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Rafael De Tilio
Jaqueline Martins Pereira Alves
Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Uberaba, MG, Brasil.
Resumo
Sex toys nem sempre foram utilizados visando prazeres sexuais, mas também como
instrumentos terapêuticos e/ou de dominação. O objetivo dessa pesquisa foi compreender
significados dos usos dos sex toys por mulheres. Quinze mulheres cisgêneras responderam a
uma entrevista cujos conteúdos foram organizados em duas categorias analisadas a partir dos
argumentos sobre contrassexualidade e sociedade farmacopornográfica. Os principais
resultados destacaram aspectos positivos (produção do prazer, da saúde e do empoderamento;
novas experiências sexuais; autoconhecimento) e negativos (custo; culpabilização;
julgamentos) no uso dos sex toys. Destacam-se as potencialidades destes objetos enquanto
produtores de transformações nos esquemas normalizadores do dispositivo da sexualidade.
Abstract
Sex toys have not always been used as objects of sexual pleasure, but also as therapeutic
instruments of male domination. The objective of this research was to understand the meanings
of the uses of sex toys by women. Fifteen cisgender women participated in this research and
their answers were organized into two categories analyzed from arguments about counter-
sexuality and pharmacopornographic society. The main results highlighted positive aspects
(sexual pleasure, mental health, and female empowerment; new sexual experiences; self-
knowledge) and negative aspects (high cost; guilt for masturbation; judgment by others) in the
use of sex toys. We highlight the potential of these objects as producers of sexuality dispositive.
Resumen
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Sexualidade Feminina e os Usos de Sex Toys
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Los juguetes sexuales no siempre se han utilizado como objetos de placer sexual, sino también
como instrumentos terapéuticos y/o de dominación masculina. El objetivo de esta investigación
fue comprender los significados de los usos de los juguetes sexuales por las mujeres. Quince
mujeres cisgénero participaron de una entrevista y sus respuestas fueron organizadas a partir de
un análisis de contenido temático en dos categorías analizadas a partir de argumentos sobre la
contra-sexualidad y la sociedad farmacopornográfica. Los principales resultados destacaron los
aspectos positivos (producción de placer sexual, salud mental y empoderamiento femenino;
nuevas experiencias sexuales; autoconocimiento) y los negativos (alto coste; sentimiento de
culpa por la masturbación; juicio de terceros y familiares) en el uso de juguetes sexuales.
Destacamos el potencial de estos joguetes sexuales como productores de transformaciones en
los esquemas de normalización del dispositivo de sexualidad.
várias partes do meu corpo” (B); e “estou Além destes, um relato muito
cansada, vou colocar [o sex toy] no pescoço interessante sobre o tema foi proferido por
[para massagear]” (L). Essas utilizações dos uma das participantes: “o brinquedo
sex toys em partes do corpo que não são [sexual] foi muito importante para mim
consideradas zonas erógenas usuais reflete num momento da minha vida... Eu tive
o argumento dos autores supracitados de muito problema com candidíase e aí foi com
que os pontos de prazer dos corpos não o brinquedo [sexual] que eu comecei a
estão limitados aos genitais, mas se voltar para minha atividade sexual” (C).
estendem ao corpo inteiro. Esse trecho ilustra o referido por Felitti
A partir destes dois últimos relatos (2016) sobre a importância dos sex toys
fica patente o argumento de Gregori (2011) como produtores do autoconhecimento, do
de que os dildos não são meros substitutos prazer sexual e da saúde sexual aos
do pênis e das relações cisheterossexuais e usuáries.
da dominação patriarcal, mas sim são Outro assunto destacado pelas
objetos produtores do prazer corporal – e, participantes foi o empoderamento
por vezes, sexual – feminino. Isso pode feminino em busca do prazer e da satisfação
ainda ser ilustrado a partir das respostas de sexual mediante a utilização dos sex toys: “o
algumas participantes: “não é algo que falta, empoderamento passa muito pelo corpo
mas é algo que completa” (B); ou “quando sabe, muito, não tem como” (L) – trecho de
a gente pensa nesses sex toys, cosméticos e entrevista de uma participante que
etc. eles trazem um requinte assim pro significou o vibrador como liberdade e
negócio, ele consegue fazer você ir mais objeto que ajudou a lhe trazer autoconfiança
fundo, se conectar” (I); e “eu comecei a e autonomia sexual. Outra participante
chegar no orgasmo de um jeito que antes eu relatou:
só chegava com alguém, sabe, aí com o
vibrador eu senti que eu consegui chegar Eu abri um sex shop atualmente.
sozinha o mesmo tanto que eu chegava com Coloquei os cartazes, assim, no
outra pessoa” (F). Essas respostas reforçam negócio de aviso de cada prédio. Aí
o argumento proposto por Gregori (2011) uma senhora de 70 anos me
de que os objetos sexuais são tanto interfonou falando que ela nunca
complementos como produtores autônomos tinha se masturbado na vida. Aí eu
do prazer sexual feminino. vendi um vibrador, uns géis e umas
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coisinhas, aí ok, fui lá na casa dela, e algemas. Pires (2018) esclarece que essas
ensinei pra ela... e aí ontem de práticas se referem às atividades eróticas
manhã ela me ligou, me interfonou historicamente consideradas desviantes da
de novo, falando assim “menina, eu (cishetero) normalidade, a partir das quais
tô ligando pra te agradecer, porque há junção de dor física ou psíquica com o
eu achei que eu sabia (I) prazer sexual. Por isso, elas são
experiências/atividades consideradas tabu,
O que essas participantes disseram principalmente porque o sadomasoquismo é
refletem os relatos de Comella (2017) sobre concebido pela medicina como um
mulheres que a partir da década de 1970 transtorno parafílico (American Psychiatric
abriram sex shops como forma de permitir e Association [APA], 2014). Mas
facilitar o acesso a esse mercado erótico Amundaray e Arenas (2019) e Gregori
para o público feminino. Ou seja, essa (2016) destacam que essas práticas não
atitude pode ser compreendida como ações devem ser confundidas com violência
realizadas por e para as mulheres com a (desde que observe o consentimento entre
intenção de ser um ambiente confortável, os participantes), e podem ser inclusivas e
elegante, educativo e, principalmente, de inovadoras ao conterem outras formas de
liberdade e de empoderamento para que as expressão e produção dos prazeres sexuais.
clientes pudessem explorar suas mentes e Nesse sentido, um aspecto
corpos na produção do prazer sexual sem a significativo a ser considerado são as
necessária dependência dos seus parceires. maneiras pelas quais esses objetos foram e
Outro tema recorrente nas ainda são designados na atualidade (sex
entrevistas foram as referências às práticas toys, toys, dildos, objetos sexuais,
de bondage/amarrações, acessórios sexuais e brinquedos sexuais
disciplina/dominação, etc.), sugerindo certo refinamento devido ao
submissão/sadomasoquismo e masoquismo uso de estrangeirismos linguísticos ao
(BDSM) com a utilização de diferentes e mesmo tempo em que são destinados para o
diversos sex toys. As participantes divertimento sexual – atualmente são
relataram a utilização de outros tipos de sex considerados brinquedos, e não
toys além dos dildos e dos vibradores instrumentos terapêuticos. Para Gregori
(ambos geralmente com formatos fálicos), (2011) essas nomenclaturas e propósitos
tais como fantasias, géis, chicotes, amarras são significativos em vários sentidos, dentre
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recentemente que fui descobrir” (E); ocupou um espaço ambíguo nas respostas
“autoconhecimento, vontade de conhecer das participantes: se no momento da coleta
mais o meu corpo e sentir prazer comigo dos dados ela foi referida como importante
mesma” (J). para o autoconhecimento e para o prazer
Comella (2017) relata que os sexual, todavia, na infância/adolescência a
movimentos feministas nem sempre masturbação foi significada como
consideraram os dildos como objetos que pecaminosa – esse aspecto será retomado na
deveriam ser utilizados e valorizados pelas próxima categoria temática. Essas
mulheres devido aos perigos de serem concepções sobre a masturbação possuem
considerados simples substitutos do pênis e uma longa tradição que, de acordo com
do falo, além de serem relacionados à Dantas (2010), a situava tanto como pecado
primazia das relações sexuais e volúpia individualista desde a Idade
cisheterossexuais com penetrações e à Média nos manuais confessionais e tratados
dominação patriarcal – principalmente penitenciais religiosos quanto como
quando se consideram suas utilizações causadora de adoecimentos físicos e
como instrumentos para o tratamento das mentais pelas ciências médicas desde o
histerias. Porém, seguindo a autora e Felitti século XIX. A masturbação – ou o
(2016) e Gregori (2011), atualmente, os onanismo – era um mal a ser combatido por
vibradores sexuais são amplamente causar a degenerescência do corpo
reconhecidos como tecnologias feministas individual (vício) e do corpo social
visando à autonomia sexual feminina que (despreocupação com a reprodução
não pretendem substituir os pênis e os biológica e geração da prole).
homens, mas sim proporcionar prazeres Dantas (2010) relata que somente a
autônomos para as usuárias visando partir de meados do século XX que a
melhorar a saúde física e mental, além de masturbação como possibilidade de
proporcionar bem-estar, autoconhecimento produção de prazer começou a ganhar
e possibilitar rompimentos com o relevância e atenção, movimento inserido
dispositivo da sexualidade. nos questionamentos das práticas
Dessa forma, considerando o repressivas da sexualidade. Assim, alguns
conjunto de respostas das participantes, a instrumentos e objetos originalmente
masturbação (praticada solo ou com produzidos para o controle da sexualidade
parceires) com a utilização de sex toys passaram a ser utilizados como produtores
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recentemente nas últimas décadas foi relatos podem ser exemplificados a partir de
considerado à luz da produção do prazer um trecho de entrevista de uma das
sexual. Em suma, era necessário repreender participantes: “a educação que foi passada
a atividade masturbatória. A partir disso para mim, essa questão muito de ‘ai’, a
foram sendo estabelecidos instrumentos ou mulher não pode se tocar [masturbar], etc.,
tecnologias de repressão da sexualidade, e a minha família é um pouco, no caso meu
tais como o cinto de castidade e outros pai é mais assim, é bem machista, então
objetos (luvas e amarras etc.) que acho que isso de certa forma interfere” (D).
dificultavam ou impossibilitavam a Beauvoir (1949/2016) argumenta
masturbação. Todavia, segundo estes que as mulheres no decorrer da história até
autores, a masturbação se mostrava a contemporaneidade nunca constituíram
paradoxal para as ciências médicas do final uma sociedade autônoma – isto é, nunca
do século XIX e início do século XX: se por assumiram posições de privilégios tal como
um lado havia a repressão moral e médica à os homens – pois sempre foram delegadas
masturbação, por outro lado, conforme às posições submissas em sociedades
mencionado, os médicos utilizavam os masculinizadas e patriarcais. Para a autora,
vibradores mecânicos (masturbadores) essa submissão não é o reflexo dos traços da
como instrumentos científicos para curar a personalidade e ou das características
histeria e outras afecções mentais. Preciado biológicas das mulheres, mas sim é
(2017) acertadamente situa a problemática sistematicamente organizada e transmitida
da masturbação não em torno do entre as gerações por meio de instituições
reconhecimento de existência e da repressivas e esquemas de socialização
utilização dos objetos sexuais, mas sim em primária (a que ocorre nas e pelas famílias
relação aos propósitos dessas utilizações. e pessoas próximas das crianças) e
As relações com os membros das secundária (aquelas que ocorrem em
famílias também foram citadas como instituições e espaços que não os familiares
entraves para a utilização dos sex toys. como as escolas, espaços de lazer e grupos
Algumas das participantes relataram o fato diversos etc.). Em suma, e parodiando o
de não terem onde guardar ou mesmo onde famoso mote da autora, não se nasce mulher
esconder os sex toys, haja vista que a submissa, torna-se. Sendo a dominação por
simples referência à sexualidade feminina parte dos homens e a submissão por parte
era tabu para suas famílias e parentes. Estes das mulheres resultado de uma história das
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