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RESUMO
Voz incompatível com a própria identidade é um tema frequentemente apontado pela população transgênera em
atendimentos fonoaudiológicos. A fonoterapia é uma técnica que permite a adequação da voz do falante, dentro de
um campo de possibilidades. Ao fonoaudiólogo cabe o treinamento, a orientação e o aconselhamento dessa popu-
lação, levando em conta as especificidades de cada indivíduo. Diante disso, este estudo tem como objetivo relatar
a experiência de estudantes de graduação e profissionais de Fonoaudiologia no atendimento voltado à população
transgênera em um laboratório de comunicação. Inicialmente são apresentados conceitos-chave, tais como as
diferenças entre sexo, gênero, identidade de gênero, e orientação sexual. São abordados temas como a violência
sofrida pela população trans, a busca pela adequação vocal, a criação e o desenvolvimento do ambulatório de co-
municação, o acolhimento e o suporte prestado pelos profissionais à população trans e a seus familiares, além dos
procedimentos adotados pelo ambulatório. Dentre as conclusões, destaca-se que a assistência fonoaudiológica tem
mostrado a importância do cuidado centrado no indivíduo, legitimando a garantia da promoção de saúde dos usuá-
rios. Ademais, é destacada a importância do profissional de fonoaudiologia no aprimoramento vocal e comunicativo
dessa população que é frequentemente estigmatizada.
Palavras-chave: Serviços de saúde para pessoas transgênero, Treinamento da voz, Qualidade da voz, Fonoaudiologia.
1
Universidade de São Paulo. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto. Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Saúde Pública, Ribeirão
Preto, (SP), Brasil.
2
Universidade de São Paulo. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Departamento de Ciências da Saúde, Ribeirão Preto, (SP), Brasil.
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative https://doi.org/10.11606/issn.2176-7262.rmrp.2023.203887
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio,
sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Atendimento fonoaudiológico à população transgênera
uma dimensão do indivíduo que compreende tanto frequentemente apontado pela população trans-
a identidade pessoal quanto a social, e que se tra- gênera em atendimentos fonoaudiológicos. Diante
duz nas suas atrações e comportamentos6. disso, é extremamente relevante questionar a ex-
Em se tratando especificamente dos aspec- pectativa e a perspectiva de pessoas trans acerca
tos comportamentais, ressalta-se que o sujeito ten- de sua produção vocal (padrão e qualidade), bem
de a se comportar de uma determinada forma por como de suas expectativas quanto aos possíveis
conta de diversos fatores, tais como sentimento de resultados alcançados com a fonoterapia, com as
pertencer a um grupo, estigma social, por valores técnicas cirúrgicas ou com os tratamentos medica-
próprios, por crenças, por medo ou inexperiência, e mentosos ou hormonais disponíveis11.
por outras razões6. Corroborando com o exposto, Schmidt et al.12
Santos7 aponta que o gênero binário e a indicam que pessoas trans têm suas vozes julgadas
heterossexualidade compulsória se instauram por diariamente por pessoas que não possuem expe-
meio da linguagem. Um exemplo similar aos uti- riência com análise vocal. Este julgamento desen-
lizados pela autora pode ser a predeterminação freado, segundo os autores, pode impactar signi-
do gênero de um bebê através da ultrassonografia ficativamente na integração do sujeito com a sua
pré-natal. De forma geral, o profissional, baseado identidade de gênero.
na suposta genitália externa visualizada no exame, Ambulatórios ou centros de referência para
afirma “é um menino”, ou “é uma menina”. A partir o atendimento especializado de pessoas trans são
desse momento, os pais e familiares tendem a criar espaços que contribuem para a diminuição da falta
uma vivência e expressão social mais feminina ou de informação por parte da sociedade. Essa falta de
masculina (rosa versus azul), determinando, com- informação tende a gerar episódios de violências
pulsoriamente, a identidade de gênero da criança7. irreparáveis tanto físicas como psíquicas, resultan-
Sabe-se que a população transgênera (trans) do em ansiedade, depressão, baixa autoestima, po-
sofre constantes formas de violência (verbal, física dendo inclusive levar ao suicídio, dentre outros fa-
e emocional), e é historicamente estigmatizada e tores que influenciam diretamente na qualidade de
marginalizada em contextos sociais, principalmente vida. Somadas a isso, tem-se a rejeição familiar, a
por se desviar dos padrões impostos como “nor- discriminação, a vitimização e a transfobia como fa-
mais“ acerca da identidade de gênero, dentro do tores que contribuem para a redução da expectati-
que chamamos de contextos binários e heterocis- va de vida dessa população, que hoje é de 35 anos,
normativos8. Por essas e por outras razões, a gran- conforme apontamentos da Associação Nacional de
de maioria procura meios para promover aproxima- Travestis e Transexuais13.
ção visual e comportamental dos padrões sociais Diante do exposto, o objetivo deste estudo é
típicos dos gêneros aos quais pertencem, fazendo, relatar a experiência de estudantes de graduação
inclusive, adaptações vocais e de fala, o que pode e profissionais de Fonoaudiologia no atendimento
gerar desgaste das estruturas fonatórias, assim prestado à população transgênera em um ambula-
como aumentar as experiências de violência por tório de comunicação.
estigmas de fala e de comunicação.
A voz é um importante instrumento na quali-
dade de vida das pessoas. Ela é parte integrante do RELATO DE EXPERIÊNCIA
processo de construção da identidade, autoimagem,
autoaceitação e receptividade social9,10. Segundo Trata-se de um estudo descritivo do tipo re-
Butler2, entende-se que a voz é um ato performati- lato de experiência desenvolvido a partir da vivên-
vo de gênero, ou seja, suas características possuem cia de estudantes e profissionais de fonoaudiologia
uma relação direta com a expressão de gênero do in- atuantes em um ambulatório público do interior do
divíduo, sendo considerada uma extensão do corpo. Estado de São Paulo. Por se tratar de um relato,
A voz, mesmo sendo uma característica se- este estudo dispensa a necessidade de submissão a
xual secundária, possui um papel de destaque na um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).
construção do gênero. Por essa razão, uma voz O Ambulatório de Voz e Comunicação foi criado
incompatível com a própria identidade é um tema em 2017, inicialmente em conjunto com Ambulatório
2 https://www.revistas.usp.br/rmrp
Leal GC, Silva AG, Silva JPF, Martins MFL, Sanches JF, et al
4 https://www.revistas.usp.br/rmrp
Leal GC, Silva AG, Silva JPF, Martins MFL, Sanches JF, et al
É oportuno ressaltar que apesar de o fonoau- Barros et al.15 mostram que quando a voz
diólogo não estar inserido na Portaria do Processo não representa o gênero com o qual o falante se
Transexualizador, são notórias as demandas vocais identifica, seu uso pode gerar desconforto e inter-
trazidas pela população trans quando procuram os ferir diretamente em questões de origens sociais.
centros de atendimento23. Mesmo não preconizado E, por conta desse desconforto, um mecanismo de
pela portaria, a presença de fonoaudiólogos é cada defesa bastante comum da população trans é a sua
vez mais comum nos serviços que são habilitados própria exclusão de ambientes sociais ou de situa-
pelo Ministério da Saúde24. ções que exigem o uso da voz.
No que se refere aos procedimentos realizados A literatura traz que a autopercepção de pes-
no ambulatório, eles variam conforme a demanda e soas trans em relação à própria voz é fundamental
a condição de cada paciente. A fonoterapia permitirá para que o processo de transição seja bem-sucedi-
a adequação da voz do falante, dentro de um campo do29. Nesse sentido, destacamos a importância do pa-
de possibilidades. Em se tratando de homem trans, pel do fonoaudiólogo nesse processo, proporcionando
por exemplo, para se ajustar o padrão vocal e comu- maior qualidade de vida, inclusão e humanização.
nicativo para um modelo masculino, uma intervenção
hormonal é eficiente por si só, dispensando-se, nesse
caso, a necessidade de uma intervenção cirúrgica25. CONCLUSÃO
Vale ressaltar que a fonoterapia tem um im-
portante papel na adequação comunicativa desses A assistência fonoaudiológica tem mostrado
pacientes, pois para se ter um padrão comunicativo a importância do cuidado centrado no indivíduo,
masculino não basta ter uma frequência fundamen- legitimando a garantia da promoção de saúde dos
tal da voz menor do que 150 Hz, que é um parâme- usuários. Para os estudantes e os profissionais en-
tro bastante usado em nossas práticas. Ou seja, é volvidos com o LabComT muitos benefícios foram
preciso haver também foco na expressão gestual, e são evidentes, uma vez que essas experiências
na entonação vocal e na articulação da fala25,26. têm permitido o contato com um público bastan-
Em mulheres trans as demandas são outras te heterogêneo, e carente de acompanhamentos,
e, por conta das especificidades desse grupo, o principalmente por conta do preconceito social que
planejamento terapêutico e as técnicas utilizadas reverbera também no setor da Saúde. Além disso,
são mais amplos, já que a terapia hormonal não demonstra a importância do profissional no aprimo-
produz nenhum efeito na mudança vocal, princi- ramento vocal e na comunicação dessa população
palmente após a puberdade. Em grande parte dos que é frequentemente estigmatizada.
casos, as intervenções cirúrgicas e a fonoterapia Por se tratar de um relato de experiência, com
devem ser associadas para que resultados mais caráter majoritariamente descritivo, este estudo não
efetivos sejam observados27. deve ser utilizado como base para a criação e/ou de-
As vozes masculina e feminina possuem pa- senvolvimento de políticas públicas, ao mesmo passo
drões de ressonância, velocidade de fala, intensida- que pode também não representar a realidade de toda
de, pitch e outras características suprassegmentais a população brasileira. Portanto, não são recomen-
que diferem entre si12. Portanto, a mudança da voz dadas generalizações. Contudo, espera-se que este
de um padrão masculino para um feminino (e vice- relato sirva como ponto de referência para centros
-versa) envolve ajustes bastante complexos. de estudo e de pesquisa, bem como para centros clí-
Em um descritivo do tipo relato de experiên- nicos que almejam introduzir o atendimento fonoau-
cia, Silva et al.28 investigaram a assistência fonoau- diológico, especificamente voltado ao atendimento
diológica na promoção à saúde vocal em homens de pessoas não-binárias, em sua rede de serviços.
transgêneros. Os autores apontaram que entre vá- Recomenda-se o desenvolvimento de novos
rias características, a voz permite o fenômeno da estudos que investiguem a percepção da popula-
passabilidade, que é quando um homem ou uma ção trans atendida neste e em outros ambulató-
mulher trans é reconhecido socialmente como per- rios/laboratórios com foco em voz e comunicação,
tencente ao gênero transicionado, e não ao sexo e visando o aprimoramento dos serviços e das estra-
gênero atribuído ao nascimento. tégias adotadas.
6 https://www.revistas.usp.br/rmrp
Leal GC, Silva AG, Silva JPF, Martins MFL, Sanches JF, et al
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Não se aplica
Autor Correspondente:
Gilberto da Cruz Leal
gilbertoleal@usp.br
Editor:
Prof. Dr Felipe Villela Gomes