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DOI: 10.22456/2238-152X.

128551

Sexualidade Feminina e os Usos de Sex Toys

Sex Toys and Female Sexuality

La Sexualidad Femenina y los Usos de Juguetes Sexuales

Rafael De Tilio
Jaqueline Martins Pereira Alves
Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Uberaba, MG, Brasil.

Resumo

Sex toys nem sempre foram utilizados visando prazeres sexuais, mas também como
instrumentos terapêuticos e/ou de dominação. O objetivo dessa pesquisa foi compreender
significados dos usos dos sex toys por mulheres. Quinze mulheres cisgêneras responderam a
uma entrevista cujos conteúdos foram organizados em duas categorias analisadas a partir dos
argumentos sobre contrassexualidade e sociedade farmacopornográfica. Os principais
resultados destacaram aspectos positivos (produção do prazer, da saúde e do empoderamento;
novas experiências sexuais; autoconhecimento) e negativos (custo; culpabilização;
julgamentos) no uso dos sex toys. Destacam-se as potencialidades destes objetos enquanto
produtores de transformações nos esquemas normalizadores do dispositivo da sexualidade.

Palavras-chave: Sex toys; Sexualidade; Gênero; Feminismo; Contrassexualidade.

Abstract

Sex toys have not always been used as objects of sexual pleasure, but also as therapeutic
instruments of male domination. The objective of this research was to understand the meanings
of the uses of sex toys by women. Fifteen cisgender women participated in this research and
their answers were organized into two categories analyzed from arguments about counter-
sexuality and pharmacopornographic society. The main results highlighted positive aspects
(sexual pleasure, mental health, and female empowerment; new sexual experiences; self-
knowledge) and negative aspects (high cost; guilt for masturbation; judgment by others) in the
use of sex toys. We highlight the potential of these objects as producers of sexuality dispositive.

Keywords: Sex toys; Sexuality; Gender; Feminism; Countersexuality.

Resumen

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Los juguetes sexuales no siempre se han utilizado como objetos de placer sexual, sino también
como instrumentos terapéuticos y/o de dominación masculina. El objetivo de esta investigación
fue comprender los significados de los usos de los juguetes sexuales por las mujeres. Quince
mujeres cisgénero participaron de una entrevista y sus respuestas fueron organizadas a partir de
un análisis de contenido temático en dos categorías analizadas a partir de argumentos sobre la
contra-sexualidad y la sociedad farmacopornográfica. Los principales resultados destacaron los
aspectos positivos (producción de placer sexual, salud mental y empoderamiento femenino;
nuevas experiencias sexuales; autoconocimiento) y los negativos (alto coste; sentimiento de
culpa por la masturbación; juicio de terceros y familiares) en el uso de juguetes sexuales.
Destacamos el potencial de estos joguetes sexuales como productores de transformaciones en
los esquemas de normalización del dispositivo de sexualidad.

Palabras clave: Juguetes sexuales; Sexualidad; Género; Feminismo; Contrasexualidad.

objetos sintéticos industrializados que


visam a maximização da satisfação sexual.
Introduzindo
Em outras palavras, a
Segundo Bayone e Burrowe (2021)
contemporaneidade sexual revelaria as
nos últimos anos acompanhando uma
tensões entre o dispositivo da sexualidade
tendência de pelo menos duas décadas,
proposto por Foucault (1976/2020) e a
observa-se o aumento da produção, da
recente sociedade contrassexual ou
comercialização e do consumo de objetos
farmacopornográfica sugerida por Preciado
do mercado erótico destinados
(2018; 2020). Foucault (1976/2020)
principalmente ao público feminino e,
argumentou que a história moderna da
dentre eles, os sex toys – objetos ou
sexualidade no ocidente pode ser
dispositivos produzidos em série cuja
compreendida comparando dois modelos. O
função é incrementar o prazer sexual
primeiro deles teria início no século XVII e
individual ou dos parceires1. Giddens
estava pautado nas proibições e nas
(2003) e Preciado (2018; 2020)
restrições dos prazeres ao considerar que a
argumentam que essas modificações
sexualidade saudável e aceita era somente
correspondem às transformações da
aquela praticada e restrita entre os adultos
sexualidade, especialmente a feminina, no
heterossexuais casados, sendo a população
capitalismo decorrentes das tensões
sistematicamente monitorada pelo Estado e
produzidas entre os mecanismos de
pelos discursos médicos (questão de saúde
contenção impostos à produção dos
e doença), jurídicos (crimes sexuais) e
prazeres e a incitação ao consumo de
políticos (gestão dos nascimentos e
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casamentos etc. – a biopolítica). Naquele contrassexual (aquela que não se organiza


contexto, as punições (imputações legais e segundo o dispositivo de controle
intervenções médicas) eram destinadas aos foucaultiano da sexualidade de produção do
que subvertiam os privilégios dos homens saber/poder) ou farmacopornográfica
frente às mulheres, que deveriam se dedicar (amplo estímulo ao consumo de materiais
aos cuidados domésticos e à geração da sintéticos e de substâncias endócrinas
descendência, e aos que não se industrializadas visando à satisfação
enquadravam nas normas que sexual). Ademais, segundo Butler
privilegiavam a cisheterossexualidade2. (1990/2019), Méllo (2012) e Guerrero e
Neste sentido, a masturbação feminina Despott (2015), além desta incitação ao
(bastante abordada nos manuais consumo de produtos sexuais sintéticos, os
confessionais e tratados penitenciais das movimentos feministas modernos
igrejas cristãs) foi considerada pecado contribuíram para o reposicionamento das
grave e/ou prática causadora de doenças demandas femininas tanto ao pressionarem
físicas e mentais (Dantas, 2010). pela maior inserção das mulheres no
Já o segundo momento – mercado de trabalho formal quanto ao
aprofundado por Giddens (2003) – foi conceberem o gênero não como espelho do
iniciado a partir de meados do século XX e sexo (biologia), mas como resultado das
pode ser caracterizado pela suavização relações assimétricas de poder nas
dessas proibições e restrições, pela relativa sociedades.
tolerância das relações sexuais pré-nupciais Felitti (2016) e Rodrigues (2016)
e fora dos matrimônios, das relações discorrem que a proliferação e maior uso
sexuais não-cisheterossexuais e pela maior dos sex toys decorreram tanto dos ativismos
possibilidade da experiência dos prazeres – teóricos e políticos feministas visando a
especialmente os femininos – liberdade sexual feminina quanto do
desvinculados da reprodução biológica estímulo mercadológico pelo consumo de
devido à difusão e comercialização dos serviços/objetos exclusivamente destinados
métodos contraceptivos industrializados. Se às mulheres e seus desejos, incluindo os
Giddens (2003) denominou esse conjunto prazeres sexuais. Os autores também
de mudanças de transformações da argumentam que o aumento do consumo
intimidade ou de sexualidade plástica, dos sex toys participa de um movimento
Preciado (2017; 2018; 2020) a denomina de mais amplo de produção e circulação de
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objetos destinados ao incremento da prazer sexual, sendo deslocados do campo


sexualidade, tais como literatura erótica e médico para o campo erótico/pornográfico.
de autoajuda, de cursos de educação sexual Assim, conforme esclareceu Comella
e da pornografia voltada para o público (2017), a partir da década de 1970 estes
feminino. Todavia, neste reposicionamento vibradores passaram a ser desenvolvidos e
é preciso considerar a longa tradição e receitados não por médicos ou sexólogos,
história dos sex toys (Gregori, 2011). mas em sex shops possibilitando sua
Segundo Gregori (2011), se as compra direta por parte das mulheres com a
origens dos sex toys podem ser encontradas finalidade de alcançarem seus orgasmos
nos dildos de diversos materiais que e/ou satisfazerem seus parceires.
substituem o pênis, e sua utilização entre o A mercantilização dos sex toys pode
final do século XIX e as primeiras décadas ser compreendida tanto como uma tentativa
do século XX esteve relacionada aos de democratização do prazer sexual quanto
massageadores vibratórios (chamados de uma possibilidade de desestabilização das
“instrumentos terapêuticos”) que supostas naturalidades dos esquemas
pretendiam curar a histeria associada à cisheteronormativos (que pressupõem a
infelicidade sexual feminina pelo discurso formação de parcerias monogâmicas
médico daquela época. Isso destaca a estáveis entre adultos, enquanto que os sex
evidente opressão das mulheres que eram toys podem ser usados sem parceires). Além
consideradas responsáveis tanto pelas suas disso, a crescente incorporação dos sex toys
insatisfações sexuais quanto as dos homens, no mercado de consumo para as massas
devendo elas se ajustarem aos esquemas de possibilita, em parte, deslocá-los das
normalização de gênero (passividade e denominadas sexualidades disruptivas, pois
objetificação das mulheres), que era a suposta normalidade sexual seria a
compreendido como sinônimo de cura cisheterossexual, ou a da terapêutica
(Schmitz, 2021). medicalizada (massageadores para a
Para Gregori (2021) a partir da histeria), que doravante pretende a
década de 1950 juntamente com a pílula produção dos prazeres solitários ou entre os
anticoncepcional hormonal sintética parceires (Comella, 2017). Assim, mesmo
feminina e com a crescente liberdade sexual que os sex toys possam ser utilizados para
feminina, os vibradores passaram a ser reforçar os esquemas tradicionais
utilizados como objetos para a produção do heteronormativos de subjetivação dos
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gêneros dos quais decorrem desigualdades Essa é uma pesquisa descritiva e


entre homens e mulheres – Zanello (2018) transversal em Psicologia (Creswell, 2010)
argumenta que essa subordinação feminina da qual participaram quinze mulheres que
decorre não de disposições individuais, mas foram recrutadas a partir da rede de contatos
de processos sociais, históricos e dos pesquisadores considerando alguns
ideológicos denominados por ela de critérios de inclusão (ser mulher3, usar sex
dispositivo materno e amoroso – eles toys, ter mais de 18 anos de idade) e de
podem ajudar a questionar os esquemas de exclusão (não usar sex toys, ter menos de 18
normatização e da naturalização anos de idade). Para o recrutamento de
decorrentes da lógica cisheterocentrada e participantes foram observadas as
adultocêntrica do dispositivo da recomendações da estratégia bola de neve
sexualidade foucaultiano e ampliar os ou cadeia referenciada proposta por Vinuto
prazeres e os direitos sexuais. (2014) – uma participante (semente)
Diversos autores como Ríos, indicava outras possíveis participantes
Amundaray e Arenas (2019), Braz (2012), adequadas aos critérios de inclusão que, por
Gregori (2014; 2016) e Pires (2018) sua vez, indicavam outros possíveis
concordam que os sentidos atribuídos a participantes.
esses objetos – dominação ou libertação – Para a definição do tamanho da
dependem, portanto, dos seus usos. Longe, amostra foi considerado o critério de
portanto, de romper totalmente com os saturação dos dados proposto por
esquemas de dominação sexuais Fontanella, Luchesi, Saidel, Ricas, Turato e
generificados cisheteronormativos, os sex Melo (2011). A coleta de dados ocorreu
toys podem auxiliar a compreender as entre setembro e outubro de 2020, sendo
tensões de controle e de contra controle da que doze participantes foram entrevistadas
sexualidade na contemporaneidade. Diante pela plataforma Google Meet devido às
do exposto, o objetivo dessa pesquisa foi necessidades de distanciamento social no
compreender os significados dos usos dos contexto da pandemia de COVID-19, e três
sex toys por mulheres. participantes ao invés de entrevistas à
distância solicitaram responder por escrito
Como está pesquisa foi realizada o mesmo roteiro de questões, devolvendo-
as por e-mail para os pesquisadores. O
roteiro de perguntas da
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entrevista/questionário continha duas bissexual; G, 19 anos, mulher cisgênera


partes: a primeira versava sobre a bissexual; H, 28 anos, mulher cisgênera
caracterização das participantes (idade, heterossexual; I, 24 anos, mulher cisgênera
nível de escolaridade, gênero, orientação heterossexual; J, 28 anos, mulher cisgênera
sexual), cujas principais informações estão bissexual; K, 28 anos, mulher cisgênera
descritas adiante; a segunda versava sobre bissexual; L, 28 anos, mulher cisgênera
os históricos e hábitos de usos dos sex toys bissexual; M, 26 anos, mulher cisgênera
como, por exemplo, tempo de uso, heterossexual; N, 22 anos, mulher cisgênera
motivações e entraves para o uso e suas lésbica; O, 22 anos, mulher cisgênera
influências para a vida sexual, função dos lésbica.
sex toys e como concebem o uso desses A coleta dos dados foi iniciada após
objetos na sociedade contemporânea. a aprovação da pesquisa pelo comitê de
As participantes foram identificadas ética em pesquisa da instituição de origem
por letras do alfabeto e seus assentimentos dos pesquisadores (número CAAE
de participação foram obtidos mediante 18369519.0.0000.5154 na Plataforma
declaração verbal de concordância após Brasil). O conjunto de dados obtidos
leitura por parte da entrevistadora do termo (entrevistas transcritas literalmente e na
de consentimento livre e esclarecido – nos íntegra com auxílio de um programa de
casos das entrevistas à distância – ou edição de textos e as entrevistas
mediante devolução do termo de respondidas por escritos) foi organizado por
consentimento livre e esclarecido assinado meio de uma análise de conteúdo temática
pela participante remetido previamente por de critérios semânticos observando as
e-mail ao envio das respostas para recomendações de Turato (2008). As duas
entrevistadora. categorias são: Ganhos (congregando
Os principais dados de conteúdos referentes aos aspectos
caracterização das participantes são os positivos) e Dificuldades (congregando
seguintes: A, 22 anos, mulher cisgênera conteúdos relacionados aos aspectos
bissexual; B, 28 anos, mulher cisgênera dificultosos) no uso dos sex toys. Ambas
lésbica ; C, 24 anos, mulher cisgênera foram analisadas a partir do escopo
bissexual; D, 26 anos, mulher cisgênera argumentativo da contrassexualidade e da
lésbica; E, 35 anos, mulher cisgênera sociedade farmacopornográfica de Paul
heterossexual; F, 28 anos, mulher cisgênera Beatriz Preciado e autores da área.
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entender através dele, que na


Ganhos no uso dos sex toys verdade veio mais coisa, né... eu
estudo um pouco tantra e veio
As participantes citaram vários também junto com a leitura de
aspectos positivos, por elas designadas alguns livros e terapia também né...
como ganhos, decorrentes do uso dos sex pra mim é difícil dissociar o sex toy,
toys. Esse foi o assunto mais relatado e porque meio que ele fez parte de um
debatido pelas participantes no qual elas combão... hoje acho que é liberdade
apresentaram diversas perspectivas sobre total (L)
como o uso dos sex toys influenciou suas
experiências e as de outras mulheres. Sobre esses aspectos é possível
O assunto mais citado neste tema foi retomar algumas das argumentações de
como a utilização dos sex toys possibilitou Preciado (2017; 2018; 2020) sobre a
o incremento do prazer sexual feminino, contrassexualidade e sobre a sociedade
transfigurando-se de tabu para a capitalista farmacopornográfica. Segundo o
liberdade/autonomia sexual feminina. Isso autor, a utilização de sex toys pode auxiliar
foi referido em alguns trechos das na desconstrução dos modelos sexuais e de
entrevistas: “mas nós já começamos a gênero normalizados nos moldes
caminhada pra começar a desconstruir isso, cisheteronormativos, propagando a
sabe, porque isso tá sendo mais falado” (A); equidade entre os sujeitos diante dessa
outra participante relatou: “nossa, eu encaro tecnologia sociossexual. Além de Preciado
como revolucionário, maravilhoso” (F); e (2017), Gregori (2011) também argumenta
outra participante: “eu ando vendo com que os dildos (objeto em formato de pênis)
mais frequência a construção de liberdade – o sex toy mais referido pelas participantes
da mulher em cima do próprio corpo sabe, – estão associados à plasticidade e
então eu acho que é algo a se pensar assim, polimorfismos dos corpos visando a
pro lado positivo sabe” (D); por fim, uma extração dos prazeres. Duas respostas das
das participante disse que: participantes se referiram a esse assunto: “o
que me motiva a usar [o dildo] hoje em dia
É uma ferramenta mesmo de é o interesse em descobrir prazeres
conseguir ficar bem comigo mesma, diferentes no nosso corpo, entendeu? Se eu
e aí depois que eu passei a me botar no meu pé, se vai ser legal e botar em
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várias partes do meu corpo” (B); e “estou Além destes, um relato muito
cansada, vou colocar [o sex toy] no pescoço interessante sobre o tema foi proferido por
[para massagear]” (L). Essas utilizações dos uma das participantes: “o brinquedo
sex toys em partes do corpo que não são [sexual] foi muito importante para mim
consideradas zonas erógenas usuais reflete num momento da minha vida... Eu tive
o argumento dos autores supracitados de muito problema com candidíase e aí foi com
que os pontos de prazer dos corpos não o brinquedo [sexual] que eu comecei a
estão limitados aos genitais, mas se voltar para minha atividade sexual” (C).
estendem ao corpo inteiro. Esse trecho ilustra o referido por Felitti
A partir destes dois últimos relatos (2016) sobre a importância dos sex toys
fica patente o argumento de Gregori (2011) como produtores do autoconhecimento, do
de que os dildos não são meros substitutos prazer sexual e da saúde sexual aos
do pênis e das relações cisheterossexuais e usuáries.
da dominação patriarcal, mas sim são Outro assunto destacado pelas
objetos produtores do prazer corporal – e, participantes foi o empoderamento
por vezes, sexual – feminino. Isso pode feminino em busca do prazer e da satisfação
ainda ser ilustrado a partir das respostas de sexual mediante a utilização dos sex toys: “o
algumas participantes: “não é algo que falta, empoderamento passa muito pelo corpo
mas é algo que completa” (B); ou “quando sabe, muito, não tem como” (L) – trecho de
a gente pensa nesses sex toys, cosméticos e entrevista de uma participante que
etc. eles trazem um requinte assim pro significou o vibrador como liberdade e
negócio, ele consegue fazer você ir mais objeto que ajudou a lhe trazer autoconfiança
fundo, se conectar” (I); e “eu comecei a e autonomia sexual. Outra participante
chegar no orgasmo de um jeito que antes eu relatou:
só chegava com alguém, sabe, aí com o
vibrador eu senti que eu consegui chegar Eu abri um sex shop atualmente.
sozinha o mesmo tanto que eu chegava com Coloquei os cartazes, assim, no
outra pessoa” (F). Essas respostas reforçam negócio de aviso de cada prédio. Aí
o argumento proposto por Gregori (2011) uma senhora de 70 anos me
de que os objetos sexuais são tanto interfonou falando que ela nunca
complementos como produtores autônomos tinha se masturbado na vida. Aí eu
do prazer sexual feminino. vendi um vibrador, uns géis e umas
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coisinhas, aí ok, fui lá na casa dela, e algemas. Pires (2018) esclarece que essas
ensinei pra ela... e aí ontem de práticas se referem às atividades eróticas
manhã ela me ligou, me interfonou historicamente consideradas desviantes da
de novo, falando assim “menina, eu (cishetero) normalidade, a partir das quais
tô ligando pra te agradecer, porque há junção de dor física ou psíquica com o
eu achei que eu sabia (I) prazer sexual. Por isso, elas são
experiências/atividades consideradas tabu,
O que essas participantes disseram principalmente porque o sadomasoquismo é
refletem os relatos de Comella (2017) sobre concebido pela medicina como um
mulheres que a partir da década de 1970 transtorno parafílico (American Psychiatric
abriram sex shops como forma de permitir e Association [APA], 2014). Mas
facilitar o acesso a esse mercado erótico Amundaray e Arenas (2019) e Gregori
para o público feminino. Ou seja, essa (2016) destacam que essas práticas não
atitude pode ser compreendida como ações devem ser confundidas com violência
realizadas por e para as mulheres com a (desde que observe o consentimento entre
intenção de ser um ambiente confortável, os participantes), e podem ser inclusivas e
elegante, educativo e, principalmente, de inovadoras ao conterem outras formas de
liberdade e de empoderamento para que as expressão e produção dos prazeres sexuais.
clientes pudessem explorar suas mentes e Nesse sentido, um aspecto
corpos na produção do prazer sexual sem a significativo a ser considerado são as
necessária dependência dos seus parceires. maneiras pelas quais esses objetos foram e
Outro tema recorrente nas ainda são designados na atualidade (sex
entrevistas foram as referências às práticas toys, toys, dildos, objetos sexuais,
de bondage/amarrações, acessórios sexuais e brinquedos sexuais
disciplina/dominação, etc.), sugerindo certo refinamento devido ao
submissão/sadomasoquismo e masoquismo uso de estrangeirismos linguísticos ao
(BDSM) com a utilização de diferentes e mesmo tempo em que são destinados para o
diversos sex toys. As participantes divertimento sexual – atualmente são
relataram a utilização de outros tipos de sex considerados brinquedos, e não
toys além dos dildos e dos vibradores instrumentos terapêuticos. Para Gregori
(ambos geralmente com formatos fálicos), (2011) essas nomenclaturas e propósitos
tais como fantasias, géis, chicotes, amarras são significativos em vários sentidos, dentre
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os quais as estratégias mercadológicas e Segundo Gregori (2016) o mercado


publicitárias, ainda mais quando se erótico se estrutura com base e segundo os
considera que em outros momentos padrões normativos da sociedade e, assim,
históricos o dildo era denominado de todos os produtos eróticos e pornográficos
consolo, remetendo à carência e falta de um destinados às mulheres priorizaram, de
pênis, falo ou homem – o que não foi certa maneira, a satisfação (mesmo que
referido pelas participantes. voyeurista) dos homens. Disso decorreu,
As participantes também relataram segundo a autora, uma das principais
suas experiências e motivações quando dos permanências deste sistema mesmo após a
primeiros usos dos sex toys que, no caso, feminização do mercado erótico moderno: a
decorreram das influências de outras responsabilização das mulheres pela
pessoas – parceires sexuais ou amigues. satisfação e felicidade sexual dos parceires,
Isso foi referido por duas participantes: “na reforçando o sistema cisheteronormativo e
verdade, não tem algo que me motivou no o dispositivo da sexualidade.
começo. Eu tinha uma namorada e ela falou: Mesmo que a maioria das
vamos experimentar” (B); e: “então, participantes tenha relatado que o interesse
quando eu comecei lá com 17 anos, que eu inicial pelo uso dos sex toys tenha sido dos
tinha começado a namorar, meu ex me seus parceires, elas rapidamente se
incentivava muito, assim, ele achava super aperceberam das possibilidades de prazer e
legal e tal” (I). Ainda, as participantes de autoconhecimento decorrentes destes
relataram que o contato com sex toys objetos. Isso foi citado por praticamente
ocorreu de uma forma que não as favorecia, todas as participantes quando, por exemplo,
como relatado por C: “no início eu até me foram inquiridas sobre a motivação atual
machucava e achava que era meu problema, em utilizá-los: “hoje em dia, claramente, é
porque a minha vagina que não dava conta assim, é amor com o meu corpo, o prazer
do brinquedo”; a participante I também que eu tenho, é conhecimento... você
referiu esse aspecto ao dizer que: “durante precisa contar pro outro o que você gosta
o tempo todo que eu namorava, como né” (I); “eu senti que com o vibrador eu
namorava à distância, eu meio que só usava comecei a explorar coisas assim... eu
quando eu ia mostrar pra ele, eu me sentia comecei a conhecer melhor o meu corpo”
meio que na obrigação de fazer e mostrar (F); “eu já fui casada, hoje não sou mais, eu
pra ele”. não sabia me tocar [masturbar-se]...
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recentemente que fui descobrir” (E); ocupou um espaço ambíguo nas respostas
“autoconhecimento, vontade de conhecer das participantes: se no momento da coleta
mais o meu corpo e sentir prazer comigo dos dados ela foi referida como importante
mesma” (J). para o autoconhecimento e para o prazer
Comella (2017) relata que os sexual, todavia, na infância/adolescência a
movimentos feministas nem sempre masturbação foi significada como
consideraram os dildos como objetos que pecaminosa – esse aspecto será retomado na
deveriam ser utilizados e valorizados pelas próxima categoria temática. Essas
mulheres devido aos perigos de serem concepções sobre a masturbação possuem
considerados simples substitutos do pênis e uma longa tradição que, de acordo com
do falo, além de serem relacionados à Dantas (2010), a situava tanto como pecado
primazia das relações sexuais e volúpia individualista desde a Idade
cisheterossexuais com penetrações e à Média nos manuais confessionais e tratados
dominação patriarcal – principalmente penitenciais religiosos quanto como
quando se consideram suas utilizações causadora de adoecimentos físicos e
como instrumentos para o tratamento das mentais pelas ciências médicas desde o
histerias. Porém, seguindo a autora e Felitti século XIX. A masturbação – ou o
(2016) e Gregori (2011), atualmente, os onanismo – era um mal a ser combatido por
vibradores sexuais são amplamente causar a degenerescência do corpo
reconhecidos como tecnologias feministas individual (vício) e do corpo social
visando à autonomia sexual feminina que (despreocupação com a reprodução
não pretendem substituir os pênis e os biológica e geração da prole).
homens, mas sim proporcionar prazeres Dantas (2010) relata que somente a
autônomos para as usuárias visando partir de meados do século XX que a
melhorar a saúde física e mental, além de masturbação como possibilidade de
proporcionar bem-estar, autoconhecimento produção de prazer começou a ganhar
e possibilitar rompimentos com o relevância e atenção, movimento inserido
dispositivo da sexualidade. nos questionamentos das práticas
Dessa forma, considerando o repressivas da sexualidade. Assim, alguns
conjunto de respostas das participantes, a instrumentos e objetos originalmente
masturbação (praticada solo ou com produzidos para o controle da sexualidade
parceires) com a utilização de sex toys passaram a ser utilizados como produtores
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dos prazeres sexuais – alguns exemplos autoconhecimento e dos prazeres


possíveis dessas alterações são os dildos compartilhados.
vibradores (tornados objetos de excitação), Em suma, essas respostas das
as pílulas hormonais anticonceptivas (que participantes destacam que os ganhos e as
permitem desvincular a reprodução repercussões positivas na utilização dos sex
biológica das práticas sexuais com toys estão relacionados às descobertas de
penetração) e a cinta de castidade (que antes sensações e prazeres no próprio corpo além
impedia as penetrações e agora serve de dos genitais e da penetração, pois eles
acessório de suporte para encaixar dildos e permitem o incremento da autonomia e do
possibilitar novas posições e dinâmicas empoderamento, tal como relatado pela
entre os parceires). participante E sobre o uso do vibrador:
Esse conjunto de modificações,
segundo Guerrero e Despott (2015) e Ele me ajuda a potencializar a busca
Preciado (2017; 2018; 2020) permitiram – pelo prazer muitas vezes... é essa
porém, não determinam – que o dispositivo necessidade de explorar de uma
da sexualidade pode ser transformado, e a forma diferente né... o toy que eu
produção do prazer sexual pode questionar tenho, ele não é de penetração, ele é
as hegemonias da sociedade de estimulação clitoriana, é algo que
cisheteronormativa. Além disso, Comella a gente descobre muito que a
(2017) argumentou a importância dos sexualidade e tudo vai além de
workshops sobre masturbação de mulheres penetração.
cisgêneras nas quais elas veem ilustrações
ou reflexos dos próprios órgãos sexuais Por fim, os relatos dessas
tanto para conhecerem seus corpos quanto participantes corroboram os argumentos de
para não sentirem vergonha deles. A autora Preciado (2017) de que o dildo e quaisquer
também relata o quanto foi e ainda é sex toys compõem uma tecnologia de
importante para as mulheres e seus resistência contrassexual que pretende
parceires conhecerem a anatomia das escapar da lógica hegemônica do
vaginas utilizando os sex toys, dispositivo da sexualidade.
especialmente os vibradores, como um
primeiro passo para a produção do Dificuldades no uso dos sex toys

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As respostas e comentários das medo dos julgamentos realizados por


participantes também mencionaram as terceiros, isto é, de como a sociedade ainda
dificuldades e as limitações dos usos dos significa tanto o prazer sexual feminino
sex toys. Por exemplo, algumas destacaram quanto o uso desses objetos de uma forma
o barulho que os sex toys vibradores fazem, pejorativa e negativa como, por exemplo,
permitindo alguém escutar seu relatado por algumas das participantes: “é o
funcionamento. Isso pode ser ilustrado nas tipo de coisa que eu não me sinto
seguintes respostas das participantes: “o confortável conversando com qualquer
principal fator que me desmotiva ao uso do pessoa, porque eu sei que uma mulher
toy é a sensação de que alguém pode estar utilizando e falando sobre a sexualidade é
me escutando ou preocupações externas” algo julgado” (J); “resumindo, medo do
(E); “fui deitar e resolvi usar. Primeiro julgamento alheio” (E); “muitas vezes as
fiquei um pouco desconfortável, pois a luz mulheres são julgadas por usar esses tipos
do quarto da minha irmã, que é do lado do de sex toys” (A).
meu, estava acesa” (E); “existe uma coisa Méllo (2012) e Preciado (2017)
que me desmotiva é o barulho... e não destacam que historicamente o corpo,
porque me incomoda, mas porque eu moro especialmente o das mulheres, pode ser
com meus pais e não fico confortável” (I). compreendido como produto de uma
A qualidade do produto e ou as cultura fortemente influenciada pelo
dificuldades de aquisição devido ao elevado catolicismo. Assim, sua materialidade não
custo dos sex toys foram exemplificados por deveria ser mostrada/exposta e deveria,
algumas das participantes como entraves devido aos esquemas de dominação do
para sua utilização quando perguntadas se dispositivo da sexualidade, ser contido em
havia algo que as desmotiva a usar os sex esquemas de dominação binários (ou
toys: “tem sim, qualidade ruim do produto, feminino ou masculino) cisheterossexuais.
qualidade ruim da borracha, do plástico” Essa concepção começou a ser
(C); “falta de dinheiro, porque as coisas que problematizada com mais afinco a partir
eu quero são caras e aí não para comprar dos movimentos feministas e LGBTQIA+
tenho que juntar [dinheiro] um tanto antes” de meados do século XX ao questionarem
(J). as supostas superioridades e privilégios dos
Porém, o assunto mais citado dentre homens heterossexuais e as violências as
as dificuldades e limitações foi o receio e o quais as mulheres e outras minorias sofriam
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– e ainda sofrem. Ao discorrer sobre essas participantes: não se sentirem


alterações, Preciado (2018; 2020) destaca a completamente à vontade para utilizar os
importância de formalização/utilização (o sex toys com os parceires, principalmente
que não significa a pacificação e com homens, pelo fato de esses objetos
uniformização) do conceito de gênero como sexuais ainda serem compreendidos por
operador teórico e político de estruturação parcela significativa da população a partir
das relações de poder que produzem de uma perspectiva cisheteronormativa.
desigualdades entre homens e mulheres e Esse argumento pode ser exemplificado
entre heterossexuais e não heterossexuais. pelas respostas de duas participantes:
Assim, para Preciado (2018; 2020), “muitas vezes as mulheres são julgadas por
se gênero não é a extensão ou a decorrência usar esses tipos de sex toys... como se a
no plano das subjetividades e das atitudes mulher não tivesse essa liberdade sexual
das características biológicas (sexo) dos para incrementar coisas na relação, se assim
corpos, mas sim uma tecnologia que causa ela achar que deve” (A);
desigualdades e violências devido as suas
pressões pela normalização em esquemas Que homem acha muito que é um
binários, isso significa que os gêneros são competidor... não interessa o
efeitos e não as causas das desigualdades. tamanho, não interessa a função... eu
Nesta concepção a utilização do conceito já tive várias conversas com amigos
gênero permitiu, dentre muitas meus do tipo, vocês acham mesmo
consequências, deslocar o reconhecimento que um negócio de plástico vai
tradicionalistas das mulheres-objetos substituir pele, beijo, corpo...? aí a
destinadas à dominação masculina e ao conversa vai no sentido de que de
deleite e desfrute sexual por parte dos fato eles acham (I)
homens para – resgatando as palavras de
Felitti (2016) – mulheres-sujeitos que Gregori (2011) argumenta que o uso
possuem capacidade para fazer suas dos dildos e dos objetos sexuais por um lado
próprias escolhas e pode se empoderar por suplementa, expande e amplia os limites
meio delas. dos corpos e dos prazeres humano e, por
Isso impacta outro tema outro lado, potencialmente reestrutura os
relacionados às dificuldades e entraves nos corpos e os molda conforme novas
usos dos sex toys mencionado pelas configurações diante das produções de
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prazer. Porém, a participante B relatou o um dos pecados mais relatados era a


quanto o mercado erótico ainda está masturbação; dessa forma, ela começou a
majoritariamente destinado ao público ficar muito preocupada e passou a achar que
cisheterossexual: “o fato de que muita coisa seria errado/pecaminoso se masturbar. Por
é heteronormativa né, é tudo muito voltado outro lado, outra participante relatou de
para o público hetero e tudo mais, tem as maneira irônica que “não faz sentido Deus
coisas lésbicas, mas é tudo muito ter dado mão pra gente, que alcança, ter
heteronormativo ainda”. A partir desses dado um clitóris que é só pra prazer... pra
relatos das participantes é possível mim, o conceito de que Deus não quer que
considerar, em concordância com Preciado você se masturbe está super distorcido” (I).
(2017; 2018), como o processo de Estes relatos destacam a polarização que a
desconstrução normativa do dildo e dos sex masturbação adquiriu, segundo Preciado
toys é necessário para não o significar como (2017), na sociedade ocidental: durante
réplica plástica do membro sexual muito tempo foi considerada pecado
masculino ou como tentativa de (discurso religioso) ou doença (discurso
reestabelecer uma relação cisheterossexual médico), segundo os quais o sujeito que se
(que enfatiza a penetração), mas sim como masturbava era considerado agente
símbolo de potência e excitação sexual que contaminador que não se interessava pela
pode se deslocar para diversos pontos de reprodução biológica e ameaçava o futuro
prazeres nos corpos. da espécie, até que recentemente foi
Se a masturbação com utilização de incorporada às práticas de autoprodução do
sex toys foi considerada pelas participantes prazer e do cuidado de si.
como uma possibilidade de produção de Essa dicotomia da masturbação é
autoconhecimento e de prazeres sexuais, recorrentemente destacada pela literatura da
porém, ela também foi mencionada a partir área. Por exemplo, Butler (1990/2019),
do sentimento da culpa. A participante F Gregori (2011) e Preciado (2017)
relatou uma história de sua infância em que discorreram sobre o sujeito que se masturba
participou de um encontro de grupo de e que inicialmente foi considerado perigoso
jovens da igreja no qual havia “saquinhos e/ou risco potencial aos corpos, às relações
de pecados” (sacos de tecidos nos quais heterossexuais e às famílias nucleares
eram depositados relatos escritos de monogâmicas cujo propósito era a
pecados cometidos por aqueles jovens), e reprodução biológica, e só mais
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recentemente nas últimas décadas foi relatos podem ser exemplificados a partir de
considerado à luz da produção do prazer um trecho de entrevista de uma das
sexual. Em suma, era necessário repreender participantes: “a educação que foi passada
a atividade masturbatória. A partir disso para mim, essa questão muito de ‘ai’, a
foram sendo estabelecidos instrumentos ou mulher não pode se tocar [masturbar], etc.,
tecnologias de repressão da sexualidade, e a minha família é um pouco, no caso meu
tais como o cinto de castidade e outros pai é mais assim, é bem machista, então
objetos (luvas e amarras etc.) que acho que isso de certa forma interfere” (D).
dificultavam ou impossibilitavam a Beauvoir (1949/2016) argumenta
masturbação. Todavia, segundo estes que as mulheres no decorrer da história até
autores, a masturbação se mostrava a contemporaneidade nunca constituíram
paradoxal para as ciências médicas do final uma sociedade autônoma – isto é, nunca
do século XIX e início do século XX: se por assumiram posições de privilégios tal como
um lado havia a repressão moral e médica à os homens – pois sempre foram delegadas
masturbação, por outro lado, conforme às posições submissas em sociedades
mencionado, os médicos utilizavam os masculinizadas e patriarcais. Para a autora,
vibradores mecânicos (masturbadores) essa submissão não é o reflexo dos traços da
como instrumentos científicos para curar a personalidade e ou das características
histeria e outras afecções mentais. Preciado biológicas das mulheres, mas sim é
(2017) acertadamente situa a problemática sistematicamente organizada e transmitida
da masturbação não em torno do entre as gerações por meio de instituições
reconhecimento de existência e da repressivas e esquemas de socialização
utilização dos objetos sexuais, mas sim em primária (a que ocorre nas e pelas famílias
relação aos propósitos dessas utilizações. e pessoas próximas das crianças) e
As relações com os membros das secundária (aquelas que ocorrem em
famílias também foram citadas como instituições e espaços que não os familiares
entraves para a utilização dos sex toys. como as escolas, espaços de lazer e grupos
Algumas das participantes relataram o fato diversos etc.). Em suma, e parodiando o
de não terem onde guardar ou mesmo onde famoso mote da autora, não se nasce mulher
esconder os sex toys, haja vista que a submissa, torna-se. Sendo a dominação por
simples referência à sexualidade feminina parte dos homens e a submissão por parte
era tabu para suas famílias e parentes. Estes das mulheres resultado de uma história das
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relações entre os gêneros, também é reconhecida, desde que submissa aos


perceptível movimentos de resistência homens. Dessa forma, segundo Foucault
promovidos pelos ativismos feministas (1976/2020), a livre expressão da
visando a autonomia e liberdade das sexualidade feminina e do interesse sexual
mulheres. Por exemplo, no escopo desta por parte das mulheres passaram a ser
pesquisa, a participante F, em relação à considerados elementos desviantes e
experiência do “saquinho de pecados” e da anormais, fator transmitido entre as
masturbação, relatou que tentou falar com gerações e entre os gêneros – como é
sua mãe quando tinha aproximadamente possível destacar dos comentários das
oito anos para explicar o que estava fazendo participantes D e F.
– isto é, que achava que era um pecado e
tentou entender o que estava acontecendo. Apontamentos finais
Disse ainda o quão difícil foi conversar com
sua mãe sobre esse assunto, e que a mãe não A sexualidade feminina por muito
falou em momento algum que era errado ou tempo foi concebida como destinada
correto, mas sim que era um processo de exclusivamente para a reprodução biológica
descoberta do próprio corpo, apenas da espécie e/ou para a satisfação sexual dos
respondendo que também fazia isso quando homens, e não para a produção da
pequena e que a avó de F também ficava autossatisfação sexual. Disso decorreram
brava. gerações de mulheres consideradas
De acordo com Dantas (2010) o subordinadas, submissas e dependentes dos
século XIX foi repleto de estudos e de homens inseridas numa cultura e sociedade
produção do conhecimento sobre a patriarcal que prevalece até os dias atuais.
sexualidade feminina, cuja conclusão geral Porém, com o avanço dos movimentos
foi a de que as mulheres não eram feministas e das comunidades LGBTQIA+,
insensíveis aos desejos sexuais, porém, por a sexualidade e o prazer sexual feminino
influência dos tradicionalismos e dos foram progressivamente ganhando destaque
moralismos da igreja católica e de seus e as mulheres passaram a reivindicar sua
apoiadores predominaram os argumentos posição como sujeitos políticos e sujeitos de
de que elas os vivenciavam com menor prazer.
intensidade do que os homens. Em outras Tendo em vista esse cenário, torna-
palavras: a sexualidade das mulheres era se importante discutir a utilização dos sex
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toys (utilizados inicialmente para o participantes com marcadores sociais


tratamento de doenças mentais e sexuais, distintos destas certamente podem produzir
mas que foram assimilados ao mercado conteúdos diferentes sobre o assunto; além
capitalista farmacopornográfico de disso, entrevistar homens que utilizam sex
produção e de circulação de objetos toys consigo e/ou com seus parceires
eróticos) que visam em parte, mas não também podem fornecer outros elementos
exclusivamente, a produção do prazer de compreensão do tema. Apesar desses
sexual para e por parte das mulheres. limites, os resultados desta pesquisa são
Assim, os principais resultados desta potencialmente contributivos para a
pesquisa destacaram que os usos dos sex compreensão dos diversos usos dos sex toys
toys participam de uma construção de e suas relações com o dispositivo da
autoconhecimento e da produção de sexualidade e seus questionamentos na
prazeres sexuais por parte das participantes, sociedade farmacopornográfica
destacando a relevância desses objetos, contemporânea.
visando o empoderamento e a autonomia
das mulheres. Todavia, restrições e Referências
dificuldades quanto aos usos dos sex toys
também foram relatados, tais como a American Psychiatric Association – APA
(2014). Manual diagnóstico e estatístico
vergonha, a culpa, o elevado custo
de transtornos mentais – DMS-5. Porto
financeiro de aquisição destes objetos, as Alegre: Artmed
influências da socialização familiar, da
Bayone, A. M., Burrowes, P. C. (2019).
religião e da cisheteronormatividade. Mas Como ser mulher na publicidade:
Femvertising e as “novas” representações
de maneira geral e segundo as participantes,
do feminino. Consumer Behavior Review,
os sex toys são potencialmente 3, 24-37. https://doi.org/10.51359/2526-
7884.2019.242586
revolucionários ao permitir às mulheres
estabelecerem outras relações – que não as Beauvoir, Simone de (2016). O segundo
sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira
de simples subordinação e repressão – com
(Obra original publicada em 1949)
sua sexualidade.
Braz, C. (2012). Like a porn movie: notes
Essa pesquisa possui alguns limites,
on boundaries and bodies that matter in
dentre os quais ter entrevistado apenas male sex clubs. Vibrant, Virtual Braz.
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mulheres jovens, cisgêneras e com níveis
https://doi.org/10.1590/S1809-
elevados de escolaridade – outras 43412012000100005
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sexuales asociadas al BDSM: los límites E-mail: rafal.tilio@uftm.edu.br
contemplados dentro de lo sano, seguro y
consensuado. Ciência & Saúde Coletiva, Jaqueline Martins Pereira Alves.
24(5), 1679-1688. Psicóloga. Pesquisadora do Laboratório de
https://doi.org/10.1590/1413- Estudos e Pesquisas em Sexualidades e
81232018245.04322019 Gêneros (LEPESEGE) da UFTM.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-
Rodrigues, C. (2005). Butler e a 0150-6495
desconstrução do gênero. Rev. Estudos E-mail: jaque.martinspa@gmail.com
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https://doi.org/10.1590/S0104-
026X2005000100012 Submetido em: 17/11/2022
1ª Rodada: 02/03/2023
Schmitz, E. D. (2021). Uma breve história 2ª Rodada: 08/08/2023
da histeria: da antiguidade aos tempos Aceito em: 16/08/2023
atuais. Revista Mosaico, 14(2), 227-238.
https://doi.org/10.18224/mos.v14i2.8754
Contribuição dos(as) autores(as)
Turato, E. R. (2008). Tratado da
metodologia da pesquisa clínico- Conceitualização: R.D.T; J.M.P.A.
qualitativa: construção teórico- Redação do manuscrito: R.D.T; J.M.P.A.
epistemológica, discussão comparada e Análise dos dados: R.D.T; J.M.P.A.
aplicação nas áreas da saúde e humanas. Revisão e edição: R.D.T.
Petrópolis, RJ: Vozes

Vinuto, J. (2014). A amostragem em bola de Notas


neve na pesquisa qualitativa: um debate
1
em aberto. Temáticas, 22(44), 203-220, Para designar as parcerias afetivas e sexuais
2014. optamos por recorrer à escrita segundo preceitos das
linguagens não-binárias para produzir um efeito de
https://doi.org/10.20396/tematicas.v22i44 maior inclusão e diversidade.
.10977 2
Cisgeneridade e transgeneridade são termos
referentes ao sexo (aspectos biológicos) e ao gênero
Zanello, V. (2018). Saúde mental, gênero e (atitudes socialmente orientadas), mas não são
dispositivos: cultura e processos de utilizados por Foucault, que centralizou suas
investigações em torno da orientação sexual.
subjetivação. Curitiba: Appris 3
Contudo, mulheres transgêneras não foram
incluídas devido a não indicação destas pelas outras
participantes considerando o modelo de
recrutamento utilizado nesta pesquisa

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