Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
M954
Mundos de mulheres no Brasil / Ana Maria Veiga, Claudia Regina Nichnig, Cristina
Scheibe Wolff, Jair Zandoná (organização) – Curitiba : CRV, 2019.
550 p.
Bibliografia
ISBN 978-85-444-3129-0
DOI 10.24824/978854443129.0
2019
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 - E-mail: sac@editoracrv.com.br
Conheça os nossos lançamentos: www.editoracrv.com.br
CAPÍTULO 30
SAÚDE MENTAL E GÊNERO
Valeska Zanello1
característica específica, definida por Ian Hacking (1986) como looping effect:
os transtornos mentais são fenômenos do tipo interativo humano, os quais, ao
serem nomeados/criados, alteram as vivências do próprio grupo de referência
por eles “identificados”. É o que ocorreu, por exemplo, historicamente, com
o grupo dos “homossexuais” ou dos portadores de “Transtorno de Déficit de
Atenção”. Há uma mudança na própria identidade dessas pessoas em função
de sua descrição “científica” e, também, um impacto na compreensão de suas
próprias experiências.
Pensemos no caso do transtorno depressivo. Em sua descrição, no DSM,
o exemplo dado para o sintoma de “tristeza” é o choro. Laboratórios farma-
cêuticos “traduzem” a descrição dos sintomas em imagens, presentes nos
folhetos entregues aos médicos para interpelar sua prescrição, ou em encartes
informativos aos pacientes para que eles mesmos possam estar “atentos” aos
sintomas de qualquer suposta “doença”. No caso da depressão, a imagem uti-
lizada é, quase sempre, de uma mulher cabisbaixa, prostrada. Trata-se do que
Wittig (1992) afirma como o “what goes without saying”: o que é mostrado
é que a depressão é um problema de mulheres e, em sua descrição, o choro é
destacado. Ao entrar em contato com estes folhetos, há a formação/nutrição
do background de crenças do médico e o looping effect naquele (ou naquela)
futuro(a) paciente que identificará sua “doença” e a própria necessidade de
prescrição do remédio. Borch-Jacobsen (2013) descreve, assim, a produção
do aumento do número de casos clínicos, em função do surgimento de novas
descrições ou novos “transtornos mentais”.
Quando se elegem sintomas gendrados para se descrever um transtorno,
cria-se, portanto, um viés, além dos já existentes no próprio ato diagnóstico.
Desta forma, quando se toma um “dado” como a prevalência mundial da in-
cidência de “depressão” em mulheres comparada a homens (na escala de 2 ou
3 casos para um), deve-se questionar certos pressupostos. E evitar conclusões
precipitadas, atribuídas a causalidades lineares, que reforçam e mantêm a crença
em um binarismo natural. Nesse caso, uma das interpretações etiológicas mais
aceitas é a perspectiva da causalidade biológica, ou seja, isso ocorreria em
função da presença de hormônios específicos na mulher. Pode-se ver aqui o
quanto o reducionismo da causalidade biológica obscurece, “no final” de to-
dos os procedimentos problemáticos apontados, a participação do gênero. Ela
naturaliza questões que merecem e precisam ser indagadas. Ou seja, deve-se
questionar a leitura epidemiológica, quando não são colocados em xeque o
próprio gendramento presente na descrição dos transtornos, além do gendra-
mento da própria formação sintomática e aquele presente na subjetividade do
profissional de saúde que interpreta os atos e sentimentos do paciente. Esse é
um quebra-cabeça epistemológico bastante importante.
Em face a esse problema, alguns autores, ligados ao campo da psiquiatria
(ver essa discussão em GRANT; WEISSMAN, 2008), têm sugerido mudanças
330
2 Foucault define o dispositivo como um conjunto heterogêneo que engloba “discursos, instituições, orga-
nizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos,
proposições filosóficas, morais, filantrópicas”. Para ele, “o dito e o não dito são os elementos do dispositivo.
O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos” (FOUCAULT, 1996, p. 244).
3 A construção do gênero ocorre através das várias tecnologias do gênero e discursos institucionais que
produzem, promovem e implantam certas representações, incluindo aí os próprios discursos “científicos” e
acadêmicos.
MUNDOS DE MULHERES NO BRASIL 331
que as escolha (ZANELLO, 2016; ZANELLO, 2018). A metáfora que criei para
compreendermos esta ideia é a “prateleira do amor”. Essa prateleira é regida
por um ideal estético (que vem se construindo desde o começo do século pas-
sado) marcado pela característica de ser branco, louro, jovem e magro. Quanto
mais distante desses ideais, maior o impacto sobre sua autoestima e maiores as
chances de se sentir “encalhada” na prateleira, ficando em posições mais desfa-
voráveis na mesma. As mulheres negras são as mais afetadas nesse dispositivo,
pois na configuração cultural das preferências afetivas, são as mais preteridas,
em função do racismo. Por outro lado, por mais que momentaneamente uma
mulher se encontre em uma suposta “boa” posição na prateleira, continua ainda
vulnerabilizada, pois está fadada a envelhecer, engordar, “sair fora de mercado”.
A prateleira empodera os homens, pois, nessa lógica, são eles os erigidos como
avaliadores das mulheres, física e moralmente. Quem avalia os homens são os
próprios homens, na “casa dos homens” (WELZERLANG, 2001).
O amor (e essa forma de amar) é algo identitário para as mulheres e sua
autoestima é construída e validada pela possibilidade de “ser escolhida” por
um homem. As lésbicas diminuem a assimetria de investimento, mas não ne-
cessariamente subvertem os ditames desse dispositivo. Não à toa se diz: “as
lésbicas não namoram, elas se casam”. Assim, a subversão do dispositivo da
sexualidade não obrigatoriamente subverte os de gênero.
Alguns aspectos importantes da prateleira do amor, no dispositivo amo-
roso, seriam: a) a subjetivação das mulheres em rivalidade umas com as
outras (“quero ser escolhida em detrimento das demais”); b) vulnerabilidade
identitária no se sentir “escolhida” (“não importa como – ou quem – ele é, mas
se ele me ama!” ou “se nenhum homem me deseja, então não valho nada” – e
equivalentes, “sou feia”, “estou gorda” etc.); c) vulnerabilidade também em
tudo fazer para “não ser abandonada” (“melhor com ele do que ser solteira”),
responsabilizando-se pela manutenção da relação.
O dispositivo materno, assim como o amoroso, trata-se de uma constru-
ção cultural que se deu, sobretudo, desde o século XVIII: de um lado, pela
separação entre um universo público e um privado; de outro, pela criação do
discurso ideológico do “instinto materno” (BADINTER, 1985), naturalizando
nas mulheres a capacidade de cuidar (dos outros e das tarefas domésticas, ou
seja, relacionados ao ambiente privado). Cuidar é uma capacidade humana, mas
historicamente foi ligada aos corpos das mulheres e somente nelas interpelado.
Implica, portanto, dizer que, em nossa cultura, as mulheres são subjetivadas
em um processo de heterocentramento (ao contrário dos homens, nos quais o
que se interpela é o ego-centramento, o ego-ísmo). Mesmo que uma mulher
não tenha filhos, será demandada culturalmente a ser cuidadora, a se doar pelos
outros. Aqui, como no caso do dispositivo amoroso, fugir à regra é ser colocada
em xeque, identitariamente, como “verdadeira mulher”.
332
REFERÊNCIAS
ALARCON, Renato D. Culture and Psychiatric Diagnosis. The Psychiatric
Clinics of North America, v. 18, n. 2, p. 449-465, 1995.
AZIZE, Rodrigo Lopes; ARAÚJO, Emanuelle Silva. A pílula azul: uma análise
de representações sobre masculinidade em face do Viagra. Antropolítica, v. 14,
p. 133-151, 2003.
CHESLER, Phyllis. Women and madness. New York: Palgrave Macmillan, 2005.
HACKING, Ian. The looping effects of human kinds. In: SPERBER, Dan;
PREMACK, David (Org.). Causal Cognition: a multidisciplinary debate. Oxford
Scholarship on-line, 1986.
SIMON, Robin W. Twenty years of the Sociology of Mental Health: The Con-
tinued Significance of Gender and Marital Status for Emotional Well-Being.
In: JOHNSON, Robert et al. (Ed.). Sociology of Mental Health. Springer Briefs
in Sociology, 2014.
SIMON, Robin W.; LIVELY, Kathryn. Sex, anger and depression. Social Forces,
v. 88, n. 4, p. 1543-1568, 2010.
SPIVAK, Gayatri. Can the subaltern speak? In: WILLIAMS, Patrick; CHRIS-
MAN, Laura (Ed.). An Introduction to colonial discourse and post-colonial
theory. New York; London: Harvester-Wheatsheat, 1998. p. 175-235.
WITTIG, Monique. The straight mind and other essays. Boston: Beacon
Press, 1992.