentados a seguir
cada uma das categorias e alguns recortes dos diários e das entrevistas. Antes ou ao final
de cada recorte, e dentro de parêntesis, foi especificada a forma de participação
(“entrevista”, ou “sessão” - seguida do número).

a) Mal-estar silenciado

O nome desta categoria se deve às performances que as ouvidoras adotavam


frente às situações de sofrimento. O silêncio, performance prescrita para as mulheres,
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constitutiva do dispositivo amoroso (ZANELLO, 2018), é uma estratégia de


enfrentamento e sobrevivência adotada com o objetivo de manter as relações -
principalmente com a família e o companheiro/marido, às custas dos próprios afetos e
pensamentos (já que são suprimidos). Cátia deixou essa questão bem clara: “minha
bisavó falou que nós temos que ficar caladas, que a maior sabedoria que existe é não
fazer nada, ficar calada e ter calma” (sessão 61). E assim ela procedia com seu ex-
marido, nas situações em que se sentia incomodada por ele.
Mas ainda assim, o silêncio gerou crises (com a escuta de vozes e visões) que
fizeram com que seu ex-marido intensificasse as violências domésticas: “Eu já tinha
tido três surtos, violentos e agressivos. Meu marido me ameaçou que, se tivesse mais
um, ele se separaria de mim” (sessão 4). A separação veio com outro surto e com isso
ela ficou internada em um hospital psiquiátrico público, foi torturada e amarrada. A
narrativa de Cátia traz à tona um pensamento de Showalter (1987) acerca do
manicômio: “a casa do desespero’ (...) se tornou o símbolo de todas as instituições
criadas por homens, do casamento à lei, que confinam as mulheres e as levam à
loucura” (tradução nossa, p. 1). Ou seja, além das violências cometidas pelo ex-marido,
“insuficientes” para conter seu silêncio, a ela foi compelido um mecanismo mais
opressor, que a silenciou por meio de “amarras” físicas (cordas) e psíquicas
(medicação).
Outras oito participantes da pesquisa que tiveram a experiência de união estável
ou casamento também relataram ter sofrido violência psicológica por parte dos
companheiros/maridos, e, assim como Cátia, respondiam com o silêncio. A violência
era praticada mais comumente pela desqualificação dos relatos de sofrimento e,
também, por meio de xingamentos que se referiam à audição de vozes ou à condição
clínica, como relatou Hélen: “Meu ex-marido me chamava de doida e achava que eu
era doida mesmo” (sessão 58).
Janete, por seu turno, afirmou que o marido não acreditava que ela ouvia vozes,
e que chegou a achar que estava louca. Ela sentia tristeza, e também muita raiva pela
desqualificação de suas experiências alucinatórias– sentimento que se materializou
através das vozes que ouviu: “um dia tava fazendo café pro meu marido. Eu tinha
acabado de colocar açúcar, a voz veio e ordenou assim: “coloque sal”. Aí coloquei sal,
ele reclamou que estava salgado, e a voz começou a rir” (sessão 2). Como na relação
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com o marido não havia espaço para falar sobre seus conflitos emocionais (decorrentes,
por exemplo, da saudade da filha que morava em outra cidade), ou sobre as vozes, ela
preferia ficar calada, já que, do contrário, sofreria violências psicológicas. Janete sentia
solidão, e as vozes de comando, agressivas, se manifestavam diante dessas violências;
ainda assim, ela se continha, e sofria em silêncio.
A performance de Janete corresponde a um tipo de agressividade permitido às
mulheres: a autoagressividade. Esse modo de ser que retém sentimentos, em vez de
expressá-los, faz com que as mulheres implodam psiquicamente (SHOWALTER, 1987;
ZANELLO, 2018), como aconteceu com as ouvidoras do grupo. E em razão de as
emoções e sentimentos (como raiva e culpa) serem um dos principais gatilhos para a
audição de vozes (CORSTENS; LONGDEN, 2013), o silenciamento frente às situações
de violência foi um fator que as levou a ouvir vozes ou a sofrer uma intensificação
delas. Cabe destacar que o silêncio foi uma performance adotada por alguns homens4;
porém, no caso das ouvidoras, ele teve o intuito de renunciar a si, visando o cuidado de
outrem – motivo frequente entre as mulheres (ZANELLO, 2018).
O silêncio também foi adotado pelas ouvidoras diante de experiências de
violência sexual. Das 11 mulheres que tiveram seus relatos analisados, duas haviam
sofrido tentativa de violência sexual (uma na infância e a outra na fase adulta), e seis
(54,5%) declararam que haviam sido estupradas (três delas na infância). Tal quantitativo
é superior aos índices levantados pela Organização Mundial da Saúde, que constatou
um percentual de 33% em mulheres adultas (WORLD HEALTH ORGANIZATION,
2013), e 20% no período da infância (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2014).
Segundo Virgínia: “Na época conheci o Cris e começamos a namorar. A gente nem
beijava na boca, só andava de mão dada. Um dia ele me chamou na casa dele pra
conhecer sua irmã, mas não tinha ninguém, ele tentou me estuprar” (entrevista).
Virgínia contou nas sessões do grupo sobre outras violências, perpetradas pelo
ex-marido, e acreditava que elas estivessem relacionadas ao surgimento das vozes. Os
relatos de Virgínia e das outras sete ouvidoras corroboram achados de pesquisas que

4
Isso se deu para que mantivessem sua autossuficiência. A maioria deles ouvia vozes que questionavam
as virilidades laborativa e sexual, como veremos neste estudo, e o silêncio era adotado para não serem
julgados como “fracos” ou “viados” (dentre outros significantes presentes na nossa cultura, que
"desonram" o ser homem).
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atestaram uma alta correlação entre abuso sexual e alucinações (SHEVLIN et al., 2007;
LONGDEN; WATERMAN, 2012), tanto no tocante ao surgimento desse sintoma,
quanto no seu agravamento. As vozes atuavam também em decorrência de lembranças
ou pensamentos sobre os estupros, como no caso de Raíssa: “Com o meu pai, com cinco
anos de idade ele me abusou, e teve um primo meu também (...) e quando tô sozinha em
casa é que as lembranças vêm, as vozes, e fico desesperada” (sessão 31).
Outro fator gerador de silêncio foi a religião, elemento mencionado por sete
participantes, que servia tanto para dar sentido e conforto a algumas experiências de
sofrimento - no caso das ouvidoras ligadas ao espiritismo – quanto para apagar ou
reforçar situações de opressão – em se tratando das evangélicas -, como Bruna relatou
na entrevista:

A irmã teve revelação que eu comi algo que me fez mal, que quando eu
comecei eu senti muito enjoo, era como se algo tivesse dentro de mim e
quisesse sair, e aí ela falou “olha Bruna, o processo da sua vida é, vai ser
um negócio contínuo, porque é uma doença, o espírito que veio sobre tua
vida e te afrontava pra você se sentir oprimida, espírito da tristeza, da
depressão, e você tem que procurar se libertar disso, com louvor, na palavra.

Bruna sublinhou na entrevista que sua tristeza começou já na infância, por não
ter tido afeto do pai (que tem diagnóstico psiquiátrico), tampouco da mãe (que se
separou do marido em função de violência doméstica e preferiu deixar Bruna com uma
irmã para que ela não sofresse diante desse cenário), e que, após o término do segundo
relacionamento abusivo, esse sentimento se intensificou. A primeira crise com audição
de vozes veio em uma festa, quando ingeriu muita bebida alcoólica, e trouxe à tona o
sentimento de ódio pelos ex-companheiros – a ponto de ela se desfazer de tudo o que
estava associado ao primeiro relacionamento (roupas e outros pertences) ao chegar em
casa. O discurso religioso (do pastor e da irmã da igreja) desconsiderou a trajetória
biográfica de Bruna.
Foi comum no grupo a utilização de alguns significantes, como “carma”,
“castigo”, e “culpa”, por exemplo, independentemente da religião da ouvidora, para
justificar situações de opressão ou de vulnerabilidade social: era uma punição de Deus
pelo mal cometido em outras vidas, ou o destino que ele havia traçado para elas. A
religião, bem como a religiosidade e a espiritualidade, portanto, são elementos que
podem contribuir para o silenciamento de contextos de vida opressores, e daí a
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necessidade de um trabalho cuidadoso por parte do profissional de saúde – se necessário


inclusive junto aos líderes religiosos, a fim de prestar suporte técnico acerca dos
condicionantes das violências, e evitar que eles atuem como um dispositivo de
silenciamento das mulheres.
O silêncio sobre o próprio mal-estar, portanto, é uma atitude que pode colocar as
mulheres em situação de vulnerabilidade. Ele participou tanto da configuração do
conteúdo de algumas experiências alucinatórias como, sobretudo, se constituiu como
gatilho emocional para que as vozes surgissem ou se intensificassem. É mister sublinhar
que, além de um número maior de ouvidoras que frequentavam o grupo em relação aos
homens, as mulheres foram mais assíduas e tiveram um tempo de fala mais longo,
dados esses que apontam para uma demanda de espaços de acolhimento e suporte para
as inúmeras experiências de opressão que sofreram.

b) Ideal estético

Outra questão que se fez presente nos relatos das ouvidoras do grupo foi a de se
estar fora do ideal estético apregoado pela cultura, em função da obesidade. As quatro
mulheres do grupo que afirmaram estar com sobrepeso reclamaram ter sofrido pressão
de familiares, amigos, conhecidos ou mesmo o olhar desqualificador de outras pessoas
quanto a essa condição, e, em três delas, as vozes estavam associadas com o stress que
sentiam em decorrência das pressões. Foi em razão da lipofobia que Úrsula decidiu
fazer cirurgia bariátrica, como declarou na entrevista: “Fui obesa mórbida na
adolescência, sofria muita discriminação, tinha dificuldade de me relacionar com as
pessoas (...) Eu tinha pavor de ser obesa. E hoje se eu fosse obesa, acho que seria mais
feliz.”
Úrsula não sofre mais pelo fato de estar acima do peso. Mas a discriminação
sofrida por ela (e pelas outras ouvidoras que se julgavam “gordas”) se enquadra na
ideologia de higiene moral que associa magreza e juventude à saúde (DEL PRIORE,
2000). Na tentativa de adequar-se ao ideal estético, Úrsula passou por várias dietas, fez
uso de muitas medicações e veio a sofrer consequências deletérias para sua saúde:
“Uma coisa que influenciou muito nessas vozes foi as medicações da época, que eram
anfetaminas, eu tenho certeza disso” (entrevista).
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Úrsula teve dificuldades para estabelecer relacionamentos amorosos, primeiro


pela questão da obesidade (pela lipofobia e pelo lugar desfavorável que ocupava na
prateleira do amor), e depois por ter se tornado paciente psiquiátrica (psicofobia). Com
isso, sentia-se sozinha – assim como as outras ouvidoras participantes da pesquisa que
estavam com sobrepeso. A solidão era um fator eliciador e mantenedor das vozes.
Outro problema relatado pelas participantes com sobrepeso foi o da compulsão
alimentar ou da quantidade de comida ingerida, relacionadas tanto ao efeito das
medicações (passaram a sentir mais vontade de comer), quanto à ansiedade gerada pelo
sentimento de solidão e pelas cobranças externas. As vozes tinham uma importante
atuação nessa problemática, pois costumavam surgir para ordenar que elas comessem
mais, ou após a ingestão dos alimentos (para culpá-las), e ainda para menosprezá-las.
Bruna, que tinha as vozes eliciadas por observações que ouvia de pessoas próximas
acerca de seu peso, afirmou na entrevista: “Então é uma crise constante. E quando as
vozes vêm, eu tento não afrontar elas, porque elas ficam jogando pensamentos pra me
deixar frustrada. Porque a sociedade te joga um padrão de beleza e você tem que estar
daquele jeito.”
Cabe destacar que as participantes que se sentiam obesas, além de Úrsula, não
tiveram a oportunidade de serem acolhidas nas questões relacionadas ao sobrepeso,
tampouco a elas foi oferecido um acompanhamento profissional qualificado nos
serviços de saúde em que eram acompanhadas (CAPS e postos da comunidade).

c) Maternar

Nesta categoria procurou-se destacar a função do cuidado da família e do lar,


realizado pelas ouvidoras. Apenas uma delas, Úrsula, não desempenhou o cuidado junto
à família - em razão de seu adoecimento -, tampouco a algum homem – pois, como
vimos, foi preterida na prateleira do amor devido à condição do sobrepeso. Ainda assim,
ela buscou se realizar na carreira do magistério, a qual representa uma extensão da
suposta natureza feminina de maternar (ZANELLO, 2018).
Uma da questões surgidas entre as ouvidoras mães foi a presença do sentimento
de culpa, apontado por Zanello (2018) como “sintoma de que o dispositivo materno está
funcionando e de que o ideal da maternidade (e de feminilidade relacionada a essa
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emocionalidade) foi introjetado” (p. 156). Tal sentimento esteve presente de forma
intensa no caso de três mulheres que haviam perdido o contato com suas filhas - ainda
que essas perdas tivessem se dado não por responsabilidade delas, mas por fatores
externos (uma por suicídio, uma por ter sido presa, e uma por necessidade de estudos) -,
e eliciava as alucinações. Estela foi uma delas; com o suicídio da filha ela passou a se
isolar, a escutar vozes de comando de morte, e ter vontade de se suicidar: “ela escuta a
filha chamando, e vai ao cemitério visitá-la. É o único lugar que se sente bem. Mas
quando volta pra casa, fica pior; sente-se culpada por deixar a filha novamente” (sessão
35).
A perda de entes queridos (dentre outras que implicam processos de luto) é um
dos fatores que pode levar pessoas a ouvir vozes (CORSTENS; LONGDEN, 2013). E o
sentimento de culpa pode intensificar as manifestações e contribuir também para que
elas permaneçam, como foi verificado no discurso das ouvidoras que são mães.
Damares, que tem um filho com necessidades especiais, e que dificilmente tem ajuda de
outra pessoa para os cuidados com ele ao longo do dia, foi uma delas: “Damares não
aguenta mais cuidar do filho, quer sumir e deixá-lo com outra pessoa, e já conversou
sobre isso com ele. Sente-se extremamente culpada por pensar assim, por tratar o filho
mal, e isso piora a vivência com as vozes” (sessão 22).
Damares contava com o apoio de um familiar para cuidar do filho até alguns
anos atrás, mas ele foi morto; ela então se viu sozinha. Em razão da sobrecarga com os
cuidados, chegou à exaustão, entrou em depressão grave, e com isso deixou de cumprir
algumas rotinas de saúde necessárias a ele. Quanto ao pai do rapaz, assim que ficou
sabendo da condição clínica dele, decidiu se afastar5. E Damares preferia não demandar
os cuidados desse homem, nem chegou a mover um processo contra ele pelo não
pagamento de pensão, pois alegou que ele fazia uso de drogas ilícitas, e tinha medo de
que pudesse perder a guarda do filho - ele já havia feito ameaças nesse sentido, pois ela
era “louca” e por isso ele ganharia o processo.

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Esse tipo de comportamento, do abandono de mulheres por conta de alguma limitação de saúde por
parte dela ou da criança, é comum no Brasil (ROCHA; CRUZ; VIEIRA; COSTA; LIMA, 2016; PORTO;
COSTA, 2017).
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As outras oito ouvidoras mães também reclamaram da ausência do pai das


crianças na criação e nos cuidados com seus filhos. Em cinco, dentre as nove, os
cuidados com os filhos significava um risco para a saúde mental, considerando que: eles
tinham alguma limitação física ou de saúde mental; julgavam que as ouvidoras (suas
mães) eram loucas; consideravam que elas estavam de “frescura” ou querendo chamar
atenção; demandavam cuidados que para algumas das ouvidoras eram difíceis de serem
realizados; sofriam violência do companheiro, e acabavam não tendo condições de
maternar. Nesse último ponto, algumas delas relataram episódios de muita raiva por se
verem sozinhas e sobrecarregadas.
Assim, em decorrência desses fatores de risco associados aos cuidados com os
filhos, as ouvidoras sentiam muito mal-estar, e isso contribuía para eliciar as
alucinações. Cabe ressaltar que a falta de apoio do companheiro/marido, e também
violências perpetradas por eles na relação ao longo da gravidez e/ou no puerpério, são
fatores que aumentam a possibilidade de a mulher desenvolver um transtorno grave,
dentre eles a depressão pós-parto (CHRISLER; JOHNSTON-ROBLEDO, 2002), com
possibilidade de ocorrência ou intensificação de alucinações, como aconteceu com três
ouvidoras.
Quanto ao diagnóstico de mulheres mães (como a depressão pós-parto), é
necessário destacar que ele pode esconder sentimentos de injustiça, desempoderamento
e desigualdade, já que desconsidera (na maior parte dos casos) a opressão que o
companheiro imprime na relação (SMITH; MORROW, 2012). Daí a necessidade de que
ele seja feito considerando todos os condicionantes envolvidos no contexto de vida da
mulher, sob pena de contribuir-se não só para a reafirmação da lógica biomédica
organicista, bem como para a dominação masculina e a não transformação da cultura
(CHRISLER; JOHSNTON-ROBLEDO, 2002; ZANELLO, 2018).
Quando questões de gênero relacionadas aos dispositivos amoroso e materno
surgiam nas sessões do grupo de ouvidores de vozes, o manejo era feito procurando-se
acolher e explorar o relato das participantes. Assim foi possível fazer com que elas se
sentissem à vontade para falar sobre suas angústias e compreendessem o que estava se
passando. Muitas delas ressignificaram suas questões no sentido de desmistificarem
obrigações relativas ao ser mulher, e algumas ouvidoras foram encaminhadas à rede de
proteção e garantia de direitos. As duas que ainda estavam casadas passaram a repensar
13

suas relações; uma delas estava criando condições para se divorciar, e a outra fez com
que o marido compreendesse seu sofrimento – o que contribuiu para a redução das
violências psicológicas que ele cometia.
As onze ouvidoras participantes deste estudo passaram a alucinar ou tiveram
uma intensificação das vozes em função dos dispositivos amoroso ou materno, e
sofreram violências domésticas ou extra-domésticas cometidas principalmente por
familiares e/ou companheiros.

d) Ser homem é (querer) foder mulheres

O nome desta categoria foi escolhido em virtude de as vozes terem um efeito


reforçador no processo de masculinização dos homens ouvidores. Se nas três categorias
anteriores as questões estavam ligadas aos relacionamentos amorosos, com o corpo, e ao
cuidado da família e da casa, nesta tivemos dados ligados às virilidades laborativa e
sexual.
Um primeiro ponto a ser destacado, presente na trajetória dos ouvidores que
participaram deste estudo, é o do embrutecimento afetivo (ZANELLO, 2018). A
pedagogia dos afetos da masculinidade viril começa nos primeiros anos devida, como
Tales relatou:

Aí eu fui crescendo, meu pai me deixava dentro de casa, isolado. O que


acontece é que aos poucos fui tentando sair de casa, fazer amigos com meus
vizinhos, aí brincava mais com as meninas, e meu pai não gostava: “pára de
brincar com menina! Vai brincar com menino, vai jogar bola!”, mas eu
nunca gostei de bola. Aí, essa primeira infância passou, os primeiros cinco
anos foi assim, de tortura psicológica do meu pai, que queria que eu fosse
másculo, que jogasse bola, que fosse bruto. (entrevista)

Nesse recorte, vê-se que Tales foi cobrado pelo pai para que não se comportasse
como mulher, fato que corresponde a um dos processos fundadores da masculinidade,
qual seja, o da necessidade de provar que é homem perante outros homens (KIMMEL,
2016), e de não assumir uma performance de “mulherzinha” – que Zanello (2018)
associou com a misoginia. Afastar-se/combater a feminilidade, jogar bola e ser bruto,
foram as primeiras provas pelas quais o ouvidor deveria passar para se tornar homem,
dentro de um processo que Welzer-lang (2001, p. 462) nomeou como “casa dos
14

homens” - percurso contínuo e composto de performances que visam a transformação


em um homem completo, mas que acontece às custas de muito sofrimento e violência,
já que há que se embrutecer emocionalmente e fisicamente, competir com outros
homens, e dominar as mulheres.
Porém, ao passar a conviver com os meninos ao longo da infância e
adolescência, Tales sofreu bullying, teve que participar de brincadeiras violentas, e foi
abusado sexualmente. Essas questões o afetam ainda por meio das vozes, que
questionam seu desejo por homens, o menosprezam por assumir uma orientação
homoafetiva, e falam conteúdos misóginos. Além de Tales, em outros quatro
participantes ficou clara a exigência de virilidade sexual, já que relataram que as vozes
traziam conteúdos relacionados à orientação sexual, como no caso de César: “elas não
brincam só com seu psicológico, brincam com seu corpo também (...) Quando sinto
coisa aqui no glúteo, isso me incomoda um pouco, tenho a sensação de que tô querendo
ser tocado, entendeu?” (entrevista).
César não tinha um modo de ser viril, e era afetado com frequência pelas vozes:
“veio uma mulher tipo essa mulher da voz? Ela vem e começa tipo a ficar comigo, a
fazer coisas comigo que eu não sei o que ela tá fazendo (...) quando eu deitava assim
daí ela vinha, pra cima de mim” (entrevista). Essas vivências faziam com que ele
entrasse em desespero diante de conflitos que se estabeleciam quanto à sua condição
heterossexual, e buscasse suporte psiquiátrico/profissional, já que, com os amigos ou
familiares, ele não tinha abertura para conversar sobre isso, até porque o questionariam
ou duvidariam de sua orientação sexual. As vozes, portanto, deixavam evidente uma
fragilidade no processo de construção da masculinidade hegemônica, presente tanto nos
ouvidores de vozes entrevistados, quanto nos que frequentavam o grupo.
Além da orientação sexual, as alucinações apresentavam elementos que podem
ser relacionados à misoginia, como Justino relatou: “As vozes dizem pra eu andar mais
rápido, ficam me xingando e dizendo coisa que não gosto, tipo ‘filho da puta’, ‘viado’,
‘vai comer aquele menino’, ‘desgraçado’, ‘vagabundo’, e quando desobedeço elas me
ameaça de morte” (sessão 1). Segundo Zanello e Gomes (2010), os xingamentos são
considerados sintomas da cultura, e por isso carregam e revelam questões de gênero. Os
homofóbicos, em particular, como o “viado” ouvido por Justino, se referem à virilidade
sexual, já que aproximam os homens de comportamentos femininos, de “mulherzinhas”,
15

do ser passivo (ZANELLO; GOMES, 2010; ZANELLO, 2018) - como aconteceu no


caso dos cinco ouvidores.
Outro xingamento que Justino ouvia, “vagabundo”, se referiu ao fato de estar
desempregado, e corresponde à virilidade laborativa – performance apresentada a
seguir.

e) Ser homem é ser trabalhador e provedor

Assim como o amor é um fator identitário para as mulheres, o trabalho o é para


os homens (ZANELLO, 2018). O caso de Quirino, que trabalhava na área de transporte
público, é interessante para podermos constatar isso. Ele teve que ser afastado da função
que desempenhava por conta da audição de vozes, e sentia-se muito incapaz: “Quirino
relatou que sempre ouviu vozes, mas que em janeiro teve um episódio de depressão
muito grande, e elas vieram mais intensas, ordenando que ele se mate” (sessão 54). O
ouvidor não quis conversar sobre o que pode ter gerado essa intensificação das vozes
em nenhuma das sessões das quais participou, mas sentia-se envergonhado com isso - as
vozes não eram “de Deus”, falavam coisas obscenas (com xingamentos). Quirino,
portanto, diante do desespero causado pelas vozes, decidiu buscar o apoio do grupo de
ouvidores de vozes. Ainda assim, tinha muitas dificuldades em falar sobre sentimentos e
o conteúdo delas.
A virilidade laborativa afetou os nove ouvidores participantes, cada qual com
sua particularidade. Enzo, por exemplo, que também relatou ter sido xingado de
“vagabundo” pelas vozes, foi expulso de casa por não atender as pressões familiares
relativas ao fato de ele não querer trabalhar. Durante o longo tempo em que ficou fora
de casa (mais de um ano), e sentindo tristeza, ele fez uso de drogas ilícitas, por
intermédio de um amigo que o acolheu, e com isso teve a primeira crise com as vozes.
Mas mesmo após ter sido recebido em casa, e ter iniciado tratamento de saúde mental,
as alucinações de Enzo permaneceram atuando, já que seus familiares continuavam a
pressioná-lo para arrumar emprego, como ele declarou na entrevista: “Me chamam de
doente, cobram coisas que não posso dar ainda, trabalhar, mas a doença não permite
trabalhar”.
16

Tal relato denota sofrimento relacionado à perda da capacidade laboral como


consequência do adoecimento - algo ressentido por todos os ouvidores que participaram
das entrevistas e do grupo -, e representa uma falência identitária (ZANELLO; GOMES,
2010; ZANELLO et al., 2015), considerando que a sociedade continuava cobrando dele
o desempenho da função provedora, e que ele estava impossibilitado de atender a essa
prescrição.
As alucinações de César também estavam relacionadas à virilidade laborativa,
mas de maneira muito diferente das de Enzo, já que se associavam ao estereótipo de
força e virilidade: “Eu tava ouvindo vozes que eu me despedia da vida. Era forte, o
tempo todo, as vozes dos meus amigos, eles usando minhas coisas que eu desenvolvia
mentalmente. E falaram que eram da polícia, porque eu queria ser da polícia”
(entrevista).
Ele se culpava muito por ter falhado com as expectativas familiares, por ter se
envolvido com o crime (que ainda lhe imputava o medo de ser morto a qualquer
momento pela polícia, através de vozes e visões alucinatórias). E por ter um diagnóstico
psiquiátrico, acreditava ser mais “fraco” que os amigos que faziam parte desse mundo.
Além de policiais, César escutava vozes e tinha visões de pilotos de avião –
representação essa que foi considerada por Melo (2013) como extensão da
masculinidade, pela associação com ideais de tecnologia, aventura e velocidade. César
relatou ainda na entrevista que, quando está ocioso, as vozes o perturbam. A não
produtividade é algo que põe em risco a virilidade laborativa e, consequentemente, o ser
homem (ZANELLO, 2018).
Benedito contou que nunca havia conseguido se estabelecer em um trabalho
formal por muito tempo, e que as poucas experiências de trabalho que teve só foram
possíveis porque os empregadores eram amigos da família. As vozes que ouvia mexiam
com: sua virilidade laborativa - afirmavam que ele não iria muito longe e que acabariam
com ele; sua honra, já que eram “verdadeiros maus caracteres, como se fossem
bandidos, gente de caráter muito baixo, mulheres como se fossem prostitutas”
(entrevista), que deveriam ser enfrentados; e com o controle de si, pilar da dominação
masculina (ZANELLO, 2018) - “você não tem o controle sobre os órgãos internos,
sobre as vísceras, é como se as vísceras não fossem suas” (entrevista).
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Heitor chegou ao grupo alegando que haviam feito uma macumba para ele na
encruzilhada, e que por isso passou a ouvir vozes. Com a frequência nas sessões do
grupo, ele passou a compreender que uma das explicações possíveis para suas crises
com as vozes estava relacionada à pressão na faculdade e no trabalho (estudava de dia,
trabalhava de noite, e dormia pouco), e que, desde sua primeira experiência de trabalho,
ele sentia dificuldades relacionadas à virilidade laborativa: “Quando servia no Batalhão
TAL não aguentei a pressão também, que uma vez fiquei quatro dias preso porque não
quis cumprir uma ordem do tenente. Mas aí eu não aguentei e pedi pra ir embora
depois, era muito ralado” (sessão 32).
Walter e Kalebe se ressentiam de solidão, e reclamaram que haviam sido
abandonados pela família. Porém, no caso de Walter - que passou sua infância e
adolescência presenciando violências domésticas do pai contra sua mãe -, a forma como
ele se relacionava com os familiares, e principalmente com sua mãe, era de uma enorme
agressividade, a qual emergia todas as vezes em que se sentia contrariado por eles. No
mesmo sentido se deram os relatos de Kalebe, que possuía alguns problemas graves de
saúde (como surdez). Quando familiares ou pessoas que se dispunham a morar com ele
tiravam alguma coisa da ordem em sua casa, ou questionavam alguns de seus hábitos,
ele ficava muito irritado.
Em ambos os casos, a sensação de perda do controle trazia muita raiva e
angústia, e isso era um fator eliciador das vozes. Havia, portanto, uma necessidade de
controle, que em Walter e Kalebe se manifestava todas as vezes em que eles se sentiam
questionados em sua capacidade de serem autônomos.
Os dados mostram que os ouvidores homens foram afetados pelo dispositivo da
eficácia, em suas virilidades sexual e laborativa. Isso se deu por conta das limitações
decorrentes da condição clínica e do tratamento psiquiátrico. Tais questões os
colocavam em uma posição de subalternidade (e não mais de dominação, como antes do
“adoecimento”) em relação a homens que não possuíam diagnósticos psiquiátricos, e,
portanto, significavam uma ameaça à condição viril masculina (ZANELLO, 2018). Esse
sofrimento foi sentido e materializado (como palavra e verbo) por meio das vozes que
ouviam.
Ou seja, por serem identitárias, a virilidade sexual e laborativa parecem ser
interpeladas na formação das alucinações auditivas dos ouvidores, comparecendo
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através de vozes que os desqualificavam como homens, seja em função de seu desejo
interditado ou a falta de desejo por mulheres, seja em função do não desempenho
laboral como ideal e socialmente se sente que deveria ter. As próprias vozes parecem
criar uma nova dificuldade, ao colocarem em xeque a eficácia que ainda se tinha, no
campo laboral e sexual, o que leva à piora do quadro, sobretudo quando sua ocorrência
acarreta a demissão do sujeito, a dificuldade de estabelecer relacionamentos afetivos, ou
a quebra identitária, dentre outras consequências.

Considerações finais

Os resultados deste estudo apontam diferenças marcantes nas alucinações


auditivas das mulheres e dos homens que frequentavam o grupo de ouvidores de vozes.
No caso das mulheres, o silêncio, performance adotada diante de violências-
psicológicas, sexuais e de cunho lipofóbico- cometidas por companheiros e outros
familiares - em ambiente doméstico e extra-doméstico, - para a preservação de seus
relacionamentos, gerou um efeito deletério: o surgimento e/ou a intensificação das
vozes. O mesmo aconteceu no encargo de maternar, quando elas se viram sozinhas e
sobrecarregadas em função da negligência dos companheiros/maridos.
Na impossibilidade de fazerem denúncias - por desconhecimento de seus
direitos, medo, negligência de familiares que estavam a par da situação e não
denunciaram, influência de sacerdotes ou questões religiosas, dependência emocional e
financeira, entre outros motivos -, o sintoma assumiu essa função. Isso ficou evidente
por meio do conteúdo das vozes alucinatórias, as quais expressavam os desejos ou
vontades que as ouvidoras tinham diante das situações que traziam mal-estar ou
sofrimento.
Foi também em razão do abandono dos ex-companheiros e da não implicação
deles com a função de criar os filhos que essas mães acabaram não tendo oportunidade
de escolher outros caminhos que não fossem o de maternar, como por exemplo trabalhar
ou realizar outros objetivos de vida – o que poderia amenizar o stress, evitar o
surgimento e/ou a intensificação das vozes ou mesmo facilitar a lida com elas. Diante
dessas evidências, portanto, torna-se indispensável ao profissional de saúde que recebe e
acompanha uma mulher que alucina, atentar primeiramente ao seu contexto de vida e
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suas condições materiais, pois, do contrário, poderá incorrer no equívoco de


negligenciar ou reforçar situações de opressão que a ela estejam sendo impostas.
Quanto aos ouvidores homens, as vozes faziam o movimento de “atravessar” e
romper com a estruturação de suas virilidades, e afetavam valores como honra,
resistência física e moral, e controle sobre si, além de trazerem à tona o embrutecimento
afetivo. O dispositivo da eficácia, operado na casa dos homens, agia de forma constante,
de modo que, ao sinal do menor descanso na tarefa do exercício da virilidade, eles eram
afetados pelas vozes a ponto de se desestruturarem psiquicamente. Ainda assim eles
podiam desejar quaisquer outras coisas que não fosse o cuidado com a família ou filhos,
e as crises com as vozes eram decorrentes, portanto, da não consecução de projetos de
vida e/ou da opressão de outras masculinidades (hegemônicas em relação a eles).
É mister ressaltar assim que, ao se considerar a alucinação auditiva como uma
manifestação anormal da existência que deve ser suprimida a qualquer custo, através do
uso de fármacos (pensamento ainda muito presente no sistema público de saúde), fecha-
se a possibilidade de compreensão desse sintoma, e abre-se um precedente para que
contextos de vida opressores continuem a se perpetuar. Para que isso não aconteça, é
ponto primordial que escutemos atenta e criticamente os usuários do sistema de saúde
mental, e lutemos pelo fortalecimento das redes de proteção e garantia de direitos, bem
como por políticas públicas que coloquem mulheres e homens em condições e posições
de igualdade.

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