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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


CATALOGAÇÃO NA FONTE

M954

Mundos de mulheres no Brasil / Ana Maria Veiga, Claudia Regina Nichnig, Cristina
Scheibe Wolff, Jair Zandoná (organização) – Curitiba : CRV, 2019.
550 p.

Bibliografia
ISBN 978-85-444-3129-0
DOI 10.24824/978854443129.0

1. Ciências sociais. 2. Relações de gênero. 3. Feminismos. 4. Gênero. 5. Mulheres. I. Veiga,


Ana Maria. org. II. Nichnig, Claudia Regina. org. III. Wolff, Cristina Scheibe. org. IV. Zandoná,
Jair. org. V. Título. VI. Série.

CDU 396(81) CDD 305.42

Índice para catálogo sistemático


1. Mulheres 305.42

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CAPÍTULO 30
SAÚDE MENTAL E GÊNERO

Valeska Zanello1

O estudo das relações de gênero como viés para compreender o campo da


saúde mental ainda é incipiente. No entanto, pode trazer aportes importantes
para a compreensão da imbricação entre os processos de subjetivação gendrados
(sobretudo em sociedades sexistas, como o Brasil) e o campo da psicopatologia,
enquanto estudo do sofrimento e do adoecimento psíquico.
Em um primeiro momento, é necessário ressaltar tanto a participação do
gênero na formação de certos sintomas, quanto seu papel configurador de pontos
identitários de maior vulnerabilidade a certos estressores, caso o sujeito em questão
seja um homem ou uma mulher – assumindo aqui um binarismo/essencialismo
estratégico, na concepção de Spivak (1998). Centremo-nos no primeiro aspecto,
para voltarmos ao segundo mais adiante. Trata-se de apontar que a cultura medeia
os sintomas, quando esses não são da ordem biológica direta, ou seja, não são
imediatos (LITTLEWOOD, 2002; MARTÍNEZ-HERNÁEZ, 2000; MARTINS,
2003). Há, assim, um processo de configuração dos afetos e das emoções, bem
como as performances comportamentais, atravessado pelo gênero (BUTLER,
1990; BUTLER, 2012; KITAYAMA; PARK, 2007; LE BRETON, 2009). Um
exemplo clássico é o choro (ZANELLO, 2014), comportamento de expressão
emocional completamente aceitável, caso venha de uma mulher, mas que coloca
em xeque, identitariamente, a masculinidade de um homem (comportamento
cuja supressão é incitada desde a infância). Ou a expressão da agressividade em
homens, não apenas aceitável, mas até desejável na afirmação de sua virilidade,
porém profundamente mal vista e banida para a “feminilidade” de uma mulher.
Se, de um lado, temos o gendramento de muitos sintomas relacionados à
expressão do sofrimento e da quebra psíquica, temos, por outro lado, a partici-
pação do gênero na formação subjetiva dos profissionais de saúde que atendem
e devem diagnosticar o “problema” do paciente. Há uma pré-compreensão
(hermenêutica) de mundo, a qual antecede o conhecimento especializado,
fruto de uma formação acadêmica (ZANELLO, 2014; USSHER, 2013). O bi-
narismo e os valores e estereótipos a ele ligados subsistem ao binarismo e
aos estereótipos e valores a ele ligados. Em geral, não são questionados, são
1 Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília. Professora do Departamento de Psicologia Clínica
da Universidade de Brasília, orientadora de mestrado e doutorado no Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Clínica e Cultura (PPG-PSICC). Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em saúde
mental e gênero, atuando principalmente nos seguintes temas: saúde mental, gênero, psicanálise e filoso-
fia da linguagem. E-mail: valeskazanello@gmail.com. As ideias contidas nesse artigo foram retiradas do
livro Saúde mental e Gênero e Dispositivos: Cultura e Processos de Subjetivação (2018).
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vividos, “intuitivos”, mas participam ativamente do ato diagnóstico quando se


“percebe” certos afetos ou comportamentos como sendo “sintomáticos”. É o
caso, como pudemos observar em uma de nossas pesquisas, da “obesidade”,
ou do “desprazer nas tarefas domésticas”, apontados em certos prontuários de
mulheres, mas praticamente inexistentes dentre os dos homens (ZANELLO;
SILVA, 2012), mesmo que houvesse usuários com excesso de peso. No caso deles,
encontramos “disfunção erétil” ou “baixa libido”; enquanto nada havia sobre
a vida sexual das pacientes, a não ser em casos nos quais havia a exacerbação
da mesma, o que seria “inesperado” para uma mulher. Destaco, portanto, que
o ato diagnóstico em saúde mental jamais é neutro; ele é fruto de um trabalho
de semiosis, de interpretação e julgamento, o qual implica aquele que inter-
preta, em seus valores pessoais e sociais (em geral, acríticos). É nesse sentido
que muitos historiadores da saúde mental (CHESLER, 2005; ENGEL, 2004;
ENGEL, 2008; GARCIA, 1995; SHOWALTER, 1987) criticam a psiquiatria
e outros campos psis como disciplinadores do gênero.
É necessário também realçar a descrição dos transtornos mentais nos
manuais diagnósticos mais difundidos, tais como o CID e o DSM. O questio-
namento da existência de pressupostos de gênero, neles, no decorrer de suas
versões, pode ser consultado em outros artigos (ver a discussão em WIDIGER,
2008). O que nos interessa é que “transtorno” é um termo técnico para padrões
problemáticos de comportamento, tornado popular pelo DSM. Sua utilidade é
diretamente relacionada à sua ambiguidade e está entre dois conceitos: a ideia
de doença e de síndrome (KIRMAYER, 1994). O transtorno é uma construção
classificatória. Ou seja, não é uma entidade metafísica, que existe em si mesma,
mas uma criação cultural para balizar o diagnóstico e o tratamento das mani-
festações de sofrimento em nossa cultura. Nesse sentido, os manuais já foram
amplamente criticados, sobretudo o DSM, por não serem neutros (FULFORD,
1994; WIGGINS; SCHWARTZ, 1994), e elegerem, mesmo sem intenção, certos
padrões de normalidade relacionados a determinado grupo privilegiado: a classe
média (branca) americana (ALARCON, 1995). Ao erigir algo como normal,
necessariamente, elege-se a anormalidade, como, por exemplo, vivências re-
lacionadas a religiões de matrizes africanas; ou comportamentos gendrados,
como o chorar nas mulheres (“ódio impotente aprendido”; BELOTTI, 1983;
SIMON, 2010); ou, ainda, formações somáticas, muito mais comuns em países
não ocidentalizados (LEWIS-FERNÁNDEZ; KLEINMAN, 1995).
Um ponto a se destacar é a mudança e o aumento do número de trans-
tornos mentais descritos com o passar dos anos, a partir do surgimento do
primeiro DSM, na década de 1950. Isto levou ao questionamento sobre se os
remédios eram criados para atender aos novos transtornos mentais “descober-
tos”, ou se os transtornos eram “descobertos” para vender os novos medica-
mentos (ESPERANZA, 2011). Há, assim, um mercado gigantesco, com alto
lucro, e futuro ainda mais promissor. O campo da saúde mental possui uma
MUNDOS DE MULHERES NO BRASIL 329

característica específica, definida por Ian Hacking (1986) como looping effect:
os transtornos mentais são fenômenos do tipo interativo humano, os quais, ao
serem nomeados/criados, alteram as vivências do próprio grupo de referência
por eles “identificados”. É o que ocorreu, por exemplo, historicamente, com
o grupo dos “homossexuais” ou dos portadores de “Transtorno de Déficit de
Atenção”. Há uma mudança na própria identidade dessas pessoas em função
de sua descrição “científica” e, também, um impacto na compreensão de suas
próprias experiências.
Pensemos no caso do transtorno depressivo. Em sua descrição, no DSM,
o exemplo dado para o sintoma de “tristeza” é o choro. Laboratórios farma-
cêuticos “traduzem” a descrição dos sintomas em imagens, presentes nos
folhetos entregues aos médicos para interpelar sua prescrição, ou em encartes
informativos aos pacientes para que eles mesmos possam estar “atentos” aos
sintomas de qualquer suposta “doença”. No caso da depressão, a imagem uti-
lizada é, quase sempre, de uma mulher cabisbaixa, prostrada. Trata-se do que
Wittig (1992) afirma como o “what goes without saying”: o que é mostrado
é que a depressão é um problema de mulheres e, em sua descrição, o choro é
destacado. Ao entrar em contato com estes folhetos, há a formação/nutrição
do background de crenças do médico e o looping effect naquele (ou naquela)
futuro(a) paciente que identificará sua “doença” e a própria necessidade de
prescrição do remédio. Borch-Jacobsen (2013) descreve, assim, a produção
do aumento do número de casos clínicos, em função do surgimento de novas
descrições ou novos “transtornos mentais”.
Quando se elegem sintomas gendrados para se descrever um transtorno,
cria-se, portanto, um viés, além dos já existentes no próprio ato diagnóstico.
Desta forma, quando se toma um “dado” como a prevalência mundial da in-
cidência de “depressão” em mulheres comparada a homens (na escala de 2 ou
3 casos para um), deve-se questionar certos pressupostos. E evitar conclusões
precipitadas, atribuídas a causalidades lineares, que reforçam e mantêm a crença
em um binarismo natural. Nesse caso, uma das interpretações etiológicas mais
aceitas é a perspectiva da causalidade biológica, ou seja, isso ocorreria em
função da presença de hormônios específicos na mulher. Pode-se ver aqui o
quanto o reducionismo da causalidade biológica obscurece, “no final” de to-
dos os procedimentos problemáticos apontados, a participação do gênero. Ela
naturaliza questões que merecem e precisam ser indagadas. Ou seja, deve-se
questionar a leitura epidemiológica, quando não são colocados em xeque o
próprio gendramento presente na descrição dos transtornos, além do gendra-
mento da própria formação sintomática e aquele presente na subjetividade do
profissional de saúde que interpreta os atos e sentimentos do paciente. Esse é
um quebra-cabeça epistemológico bastante importante.
Em face a esse problema, alguns autores, ligados ao campo da psiquiatria
(ver essa discussão em GRANT; WEISSMAN, 2008), têm sugerido mudanças
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nas classificações, apontando que, ou deve haver a criação de pré-requisitos sin-


tomáticos específicos para mulheres separadamente de homens, ou deve haver
uma quantidade distinta de sintomas necessários para perfazer o diagnóstico
de um transtorno, para cada sexo. Outros autores, mais ligados ao campo das
ciências sociais, que estudam saúde mental e gênero, apontam, por seu turno, o
gendramento do sofrimento, ou seja, o quanto homens e mulheres sofrem, porém
de formas diferentes e por distintos fatores (SIMON, 2014). Nesse sentido, é
sublinhado que se mulheres quebram psiquicamente, sobretudo, na depressão
e nos transtornos de ansiedade, homens, por seu turno, consomem mais álcool
e drogas e perfazem o transtorno do comportamento antissocial. Grande parte
dessas diferenças se daria pelos processos de gendramento na configuração dos
afetos, os quais seriam, nas mulheres, marcados pela “internalização” e, nos
homens, pela “externalização” (SIMON, 2014).
Em relação aos fatores mais estressores, as pesquisas indicam que problemas
relacionados aos filhos e à família atingem mais a saúde mental das mulheres,
enquanto que os problemas financeiros e de trabalho, atingem mais os homens
(ZANELLO; BUKOWITZ, 2012; ZANELLO; FIUZA; COSTA, 2015; SIMON,
2014). No entanto, resta a questão: por que isso ocorre? Aqui devemos retomar
aquele ponto citado no início de nosso texto. Precisamos abordar o gendramento
dos processos de subjetivação. Para isso, há que se considerar, sempre, a espe-
cificidade de cada cultura e as interseccionalidades nela presente.
Em nosso país, temos caminhos privilegiados de subjetivação específicos para
homens e mulheres. Para elas, há os dispositivos2 amoroso e materno; para eles,
o dispositivo da eficácia, fundado na virilidade sexual e laborativa (ZANELLO,
2016). Esses dispositivos são criados, mantidos, reafirmados pela microfísica do
poder, sobretudo através das tecnologias de gênero (LAURETIS, 1984), nas quais
se destaca o papel da mídia (cinema, revistas, músicas etc.). As tecnologias de
gênero são não apenas a representação do sistema de diferenças de gênero, mas
também a própria produção das mesmas3. Assim, o gênero seria “o conjunto de
efeitos produzidos em corpos, comportamentos e relações sociais” (LAURETIS,
1984, p. 208). Os dispositivos amoroso, materno e da eficácia são históricos e se
configuraram principalmente nos últimos dois séculos e meio (ZANELLO, 2018).
Dizer que as mulheres se subjetivam hoje, em nossa cultura, pelo dispositivo
amoroso, implica dizer que, para elas, o amor é construído como alfa e ômega
de suas existências; sobretudo, em um tipo de relação heterossexual sempre
marcada pela assimetria de investimento afetivo. Além disso, as mulheres se
subjetivam em uma relação consigo mesmas mediadas pelo olhar de um homem

2 Foucault define o dispositivo como um conjunto heterogêneo que engloba “discursos, instituições, orga-
nizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos,
proposições filosóficas, morais, filantrópicas”. Para ele, “o dito e o não dito são os elementos do dispositivo.
O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos” (FOUCAULT, 1996, p. 244).
3 A construção do gênero ocorre através das várias tecnologias do gênero e discursos institucionais que
produzem, promovem e implantam certas representações, incluindo aí os próprios discursos “científicos” e
acadêmicos.
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que as escolha (ZANELLO, 2016; ZANELLO, 2018). A metáfora que criei para
compreendermos esta ideia é a “prateleira do amor”. Essa prateleira é regida
por um ideal estético (que vem se construindo desde o começo do século pas-
sado) marcado pela característica de ser branco, louro, jovem e magro. Quanto
mais distante desses ideais, maior o impacto sobre sua autoestima e maiores as
chances de se sentir “encalhada” na prateleira, ficando em posições mais desfa-
voráveis na mesma. As mulheres negras são as mais afetadas nesse dispositivo,
pois na configuração cultural das preferências afetivas, são as mais preteridas,
em função do racismo. Por outro lado, por mais que momentaneamente uma
mulher se encontre em uma suposta “boa” posição na prateleira, continua ainda
vulnerabilizada, pois está fadada a envelhecer, engordar, “sair fora de mercado”.
A prateleira empodera os homens, pois, nessa lógica, são eles os erigidos como
avaliadores das mulheres, física e moralmente. Quem avalia os homens são os
próprios homens, na “casa dos homens” (WELZERLANG, 2001).
O amor (e essa forma de amar) é algo identitário para as mulheres e sua
autoestima é construída e validada pela possibilidade de “ser escolhida” por
um homem. As lésbicas diminuem a assimetria de investimento, mas não ne-
cessariamente subvertem os ditames desse dispositivo. Não à toa se diz: “as
lésbicas não namoram, elas se casam”. Assim, a subversão do dispositivo da
sexualidade não obrigatoriamente subverte os de gênero.
Alguns aspectos importantes da prateleira do amor, no dispositivo amo-
roso, seriam: a) a subjetivação das mulheres em rivalidade umas com as
outras (“quero ser escolhida em detrimento das demais”); b) vulnerabilidade
identitária no se sentir “escolhida” (“não importa como – ou quem – ele é, mas
se ele me ama!” ou “se nenhum homem me deseja, então não valho nada” – e
equivalentes, “sou feia”, “estou gorda” etc.); c) vulnerabilidade também em
tudo fazer para “não ser abandonada” (“melhor com ele do que ser solteira”),
responsabilizando-se pela manutenção da relação.
O dispositivo materno, assim como o amoroso, trata-se de uma constru-
ção cultural que se deu, sobretudo, desde o século XVIII: de um lado, pela
separação entre um universo público e um privado; de outro, pela criação do
discurso ideológico do “instinto materno” (BADINTER, 1985), naturalizando
nas mulheres a capacidade de cuidar (dos outros e das tarefas domésticas, ou
seja, relacionados ao ambiente privado). Cuidar é uma capacidade humana, mas
historicamente foi ligada aos corpos das mulheres e somente nelas interpelado.
Implica, portanto, dizer que, em nossa cultura, as mulheres são subjetivadas
em um processo de heterocentramento (ao contrário dos homens, nos quais o
que se interpela é o ego-centramento, o ego-ísmo). Mesmo que uma mulher
não tenha filhos, será demandada culturalmente a ser cuidadora, a se doar pelos
outros. Aqui, como no caso do dispositivo amoroso, fugir à regra é ser colocada
em xeque, identitariamente, como “verdadeira mulher”.
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Já em relação aos homens, temos o dispositivo da eficácia, o qual também


foi configurado historicamente. É baseado na afirmação da virilidade sexual e
laborativa. Em relação a esta última, faz-se mister apontar o status e o valor que
o trabalho adquiriu com o advento e a afirmação do capitalismo, e cada vez mais
do individualismo, e o quanto o sucesso/valor pessoal (identitário) dos homens
foi, paulatinamente, a ele relacionado. Metáforas presentes no mundo laboral
foram importadas para a vida sexual (AZIZE; ARAÚJO, 2003), tais como
desempenho, sucesso etc. Em suma, ser um “verdadeiro” homem passa pelas
performances de ser um provedor e um “comedor”. Além disso, o processo de
subjetivação, na masculinidade hegemônica, se dá através da opressão de outros
homens e das mulheres. Como apontam Badinter (1992) e Bourdieu (1998), ser
homem se constrói no imperativo e no negativo “não seja uma mulherzinha!”.
Nossa cultura se caracteriza, assim, por ser profundamente misógina.
Podemos entender por que, então, certos fatores são considerados estres-
sores para mulheres e outros para homens: são aqueles que colocam em xeque,
identitariamente, o sujeito. Esses pontos identitários são construídos e mantidos
pelas tecnologias de gênero, através dos dispositivos mencionados.
As relações apontadas em nosso texto sugerem, portanto, que o vínculo
entre saúde mental e gênero é profundo (sobretudo em sociedades sexistas),
além de ter várias facetas que alcançam desde os processos de subjetivação,
formação dos sintomas, vulnerabilização identitária, à mediação do ato diag-
nóstico e à própria descrição dos transtornos. Levá-las em consideração, tanto
nas pesquisas, quanto nas intervenções, é fator premente, não apenas para au-
mentar a eficácia no tratamento e alívio do sofrimento, mas, também, para não
incorrermos em novas formas de violência de gênero, ainda que pautadas por
um discurso científico acrítico no que tange a essas questões.
MUNDOS DE MULHERES NO BRASIL 333

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