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Gays, lésbicas e travestis em foco

diálogos sobre sociabilidade e acesso à educação e saúde

Organizadores
Luciana Leila Fontes Vieira
Luís Felipe Rios
Tacinara Nogueira de Queiroz
Gays, lésbicas e travestis em foco:
apresentação
Luciana Leila Fontes Vieira
Luís Felipe Rios
Tacinara Nogueira de Queiroz

1 • Abrindo o debate

Dando sequência às publicações do Laboratório de Es-


tudos da Sexualidade Humana (LabESHU), da Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE), na série “Gênero, sexualida-
de e direitos humanos”, apresentamos o quinto livro, intitulado
“Gays, lésbicas e travestis em foco: diálogos sobre socia-
bilidade e acesso à educação e saúde”. Esta obra é mais
uma produção do Programa Diálogos para o Desenvolvimento
Social de Suape (Diálogos Suape), contando com recursos da
PetroquímicaSuape para a publicação.
O Diálogos Suape consistiu em uma grande ação de
pesquisa-intervenção que teve como objetivo compreender e
minimizar os impactos sociais oriundos da migração de um ex-
pressivo contingente de trabalhadores para a microrregião de
Suape (Cabo de Santo Agostinho e Ipojuca), Região Metropo-
litana do Recife (RMR). Essa migração maciça foi provocada
pela oferta de postos de trabalho na construção civil, em fun-
ção dos incentivos do Programa de Aceleração do Crescimento
(PAC), do Governo Federal, para o incremento do Complexo
Industrial e Portuário de Suape (Rios, Medrado et al 2015). Por
meio de interferências psicossociais, fundadas em estratégias
dialógicas de mobilização social, entre maio de 2012 e janeiro
de 2015, as comunidades de Suape foram chamadas a refle-
tir sobre um conjunto de temáticas relacionadas aos direitos e
saúde sexuais e reprodutivos (Rios, Lins et al, 2015).1
6 | Luciana Leila Fontes Vieira et al.

O acúmulo de reflexões acadêmicas sobre as diferen-


tes atividades que compuseram o Programa mobilizaram a
equipe para a escrita de textos sobre as experiências de cada
projeto, os quais compõem um conjunto de coletâneas. Com
a perspectiva de ampliar o diálogo para além dos limites ter-
ritoriais de Suape e da UFPE, convidamos, para tomar lugar
nas coletâneas, parceiros(as) de outros contextos, integrantes
de importantes grupos de pesquisa do país. Neste livro - além
de textos de autoria de participantes do LabESHU, Núcleo de
Pesquisa e Estudo em Clínica Contemporânea (Nupecc), Nú-
cleo de Pesquisa em Gênero e Masculinidade (Gema), Nucléo
de Família, Gênero e Sexualidade (Fages), todos da UFPE -,
temos contribuições de integrantes do Núcleo de Pesquisa em
Sexualidade e Relações de Gênero (Nupsex) da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul; do Núcleo de Estudos Modos
de Vida, Família e Relações de Gênero (Margens) e do Grupo
de Pesquisa Clínica da Atenção Psicossocial e Uso de Àlcool
e Outras Drogas da Universidade Federal de Santa Catarina;
e do Núcleo de Estudos de Gênero e Diversidade Sexual da
Universidade Federal de São Carlos (Sorocaba).
Sublinhamos que a promoção dos direitos da população
de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT) foi um
dos eixos de trabalho do Programa, engendrando atividades
em seus diferentes projetos. Outras produções, como disserta-
______________________________________________________________________
1
O programa foi composto por sete projetos cujos objetivos são apresentados abaixo: 1) Conhecer o Ter-
ritório: identificar as políticas, os programas e os equipamentos sociais existentes nos municípios, os indi-
cadores sociais e as concepções da população sobre os agravos que são objetos da intervenção; 2) Ação
Juvenil: instrumentalizar jovens, de 16 a 19 anos, de ambos os sexos, como lideranças capazes de atuar
na produção e na disseminação de informações qualificadas nos campos dos direitos da criança e do
adolescente, da saúde sexual e reprodutiva, do uso abusivo de álcool e de outras drogas, e no enfrenta-
mento a agravos de saúde e violações de direitos; 3) Caravana da Cidadania: mobilizar as comunidades
locais e instrumentalizar profissionais dos campos da saúde, da educação e da responsabilização para
a promoção da saúde sexual e reprodutiva, o combate à violação dos direitos sexuais e o enfrentamento
do uso abusivo do álcool e de outras drogas;4) Chá de Damas: engajar e capacitar profissionais do sexo
adultos dos municípios no enfrentamento das DST/AIDS e da exploração sexual comercial de crianças
e adolescentes; 5) Mulheres e Educação para a Cidadania: contribuir no empoderamento de mulheres
e jovens dos dois municípios, com ações formativas e informativas, para o enfrentamento à violência
doméstica e sexual na microrregião de Supe; 6) Homens, gênero e práticas de saúde: sensibilizar e
informar os trabalhadores das empresas terceirizadas para a promoção da saúde sexual e reprodutiva,
para a prevenção da violência e do uso abusivo de álcool e de outras drogas; 7) Observatório Suape:
disseminar informações e recursos desenvolvidos no âmbito do projeto Diálogos para o Desenvolvimento
Social em Suape (Rios, Queiroz, Lins, Teófilo, 2015).
Gays, lésbicas e travestis em foco | 7

ções e capítulos de livro, discutiram o que resultou deste eixo.


Assim, o tema foi objeto de reflexão nas formações ofertadas
no “Ação Juvenil” (Menezes, Adrião e Rios, 2015; Menezes,
Adrião, Rios et al, 2015), engendrou materiais informativos (cf.
Rios, Queiroz, Lins e Ferraz, 2015; Rios, 2015) e atividades uti-
lizadas nos eventos comunitários do “Caravana da Cidadania”
e foi o foco de uma das campanhas do projeto “Homens, Gê-
nero e Práticas de Saúde”, que teve como público beneficiário
os trabalhadores que estavam construindo a Refinaria Abreu e
Lima da Petrobras (Medrado, Azevedo et al, 2015). No âmbito
deste último projeto, também foi realizada uma pesquisa sobre
vulnerabilidade de homens com práticas homossexuais ao HIV/
AIDS e o acesso a equipamentos sociais de saúde, em que
foram entrevistados frequentadores de espaços de homosso-
ciabilidade do Cabo de Santo Agostinho (Galvão Neto, 2013).
Uma síntese dessa pesquisa é apresentada no último capítulo
deste livro. Além disso, dando relevo à presença de travestis no
comercio sexual, o trabalho com esse público foi um dos pilares
do projeto Chá de Damas (Barros, 2014; Menezes, Adrião, Ca-
valcanti et al, 2015), cujos resultados são aprofundados analiti-
camente no terceiro capítulo desta coletânea.
Situadas as circunscrições institucionais que permitiram
a publicação deste livro, vale tecer algumas palavras sobre a
pertinência e importância do estabelecimento de reflexões e in-
terferências psicossociais sobre a sociabilidade e a promoção
de direitos da população LGBT. Na sequência, anteciparemos
para leitores e leitoras que encontrarão nos sete capítulos que
compõem a coletânea.

2 • Gênero, sexualidade e direitos humanos

O que acontece aos corpos que embaralham ou descons-


troem a linearidade naturalizada entre sexo, gênero, sexualida-
de e desejo? O que ocorre quando os sistemas reguladores
não encontram conformidade entre o aparato anátomo-biológi-
co e a identificação de gênero?
8 | Luciana Leila Fontes Vieira et al.

Por revelarem o corpo, o sexo, o gênero, a sexualidade e


o desejo em não conformidade com o que está instituído pelo
modelo heteronormativo, as pessoas lésbicas, gays, bissexu-
ais e transgêneros (LGBT) são constrangidas à marginalidade
e à violência. Butler (2006) afirma, contundentemente, que o
maior risco para as pessoas que desafiam os sistemas regula-
dores é o não reconhecimento do próprio estatuto de humano.
Esse aniquilamento produz uma vulnerabilidade diferenciada
dos corpos e a hierarquização dos lutos:
Reagir à opressão requer que entendamos que as vi-
das são apoiadas e mantidas diferencialmente, que
há formas radicalmente diferentes de distribuição da
vulnerabilidade física humana pelo mundo. Certas vi-
das são altamente protegidas e a violação de suas
existências são suficientes para mobilizar as forças
da guerra. Por outro lado, outras vidas não recebe-
rão apoio tão rápido e tempestuoso e não serão se-
quer qualificáveis como “lutáveis”. (Butler, 2006, p. 35)

Dito de outra forma, as condições de reconhecimento de


uma subjetividade gendrada dependem da possibilidade de
seu gênero ser culturalmente inteligível e de ser socialmente
vivível. Pois, as subjetividades não inteligíveis tornam-se vulne-
ráveis às diversas formas de violência e à morte que extrapo-
lam a exclusão da norma. Sendo assim, a forma fundamental
para que os sujeitos abjetos não sucumbam a esse cenário
aterrorizante seria o reconhecimento do estatuto de humano e
não apenas do gênero.
Parece-nos evidente que a não conformidade com a
norma e com o aparato anátomo-biológico é inerente aos hu-
manos, mesmo que alguns a vivenciem de forma mais radical.
Ninguém se identifica completamente numa dada categoria.
Mas, por outro lado, o sujeito não controla totalmente as mar-
cas subjetivas sendo continuamente afetado pelos significados
culturais que atravessam o seu corpo e as prórprias linguagens.
Gays, lésbicas e travestis em foco | 9

Butler (2003) realiza uma crítica contundente às oposi-


ções binárias já que é por meio dos binarismos que se nomea-
ria e determinaria como fundante uma ideia, uma entidade ou
um sujeito determinado em posição ao ‘outro’, o oposto subor-
dinado. Assim, o termo inicial é compreendido como superior,
enquanto que o outro é o seu derivado, inferior, numa palavra,
abjeto.
Logo, o questionamento da lógica binária seria condição
sine quo non para a modificação das implicações inerentes aos
significados culturais: a hierarquização, a classificação, a domi-
nação, a exclusão e a violência. Pois, como nos alerta Foucault
(1997), o binarismo reproduz uma série de pressupostos pela
qual o polo inicial aparece como normal, superior, compulsório,
em oposição ao polo subordinado, que aparece como doentio,
antinatural, inferior e o ‘outro’. Em suma, um regime de poder/
saber que molda as ordenações dos desejos, dos corpos e das
sexualidades produzindo subjetividades abjetas vulneráveis à
violência.
Desta forma, faz-se necessário problematizar as oposi-
ções binárias, enquanto categorias ordenadoras das práticas,
dos saberes e das relações dos sujeitos, pois, norteiam, cer-
tamente, os discursos fundamentalistas e de estigmatização a
lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. As estraté-
gias padronizadoras produzem sujeitos normais ou desviantes
e, ao mesmo tempo, oferecem mecanismos para se proteger
do medo-fascínio pelas subjetividades subversivas e restaurar
uma suposta estabilidade da identidade-padrão. Portanto, po-
demos afirmar que a heteronormatividade revela a necessida-
de imperiosa de uma constante reiteração das normas sociais
regulatórias com o propósito de garantir a identidade sexual e a
identificação de gênero legitimada.
A reviravolta no campo da hierarquia naturalizada que
produz as subjetividades impensáveis pode ser buscada a par-
tir da abertura, da desnaturalização e da dúvida como estraté-
gias afirmativas e potentes para pensar as subjetividades. Nas
preciosas palavras-afeto de Deleuze (2002, p. 72), considerar
10 | Luciana Leila Fontes Vieira et al.

que “a sexualidade é uma produção de mil sexos, que são


igualmente devires incontroláveis. A sexualidade passa pelo
devir-mulher do homem e pelo devir-animal do humano: emis-
são de partículas”. Parafraseando o autor, as identificações de
gênero também são uma produção de mil gêneros, puros devi-
res incontroláveis.

3 • Interpelações

Os(as) nossos(as) autores(as), cada qual à própria ma-


neira, parecem se indagar e nos interpelar sobre quais estraté-
gias deveríamos inventar para incorporarmos na comunidade
humana as vivências LGBT. Seja no âmbito das universidades,
seja circunscrito à educação básica e média, seja no campo da
atenção à saúde, seja nos coletivos feministas e LGBT, seja na
própria comunidade homossexual, a tônica presente é o cha-
mamento para construção de um mundo possível para as múl-
tiplas experiências de gênero e sexualidade.
Organizamos o conjunto de textos em duas partes. A pri-
meira, Contextos de sociabilidade, é composta de três textos
que abordam espaços em que pessoas com práticas homos-
sexuais transitam, refletindo sobre como constituem/assumem
posições identitárias, marcadas por gênero, com desdobra-
mentos na subjetividade, na sociabilidade e/ou na luta política.
Nesse contexto de reflexões, e dando relevo às dimen-
sões eróticas e desejantes da subjetividade, temos o primei-
ro capítulo desta primeira parte da coletânea, “Pintosas, boys
e cafuçus: estilos corporais, erotismo e estigmatização entre
homens que participam da comunidade entendida do Recife”.
Nele, Luís Felipe Rios, Amanda Pereira de Albuquerque, Aman-
da França Pereira, Cristiano José de Oliveira Júnior, Warlley
Joaquim de Santana e Clóvis Cabral de Lira Filho realizam uma
análise dos estilos corporais de participantes da comunidade
homossexual do Recife em Pernambuco. Os (as) autores(as)
argumentam que estilos categorizados como masculinos (boy,
cafuçu) e feminino (pintosa) engendram subjetividades e con-
Gays, lésbicas e travestis em foco| 11

dutas, regulando formas de engajamento na comunidade ho-


mossexual, com base na produção de corpos eroticamente de-
sejáveis e desejantes. Um processo que ocorre assentado no
sistema de sexo-gênero, e que tende a estigmatizar os homens
femininos, mesmo dentro da comunidade homossexual.
O segundo capítulo “Homens que dançam: gênero, cor-
po, raça e travestilidade no maracatu”, de Lady Selma Ferreira
Albernaz, aborda a experiência de homens que se travestem
para participar de uma dança folclórica do ciclo do carnaval, o
maracatu do estado de Pernambuco. A autora constata a im-
portância de gênero para organizar os grupos, estabelecendo
posições, poderes e espaços para homens e mulheres. A parti-
cipação dos homens travestidos é positiva, legitimada por pre-
ceitos religiosos afro-brasileiros. Insere-se em esquemas sim-
bólicos mais abrangentes que corroboram uma hierarquia de
gênero, resultando numa classificação do feminino da casa e
do feminino da rua, expressos pelas performances dos homens
travestidos.
Em “Mulheres em movimento: estudo da identidade,
sujeito e formação política em coletivos feministas e LGBT”,
terceiro capítulo desta coletânea, Viviane Melo de Mendonça
analisa os discursos produzidos por mulheres participantes de
coletivos feministas e LGBT da região de Sorocaba, em São
Paulo. Conforme a autora, os discursos produzidos sobre iden-
tidade e sujeito da prática política pelas mulheres revelam que
a identidade emerge como uma estratégia política pessoal e/ou
coletiva de sobrevivência. A identidade se constitui como uma
conquista, produzida nas margens dos discursos dominantes,
visando à superação das estruturas de opressão.
A segunda parte, Acesso à educação e saúde, é for-
mada por quatro textos que discutem o modo como escolas,
universidades e equipamentos sociais de saúde constituem si-
tuações de estigmatização e opressão, e quais estratégias têm
sido ou poderiam ser utilizadas para garantir os direitos das
populações LGBT.
12 | Luciana Leila Fontes Vieira et al.

O quarto capítulo, de autoria de Daniela Torres Barros


e Luiana Leila Fontes Vieira, abre a segunda parte do livro,
iniciando o debate sobre as marcações de sexualidade e de
gênero na produção de uma educação opressora e excludente.
“Travestis: entre a vulnerabilidade e as estratégias de sobrevi-
vência” busca compreender as experiências no âmbito escolar
das travestis residentes no município do Cabo de Santo Agos-
tinho, Pernmbuco. As autoras analisam dados de pesquisa que
ocorreu articulada ao projeto Chá de Damas, do Diálogos Sua-
pe. Elas investigaram como se deu o acolhimento das travestis
no cenário escolar, considerando os aspectos que favoreciam e
desfavoreciam as permanências na educação formal. A discus-
são aponta para importantes aspectos estruturais que preci-
sam ser enfrentados quando se quer garantir acesso a direitos
e bem-estar social para a população trans.
Também na linha de interpelar os contextos educacio-
nais, o quinto capítulo, “A heteronormatividade na escola e os
desafios para a construção de processos educativos voltados
à garantia dos direitos sexuais de crianças e adolescentes”,
foi elaborado por Marivete Gesser, Leandro Castro Oltramari e
Gelson Panisson. O capítulo aborda as concepções de gênero
e de sexualidade de professores(as) que atuam na educação
básica de uma capital do Sul do país, no intuito de avaliar o im-
pacto de uma lei que prevê a discussão de temas como gênero
e emancipação feminina nas escolas. A discussão aponta para
a pertinência e necessidade de ampliação de ações de reflexão
sobre gênero no contexto escolar, considerando não apenas o
corpo discente. O texto aponta para a necessidade de apoiar
os professores de forma continuada, uma vez que muitas vezes
carecem de instrumentos conceituais para facilitar a discussão
sobre temas polêmicos e cercados de tabus moralistas.
Ainda no debate sobre educação e direitos sexuais, “O(s)
gênero(s) da universidade: das hierarquias e das possibilida-
des”, tecido por Paula Sandrine e Henrique Nardi, convida-nos
a interrogar sobre o espaço que as universidades propiciam
para discutirmos as questões de gênero e diversidade sexual
Gays, lésbicas e travestis em foco | 13

e sobre o acesso e permanência da população LGBT. Nesse


sentido, nos impele a questionar a lógica naturalizada que rei-
tera desigualdades e naturaliza privilégios que perpetuam vio-
lências.
O sétimo e último capítulo nos desloca do contexto edu-
cacional para o campo do cuidado em saúde. Celestino Galvão
Neto e Benedito Medrado, em “Sexo entre homens em Sua-
pe: informações sobre práticas sexuais, prevenção e acesso
à saúde”, apresentam alguns dos resultados de pesquisa de-
senvolvida no âmbito do Programa Diálogos Suape cujo obje-
tivo foi investigar comportamentos, atitudes, práticas sexuais e
prevenção em saúde sexual de homens que fazem sexo com
homens (HSH), residentes na microrregião de Suape, Pernam-
buco. O texto discute a sociabilidade, as práticas sexuais e de
prevenção ao HIV/Aids, e o acesso aos serviços de saúde dos
entrevistados.
Esperamos que os textos que compõem esta coletânea
possam provocar profícuas indagações nos(as) leitores(as),
mobilizando novas pesquisas e novas intervenções que co-
laborem para questionar os processos de estigmatização e
opressão pautados na sexualidade e no gênero, e ampliar os
campos socioculturais de devires de sexualidade e gênero in-
teligíveis, garantido a vida e o bem-estar de lésbicas, gays, bis-
sexuais, travestis e transexuais.

Referências

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14 | Luciana Leila Fontes Vieira et al.

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Gays, lésbicas e travestis em foco | 15

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RIOS, L. F; QUEIROZ, T. N.; LINS, M. B. ; TEÓFILO, M. I. Apresen-


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gias de resistências. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Universi-
dade Federal de Pernambuco, Recife, 2014.
Capítulo 1
Pintosas, boys e cafuçus: estilos corpo-
rais, erotismo e estigmatização entre
homens que participam da comunidade
entendida do Recife
Luís Felipe Rios
Amanda Pereira de Albuquerque
Amanda França Pereira
Cristiano José de Oliveira Júnior
Warlley Joaquim de Santana
Clóvis Cabral de Lira Filho

Este capítulo analisa os agenciamentos corporais de ho-


mens que participam da dinâmica da comunidade homossexu-
al do Recife.¹ Ao longo do texto, buscamos argumentar que es-
tilos categorizados como boy, cafuçu e pintosa engendram as
subjetividades e as condutas das pessoas, regulando formas
específicas de engajamento na comunidade homossexual, em
especial a formação das parcerias sexuais.
Concebemos, com Brah (2006, p. 370), que a subjetivi-
dade é “o lugar do processo de dar sentido a nossas relações
com o mundo – é a modalidade em que a natureza precária e
contraditória do sujeito-em-processo ganha significado ou é ex-
perimentada como identidade”. Nessa perspectiva, a produção
das subjetividades é um processo, a um só tempo, social e pes-
soal, na medida em que “(...) os investimentos psíquicos que
fazemos ao assumir posições específicas de sujeito (...) são
socialmente produzidos”. Compreendendo a identidade como
marcada pela multiplicidade de posições oferecidas pelas ca-
tegorizações sociais ao longo da existência, a autora conclui:
______________________________________________________________________

¹ Este capítulo analisa dados da pesquisa “Homofobia e processos de subjetivação na comuni-


dade homossexual do Recife”, apoiada pelo CNPq (Processos 402235/2010-0 303056/2011-8) e
“Homossexualidade masculina e vulnerabilidade ao HIV/AIDS na Região Metropolitana do Recife”
apoiada pelo CNPq (Processos 405259/2012-3, 470088/2013-3 e 305136/2014-3). Também con-
tou com apoio dos programas de bolsa de iniciação cientifica da FACEPE e da UFPE/CNPq.
18 | Contextos de Sociabilidade

Portanto, a identidade não é fixa nem singular; ela é uma


multiplicidade relacional em constante mudança. Mas no
curso desse fluxo, as identidades assumem padrões es-
pecíficos, como num caleidoscópio, diante de conjuntos
particulares de circunstâncias pessoais, sociais e histó-
ricas. De fato, a identidade pode ser entendida como o
próprio processo pelo qual a multiplicidade, contradição
e instabilidade da subjetividade é significada como tendo
coerência, continuidade, estabilidade; como tendo um nú-
cleo – um núcleo em constante mudança, mas de qualquer
maneira um núcleo – que a qualquer momento é enun-
ciado como o “eu” (grifos da autora). (Brah, 2006, p. 371)

Para dar ênfase às dimensões mais somáticas da sub-


jetividade, e inspirados na linguística, utilizamos da noção de
estilística corporal para nomear o resultado estético e de ex-
pressividade que emerge quando o enunciador, na apresenta-
ção de sua subjetividade, agencia (consciente ou inconsciente-
mente) elementos corporais, como gestual, sotaque, vestuário,
adereços etc., produzindo configurações que possuem efeitos
de enunciações de identidade. Nessa linha, estilos podem ser
compreendidos como (com)posições socialmente constituídas
que se oferecem aos sujeitos, que, ao ocupá-las, produzem
sentidos, emoções e sentimentos, os quais conferem valores
e significados às pessoas e direcionam as interações. Desse
modo, os estilos mediariam a construção dos si mesmos corpo-
rais e a apreensão desses si mesmos pelos pares.
A nossa intenção neste texto é, a partir de uma análise
estilística das subjetividades, contribuir para a compreensão da
discriminação e opressão contra os homens com práticas ho-
mossexuais, notadamente em relação às pintosas. Queremos
destacar que neste trabalho não utilizamos o termo homofobia,
por considerá-lo inadequado para descrever as experiências
narradas por nossos interlocutores. Em especial, no que con-
cerne ao foco psicopatologizante que o termo oferece na expli-
cação da origem da discriminação e opressão. Fobia é medo.
O termo sugere que a opressão estaria relacionada a um medo
das pessoas em relação à homossexualidade.
Pintosas, boys e cafuçus - Luís Felipe Rios et al. | 19

Os sentimentos que premeiam as cenas de opressão e


violência, narradas pelos participantes da pesquisa, em nada
revelam medo do autor da violência em relação aos HSH. Elas
são cenas mediadas por sentimentos variados, como aversão,
nojo e, sobretudo, ódio. Preferimos, junto à Elias e Scotson
(2000), assentar o fenômeno da discriminação e opressão das
homossexualidades nos processos estigmatizantes da socie-
dade englobante, que constituem categorias e criam marcas
adscritas ao corpo, produzindo hierarquias sobre quem é mais
e quem é menos humano. Deste modo, tendo como base o
estigma, justifica-se um conjunto de formas de violência em re-
lação aos outsiders, por um lado, e um conjunto de privilégios e
distinções para os considerados estabelecidos.
O texto está organizado de modo que, em “Homossexu-
alidade, gênero e estigmatização”, situamos o marco teórico
utilizado para produzir, analisar e interpretar os resultados aqui
apresentados. Na sequência, em “Narrativas e cursos de vida”,
discorremos sobre o enquadre metodológico e o modo como
tratamos os dados produzidos. Em “Estilísticas corporais, de-
sejo e estigma”, discutimos os nossos resultados, organizados
em três tempos: no primeiro, abordamos a construção dos es-
tilos corporais dos boys e pintosas e os sentidos que elas pro-
duzem nas interações sociais na família e na sociedade mais
ampla; no segundo tempo, abordamos as posições sexuais
(penetrativo/ativo e receptivo/passivo) na interface com os esti-
los corporais; no terceiro tempo, discutimos o modo como a fe-
minilidade dos homens assume um lugar estigmatizante dentro
da própria comunidade homossexual, desprestigiando libidinal-
mente as pintosas. Nesse bojo, analisamos um segundo estilo
de masculinidade, o cafuçu (homens com práticas homossexu-
ais, pobres, não gay identificados, masculinos, rudes, penetra-
dores), parceiro privilegiado das pintosas. Finalmente, analisa-
mos como o sistema de sexo-gênero hegemônico se atualiza
na comunidade entendida, produzindo desejos e opressões,
mesmo quando há a possibilidade de parcerias entre pessoas
de mesmo estilo corporal, como entre boys.
20 | Contextos de Sociabilidade

1 • Homossexualidade, gênero e estigmatização

No caso da homossexualidade, a configuração como es-


tigma remete à ideia de que sexualidade e reprodução devem
estar intrinsecamente ligadas para o bem das pessoas e das
sociedades. Os estudos apontam que, embasadas nesta con-
cepção, tanto as religiões, notadamente as cristãs (Natividade,
2006; Venturi, 2008; Rios et al, 2010), quanto as ciências (Cos-
ta, 1992 e 1995; Rios e Nascimento, 2007) ajudaram (e ainda
ajudam) a sustentar este regime de destituição da humanidade
de pessoas com práticas homossexuais. O cristianismo consi-
derando a homossexualidade um pecado da carne, um impulso
que afasta os humanos da santidade; a ciência estabelecendo-
-a como um desvio (degeneração, doença, perversão) do ins-
tinto sexual, portanto, precisando de tratamento (médico ou psi-
cológico). Ainda que outras perspectivas científicas e religiosas
ganhem, mais e mais, legitimidade para dizer a “verdade” da
homossexualidade, situando-a como uma expressão natural e
normal da sexualidade humana (cf. Rios e Nascimento, 2007 e
Natividade, 2010), as primeiras ainda são bastante recorrentes.
Perspectivas que ajudam a configurar e legitimar o es-
tigma e a discriminação não só em instituições religiosas e nos
serviços de saúde, mas também nas instituições de educa-
ção (Nardi e Quartiero, 2012), nos campos legislativo e jurídi-
co (Uziel, 2007 e 2012; Uziel, Mello e Grossi, 2006; Correia e
Rios, 2013) e na vida social mais ampla, produzindo cenas de
desrespeito dos direitos humanos e situações de violência (cf.
Carrara e Viana, 2003; Carrara et al, 2007).
Vale dizer que buscamos nossos interlocutores por meio
de redes de relação que atravessam aquilo que denominamos
comunidade entendida do Recife. Preferimos o termo entendi-
do à palavra homossexual, para caracterizar a dinâmica das
comunidades homossexuais, uma vez que, como categoria
nativa, entendida nomeia pessoas que conseguem integrar e
participar dos circuitos comunitários² sem que haja a necessi-
Pintosas, boys e cafuçus - Luís Felipe Rios et al. | 21

dade de assumirem identidades fixas, como gays, bichas, bo-


fes, ursos, barbies ou outros termos nativos correlatos (Rios,
2004 e 2008).
Não obstante, lembra Rios (2008), a depender de contex-
to, assunções de posições de sujeito, se não são condição de
participação comunitária, são muito presentes nos territórios de
homossociabilidade e pautam, amplamente, as interações so-
ciais e, mais especificamente, a formação de parcerias afetivas
e sexuais, constituindo eroticidades e relações de poder entre
as pessoas categorizadas, grosso modo, como masculinas ou
como femininas. Posições que se referem ao modo como as
homossexualidades são apreendidas pelo sistema de sexo-
-gênero.
Rubin (1993) denominou de sistema de sexo-gênero um
potente aparato sociocultural que categoriza as pessoas, regu-
lando a vida sexual e afetiva e outras dimensões dos sujeitos e
da vida em sociedade, de modo a constituí-los afeitos à cultura
(reprodução social) e garantir a multiplicação de indivíduos (re-
produção biológica). Como sugere Butler (2010), o gênero, en-
quanto sistema de significação, opera performativamente. Nos
atos de fala, gestos e elementos diversos advindos dos pro-
cessos de identificação, são constituídos corpos generizados:
inteligíveis, reguláveis e passíveis de legitimação e normatiza-
ção. No entanto, por efeito da iterabilidade e citação, os atos
de fala também produzem deslizamentos e descontinuidades,
permitindo o surgimento de novas inteligibilidades, regulações,
legitimações e normatizações (cf. também Pinto, 2013).
Nesse bojo, é possível apreender regimes de produção
de diferenças sociais (Brah, 2006) nos corpos-subjetividades.
Retomando a discussão sobre subjetividade, identidade e es-
tilística corporal do início deste texto, podemos dizer que nos-
sa hipótese de trabalho é a de que, por meio de assunção de
posições de sujeitos que situam/ são situadas por estilísticas
______________________________________________________________________

² Esses circuitos são formados por estabelecimentos comerciais direcionados ao publico gay (como
bares, boates, cinemas e saunas), lugares públicos de sociabilidade e de busca por parceiros (pe-
gação), e o universo online da internet, também acessada por celulares por meio de sites e aplica-
tivos de busca por parceiros, etc..
22 | Contextos de Sociabilidade

corporais, as subjetividades são apresentadas com certo efeito


de estabilidade. Em adição, seriam esses mesmos estiloss a
matéria e o produto dos processos de estigmatização (Elias e
Scotson, 2000), em acordo com as regulações (Butler, 2010)
de um dado regime de sexo-gênero (Rubin, 1993).
No caso dos homens com práticas homossexuais, os
estudos vêm mostrando que, por meio do sistema de sexo-
-gênero de significação da vida sexual, as partes privilegiadas
de prazer corporal (pênis e ânus) e a posição dos parceiros na
interação (passivo/penetrado e ativo/penetrador) são alinhadas
às representações/posições mais públicas das homossexua-
lidades (Fry, 1983, Parker, 1991 e 2002, Green, 2001, entre
outros). Na comunidade entendida do Recife, essas posições
são nomeadas como “a pintosa” e “o boy”, prefiguradas em es-
tilos corporais e ditas por conformação física, gestualidades,
vestuário, adereços e sotaque: as pintosas são os homens que
configuram feminilidade, e os boys, masculinidade. Como bus-
camos mostrar ao longo desse trabalho, em determinadas cir-
cunstâncias os estilos são mais importantes para significar os
atores e direcionar as interações sociais do que o fato de ter
práticas homossexuais.
Conforme Fry (1983), a configuração de parcerias se-
xuais masculinas (homens mesmo, bofes etc.) e femininas (bi-
chas, veados, frangos) seria mais recorrentemente encontrada
nas classes populares, nas quais predomina uma lógica hie-
rárquica para pautar as interações sexuais entre homens; en-
quanto que, nas classes médias e mais abastadas, haveria um
predomínio de uma lógica de igualdade, em que as questões de
ser masculino/feminino ou ativo/passivo não teriam importância
para definir a identidade sexual e de gênero das pessoas, todos
seriam gays ou homossexuais. Estes dois modelos, marcados
por classe, foram encontrados vigorando nas pesquisas mais
recentes como a de Monteiro et. al (2010), realizada no Rio de
Janeiro, e as de Antunes e Paiva (2013) e Simões, França e
Macedo (2010) realizadas em São Paulo.
Pintosas, boys e cafuçus - Luís Felipe Rios et al. | 23

Rios (2004), entretanto, sinaliza que a hierarquia pode se


imiscuir dentro da própria (suposta) igualdade. Com base em
pesquisa etnográfica realizada com jovens homossexuais do
Rio de Janeiro, sugere que o homem feminino é recorrente ob-
jeto de discriminação e observa que quando a igualdade apa-
rece é situando a possibilidade de parceria entre dois homens
masculinos. Do mesmo modo, o casal de homens femininos
continuaria tendo um “q” de initeligibilidade nas classes popula-
res e nas classes mais abastadas.
Do mesmo modo, o autor chama atenção para o fato de
que, ainda que as normas ideais de gênero situem os “homens”
como penetradores e masculinos e bichas como penetradas e
femininas, é importante considerar os desalinhamentos entre
as performances de gênero (sotaque, gestual, vestuário etc.
que remetem à masculinidade e à feminilidade), as fontes de
prazer corporal (ânus, pênis, boca, mamilos, dedos, língua etc)
e as posições sexuais (ativo, passivo e versátil³). No processo
de constituir e dar sentido a si mesmos, os indivíduos operam
com estes e outros aspectos, significados e regulados pelos
sistemas de gênero, como dimensões distintas, ainda que in-
terdependentes (cf. Rios, 2008, 2012 e 2013).

2 • Narrativas de cursos de vida

A pesquisa que originou os dados aqui discutidos foi ba-


seada num enfoque etnográfico (Geertz, 1987), envolvendo a
observação participante na comunidade entendida do Recife,
em especial bares, boates e locais públicos do centro da cida-
de, e a construção de biografias sexuais por meio de entrevis-
tas. Concebemos o produto das entrevistas como narrativas,
que se organizariam para dar conta da interpelação sobre o
curso de vida (Elder, 1998) sexual dos interlocutores e que se
abririam como janelas para abordar os processos de subjetiva-
ção (Bruner, 1990; Hammack e Cohler, 2009).
______________________________________________________________________
²
Os homens versáteis penetram e deixam-se penetrar, a depender das circunstâncias.
24 | Contextos de Sociabilidade

Os dados aqui discutidos foram coligidos entre 2013 e


2015, quando foram realizadas 25 entrevistas biográficas. A
amostra foi de conveniência, constituída por meio da rede de
relações dos pesquisadores/entrevistadores, todos estudantes
de graduação em Psicologia da Universidade Federal de Per-
nambuco (UFPE). O critério para compô-la foi o da saturação
teórica – ou seja, ter elementos suficientes para realizar as dis-
cussões necessárias para responder aos objetivos da pesqui-
sa. Para tratamento dos dados, utilizamos a análise temática
(Blanchet e Gotman, 1992) para identificar categorias-chaves
e apreender como se dão as articulações na significação dos
eventos investigados. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de
Ética em Pesquisa da UFPE. Utilizamos nomes fictícios para
guardar a confidencialidade e anonimato de nossos entrevis-
tados.
Para dar início ao processo analítico, a equipe se utili-
zou de categorias êmicas sobre os estilos homossexuais para
classificar os participantes. Essa categorização foi baseada em
uma pré-análise com base nas observações, conversas infor-
mais e anotações sobre as entrevistas, com foco em ter uma
primeira apreensão sobre as configurações de feminilidade e
masculinidade, que emergiram nos termos pintosa e boy.
Assim, das 25 entrevistas analisadas, 15 entrevistados
foram percebidos como pintosas (femininos) e dez foram per-
cebidos como boys (masculinos) – ver tabela 1. Essa classifica-
ção, a partir das posições identitárias assumidas pelos sujeitos
no momento das entrevistas, mostrou-se pertinente para aná-
lise, uma vez que revelou a existência de diferentes experiên-
cias, relações sociais e marcações subjetivas, sobre as quais
nos debruçamos para aprofundar a análise.
Para dar continuidade ao tratamento dos dados e em
função de responder aos objetivos específicos do estudo, os
integrantes do grupo de pesquisa, em conjunto, buscaram
identificar, nos relatos dos 25 entrevistados, as categorias
nativas mais recorrentes para dar significado aos fenômenos
em investigação, totalizando 19 categorias. Estas orientaram
Pintosas, boys e cafuçus - Luís Felipe Rios et al. | 25

Tabela 1: Caracterização dos entrevistados

______________________________________________________________________
4
Atribuídos pelos pesquisadores.
26 | Contextos de Sociabilidade

a construção de um quadro temático (colunas) das narrativas


dos informantes (linhas) no qual trechos das entrevistas foram
alocados. Assim, pudemos realizar uma análise sistemática,
aprofundando cada categoria, buscando pelo modo como os
diferentes sujeitos - considerados em suas marcações sociais
– tematizam-nas, bem como identificar as recorrências e as va-
riações.
Interpretamos as categorias e temas que resultaram da
análise levando em consideração que os sujeitos constroem
sentidos para suas ações (Geertz, 1987). Assim, nós, analistas,
construímos nosso conhecimento por meio do que eles inter-
pretaram, e com base em nosso marco teórico. Esta perspec-
tiva foi denominada como “dupla hermenêutica” por Giddens
(1984). Destacamos que, na apresentação dos fragmentos
de entrevistas que ilustram as próximas partes deste trabalho,
utilizamos colchetes para sinalizar as interferências dos(as)
entrevistadores(as) e parêntes para introduzir elementos que
ajudem à compreensão das narrativas dos entrevistados.
Pintosas, boys e cafuçus - Luís Felipe Rios et al. | 27

3 • Estilísticas corporais, desejo e estigma

Situados os enquadres teóricos e metodológicos que per-


mitiram a produção deste texto, passemos à discussão dos re-
sultados, na perspectiva de compreender as conexões entre os
estilos corporais pintosa, boy e cafuçu e o campo das práticas
sexuais, dos desejos e dos prazeres, bem como a atualização
da estigmatização às homossexualidades no interior mesmo da
comunidade entendida – locus da sociabilidade e/ou da busca
por parceiros afetivos e/ou sexuais dos nossos interlocutores.
É importante voltar a sublinhar que os três estilos de ser
homem com práticas homossexuais aqui analisados emergi-
ram, ao longo de nosso trabalhao de campo, nos espaços de
homossociabilidade e nas narrativas de nossos interlocutores.
Ainda assim, é possível notar que estes não são os únicos es-
tilos existentes na comunidade investigada: os ursos (paizões
e seus filhotes), as mariconas, os michês etc. também estão
lá, circulando e interagindo com as pintosas, os boys e os ca-
fuçus.5 Destacamos, entretanto, que esses três são os mais
recorrentes para posicionar os homens, muitas vezes servindo
como categorias mais amplas para abarcar outros estilos, pró-
prias a determinados contextos ou subculturas da comunidade
entendida.
Vale também dizer que nenhum dos nossos interlocuto-
res se identificou, ou puderam ser identificados pela equipe,
como cafuçus. Cafuçu emergiu enquanto estilo de ser homem
(com práticas homossexuais) no decorrer da análise, quando
refletimos sobre a produção de desejos e parcerias sexuais
que os estilos de pintosa e de boy configuram. Deixamos a
descrição e análise do cafuçu mais para adiante, inciando nos-
sa apresentação dos resultados pelas categorias que servem
de ponto de apoio para o posicionamento identitário de nossos
interlocutores.
______________________________________________________________________
5
Sobre as estilísticas na comunidade dos ursos cf. Rios (2012) e Rios (2013); sobre os estilos de
homens e mercado do sexo, cf. Viana (2010) e Souza Neto e Rios (2015).
28 | Contextos de Sociabilidade

3.1 • Construção corporal de boys e pintosas

Valter (22 anos, pintosa, negro, professor de dança), exí-


mio entendido nas questões de quem é quem no repertório das
homossexualidades, na própria descrição dos tipos que circu-
lam no cenário em análise, sugere que tanto os boys como as
pintosas são gays ou bichas. Essa categorização, ainda que
revele uma disntição de gênero entre pintosas e boys, ao lo-
calizar ambos como gays ou bichas, aponta para a assunção
identitária como marca de ambos os estilos de ser homem, que
possuem como ponto de afinidade o fato de sentirem desejo
e se relacionarem afetiva e sexualmente com outros homens.
Esse elemento é importante porque será um dos utilizados para
distinguir o cafuçu do boy. O cafuçu não se posiciona como gay
ou homossexual. Diz Valter:

Tem aquele, tem o gay que é reservado, que é o mais


boy. Eles geralmente são mais fortezinhos, tentam for-
çar a voz. Eles têm o jeito mais... que eles querem apa-
rentar ser heterossexuais. (...) A bicha boy, ela se veste
assim: ela geralmente bota uma calça apertada, porque
geralmente ela malha, é a antiga barbie. Antigamente,
se dizia que ela era a bicha barbie. Mas isso já é antigo,
ninguém usa mais não. (...) Eles malham, muito. Malham
muito pra ficar com o corpo forte e meter medo. Não são
de briga, eles só querem meter medo mesmo. Gostam
de calça apertada. Eles usam roupas que geralmente o
público hétero gosta. Geralmente, eles não andam com
outros homossexuais que são mais pintosos ou assu-
midos.Eles andam com héteros ou com gays tipo eles.

Se o boy é mais reservado e quer, no olhar de Valter,


apresentar-se como heterossexual, usando roupas afeitas ao
público heterossexual e evitando andar com os homossexuais
mais femininos, é a própria feminilidade que marcará o estilo
pintosa de ser. Prossegue Valter: “Pintosa é aquele que não’tá
de acordo com as normas sociais. Que é um saco isso. Feito
eu, mais ou menos. Eu sou meio pintosa também. Mas eu gos-
to, eu me acho legal”. Ele então se empolga na descrição dos
tipos de homossexuais e segue caricaturando as pintosas:
Pintosas, boys e cafuçus - Luís Felipe Rios et al. | 29

Tem a bicha pintosa, que ele dá pinta, mas ele é mais


tranquilo. Tem a bicha que é quase uma travesti, que
ela é superfeminina, bota roupa de mulher, mas não é
travesti. (...) A bicha mais pintosa, aí, não, ela é mais
atrevida. Ela tem o cabelo de lado, ela raspa o cabelo,
fica andrógina, camisa folgada, ela usa calça superaper-
tada da mãe, ela sai de sneakers, essa bicha é perigosa.

Focando no estígma e no que dele decorre, identificamos


que, no relato dos boys sobre si mesmos, a problematização da
homossexualidade como algo que faz sofrer pode-se circuns-
crever ao âmbito dos significados socialmente compartilhados
sobre os próprios desejos e práticas sexuais, ou seja, naquilo
que pode ser vivido na intimidade ou, como dizem, “camufla-
do”, “escondido”, e, salvo exceções, revelado por eles apenas
quando pertinente. Quase sempre, é só na adolescência que
começam a se questionar sobre a diferença que os constitui em
relação às normas de sexualidade. Não há grandes marcações
corporais que permita a um “não entendido” identificá-los como
homossexuais.

Porque... eu, por exemplo, eu não demonstro. (…)


Por exemplo, minha roupa aqui, você não diz nada!
Se você me vê calado aqui, você vai me julgar o quê?
Heterossexual. De primeiro ato, assim. Sem me co-
nhecer, de boca fechada. Se eu entrar no ônibus,
ninguém vai olhar troncho pra mim! Ninguém vai
catucar (sussurrando) “Olha o frango!”. Ninguém
vai fazer esse comentário (destaque nosso). (Daniel,
18 anos, boy, branco, estudante universitário, passivo)

Quando crianças, os homens masculinos, por se apre-


sentarem no mundo da forma que é esperada para um menino,
passam como heterossexuais. Só na juventude, quando não
demonstram a heterossexualidade por meio de namoradas, é
que começam a ser questionados, em especial pela família, so-
bre as orientações sexuais. Ainda assim, a margem de mano-
bra, que os “armários” (Rios, 2008) oferecem para se apresen-
tar para família, escola e trabalho, torna-se bem mais alargada
por não inscreverem no corpo marcas de feminilidade.
30 | Contextos de Sociabilidade

No caso das pintosas, o estigma e seus desdobramentos


em termos de estigmatização e sofrimento psíquico vão recair
principalmente no corpo em cena, algo que, conforme os nos-
sos entrevistados, é dificil de ser “disfarçado”, em especial na
infância.

[E ela (a ama de leite) reagiu como, quando soube so-


bre?] Ah, mulher, ela reagiu de várias formas (risos).
(...) É porque, desde criança, eu tenho um jeitinho,
né? Por exemplo, quando eu era criancinha, eu anda-
va com as mãozinhas muito abertinhas. Aí, minha ama
de leite, que eu chamo ela de tia, mas ela é minha
ama de leite, pegava minha mãozinha, fechava as-
sim e dizia ‘ande assim, meu filho’. Ela fazia pres-
são na minha mão. (...) Então, eu já dava indícios
que era afeminado, né? (destaque nosso). (Márcio,
28, pintosa, amarelo, estudante universitário, versátil).

Entre os homens femininos, foi notório que o uso de atri-


butos de feminilidade se iniciava já na infância. Muitos nem sa-
biam se pensar de outro modo. Os gostos por indumentárias
femininas fazia parte de desejos e brincadeiras: usar sapatos
de salto das mães, vestir roupas das irmãs, usar maquiagem.

Na verdade, eu era muito novo quando eu vim des-


pertar isso, né? Porque (é) desde pequeno quando
você já tem aquela coisinha de ter meio que um lado
meio feminino. Quando eu era pequeno eu pega-
va, tipo, a minha fralda, amarrava na minha cabe-
ça e dançava “É o Tchan!” Calçava os sapatos altos
da minha tia, das minhas primas e tal. (Wagner, 18,
pintosa, negro, cabelereiro e maquiador, passívo)

Para alguns, o gosto e o uso de roupas e adereços femi-


ninos perduram até a vida adulta. Outros afirmam que foram re-
primidos e modificados na direção daquilo que se espera para
um homem, para evitar reação negativa da família, amigos e da
comunidade em que vivem.
Pintosas, boys e cafuçus - Luís Felipe Rios et al. | 31

Já fica mais complicado no termo de alguém soltar gra-


cinha, de você conseguir emprego, em tudo. (...) a maio-
ria dos gays, a gente tem trejeitos femininos, tipo o modo
de falar e tal. Alguns não. Aí, já é mais tranquilo, são mais
discretos, né? Discretinhos (destaque nosso). (Wagner)

Aquela coisa padrão, ‘tá ligado?! ‘Homem tem que fi-


car com mulher!’ Lá em casa: ‘Você é homem, você é
homem!’ Eu lembro até hoje de uma cena muito ten-
sa – eu era criança, mas eu lembro perfeitamente.
‘Tava tendo alguma coisa. Acho que foi questão de
eleição e tinha muita gente na rua. ‘Tava voltando da
escola, com minha mãe e minha irmã, e eu meio que
me soltei da minha mãe e passei pelo meio da multi-
dão. E eu expliquei (o desencontro) pra mainha. Fi-
quei procurando minha mãe: ‘Mainha, mainha! Me
perdi!’ Eu passei mesmo assim: eu gesticulei na
hora. Minha mãe ‘Por que você não fala feito ho-
mem?! Você passa assim, desse jeito!’, tá ligado?
(destaque nosso). (Apolo, 21 anos, pintosa, versátil).

Decerto, todos os homens femininos passaram (e mui-


tas vezes ainda passam) por experiências “corretivas”, marca-
das por muita violência psicológica e física. Não obstante, os
usos de atributos masculinos não garantiram a eficácia do que
alguns denominam “camuflagem”, para que se passem como
“discretos”. Paulo (21 anos, boy, versátil, entregador, estudante
universitário) esclarece o que é um homem discreto:

[Como eram teus apelidos lá (sites de bate-papo)?]


Olhe, botava assim, eh, tipo “Garoto Bissexual” ou en-
tão “Discreto”. Que, aí, o pessoal geralmente tem muito
preconceito com quando você fala gay, né? O pessoal
já pensa que, vamos dizer, é afeminado. O pessoal já
tem muito preconceito com afeminado, ‘tá ligado?
Então, você coloca um apelido que é voltado para
o boy que é mais machudo, sabe? Não dá pinta. Aí,
você procura usar um apelido desse jeito assim, di-
zendo que é, insinuando que é discreto. [O discreto
ou o bissexual que diz que é machudo?] O bissexual se-
ria essa pessoa que dá a entender também que é uma
pessoa discreta, né? Porque, se ele pega mulher tam-
bém, ele não vai ser afeminado, né? (destaque nosso)
32 | Contextos de Sociabilidade

Há algo que é partilhado por todos os homens femininos


entrevistados: o dar pinta. Gestos e/ou atitudes não volitivas
que denunciam a homossexualidade, algo dissidente do ar-
mário que contém os movimentos estilísticos do ser homem.
Nas interações, mesmo sem querer, a pinta escapole e desvela
aquilo que a maquiagem queria camuflar, impedindo a discri-
ção. Mesmo as pintosas que já namoraram mulheres relatam
que as respectivas namoradas já desconfiavam das sexualida-
des, acenadas por meio de pintas.
Marcos (pintosa, 19 anos, estudante de Enfermagem, e
soldado, versátil mais para passívo) comenta sobre a maquia-
gem que criou para esconder quem verdadeiramente é. Diz
que quando usa essa maquiagem é grosso, rude. Característi-
cas que acredita serem masculinas e que divergem dos trejei-
tos femininos que espontaneamente o compõe. Ele relata que
essa maquiagem mesclou com à própria performance geral
invadindo todos os âmbitos de convivência. Afirma que toda a
construção teve como ponto de partida o fato do pai dizer que,
“se alguns dos seus filhos fossem gays, colocaria uma bala na
cabeça deles”.
É importante sublinhar que essa construção corporal, por
meio de agências intencionais e não intencionais de vestuário
e adereços, e também de gestuais e sotaques que remetem
ao masculino ou feminino, vão se fazendo ao longo da vida, de
forma mais ou menos inconsciente. Um processo que se dá so-
bre a constante vigília e regulação da sociedade. Não obstante,
o resultado, em termos de apresentação pública, nem sempre
é aquele que a família, o próprio sujeito ou a sociedade mais
ampla esperaria.
Destacamos que foram muitas as cenas de violências
descritas pelos entrevistados, boys e pintosas, que eles rela-
cionam à feminilidade expressa por homens. Como exemplo,
Amaral (26 anos, boy, branco, superior completo, comerciário,
versátil) nos conta:
Pintosas, boys e cafuçus - Luís Felipe Rios et al. | 33

Aí, um cara de São Paulo ficou a fim de mim e eu aca-


bei me interessando, fiquei com ele. Foi a noite toda,
a gente ficou e tal. (...) de manhã, aí, a gente teve que
voltar andando até ali, a Conde da Boa Vista. (...) Eu
não sei se era um skinhead, era um roqueiro, sei lá que
danado era, que deram um murro no amigo dele! (sic)
Deram um murro no amigo dele e a gente foi parar na
Restauração (hospital público). (...) porque eles eram
bem afetados, tanto o menino que eu fiquei quanto o
amigo dele eram bem... Você olhava e dizia que eram
gays! Bem espalhafatosos assim, sabe?! De roupa,
camisa, tatuagem de estrela nos ombros! Que era uma
febre, teve uma época que era uma febre. As bichas bo-
tavam as tatuagens de estrela nos ombros e uma camisa
bem regatinha e tal. A cara toda pintada, sei lá que da-
nado era! (...) Você olhava e dizia. Por isso que eles...
foi o alvo, né? Focaram neles (sic) (destaque nosso)

3.2 • Posições sexuais, gênero e desejo

Podemos até aqui notar que mensões aos estilos corpo-


rais boy e pintosa foram recorrentes nos discursos dos entre-
vistados para dar sentido – significando e valorando as pes-
soas – e guiar as interações. Ainda assim, observamos uma
desarrumação do modelo ideal (boy-ativo e pintosa-passivo)
nas narrativas que recolhemos.
Se a feminilidade sugere passividade sexual, não é bem
isso que os relatos de nossos entrevistados revelam. A cons-
trução das posições eróticas se dá de forma mais fluida do que
informa as categorias de gênero. Muitas vezes, os próprios
pesquisadores, também marcados subjetivamente pelas pres-
suposições que as categorizações de gênero engendram, se
surpreenderam com os desalinhamentos:

[Ah, tu é ativo, tu não é passivo não?] Não. [Ah, tu


prefere sempre ser ativo?] Hurrum. [Mas, qual tua
relação disso de ativo e passivo? Porque tem muito
isso na comunidade gay e tal.] Eu acho que ser pas-
sivo não é só o fato de ser penetrado, sabe? Eu acho
que é diferente. Eu acho que ser passivo é quando
você se entrega mais, se deixa dominar. Eh, eu sou
ativo em todas as maneiras. Eu domino, eu gosto de
34 | Contextos de Sociabilidade

dominar, eu gosto de penetrar, na verdade. Não gosto


de ser dominado, sabe? Eu gosto de mandar, de co-
mandar. [Tu comanda lá a transa?] É. [Mas, tu nunca
é passivo pra ele? (falando do namorado)] Eu já
tentei, mas eu não gosto não (destaque nosso). (Val-
ter, 22 anos, negro, pintosa, ativo, professor de dança)

Vale destacar que, entre nossos entrevistados, houve


uma predominância da versatilidade sexual (ou seja, homens
que sentem prazer sexual penetrando e/ou sendo pedetrados
nas interações sexuais, a depender da situação), ainda que
alguns sujeitos tenham se classificado como exclusivamente
passivos ou exclusivamente ativos. Muitos alegaram que, em
contextos de parcerias fixas (namoro, no geral), abriram mão
da posição erótica preferida para fazer as vontades do parcei-
ro, como relata Bacante (18 anos, pintosa, estudante de ensino
médio, passivo):

[Normalmente nessas tuas relações, tu é mais passivo,


mais ativo? Tu tem alguma preferência?] Eu sou passiva
(risos). Eu sou passiva, mas meto bala. É não. Eu sou
passiva, mas eu já fui sim ativo, mas não é minha prefe-
rência, eu não gosto. [De ser ativo?] E eu não sinto a ne-
cessidade também de ser ativo. Eu prefiro muito, muito,
muito mesmo ser passiva. E eu sempre sou passiva.
Agora, claro que tiveram relações que alguns namo-
rados pediram. Eles até diziam que tinham fetiche de
saber como seria eu, Bacante, ativo. E, claro, como
a gente ‘tá numa relação, eu não vejo problema ne-
nhum nisso. E eu já fui, mas não é minha preferên-
cia. Eu prefiro ser sempre passivo (destaque nosso)

Dos dez boys entrevistados, oito se disseram versáteis,


um se disse versátil, mas preferindo ser ativo, e um disse ser
passivo. No caso das 15 pintosas, cinco se disseram versáteis,
seis se disseram versáteis com preferência pela passividade
sexual, uma disse que era versátil mais para ativa, uma relatou
ser excluxivamente ativa e duas disseram que eram apenas
passivas.
Pintosas, boys e cafuçus - Luís Felipe Rios et al. | 35

Queremos sublinhar que, se os dados apontam para o


desalinhamento entre as estilísticas corporais e as posições
sexuais, e a maior parte dos nossos entrevistados está aberta
às possibilidades prazerosas oferecidas pela versatilidade, o
que faz os casais se unirem é menos questões de posições
sexuais e mais os estilos corporais.
Sobre isso, vale dizer que, no início da converssa sobre
atração sexual, a maioria dos entrevistados afirmou, sejam os
boys, sejam as pintosas, que, na escolha dos parceiros sexu-
ais, não se importavam com os estilos, boy ou pintosa; não
obstante, no processo de entrevista foram covocados a descre-
ver os parceiros sexuais que já tiveram ao longo da vida. Pu-
demos, então, constatar que havia a predominância na escolha
dos parceiros com atributos masculinos: os “discretos”.
Wagner (18 anos, pintosa, negro, cabelereiro e maquia-
dor, passivo) relatou não se incomodar com o estilo (boy ou pin-
tosa) de um possível parceiro, no entanto, diz: “mas não pode
ser mais gay que eu”. Já Antônio (38 anos, branco, pintosa,
auxiliar de serviços gerais, versátil mais para ativo) afirmou não
gostar de se relacionar com “homossexuais” (no sentido de pin-
tosa) porque ele já é “homossexual”, e justifica: “Por que eu ia
querer ficar com outro igual a mim?” Ao ser questionado sobre
com quem ele prefere se relacionar, afirmou preferir “homens”,
e explicou que os “homens” são diferentes dos “frangos6”, pois
geralmente “tinham família e filhos”. Ele também afirma não
gostar de ir a boates, pois lá “tá cheio de frango, de homosse-
xual e eu não vou pra lá procurar homem, porque não tem. Só
tem como eu”.

3.3 • Parcerias sexuais e erotismo: a entrada


dos cafuçus nas cenas sexuais

No contexto da formação das parcerias, notamos uma


tendência dos homens femininos de classe popular em utilizar
______________________________________________________________________
6
Homossexuais, com conotação de pintosas.
36 | Contextos de Sociabilidade

do modelo hierárquico, identificado por Fry (1983), para sig-


nificar as parcerias. Como sugerem os relatos de Wagner e
Antônio, o casal formado por mulher e homem seria reatuali-
zado nas figuras da bicha e do homem, com as implicações
de poder que masculino e feminino engendram nas relações
sociais (cf. também Rubin, 1993). Já os homens femininos de
classe média tendem a utilizar do modelo gay com gay propos-
to por Fry (1983), para significar as parcerias, acentuando que,
independentemente de estilos corporais e de posições sexuais,
são dois homens se relacionando. Antônio, homem de classe
popular, mesmo discordando da lógica igualitária, é sabedor
dessa outra forma das parcerias se organizarem que, segundo
ele, prepondera nos casais que se forma em boates. Estas, no
geral, são frequentadas por pessoas identitariamente posicio-
nadas (gays, homossexuais, frangos, pintosas ou boys).
Ainda assim, os jovens boys de ambas as classes afir-
mam preferir se relacionar com homens também masculinos.
O que sugere um desprestígio erótico em relação aos homens
femininos. Se todos os nossos interlocutores afirmaram preferir
homens masculinizados para se relacionar, existe um desin-
vestimento libidinal coletivo da figura do pintosa, em prol de um
modelo ideal de homem: o masculinizado.

[E como é que, pra tu ficar bem atraído mesmo, como


é que tem que ser o jeito deles assim e tal?] Olha, vê
só. Primeiro, não dar pinta. Não dê pinta, se der pinta
fodeu! Tira a graça do negócio. Se der pinta... Que ande
assim com roupas normais, não precisa andar escan-
daloso e tal, é normal, com roupas normais. Só que eu,
por exemplo, eu adoro esse tipo que é roqueiro, mas
gosta de fazer jiu-jitsu ou gosta de fazer artes mar-
ciais, ou então meio que rapper. (Amaral, 26 anos, boy,
branco, curso superior concluído, comerciário, versátil)

Amaral, um boy versátil, começa seu curso sexual prefe-


rindo se relacionar com pintosas, mas, conforme narra, dada
as pressões sociais de aparecer publicamente ao lado de um
homem feminino, vai mudando a preferência:
Pintosas, boys e cafuçus - Luís Felipe Rios et al. | 37

Olha, pra ser sincero, quando eu comecei a ficar


com meninos, eu ficava muito com pintosas, eu
pegava muito pintosas. Mas, depois de um certo
tempo, eu comecei a preferir muito mais os mais
machinhos. Assim, os mais que não dessem tanta pin-
ta. Porque, uma coisa é você dar pinta quando ‘tá
brincando, quando ‘tá entre amigos, outra coisa é
você viver dando pinta. Viver dando pinta na rua e
o povo todo te olhando, tirando sarro da cara, né?
Então, eu comecei a preferir os mais machinhos, as-
sim, porque... Sei lá, por atração, eu não sei se vai
modificando o gosto (destaques nossos). (Amaral)

Mesmo tendo feito parte do cardápio sexual de Amaral,


no início de sua carreira sexual, ele agora prefere homens que
estejam distantes de apresentar algum sinal de feminilidade.
Ressaltamos que Amaral foi um de nossos entrevistados que
criticou o modo opressivo como o homem feminino é tratado.
Paulo (21 anos, boy, entregador, estudante universitário) tam-
bém fez a crítica:

[Qual o tipo de preconceito que tu diz, assim, com os


afeminados? Que é que falam, assim, quando tu escu-
ta?] Olhe! No próprio universo gay, existe preconceito
com os afeminados, né?(...) Porque, dentro da comu-
nidade gay, os gays não afeminados dizem não cur-
tir gays afeminados, porque eles são afeminados. (...)

No entanto, Amaral, Paulo e outros de nossos entrevis-


tados nem percebem que eles próprios estão se inscrevendo
naquilo que criticam e/ou afirmam não muito bem entender – a
discriminação com os homens femininos –, na medida em que
preferem se relacionar sexualmente com homens masculinos.

“Ah! Eu não gosto de afeminado!”. Aí, depois tá lá dan-


do o cu! Sei lá, tipo... [Aí, dar cu é o...] É, sabe, como
se fosse... [...a característica do afeminado?!] É! E tam-
bém existe um sentido pejorativo pra o cara que dá o cu
também, sabe? [Como assim?] “Ah! É passivo!”. Tipo,
chamar uma bicha de passiva, só passiva, é tipo um
xingamento, sabe? (...) A gente brinca falando: “Ai, pas-
siva!”, “Não sei quê, passiva!”. E é como se fosse um
xingamento. Porque tem um sentido pejorativo, né? E,
38 | Contextos de Sociabilidade

aí, tem falando também a ver com a questão do jeito


afeminado de ser. Mas, o que seria dos ativos se não
fossem os passivos, né, e afeminados, né? (Paulo)

De certo modo, a feminilidade - que, como mostramos,


funciona como estigma que desumaniza as pintosas na família,
na escola e na sociedade mais ampla, colocando-as em situ-
ações variadas de violência - também atua dentro da própria
comunidade homossexual. Como disse Daniel (18 anos, boy,
branco, estudante universitário, passivo): “Ah! As pintosas, coi-
tadas, são as que mais sofrem preconceito, né? É que o pre-
conceito é mais visível, né?”
Nesse contexto opressivo, vale dizer que embora a gran-
de maioria de nossos entrevistados seja versátil (está aberta à
passividade sexual), como aponta o relato de Paulo, há uma
tendência a utilizar a categoria passivo, no sentido de homem
feminino e de gostar de ser penetrado, para se referir de forma
negativa a alguém, mesmo que esse homem seja estilisticante
boy.

No universo gay, assim, esse termo de passivo é de


menosprezo. Principalmente se você diz que é passi-
vo. Se você chega numa roda de gays e diz “Eu sou
passivo”, você sofre preconceito dos outros gays. Mes-
mo você sabendo que, nessa rodinha que você con-
tou isso, tem outros gays passivos, só passivos. Mas
eles olham pra você assim e faz “Bicha...” (sic) Tem
preconceito, tem! Tem aquele medo de dizer o que eu
sou. Eu não sei. Acho que tem aquela visão de que o
passivo é aquela figura mais feminina, né? (Daniel)

Esta é uma forma de operar com as representações de


sexualidade e gênero, que, mesmo não encontrando completa
correlação com as experiências pessoais, reitera os esquemas
pintosa/feminina/passiva e homem/masculino/ativo. Nesse âm-
bito, em que o feminino do estilo de ser é constante objeto de
desvalorização erótica, vale dizer que a figura preferida das
pintosas (em especial as de classe popular) é o cafuçu:
Pintosas, boys e cafuçus - Luís Felipe Rios et al. | 39

Eu gosto de cafuçu, eu gosto de homem mesmo. De sair


com homem mesmo. Vou fazer o que numa boate, que
eu sei que é tudo veado igual a mim? ‘Tá entendendo
como é a história? Aí, eu não gosto porque o veado é
assim: se tem dois homens morando juntos, todos dois é
veado porque um ajuda o outro. Um dá o dinheiro, ‘tá en-
tendendo? O outro também dá dinheiro pra pagar o alu-
guel, pra pagar a luz. Já eu sou diferente. Eu dou àque-
les que eu fico, né? Porque eles são homens mesmo. Aí,
eu não curto nessa zona não. (Antônio, 38 anos, pinto-
sa, auxiliar de serviços gerais, versátil mais para ativo)

Cafuçu é o homem bruto, rude, com movimentos gestuais


contidos (em oposição à gesticulação dos braços e mãos das
pintosas) e ativos na interação sexual. Muitas vezes, são per-
cebidos como os que apenas fazem sexo com as pintosas em
troca de dinheiro. Vejamos algumas definições desse estilo de
ser homem, apresentadas de forma jocosa por dois de nossos
interlocutores:

[Como é o cara cafuçu?] O cara cafuçu é assim: ‘que


eu rolo com porra de frango’. [Rola com o quê?] ‘E eu
rolo com porra de frango’, quando ‘tá bom né, quan-
do ‘tá bebo (bêbado) é tudo uma galinha. [Uma ga-
linha é o que? Que pega todos os frangos?] É, pega.
Botou dinheiro, minha filha, eles tão dentro. [Ah, en-
tão tu sempre paga pra eles?] É, eu dou 50 (reais).
Assim, a Rodrigo eu dou 100 (reais) pra ajudar ele.
Porque ele tem dois filhos, né? Pra ajudar. (Antônio)

Eu sei identificar todo tipo de cafuçu. Porque, assim, tem


o cafuçu até cinco estrelas. A primeira estrela, aquele
cafuçu que mal escova os dentes. Tem o das duas es-
trelas. Três estrelas já consegue lhe levar pra uma lan-
chonete e pagar um cachorro quente pra você. Cinco
estrelas, ele pode, ele já consegue manter uma casa,
pode ter um filho. Um, apenas um. Não vai ter carro. Não
vai! Vai ser proletariado, aquela coisa... [Tu dissesse que
tem cafuçu também zero pra baixo? Como assim zero
pra baixo?] (...) tem os positivos, que é até cinco estre-
las, e tem os negativos, que é até o homem do carai.
[Ah, ‘tá, o homem do carai é o máximo?] É o máximo
de baixeza. Porque o homem do carai: aquele cara ig-
norante, não sabe ler, bruto... [Mas esse é o homem em
geral, né? Não é o homem que faz sexo com homem?
40 | Contextos de Sociabilidade

Ou é?] (...) É como se fosse uma régua: o homem pra


caralho, ele nunca vai fazer sexo com homem. (...) Mas,
tipo assim, porque também tem esses homens... tem o
cafuçu, homem que fica com homem. Mas, eles geral-
mente são ativos, mas ajuda mainha na frente. (...) ele
também tem que fazer dinheiro, né? Pra pagar à boyzi-
nha que ele tá namorando. Só que tem uns que se des-
viam desse caminho, esquecem as meninas e só ficam
com os veados. Porque, no interior, o veado é danado
pra bancar (...) o cafuçu. (...) Ele cede prazer pro veadi-
nho, passivo, que geralmente já está com a sua carreira
consolidada, já é um professor do estado. Aí, gasta o
salário todinho. Não tem filho, não tem mulher, né? Gas-
ta o salário todinho (...) com os cafuçu, no caso. (Már-
cio, 28 anos, feminino, estudante universitário, versátil)

Considerando os discursos dos entrevistados, os cafu-


çus são descritos como homens pobres que fazem sexo com
bichas por troca (ainda que não formalizada) financeira ou de
bens. Os cafuçus se percebem como heterossexuais, ou sim-
plesmente homens, e se utilizam do modelo hierárquico (Fry,
1983) para significar as interações com os pintosas. Relações
sempre descritas como ocasionais.
Nessa linha, em conversa informal com Aroldo (48 anos,
boy, versátil mais para passivo, formação superior) sobre os
achados dessa pesquisa, ele diz que já teve interação sexual
com cafuçu. Diz que a transa, ainda que muito excitante e pra-
zerosa, é, na avaliação dele, incompleta afetivamente. Ele diz
que tem aquela fantasia de estar com “um homem de verdade”.
“O cafuçu quer apenas comer o cu7 da bicha”. “Não beija, não
faz carinho, apenas bota para foder 8, até gozar9. É isso que dá
excitação. Esse desespero em comer o cu. Bota com força.” Na
linha do não gostar, diz que “os cafuçus gozam muito rápido,
não tem muito essa de mudar de posição”. Aroldo sugere que é
como se eles quisessem terminar muito rapidamente a intera-
ção sexual, se “aliviar no gozo e ir embora”.
______________________________________________________________________
7
Penetrar analmente.
8
Denota força na interação sexual, em que o pênis entra e sai consecutivamente do ânus.
9
Ejacular, orgasmo.
Pintosas, boys e cafuçus - Luís Felipe Rios et al. | 41

4 • Gênero, eroticidade e estigmatização

Ao longo deste trabalho, buscamos localizar os estilos


boy e pintosa como uma dimensão erótica da subjetividade:
modos de se sentir bem e de ter prazer com os gestos, ma-
neirismos, sotaques, vestes, adereços e outros elementos que
compõem o si mesmo corporal (Rios e Nascimento, 2007). En-
quanto performativos (Butler, 2010), os estilos em análise se
constituem de forma não volitiva, via processos de identifica-
ção (Hall, 2003), por meio de citações e iterabilidades, regu-
lados pelo sistema de sexo-gênero (Rubin, 1993). Em outras
palavras, os estilos são articulações inconscientes de carac-
terísticas humanas categorizadas (e valoradas) em categorias
de gênero. Um campo de produção de diferenças sociais em
corpos-subjetividades (Brah, 2006) que também modela de-
sejos e afetos, produzindo corpos sexualmente desejantes e
desejáveis. Ao serem significados no sistema de sexo-gênero,
os corpos, diferenciados pelos estilos, são objeto de processos
de estigmatização que situam quais deles são mais ou menos
humanos (Elias e Escotson, 2001).
Inspirados nas hierarquias das sexualidades de Ru-
bin (1998), podemos dizer que, na comunidade entendida,
no que concerne ao desejo, produz-se uma hierarquização
dos homens tendo como marcadores traços socialmente ca-
tegorizados como femininos. Se, por um lado, as marcas de
feminilidade que compõem o estilo pintosa produzem um de-
sinvestimento libidinal nos corpos-subjetividades dos homens
assim constituídos; por outro lado, e assim como na sociedade
abrangente, é o estilo boy que confere o lugar de objeto se-
xual desejável aos homens. Quanto mais agenciamentos de
elementos categorizados como femininos um homem realiza,
menos desejável ele é.
Considerando a comunidade entendida, esse arranjo de
sexo-gênero produz uma tendência dos homens gays, pinto-
sas e boys buscarem se relacionar sexualmente com homens
42 | Contextos de Sociabilidade

masculinos (gays e não gays, identitariamente falando). Rubin


(1993) sugere que o sistema de sexo-gênero produz assime-
trias (na divisão do trabalho, na produção de interesses sexu-
ais, nos modos de se expressar, nos gostos e nos prazeres)
para criar necessidade de complementaridade e reciprocida-
des, garantindo, desse modo, a reprodução social e biológica.
Ela também sugere que as relações, mesmo as afetivas e sexu-
ais entre pessoas do mesmo sexo, tenderiam a se pautar pelo
modelo em que uma parte da díade seria masculina e a outra
feminina, reiterando assim a operacionalidade do sistema. De
certa forma, a busca dos boys por homens masculinos quebra
com a suposta reciprocidade que as representações ideais de
gênero situam, em que o modelo masculino/feminino deveria
organizar/ se presentificar nas parcerias sexuais.
Nesse contexto de produção de seres desejáveis e de-
sejantes, as pintosas tendem a buscar parceiros sexuais entre
homens que estão nas bordas da comunidade homossexual:
os cafuçus. Homens masculinos, rudes, ignorantes, pobres, de
cor, não gays, que acreditam não ter as próprias identidades
sexuais e de gênero ameaçadas ao se relacionar com homens
femininos (bichas, frangos, veados, pintosas). Nesses casos,
as relações sexuais estabelecidas são muitas vezes marcadas
por trocas financeiras e de bens. Por certo, os cafuçus são ho-
mens que também estão nas bordas da masculinidade ideali-
zada, homens marginalizados, muitas vezes pouco desejáveis
no âmbito da sociedade abrangente.
Nessa linha interpretativa, sugerimos que, dentro da co-
munidade, o sistema de sexo-gênero se torna bem mais re-
levante para o processo de estigmatização, em relação aos
discursos de verdade sobre a homossexualidade (biomédicos,
psicológicos e religiosos). Mesmo as posições/fontes de pra-
zer corporal (ativo/passivo), tão enfatizadas como marcadores
de desigualdade em outros estudos realizados em contextos e
tempos históricos diferentes (Fry, 1983; Parker, 1991 e 2002;
Green, 2002; Rios, 2004 e 2008; Viana, 2010; Souza Neto e
Rios, 2015), aparecem como fossem relativamente despoten-
Pintosas, boys e cafuçus - Luís Felipe Rios et al. | 43

cializadas entre os nossos informantes do Recife da década de


2010, que nos revelaram uma preponderância da versatilidade
sexual.
São as regulações hegemônicas de gênero que se imis-
cuem dentro da própria comunidade entendida, discriminando
e oprimindo os homens femininos. Queremos destacar que
isso se faz em um importante campo de organização da subje-
tividade: o si mesmo corporal, o corpo-erotizado. A pinta, como
estigma que já justifica um conjunto de formas de discrimina-
ção, opressão e violência na sociedade abrangente, emerge
atuando em um âmbito que envolve o prazer com o modo como
se é, e o quão desejável esse corpo se mostra para os pares
(outros homossexuais). Se há uma desqualificação erótica do
ser homem feminino, ao ser apreciado e desejável, o estilo boy
reafirma o conjunto de privilégios e distinções para os esta-
belecidos, os homens mesmos, reiterando o próprio sistema
hegemônico de sexo-gênero.

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Capítulo 2
Homens que dançam: gênero, corpo,
raça e travestilidade no maracatu
Lady Selma Ferreira Albernaz

Este artigo trata de homens travestidos em uma dança


folclórica do ciclo do carnaval, o maracatu do estado de Per-
nambuco. O maracatu também é classificada como cultura
popular, tendo em vista as críticas recentes ao termo folclore.
Ela é percebida como tradicional, por ser de longa duração no
tempo e porque o processo histórico se desenrola mantendo ou
mudando práticas e conteúdos simbólicos, negociados entre
diferentes grupos sociais. O maracatu é considerado marca de
identidade regional no diálogo com a nação e dentro do estado
traduz pertencimento racial e de classe¹.
O maracatu é um cortejo com um corpo de baile (a corte)
e um conjunto percussivo (o batuque). Ele é tido como uma
manifestação exclusiva de Pernambuco², classificado em dois
tipos: o maracatu nação (ou baque virado) e o maracatu rural
(ou baque solto ou orquestra). A distinção se baseia no ritmo,
instrumentos, vestimentas, personagens e localização rural ou
urbana. Aqui, atenho-me ao maracatu nação, que chamarei
simplesmente maracatu, o qual também enfatiza e tem reco-
nhecida a relação com as religiões afro-brasileiras³. A maior
______________________________________________________________________

¹ O artigo usa resultados da investigação Concepções sobre corporeidade e fertilidade femininas


entre brincantes de bumba meu boi maranhense e de maracatu pernambucano (CNPq – Proces-
so nº 402901/2008-8; Edital nº 57/2008). A equipe contou com as bolsistas de iniciação científica
(Graduação em Ciências Sociais – UFPE): Patrícia Geórgia Barreto de Lima (2008/10) e Ighara de
Oliveira Neves (2009/10), bem como da mestranda (PPGA-UFPE) Jailma Maria Oliveira (2009/10).
A partir de abril de 2010, contei com a colaboração do Professor Jorge Freiras Branco (ISCTE/IUL).
Agradeço a todos e todas, em especial ao colega Jorge Branco pelas conversas sobre artefatos e
a Jailma Oliveira, sobre a atuação das rainhas e travestis.
² No estado do Ceará, também existe maracatu, considerado originário de Pernambuco. Em Recife,
pouco se toca neste assunto (Cruz, 2008).
³ As religiões afro-brasileiras variam regionalmente e têm denominações distintas, em Pernambuco
destacam-se o Xangô e a Jurema. A filiação religiosa do maracatu parece recente e é fonte de
discórdia, tratarei de religião apenas se importante para análise.
Homens que dançam - Lady Selma Ferreira Albernaz | 49

parte dos grupos se origina nos bairros periféricos da Região


Metropolitana do Recife, compondo-se de pessoas negras e
pobres, homens e mulheres. A finalidade seria celebrar a co-
roação do rei e da rainha e cultuar os orixás, divindades dos
cultos afro-brasileiros, e/ou os antepassados negros (eguns).
Pode-se delimitar as atividades dos grupos em ensaios
nas sedes e nas prévias de carnaval, eventos de carnaval e a
participação em festas e ofertas de oficinas. Falar um pouco
sobre isso ajuda a entender a dinâmica de organização e fun-
cionamento das apresentações. Ao mesmo tempo em que situa
o trabalho de campo, realizado em Recife, Olinda e Igarassu,
entre outubro de 2009 e fevereiro de 2010, quando os maraca-
tus têm as atividades intensificadas.
Os ensaios de maracatus, nas próprias sedes ou imedia-
ções, têm por principal finalidade treinar as pessoas que tocam
os instrumentos de percussão para conferir afinação ao conjun-
to, atraindo principalmente a vizinhança. O período chamado
‘prévias de carnaval’, em quase todo país, inicia em janeiro,
constituindo-se de bailes em clubes e de cortejos de rua pro-
movidos nos fim de semana pelas agremiações carnavalescas.
No Bairro do Recife (foco das festas carnavalescas da cidade
na atualidade), os ensaios dos maracatus, também com o batu-
que, objetivam preparar para abertura do carnaval. Os encon-
tros são concorridos porque conduzidos pelo percussionista
pernambucano Naná Vasconcelos, funcionando também como
apresentação pública.
Durante o carnaval os maracatus se destacam em três
eventos principais e muito importantes na percepção dos gru-
pos: (1) a abertura oficial do carnaval recifense, realizado na
sexta-feira anterior ao sábado de Zé Pereira, com grande des-
taque para o maracatu, que forma um conjunto percussivo de
aproximadamente 15 grupos (mais ou menos 400 pessoas),
regido por Naná Vasconcelos; (2) os desfiles das agremiações,
promovidos pela Prefeitura do Recife, com a noite de domingo
dedicada aos grupos de maracatu, quando se elege um cam-
peão; (3) a Noite dos Tambores Silenciosos, na segunda-feira,
50 | Contextos de Sociabilidade

em homenagem aos antepassados negros (eguns), realizada


centro histórico de Recife, desde a década de 1960. Atualmen-
te é apoiada pela prefeitura e atrai uma multidão.
No decorrer do ano, os grupos maiores e mais famosos
são convidados para participar de festas e/ou oferecer oficinas
de percussão e história do maracatu, com ênfase na dimensão
religiosa, promovidas pelo estado ou privadas. Estes convites
podem vir do Recife, de outros municípios do país e do exterior,
notadamente países europeus (França e Alemanha se desta-
cam).
Centrei a observação nos ensaios e no carnaval, momen-
tos fundamentais da sociabilidade. Ainda que os primeiros se
concentrem na reunião das pessoas que integram a percus-
são, eles possibilitam perceber escolhas relativas aos demais
integrantes. As observações foram complementadas por entre-
vistas com lideranças e integrantes de diferentes grupos. São
estes dados que dão base às interpretações e análises que
faço a seguir.

1 • Contar história: Que eu me organizando posso


desorganizar4
Afirmei em trabalho anterior (Albernaz, 2011) a importân-
cia dos arranjos das relações de gênero no maracatu. Esta cate-
goria, por meio das classificações que lhes dão sentido, estabe-
lece posições de homens e mulheres que organizam as práticas
dos grupos, desencadeando relações adequadas entre eles e
elas com certas desvantagens para as últimas. As expressões
corporais denotam uma ordem classificatória de gênero, não
necessariamente correspondente ao sexo biológico, reforçando
os significados das posições que eles e elas podem ocupar. A
noção de corpo pode ser pensada como um desdobramento da
análise de gênero, uma vez que estética e performance corporal
são aspectos relevantes na sua constituição5.
______________________________________________________________________
4
Refrão da música Da Lama ao caos – Nação Zumbi (disponível em: http://letras.terra.com.br/
nacao-zumbi/77655/, acesso em 05/01/2012), canção emblemática do Movimento Mangue Beat,
relacionado ao maracatu e discutida adiante. Os subtítulos seguintes são completados por outros
versos da mesma música, misto de metáforas e epígrafes.
5
Este subitem toma por base exposição feita em outra publicação (Albernaz, 2011).
Homens que dançam - Lady Selma Ferreira Albernaz | 51

No que se refere às modalidades de inserção dos homens


no folguedo, é permitida a travestilidade, fenômeno que chama
a atenção da plateia, com variações na apreciação: aplauso,
incentivo, espanto, crítica. Este tipo de inserção depende da
permissão das lideranças temporais e espirituais dos grupos,
fazendo-se acompanhar por debates relativos à moralidade, a
atitudes e a comportamentos de gênero, mais ou menos infor-
mados por regras religiosas. A participação de homens travesti-
dos revela sentidos e efeitos das relações de gênero, no grupo,
na sociedade e na comunidade. As performances corporais são
fundamentais para exprimir o feminino, a elas se somam, com
igual importância, as vestimentas e os adereços.
Os grupos de maracatu, de uma forma geral, compõem-
-se de corte e batuque. À frente do cortejo, vem um porta-es-
tandarte, homem no geral, podendo ser acompanhado por uma
alegoria (escultura de símbolo divino ou natural), que represen-
ta o grupo, transportada sobre um estrado com rodinhas.
A corte se estrutura em torno de uma rainha e um rei - ela
é considerada uma líder espiritual, por isso mais importante do
que ele. Os casais reais são protegidos por um pálio e ladea-
dos por soldados romanos, além de pajens, que levam abanos
– todos eles são homens jovens ou crianças, numa posição
quase de figurante, sem suscitar grande atenção. Os lanceiros
complementam esta guarda real e circulam em volta do cortejo
como um todo ao longo das suas apresentações. Hierarquica-
mente, a segunda figura mais importante da corte é a dama do
paço, comumente representada por duas mulheres, cada uma
portando uma boneca (calunga) que encarna divindades reli-
giosas, comportando os fundamentos espirituais que protegem
o grupo. Na seqüência desta hierarquia, há um séquito de ca-
sais de nobres, obrigatoriamente um príncipe e uma princesa,
e ainda conde, duque, marquês, podendo haver outros títulos
que variam em número de um grupo a outro – quanto maior o
grupo, maior é o número de títulos e de casais.
52 | Contextos de Sociabilidade

Compõe ainda esta corte um grupo de baianas (ricas e


pobres – estas também podem ser chamadas de catirinas),
sem um par masculino. Na maioria dos grupos, permite-se que
estes personagens sejam encarnados por homens travestidos.
Em alguns maracatus, parte das baianas ricas representam
divindades dos cultos afro-brasileiros, dentre as quais os ho-
mens travestidos no geral se destacam pela dança e riqueza
das vestimentas. Eventualmente pode haver um caboclo (figu-
ra masculina em trajes de pena que lembram um índio), que
circula por entre os personagens com uma dança característica
– saltos e agachamentos acrobáticos.
A sequência esquemática desse cortejo é: primeiro as
baianas e, dentre elas, as damas do paço, que protegem todo
o séquito. Em seguida, os casais de nobres, encerrando com o
casal real. Na fotografia 1, é possível visualizar as figuras reais
que sintetizam a corte do maracatu.

Fotografia 1: Rei e rainha


Fonte: Pesquisa de campo (Jailma M. Oliveira, 2010)

A outra parte do maracatu, o batuque, segue a corte


durante todo o cortejo ou desfile. Esse conjunto percussivo
integra entre 15 e 100 pessoas - esta ampla escala de va-
Homens que dançam - Lady Selma Ferreira Albernaz | 53

riação indica a importância e riqueza do grupo. O líder, cha-


mado mestre, atua como um maestro orientando batuqueiros
e batuqueiras. Os instrumentos são a alfaia, a caixa (ou tarol) e
o gonguê, presentes em todos os grupos. Mais recentemente,
dependendo do maracatu, são acrescidos a estes: o abê, o mi-
neiro e o atabaque, isolados ou simultaneamente. A fotografia
2 fornece uma idéia do batuque, sobressaindo-se as alfaias.
No conjunto, o maracatu não é um ritual que se afigure
masculino ou feminino, pode ser visto como neutro do ponto de
vista de gênero. Entretanto, internamente, a divisão espacial
tem uma classificação de gênero que ordena as relações e dis-
tribui o poder.
Numericamente, as mulheres são maioria dentro da cor-
te. A rainha e as damas do paço são protetoras espirituais do
grupo e portadoras de um poder da mesma ordem. Elas sim-
bolizam todo este espaço classificado de feminino. São as rai-
nhas a síntese desse poder, que pode se desdobrar para reso-
lução de problemas do cotidiano dos integrantes dos grupos,
bem como para conseguir recursos que viabilizam as apresen-
tações. Tradicionalmente, reis e rainhas eram coroados em um
ritual religioso específico, mas, no transcorrer do século XX,
apenas um rei foi coroado e, desde os anos 1970, apenas elas
o são6.
O batuque, ainda que atualmente seja misto, no passa-
do foi constituído apenas por homens, mas continua sua clas-
sificação como masculina e a prevalência numérica deles. A
interdição à participação das mulheres tinha razões religiosas.
Unicamente os homens poderiam tocar instrumentos que me-
deiam a comunicação com os deuses, de acordo com as reli-
giões afro-brasileiras, o que não é diferente em Pernambuco.
Mesmo que as razões para vetar as mulheres no batuque fos-
sem religiosas, o poder masculino configura-se como da ordem
______________________________________________________________________
6
O ritual de coroação da rainha deve ser na Igreja do Rosário dos Homens Pretos. Nem todas elas
atualmente são coroadas, motivo de disputas. Ter rainha coroada implica em maior legitimidade
e autoridade do grupo na definição das regras para os maracatus. Ver Oliveira (2011) e Guillen
(2004).
54 | Contextos de Sociabilidade

temporal, aparentemente voltado para ordenar as relações


dentro do grupo, com a comunidade e com o poder público.
Este poder temporal permanece, mesmo que o batuque con-
tinue expressando símbolos, relações e práticas da ordem do
sagrado.

Fotografia 2: Batuque
Fonte: Pesquisa de Campo (Jailma M. Oliveira, 2010)

Nas apresentações atuais, a percussão tem conseguido


um grande destaque que se encarna no mestre. Ele é síntese
do conjunto e garante a harmonia. O desempenho dele propicia
a fama do grupo e a escolha para participar de apresentações
e de oficinas. Neste tipo de evento, comparece mais freqüente-
mente o batuque. Em apresentações com a presença da corte,
os personagens que não podem faltar são a rainha e a dama
do paço, acompanhados de alguns nobres e de baianas, pelo
menos idealmente.
Esta configuração atual do maracatu, em que o batuque
se destaca, tem relação com a história do folguedo que é im-
portante registrar aqui. Inspirando-se em dados documentais
sobre as coroações dos Reis do Congo, realizadas desde o sé-
culo XVIII (Souza, 2006), intelectuais e integrantes dos grupos
Homens que dançam - Lady Selma Ferreira Albernaz | 55

consideram que o maracatu remontaria ao período da escravi-


dão no Brasil colonial. Estas coroações eram realizadas pelas
Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos
e de São Benedito, simultaneamente reverenciando as divinda-
des católicas designadas protetoras dos escravos7.
Neste ritual, eram eleitos os representantes para gover-
nar cada nação negra, evitando rebeliões e controlando o com-
portamento cotidiano. Por isso, os maracatus seriam chama-
dos de maracatus-nação, invocando um coletivo de pertença e
de obediência a uma autoridade. Nos registros dos folcloristas,
o rei parecia ser o mais importante e sempre acompanhado de
uma rainha. Como destaca Oliveira (2011), a presença das mu-
lheres, ainda que não mencionada nominalmente, é entreouvi-
da nos ecos dessa história. Não se mencionava o batuque com
a mesma ênfase, a não ser para criticar o barulho dos tambores
e/ou o tom repetitivo e lamentoso das melodias.
Contar a história é importante para dar o selo de auten-
ticidade e antiguidade ao grupo (medidas respectiva tradição),
para enfrentar disputas por poder e acesso a financiamentos
das apresentações, as quais garantem a manutenção e conti-
nuidade. Mas também é utilizada para regular as relações e as
práticas dentro do grupo (Sahlins, 1990), incluindo as relações
de gênero.
Atualmente esta história é contestada por interpretações
alternativas, realizadas por historiadores (Mac Cord, 2001; Guil-
len, 2004; Souza, 2006; Lima, I. 2008), os quais invocam outras
manifestações como possíveis inspirações para os maracatus.
Lima, I. (2008) cria uma cronologia da brincadeira, com desta-
que para o período do Estado Novo (1937-1945), que coincide
com uma primeira aceitação do maracatu para afirmar identi-
dade regional e mestiçagem (Guillen, 2004). Mesmo com estas
dissensões, nota-se a constituição de uma historicidade pelas
pessoas que integram os grupos. Elas compõem uma explica-
ção plausível da origem do folguedo, especialmente a liderança.
______________________________________________________________________
7
Sobre a Irmandade de São Benedito e a importância dela para os escravos, ver Silva (2000). Das
nações negras trazidas da costa africana para o Brasil, as que mais se destacaram foram as da
região do Congo, razão pela qual tinha maior presença nos rituais de coroação. (Cf. Souza, 2006).
56 | Contextos de Sociabilidade

Deve-se notar que os pontos polêmicos levantados pelos


historiadores atuais incidem sobre que tipos de danças marca-
riam a origem do maracatu. Pouco se debate sobre as possí-
veis mudanças na organização interna dos grupos que podem
ter ocorrido com a passagem do tempo. Por exemplo, como a
rainha passou a ser uma das figuras mais importantes da corte,
junto à dama do paço, e não mais o rei, como era antes; ou por
que o batuque conseguiu a projeção atual. Portanto, as regras,
sentidos e práticas de gênero aparecem de uma forma natura-
lizada, ainda que estas relações e as classificações e símbo-
los correspondentes tenham se alterado ao longo do tempo e
mostrem-se como centrais na organização dos grupos8.
Tenho algumas hipóteses para esta omissão. Primeiro,
a ausência de ferramentas analíticas para tratar de gênero, o
que tornou invisível as mulheres na história de modo genéri-
co (Scott, J. 1996). A forma de organização dos grupos – uma
dança apropriada para homens e mulheres nos espaços pre-
viamente definidos – permitiu falar dos homens tendo as mu-
lheres como extensão. Parece confirmar esta hipótese as duas
figuras emblemáticas do maracatu no século XX: Dona Santa,
rainha do Maracatu Nação Elefante, e Mestre Luís de França,
mestre do batuque do Maracatu Leão Coroado. Tendo-se um
representante de cada sexo nas posições mais importantes e
simultaneamente símbolos e emblemas dos dois espaços or-
ganizativos da dança no conjunto - corte e batuque -, afigurava-
-se como tudo estando resolvido e devidamente registrado nos
anais da história. Não era necessário levantar as duas ques-
tões: por que o rei perdeu seu poder? E, como o batuque ga-
nhou tanto destaque?
A segunda hipótese pode ser a dinâmica das relações
raciais no Brasil e em Pernambuco. Por muito tempo, evitou-
-se tratar das tensões raciais que se evidenciam nas danças
folclóricas no Brasil (Albernaz, 2011, 2010; Ortiz, 1986). Ainda
______________________________________________________________________
8
Em outro trabalho, sobre bumba meu boi - dança folclórica do estado do Maranhão -, notei omis-
sões semelhantes no que se refere à sua organização por códigos e práticas de gênero (Albernaz,
2010).
Homens que dançam - Lady Selma Ferreira Albernaz | 57

que se tenha feito um esforço difusionista para identificar as


origens das danças brasileiras – Europa (brancos, destaca-
damente portugueses), África (negros, sem mencionar etnias
ou nações) e América (índios) – o resultado final era salientar
uma fusão mestiça. Como bem aponta Ortiz (1986), usando o
samba como exemplo, sua criação negra é omitida em favor
da transformação em marca de identidade nacional e suporte
mestiço. Mesmo se uma dança, como é o caso do maracatu,
fosse uma prática de pessoas negras, para a aceitação ocor-
rer, ela deveria dialogar com a mestiçagem em alguma medida,
como de fato acontece a partir dos anos 1940 com o movimen-
to modernista em Pernambuco (Cf. Guillen, 2004). Penso, en-
tão, que a questão racial pode ter se tornado mais interessante
e relevante ao se retomar a constituição histórica do maracatu,
tornando a discussão de gênero uma dimensão secundária na
organização do folguedo.
Esta hipótese parece plausível, pois a história alternati-
va, que os intelectuais constroem sobre o maracatu, destaca
a dimensão racial no folclore – ainda que gênero seja aqui e
ali contemplado ao se pinçar figuras de mulheres que não seja
Dona Santa. Assim permanece o consenso sobre o maracatu
ser uma brincadeira de pessoas negras e pobres, como um si-
nônimo de pertencimento de classe e de raça simultaneamen-
te. Esta caracterização foi acentuada nos anos 1980, quando
o movimento negro ressurge no Brasil após o regime militar
de 1964 (Albuquerque e Fraga Filho, 2006). Em todo o país, o
movimento negro, em especial o Movimento Negro Unificado
(de alcance nacional), passou a valorizar e visibilizar manifes-
tações populares das populações negras, como um mediador
de afirmação de identidade racial e de positivação do ser negro
(Hall, 2003), a exemplo do Black is Beautiful estadunidense.
Nos anos 1990, surge na Região Metropolitana do Recife
o movimento Mangue Beat, inspirado nos ritmos populares lo-
cais, misturando-os com ritmos do pop-rock internacional (Es-
teves, 2008; Oliveira, 2007; BBC, 2012), dando nova visibilida-
de ao maracatu. O grupo Chico Science & Nação Zumbi foi o
58 | Contextos de Sociabilidade

maior sucesso deste movimento, alçando-se com destaque na


Word Music internacional. Foi um momento de efervescência
na cultura pernambucana, reverberando no debate nacional e
remodelando os conteúdos de identidade. O Mangue Beat pas-
sou a ser uma marca de identidade regional, contribuindo para
visibilidade de muitos folguedos populares existentes no esta-
do. Além disso, os trabalhos desenvolvidos por Mestre Salus-
tiano, para preservar o maracatu de baque solto, e a formação
do grupo percussivo9 Maracatu Nação Pernambuco reforçaram
o reconhecimento do maracatu (Oliveira e Albernaz, 2011).
Por conseguinte, ao frevo, uma manifestação da cultura po-
pular constituída como marca de identidade pernambucana10,
somaram-se novos ritmos, culminando na possibilidade atual
de reivindicar uma conformação multicultural para o estado,
particularmente Recife, baseando-se na produção musical11.
Ao ganhar esta nova posição entre os símbolos musicais
de Pernambuco, o maracatu não perdeu o significado simbólico
de uma manifestação do povo negro e pobre, como afirmei an-
teriormente. O que ocorreu foi o realce da função de resistência
para as populações negras ao longo da história, por enfrentar
as mais diversas perseguições à própria cultura e modo de ser
(Lima, I. 2008). Ao mesmo tempo, de uma forma ambivalente
e contraditória – na medida em que se contrapõe ao ideal de
mestiçagem –, esta positivação parece ter desencadeado uma
aproximação de pessoas “brancas” e “ricas” (como sinônimo
de classe média). Estas pessoas, homens e mulheres, assu-
miram duas formas de interação com o maracatu, integrando
grupos tradicionais, especialmente na percussão, ou formando
os grupos percussivos, o que aumentou o prestígio da música
do maracatu (Esteves, 2008). Além destas mudanças, reforça
______________________________________________________________________
9
Grupos criados geralmente por pessoas de classe média, inspirados na música do maracatu para
aprender percussão ou participar do carnaval. O Maracatu Nação Pernambuco foi pioneiro. Estes
grupos podem ter um corpo de baile, mas não uma corte e nem se filiam à religião afro-brasileira.
São fonte de polêmica por supostamente concorrerem com os maracatus tradicionais. Ver Esteves
(2008).
10
O frevo (música e dança) figura como marca de identidade pernambucana desde os anos 1970.
Desconheço trabalhos que tratem desta questão.
11
Para uma discussão sobre identidade e música, ver os trabalhos de Lima, A. (2009) e Pinho
(2009).
Homens que dançam - Lady Selma Ferreira Albernaz | 59

esta relevância a posição do maracatu como uma das atrações


na abertura do carnaval. A performance musical da percussão
no evento parece atrair mais atenção do que propriamente a
presença das rainhas, reis, damas do paço e as mães e pais
de santo dos terreiros das religiões afro aos quais o maracatu
se filia, que sobem ao palco ao som dos tambores que estão
no rés do chão. Neste sentido, a corte se afigura secundária,
ao contrário do que ocorria na coroação dos reis do Congo in-
vocada como origem do maracatu.
Num outro plano, nota-se que estes acontecimentos
favoreceram a reorganização interna dos grupos. O exemplo
mais destacado é a participação das mulheres no batuque que,
como já dito, era exclusivamente masculino. São considera-
das pioneiras as que integravam os grupos percussivos – de
classe média, e as mulheres militantes do movimento negro
que, inspirando-se nos ideais feministas, reivindicaram integrar
o batuque dos grupos tradicionais (Albernaz, 2011; Oliveira,
2011). A participação de pessoas de classe média em grupos
de maracatu tradicionais são signos de prestígio e fama, su-
põe-se, então, que estas novas práticas motivaram a aceitação
das mulheres nestes batuques. Simultaneamente, motivam as
mulheres das camadas populares a tocarem instrumentos. De
forma que as relações de gênero no maracatu se cruzam com
estes marcadores (raça e classe), alterando a organização in-
terna dos grupos com novos significados para as relações de
gênero (Neves e Albernaz, 2010; Albernaz, 2011)12.
Em outro trabalho (Albernaz, 2011), ressaltei a importân-
cia do batuque, tendo em vista a análise da execução dos ins-
trumentos. Mas isso não implica que, internamente ao grupo,
corte e batuque não sejam igualmente importantes e também
concorrentes pela organização das relações e distribuição de
poder entre os membros. Mestres e rainhas, dependendo das
______________________________________________________________________
12
O acesso das mulheres à percussão ressaltou a classificação de instrumentos em masculino e
feminino. Isto ocorre de tal maneira que elas prevalecem nos instrumentos femininos, como o abê,
e são minoria na alfaia, masculina. Nas alfaias, predominam mulheres de classe média e, no abê,
as de camadas populares, conformando novas desigualdades em intersecção com marcadores de
classe (Cf Albernaz 2011).
60 | Contextos de Sociabilidade

historias especificas desses grupos e dos arranjos atuais da


respectiva liderança, são complementares ou disputam a con-
dução do conjunto. O cargo de presidente, ocupado por ho-
mem ou mulher – no geral mestre ou rainha -, parece ser o
que legitima, na maior parte dos casos, quem decide e se a
proeminência será do batuque ou da corte na organização de
cada grupo particular.
Há ainda outros elementos que sustentam a relação do
batuque e da corte como de disputas e de equilíbrios. Por um
lado, se o batuque tem maior visibilidade pública, ainda é a
corte que define se um grupo é maracatu ou apenas um grupo
percussivo. Por outro lado, se os mestres do batuque podem
conferir fama e prestígio, na corte é a rainha a principal figu-
ra, ainda mais se for coroada, ficando o rei em um plano se-
cundário. Assim como os batuques vem crescendo em número
de participantes, uma corte com muitos casais de nobres e de
baianas é sinônima de grandeza e fama do maracatu.
Neste sentido, alguns aspectos merecem atenção no que
se refere à dança, encenada na corte, que complementam os
sentidos do maracatu para além da musica que ecoa do batu-
que. Primeiro, o público que segue as apresentações dos mara-
catus o faz também pela dança e procura imitar o desempenho
das pessoas que estão na corte. Segundo, não se pode deixar
de notar a presença de pessoas de classe média dançando, es-
pecialmente como baianas e catirinas (Esteves, 2008) e, mais
recentemente, nos personagens da nobreza. Terceiro, a oferta
de oficinas para aprender danças populares em geral, dentre
elas o maracatu13. Obviamente que o público das oficinas é de
classe média, posto que, para os integrantes dos maracatus,
quem é da corte sabe dançar sem precisar aprender, a dança é
a mesma dos terreiros de candomblé – resposta que mais ouvi
quando perguntava por que a corte não ensaiava com o batu-
______________________________________________________________________
13
Este tipo de oficina não é necessariamente oferecido pelos grupos de maracatu, como são ge-
ralmente as oficinas de percussão. No geral são iniciativas de professores de dança ou de grupos
de balé do Recife e região metropolitana. Note-se que o grupo percussivo Nação Pernambuco
tinha um corpo de baile, produzindo coreografias próprias que chamavam muito a atenção das
mulheres.
Homens que dançam - Lady Selma Ferreira Albernaz | 61

que. Quarto, percebi o esforço de criação de passos e gestos


novos pelas mulheres mais jovens de maracatus tradicionais,
como se quisessem dar visibilidade para este bailado. Quinto,
a coreografia das mulheres que tocam abê, que complementa
a execução do instrumento, simultaneamente acentua os sig-
nificados do feminino atribuídos ao instrumento e salienta os
sentidos da dança para o conjunto do grupo, estendendo-a da
corte ao batuque.
Portanto, a dança tem importante dimensão na definição
do que é maracatu, sendo a corte o lugar da encenação dela.
A dança reproduz a mesma que é executada nos terreiros em
louvor aos orixás, portanto, tem e completa a dimensão sagra-
da. Os gestos e os passos da dança, o ímpeto, a cadência e a
intensidade indicam a força e a pujança do conjunto e concor-
rem para a posição de um maracatu dentre os demais.
Dentro da corte, os pares de nobres, incluindo rei e rai-
nha, desfilam de braços dados e fazem passos mais contidos,
já a as baianas e as damas do paço atuam na dança de uma
forma mais assemelhada ao que se faz no terreiro. A dança
dessas mulheres se caracteriza por passos cadenciados, com
arrastar alternado por leve batidas de pés, acompanhado por
flexões do joelho, que fazem menear os quadris, espalhando
os movimentos pelo corpo. Na maior parte do tempo, os bra-
ços estão posicionados formando um arco na altura do peito,
movimentados para frente e para trás, fechando e abrindo este
arco. Intercalado a este movimento, alternadamente os braços
sobem e descem da altura da cabeça até a dos quadris. Estes
passos são entremeados com giros do corpo sobre si, intensifi-
cando a dança no lento avançar durante o desfile.
A presença dos homens travestidos, mesmo que inseri-
dos no conjunto das baianas, destaca-se da totalidade da corte.
No geral, permanecem juntos durante o cortejo, demarcando
um espaço específico. Esta posição está relacionada à atuação
deles como baianas ricas, que comumente são representações
de orixás femininos do panteão das religiões afro-brasileiras.
Assim como acontece com os demais integrantes, o número
62 | Contextos de Sociabilidade

deles aumenta ou diminui de acordo com o tamanho do grupo.


É por meio desses personagens que a imagem do feminino se
encarna nesses homens de uma forma legítima. O trânsito do
masculino para o feminino acentua a corporeidade como uma
elaboração cultural e permite o acesso a uma melhor compre-
ensão das relações de gênero.

2 • Vestir-se para dançar: Posso sair daqui para me


organizar

Durante o campo, dois acontecimentos chamaram minha


atenção. No primeiro, estava na sede de um grande maracatu
que fora algumas vezes campeão do carnaval do Recife, assis-
tindo, junto das assistentes de pesquisa, ao ensaio do batuque,
ouvindo a repetição das loas e acerto do ritmo conduzido pelo
mestre. Postou-se ao nosso lado um homem negro, esguio
(quase magro), alto, cabelos na altura dos ombros, aproxima-
damente 35 anos e que passou todo o tempo dançando. Ao
perceber nossas anotações, ele entabulou uma conversa, in-
formando que dançava na corte como baiana rica e incorpora-
va um orixá feminino. Enfatizou a própria importância no desfile
pela intensidade e força com que dança, que se destacava do
conjunto. Lembrou-se de amigos que dançavam com ele, da
competição por atrair a atenção, de comentários do público e
da satisfação em participar. Daí, passou a destacar as vestes
que usa e salientou que, no desfile, estava sempre de salto
alto. Atribuiu um sentido múltiplo para este calçado: confere
elegância e dificulta a execução dos passos, mas, ao mesmo
tempo, como um tipo de transporte para o feminino
No segundo, após assistirmos ao ensaio do batuque de
um maracatu pequeno, transcorrido na rua, próximo à sede do
grupo, pudemos presenciar um convite do presidente a um ho-
mem para ser baiana durante o desfile. O rapaz tinha carac-
terísticas físicas semelhantes às do homem anterior, apenas
um pouco mais jovem. Na conversa entreouvida, o presidente
destacou qual seria o orixá do jovem, deu ênfase à beleza da
Homens que dançam - Lady Selma Ferreira Albernaz | 63

roupa, exigia o uso de um sapato alto e chamativo e, por fim,


talvez mais importante, o compromisso de dançar bonito, em
dar toda a força à apresentação, de maneira a contribuir para o
sucesso do grupo.
Penso que estes dois acontecimentos atestam que há
um reconhecimento e aceitação da participação dos homens
travestidos nos desfiles. Que eles são ativamente procurados
e/ou buscam manter uma posição, marcando presença em mo-
mentos estratégicos da vida do grupo. Aquele que conversou
conosco colocou em evidência como são importantes os ade-
reços que usam para desfilar e o desempenho na coreografia.
Esta percepção particular se repetiu na conversa entre o presi-
dente e o convidado.
Nestas duas passagens, dois elementos parecem impor-
tantes para compreender os homens travestidos no maracatu:
o desempenho na dança e a estética14. A escolha dos homens
para ser baiana no maracatu parece reconhecer neles uma vir-
tuose no bailado, que contrasta com a afirmação que é uma
dança que não se aprende. Ou, como afirma Renata Sá Gon-
çalves (2008, p. 203), se não é um conhecimento explicitado
como aprendizado, por meio dela (a dança) se aprende uma
experiência ritual e social, e neste caso tornada evidente na
escolha dos homens para se travestir. No que se refere à es-
tética, ela está relacionada ao feminino. Por um lado, a forma
das roupas e a suntuosidade que marcam no geral o que deve
vestir uma mulher em momentos de festa. Por outro, a elegân-
cia relacionada com os sapatos de salto alto, que também se
liga com um tipo de feminilidade, especialmente aquela que
ressalta a sedução.
As roupas das mulheres e dos homens travestidos têm
formas semelhantes, mas são distintas na ênfase: as deles são
mais chamativas (brilho, bordado, decote), o que se acentua
com o tipo de sapato. As mulheres no maracatu calçam-se com
______________________________________________________________________
14
Aqui, concordo com Strathern, concebendo estética mais como uma forma desejável do que uma
noção de belo, entretanto, em alguma medida, a estética expressa no maracatu liga-se à beleza.
Ver entrevista de Strathern em Simon et al (2010, p. 3).
64 | Contextos de Sociabilidade

sandálias ou sapatos baixos e eventualmente desfilam descal-


ças, tal como ocorre num terreiro de Xangô. Penso que estas
duas dimensões, dança e estética, podem ser a chave para
compreender o que diferencia ser um homem ou ser uma mu-
lher trajada de baiana nas cortes dos maracatus aqui estuda-
dos.
Quase todos os objetos (instrumentos, vestes, adereços)
dentro do maracatu são classificados por gênero. Isto de partida
pode ser percebido na distinção entre as roupas da corte e do
batuque. Sendo anteriormente um espaço apenas de homens,
o batuque reproduzia as vestes dos escravos trabalhadores da
cana de açúcar – uma calça de tecido rústico e camiseta. Com
o ingresso das mulheres, elas passaram a acentuar, em alguns
grupos, que são mulheres usando saias e blusas específicas
para se demarcar em relação ao conjunto de homens, mesmo
que guardem semelhanças para não quebrar a unidade deste
espaço.
Na corte, as roupas são de dois tipos principais: aquelas
das baianas pobres, um longo vestido de chita, que parece es-
pelhar simplificadamente as roupas da nobreza; e as das baia-
nas ricas. Estas últimas reproduzem os trajes das cortes euro-
péias do final do século XVIII. Quanto mais elevado o titulo de
nobreza, mais luxuosa deve ser a vestimenta, estando no ápice
a roupa do casal real. Detendo-me à roupa feminina, ela é mais
ou menos no estilo de Maria Antonieta – corpete ajustado e
decotado, mangas bufantes e fartas saias, armadas e rodadas,
que vão até o chão. Os tecidos são pesados e brilhantes, que
lembram brocados, damascos, tafetás e cetins, algumas vezes
bordados com lantejoulas, fios dourados e prateados. As co-
res são vibrantes: vermelhos, azuis, amarelos, rosas, laranjas,
violetas, verdes. Mais do que meramente objetos, as roupas
simbolizam gênero, no sentido de Strathern (2006), e conferem
nitidez à natureza das relações sociais15.
______________________________________________________________________
15
Entendo por ‘gênero’ aquelas categorizações de pessoas, artefatos, eventos, seqüência etc. que
se fundamentam em imagens sexuais – nas maneiras pelas quais a nitidez das características mas-
culinas e femininas torna concretas as ideias das pessoas sobre a natureza das relações sociais.
Tomadas simplesmente como sendo ‘sobre’ homens e mulheres, tais categorizações têm muitas
vezes parecido tautológicas. (Strathern, 2006:20).
Homens que dançam - Lady Selma Ferreira Albernaz | 65

Para os homens travestidos, isso é ainda mais significati-


vo: são as roupas, em primeiro lugar, que assinalam os trânsi-
tos que deslocam a correspondência sexo-gênero, quando eles
se tornam mulheres, transformando-se na personagem baiana,
sendo que aqui o desempenho - ou, se quisermos, a ação - é
fundamental para legitimar este lugar e como podem e devem
expressar o feminino da mulher que incorporam. Como afirma
Lagrou (2003), os objetos portam conhecimento, sendo ainda
mais importante o modo como as pessoas os incorporam. Po-
demos afirmar que a relação das pessoas com as vestimen-
tas é significativa tanto para indicar a posição dentro do grupo,
como para indicar a identidade de gênero. Em mais de uma
sede, realizando entrevistas ou assistindo a ensaios, éramos
convidadas a ver a exposição das roupas da corte, rigorosa-
mente penduradas em cabides, enfileiradas, como se prontas
a vestir, sendo dada ênfase às vestes femininas.
O uso das roupas no maracatu sinaliza para modos dis-
tintos de incorporação de conhecimento, que se tornam visíveis
inclusive pelo tipo diferente de veste que eles e elas podem
usar como baianas. A deles, homens travestidos, sempre pa-
rece mais ousada, colorida, farta do que a delas dentro de um
mesmo grupo, posto que, de um grupo para outro, há varia-
ção, ainda que seguindo um padrão comum. Mas, além dessa
diferença, alguns travestidos levam para rua o que se veste
apenas nos terreiros, tornando-os mais distintos do conjunto
das mulheres. Em alguns grupos, aparecem com vestimentas
de orixás do tipo ketu-jêje (uma amarração de tecidos no peito,
além de saia até a altura da metade da perna que possibilita
mostrar uma calça comprida específica), mesmo que em Per-
nambuco prevaleça o Xangô e a Jurema.
As roupas dos orixás levadas para as ruas podem ser
vistas como uma legitimação do travestimento, invocando-se
para isso a tradição religiosa. Nos estudos sobre religião afro-
-brasileira, um dos temas recorrentes é a presença de homos-
sexuais e por extensão a travestilidade (Matory, 1988). Pode-
-se efetivamente pensar que os preceitos religiosos colaboram
66 | Contextos de Sociabilidade

para dar positividade à presença desses homens. Como tam-


bém, ainda que momentaneamente, sugere uma aceitação de
práticas homossexuais com esta presença. Pois, ao contrário
do que ocorre com a travestilidade masculina em outras dan-
ças e representações folclóricas, no maracatu a incorporação
do feminino pelos homens tenta mimetizá-lo, e não parodiá-
-lo. Por exemplo, no bumba meu boi, nos moldes tradicionais,
os homens que se travestiam deixavam claro que faziam uma
paródia e, ao mesmo tempo, tentavam evitar qualquer associa-
ção com uma orientação homossexual. No outro folguedo, a
encenação do feminino é a feminilidade da sedução ligando-se
a uma evidência de desejo por pessoas do mesmo sexo.
Nas conversas informais mantidas durante o desfile, eles
vestidos com os dois tipos de trajes se identificavam como
baianas ricas. Quando se perguntava qual orixá representa-
vam, então, vinha a confirmação de serem Iansã, Oxum ou Ie-
manjá e, em alguns casos, pombas giras e mestras da Jurema.
Mas nem todos os grupos aceitam esta encenação: pelo me-
nos em dois deles em Recife e municípios vizinhos, as lideran-
ças deixam claro que esta prática não é permitida, e o motivo é
também religioso. Segundo estas, no terreiro ao qual o mara-
catu se liga, os homens não se travestem, mesmo que o orixá
que recebam no momento do transe seja feminino. Ainda que
grupos desse tipo sejam minoria, deve-se levar em conta esta
controvérsia no campo das religiões de matriz africana, para
não se pretender uma aceitação uniforme da travestilidade ou
da homossexualidade16.
Mas, não vou me estender nesta discussão religiosa aqui.
Dentre os dois tipos de vestimentas, focarei a análise nos tipos
de feminilidade que os homens desempenham nas apresenta-
ções usando as roupas no estilo comum para toda a corte, co-
mum também às mulheres, repetindo a forma da nobreza euro-
péia. Nesta encenação do feminino, parece-me que o maracatu
expressa com mais densidade simbólica as relações de gênero
______________________________________________________________________
16
Matory (1988) pode ser uma boa referência para as polêmicas em torno dessa questão, iniciada
com o trabalho de Ruth Landes nos terreiros de Candomblé da Bahia nos anos 1930-1940.
Homens que dançam - Lady Selma Ferreira Albernaz | 67

que se vive no cotidiano, seja da comunidade de vizinhança do


bairro de origem do grupo, seja da sociedade mais abrangente.
Marca uma experiência, em que o ritual serve para confirmar
a ordem hegemônica, ou promover um debate ideológico que
se contrapõe a esta ordem (Comaroff e Comaroff, 2010, p. 35).
Por conseguinte, este tipo de experiência pode ser uma chave
de acesso à subjetividade, fundamental para compreender gê-
nero e a reprodução deste ou contestação das desigualdades
de poder e dominação. Os homens podem assim sair para se
organizar e falar de si, falando também das mulheres.

3 • Encenar feminilidades: Um homem roubado


nunca se engana

Para iniciar a discussão sobre a feminilidade encenada


pelos homens travestidos, deve ficar claro que eles não es-
condem a orientação sexual pela gestualidade, mas também
mostram no rosto e no corpo que são homens, as feições são
másculas, ainda que escanhoadas, e não usam seios postiços.
A transição para o feminino resulta das vestes de mulher soma-
das ao tipo de dança e de feminilidade nas quais investem. Por-
tanto, não se trata de travestis que fizeram uma transformação
corporal permanente. A travesilidade evidencia a construção
de gênero sobre o sexo, opere-se ou não uma transformação
no corpo físico. Para os propósitos desse trabalho, penso que
o mais interessante na travestilidade em tela é exatamente a
transitoriedade, o que ocorre em outras danças folclóricas e
que no maracatu delas se diferencia por indicar uma opção se-
xual pelo mesmo sexo, portanto, uma orientação homossexual.
Nesse sentido, pode elucidar questões que o modelo hegemô-
nico de gênero prefere não levar em conta, ou reafirmar uma
ordem quando aparentemente a desafia.
Partindo do princípio de que a feminilidade se constitui de
diferentes formas, nas mulheres e nos homens que discordam
do gênero e sexo biológico, é importante perceber que a cons-
trução se relaciona a uma discussão maior sobre relações de
68 | Contextos de Sociabilidade

gênero na sociedade brasileira. Estabeleceu-se no Brasil uma


tradição de pesquisas sobre classes sociais focando camadas
populares e médias, concluindo que as primeiras se orientam
por valores hierárquicos e as segundas por valores igualitários,
numa clara inspiração estruturalista nos moldes de Louis Du-
mont. Nestas investigações, a organização de gênero é central
para conformação das relações sociais, acentuando, simulta-
neamente, a diferença ideológica de ambas as classes, ocor-
rendo nas análises que usam um recorte de classe e nas que
partem de uma antropologia da mulher/gênero. Salem (2006)
faz uma revisão lúcida da questão e aponta limites em algumas
conclusões; enquanto Scott R. (2011) ressalta as diferenças de
foco: nas camadas médias, sobressai a subjetividade; nas ca-
madas populares, as relações de trabalho.
Importa destacar que o modelo simbólico de gênero que
organiza a sociedade brasileira é do englobamento do feminino
pelo masculino. Os símbolos marcantes que envolvem as opo-
sições binárias de ordenamento das classificações de gênero
são o dentro (feminino) x o fora (masculino), ou nos termos
de DaMatta (1989): a casa x a rua. Desdobra-se dessa oposi-
ção outra muito importante, o vínculo (feminino) x a circula-
ção (masculina). Saindo do plano da abstração estrutural para
o das relações, isto implica num tipo de família mais igualitá-
ria que tenta suplantar as diferenças de gênero nas camadas
médias, por conta da respectiva ideologia individualista, e uma
família mais hierárquica nas camadas populares com forte se-
paração entre homens e mulheres - eles circulantes e pouco
envolvidos com a família e elas vinculadas à unidade familiar,
aos filhos e aos parentes femininos (Salem, 2006).
No escopo desse trabalho, o modelo se afigura útil para
compreender os tipos de feminilidades que os homens assu-
mem no maracatu, a despeito dos limites teóricos do estrutura-
lismo já largamente apontados, como por exemplo, a omissão
das práticas com a conseqüente supressão das mudanças his-
tóricas (Sahlins, 1987), a ausência da agência e implicações
disto para a subjetividade (Ortner, 2007), o apagamento dos
Homens que dançam - Lady Selma Ferreira Albernaz | 69

mecanismos de poder atrelado às estruturas sociais (Bourdieu,


1989). Particularmente, considero que o modelo apresenta um
limite específico. Ao colocar a ordem de gênero como distinto
para as classes que polarizam a estrutura social brasileira em
ricos e pobres, perde muito da riqueza analítica e resvala para
um formalismo, o que quase sempre ameaça as análises es-
truturais.
Como apontei em outro trabalho (Albernaz, 2004), as
análises de cultura popular brasileira, especialmente no que se
refere a trocas estéticas, tendem a exagerar as diferenças en-
tre as culturas de classe, mais do que as respectivas relações e
tensões. Nem as camadas médias constituem a própria cultura
de distinção de forma isolada, nem as camadas populares ela-
boram os valores fora do contexto capitalista moderno e indi-
vidualista. Portanto, talvez esteja mais correto DaMatta (1989)
quando advoga que a cultura nacional é simultaneamente nor-
teada por valores individualistas e hierárquicos transversal-
mente às classes – expresso no famoso jeitinho brasileiro e no
“Você sabe com quem está falando?” As camadas médias não
estão livres do englobamento do feminino pelo masculino, e as
camadas populares não estão presas a um modelo hierárquico
descontextualizado da modernidade – o que possibilita pensar
seus antagonismos derivados de outras razões. Talvez Pinho
(2007) tenha razão quando ressalta os constrangimentos de
classe como imperativos na subordinação das mulheres das
camadas populares ao machismo expresso por esta classe,
em que as mulheres e os homens, ainda que não conseguin-
do romper com a hierarquia, apresentam reflexividade sobre
a constituição de subjetividades, mediadas pela sexualidade e
pelo gênero. Pode ser interessante compreender como entram
no modelo os homens que se travestem, quando colocam em
cheque a masculinidade que se afirma pela virilidade em rela-
ções sexuais compulsórias e quase obrigatórias com as mulhe-
res, sancionadas pelo modelo de gênero que opera no Brasil.
70 | Contextos de Sociabilidade

Voltando a DaMatta (1989), parece-me que ele ajuda na


compreensão das feminilidades prescritas para as mulheres
brasileiras. As mulheres parecem divididas em mulheres para
casar, ligadas à casa, e mulheres para o sexo, relacionadas
com a rua17. Como polos opostos, essa divisão define o tipo de
moral que guia a conduta das mulheres, ao mesmo tempo em
que traça desenhos de feminilidades que circulam e servem de
avaliação do que elas podem ser. Esta dicotomia, na prática,
tem nuances no polo da casa, tem várias possibilidades de mu-
lher, assim como na rua; neste último espaço há a prostituta, a
mulher fácil e sensual, e a do tipo fatal, cujo emblema é a diva
cinematográfica, tida como irresistível18. Estes são apenas al-
guns exemplos reforçados empiricamente num rol de revistas
femininas, um dos lugares onde se constitui a ideia de beleza
das mulheres e os comportamentos correspondentes (Cam-
pos, 2009).
Consideramos que o tipo fatal, a diva, é o que mais se
aproxima do arquétipo que caracteriza a feminilidade nos ho-
mens travestidos. Isto se justifica tanto pelos artefatos já referi-
dos, como pela gestualidade – com excessos no uso das mãos
e dos braços que se dobram com mais ênfase, nos rodopios
do corpo no movimento, coroado por uma expressão facial se-
dutora, função emblemática da dança. O uso de sapatos no
contexto do maracatu se torna um complemento chave para
exprimir a diva. A saia rodada no geral se ergue pela armação
de arame usada para acentuar o volume. Os pés ficam à mos-
tra, e o salto alto, em desproporção, desvela-se. Surpreende
ao dificultar o movimento dos pés que atuam na dança, sendo
um selo da destreza na coreografia. Equilibrar-se, não cair, si-
multaneamente atuando de forma voluptuosa e impetuosa nos
passos de dança, feminilizando e tornando sedutor o que se
faz num terreiro de religião afro-brasileira. Os travestidos con-
______________________________________________________________________
17
Em pesquisas recentes, constata-se a permanência dessa divisão em camadas populares. Ver
Quadros (2004), para o caso pernambucano, e Pinho (2007) para o Rio de Janeiro.
18
Para uma discussão rica sobre a passagem de Star para Diva, veja-se Markendorf (2010). Es-
clareço que a análise que se segue aprofunda e desdobra a que foi iniciada em Oliveira e Albernaz
(2011).
Homens que dançam - Lady Selma Ferreira Albernaz | 71

trastam com as mulheres em volta, com sandálias e sapatos


rasteiros ou de pés nus que repetem o ritmo cadenciado dos
terreiros, em reverência religiosa. Assim, atuam em registros
distintos, fazendo do corpo a força motriz desse transporte,
dessa transição entre divino e sedução ao encarnar uma femi-
nilidade específica – conferir fotografias de 3 a 6.
Na concepção desses homens, é por meio desses ele-
mentos, considerados indispensáveis para a valorização da
aparência e redesenho simbólico de si mesmos, que a busca
por uma imagem feminina se constitui. Como sugere Lima, C.
B. (2007) trata-se, portanto, de uma busca que melhor caracte-
rize a individualidade e a realização de se sentirem mulher. Ao
mesmo tempo, a intenção é se destacar no conjunto da corte e
atrair a atenção do público ao longo de todo o desfile:

[...] tem diferença do homossexual dançar, porque a


gente ‘tá mostrando a feminilidade afrangalhada19. É
chamar atenção, gostar de chamar atenção! E a mu-
lher não: tanto faz, tanto fez, ‘tão dançando... Não dão
o sangue, como diz a história. Aí, o homossexual: “Vai
menina, dança!” Aí, já fica chamando e dá vontade de-
las dançar também. Aí, começa aquela história, a gen-
te grita na passarela: “(...) Vai entrar a guerra agora!”
Disse a guerra, já sabe que um vai dançar mais que o
outro! (Entrevista, em junho de 2010, com homem no-
bre da corte do maracatu Estrela Brilhante do Recife).

Embora as mulheres também se utilizem de artefatos para


demonstrar feminilidade, comparando-se a esses homens elas
parecem se mostrar mais tímidas ao exibirem desenvoltura cor-
poral. Na fala acima, a concepção do entrevistado sugere que
as mulheres não dão tudo de si, não exploram toda potenciali-
dade na dança. A presença desses homens na corte, de algu-
ma forma, desencadeia processos de disputas por espaços de
poder e visibilidade, uma vez que procuram se sobressair em
relação às mulheres na execução da dança. A disputa de poder
______________________________________________________________________
19
Para uma discussão rica sobre a passagem de Star para Diva, veja-se Markendorf (2010). Es-
clareço que a análise que se segue aprofunda e desdobra a que foi iniciada em Oliveira e Albernaz
(2011).
72 | Contextos de Sociabilidade

Fotografia 3, 4, 5 e 6: Homens travestidos desfilando na avenida


Fonte: Pesquisa de Campo (Jailma M. Oliveira, 2010)
Homens que dançam - Lady Selma Ferreira Albernaz | 73

parece nítida no trecho “Não dão o sangue”. Esta expressão


remete a uma idéia de empenho, que positiva a presença dos
homens travestidos no cortejo dos maracatus.
Aparentemente estas concepções são partilhadas pelas
outras mulheres que integram os grupos. Para elas a participa-
ção dos travestis nos maracatus valoriza e incrementa a apre-
sentação na passarela, conforme traduzida no termo “arrasar”,
retirada da linguagem específica da comunidade de homosse-
xuais, repetida na fala de uma entrevistada:

Eu dou o maior valor a gay desfilando no maracatu. O tra-


vesti, principalmente. Porque o travesti tem um negócio
na cabeça que ele tem que ser melhor que a mulher. En-
quanto a gente dança dez, 15, eles dança 20 e não can-
sam. Eles só dançam de sapato alto. Eu tava morta no
meio da avenida; meu colega frango: “Vai, bicha, arrasa!”
[...]. Tem que ter bicha! Maracatu sem bicha não é mara-
catu! [...]. Porque eles se arrumam muito bem. Melhor do
que muitas mulheres. Eu acho que eles têm mais fôlego,
mais força pra dançar. (Entrevista, em julho de 2010, com
mulher nobre da corte do maracatu Cambinda Estrela)

Este reconhecimento dos homens travestidos carrega


consigo o controle moral das performances das mulheres, sin-
tetizadas na separação delas em polos, opostos de acordo com
DaMatta, o que se confirma na fala abaixo, em que a classifica-
ção deste autor ressoa nas expressões de respeito (mulher da
casa) e rodada (da rua):

[...] as mulheres quando estão dançando, elas se retra-


em porque dançam sempre desconcertadas. A não ser
que já seja uma mulher já rodada na vida, enfim... Mas
quando é uma mulher mais de respeito, ela se põe
no seu lugar. E o travesti não, quer aparecer. (Entrevis-
ta, em julho de 2010 com batuqueira do maracatu Porto
Rico; a ênfase é minha)

Sendo uma mulher vivida (da rua), não terá pudor em apa-
recer como os homens travestidos, já quando se trata de uma mu-
lher de respeito (da casa), mais especificamente da pessoa moral,
performance dela fica subjugada a estes códigos reguladores do
que se pode ou não fazer.
74 | Contextos de Sociabilidade

Esta interpretação das falas sugere ainda outras possi-


bilidades. A primeira se refere à falta de empenho. Esta supo-
sição parece mais uma valoração do que um fato, posto que o
esforço para dançar na avenida não desaparece nas mulheres
por terem um desempenho corporal diferente. O trecho a per-
correr é o mesmo e o peso das roupas que vestem também,
e, ainda que não gesticulem tanto, elas rodopiam e avançam
marcando o compasso da dança assim como os homens tra-
vestidos. Curiosamente, uma das falas acima destaca os sapa-
tos diferentes, mas não ressalta os trajes semelhantes nem as
idades distintas, pois no geral as baianas são mulheres mais
velhas do que eles. O destaque anuncia a força e a resistência
do homem, consideradas de partida maior que as das mulhe-
res. Inversamente, o valor prevalecente é o desperdício das
potencialidades sedutoras do corpo feminino, num tom mais
jocoso na fala da mulher e mais acusatório na fala dos homens
que se travestem. No conjunto, é recorrente a aceitação e po-
sitividade da presença desses homens, que cumprem uma fun-
ção necessária para o sucesso do grupo, destacadamente na
passarela, suavizando a competição subentendida deles entre
si e em relação a elas.
Considero que os valores expressos nessas falas, para
avaliar os comportamentos de mulheres e de homens traves-
tidos como baianas, concordam com aspectos importantes da
ideologia que separa mulheres da casa e da rua. A despeito do
homem travestido que anuncia sua homossexualidade ser pe-
jorativo em outros contextos, neste ele se torna positivo, fonte
de um tipo de reconhecimento. A competição homens travesti-
dos versus mulheres é apenas aparente. Encarnando a mulher
da rua, ainda que discorde gênero e sexo, eles se emparelham
com o tipo oposto – a mulher da casa – efetivamente encarna-
do por mulheres biológicas no maracatu. São os homens que
incorporam legitimamente a feminilidade disruptiva que poderia
inverter, ainda que ritualmente, a hierarquia e dominação de
gênero. As mulheres continuam resguardadas na própria se-
xualidade – não podem seduzir, mas apenas serem seduzidas,
Homens que dançam - Lady Selma Ferreira Albernaz | 75

subordinando a sexualidade ao casamento (Heilborn, 1993).


Soma-se a esta questão o fato de que, nos terreiros aos quais
os maracatus se filiam, esta prática (a travestilidade) é corrente
e justificada por ser um pedido do orixá, uma divindade que es-
taria acima das normas terrenas. A aceitação do público reforça
esta posição, aceitação que pode ocorrer exatamente por não
alterar as classificações das mulheres nas relações de gênero
no Brasil.
Este lugar dos homens travestidos corrobora também
com os esquemas de naturalização do gênero, que atribuem um
físico forte para os homens e frágil para as mulheres. Esque-
mas hegemônicos, ainda pouco afetados pelos embates ideo-
lógicos20. Torna-se possível responder a questão que coloquei
com Oliveira (Oliveira e Albernaz, 2011): “Por que as mulheres
recusam a diva no contexto do maracatu?” Para ser mulher da
rua, é preciso mesmo ter tanto uma força, no sentido de cora-
gem, para quebrar os padrões de comportamento sancionados
positivamente, quanto uma força física que a rua demanda. Na
disputa velada com as mulheres – que implicam dimensões de
poder que não podemos avançar aqui –, eles parecem querer
dizer que sabem ser mais mulher do que elas próprias seriam
capazes de ser. Uma forma de pôr sob a própria guarda o fe-
minino da rua, reforçando a moralidade que desiguala homens
e mulheres, especialmente no exercício e acesso à liberdade
sexual. As mulheres que estão no maracatu devem mesmo se
ater aos tipos corretos para as mulheres brasileiras de forma
geral, e para as mulheres das comunidades nas quais o mara-
catu se situa. Por isso, escondem o próprio esforço para reali-
zarem o desfile – que está aquém e além dele. E eles, mesmo
como homens roubados, traídos pelo corpo e pelo desejo, ain-
da assim, nunca se enganam.
______________________________________________________________________
20
Sugerimos que a distinção entre modalidades de poder e agência subjaz às diferenças e à rela-
ção entre ideologia e hegemonia – que podem ser consideradas (...) como as duas dimensões de
poder em qualquer cultura. (...) hegemonia se refere à ordem de signos e práticas materiais, retira-
dos de um campo cultural específico, que passam a ser admitidos como a forma natural, universal
e verdadeira do ser social (...) [por isso] seu poder parece ser independente da agência humana
(...) no momento em que qualquer conjunto de valores, significados e formas materiais passa a
ser explicitamente negociável, sua hegemonia está ameaçada; nesse instante, torna-se objeto de
ideologia ou contra-ideologia. (Comaroff e Comaroff 2010: 35)
76 | Contextos de Sociabilidade

4 • Sair de cena: Da lama ao caos, do caos à lama

Não podemos extrapolar estas interpretações para as


práticas cotidianas das mulheres e dos homens que fazem o
maracatu, atendo-nos a esta análise simbólica dos esquemas
de gênero. Mas é possível dizer que o ritual endossa práticas
corretas a serem exercidas no dia a dia. Considero que, para
além desse esquema simbólico, o ritual permite avançar a
reflexão sobre poder, as normas hegemônicas e os embates
ideológicos que eles representam no campo do gênero ao se-
rem encenados nessa dança folclórica (Comaroff e Comaroff,
2010).
Os grupos de Maracatu são uma representação folclóri-
ca em que classe, gênero e raça se encontram entrelaçados,
revelando arranjos simbólicos que legitimam a distribuição do
poder. Fazer uma reflexão de gênero no campo empírico das
encenações de cultura popular avança para além das análises
clássicas que focam nas desigualdades de classe (Burke, 1989;
Thompson, 1998; Bakhtin, 1987). No caso do maracatu, ao dar
atenção ao gênero, não podia ignorar as relações raciais, tendo
em vista os arranjos estruturais da sociedade brasileira.
Foi possível salientar, a partir daí, como as disputas ide-
ológicas são mais realçadas no que se refere ao racismo bra-
sileiro do que às desigualdades de gênero. Não quero dizer,
com isso, que arranjos das relações entre homens e mulheres
e as simbologias que lhes correspondem não sejam percebi-
das. Mas que a contestação da origem dos grupos como deri-
vações das coroações dos reis do Congo, feita por historiado-
res atuais, atesta que um saber hegemônico está sob a égide
da disputa ideológica – pretende-se, com isso, dar positividade
aos grupos, distanciando-os de práticas escravocratas, e real-
çar atitudes de resistência ao longo do tempo. Junta-se a isto a
afirmação do maracatu como marca de identidade negra e de
pessoas pobres (a partir dos anos 1980, com o Movimento Ne-
gro, e nos anos 1990, com o Mangue Beat) dentro do estado,
Homens que dançam - Lady Selma Ferreira Albernaz | 77

concorrente com a eleição para afirmar uma região na nação.


Reconfigura-se um campo de poder que torna obrigatória, final
e justamente, a punição legal a atitudes racistas e o reordena-
mento de políticas públicas, tendo no maracatu um argumento
e um mediador desses novos arranjos. Isto não significa que
estamos no melhor dos mundos, mas apenas que a cena do
debate tem um foco na raça que deve ser considerado.
O caso da travestilidade dos homens que analisei revela
que gênero ainda é pouco contestado nos estudos de mara-
catu, pelos integrantes e na sociedade. No campo acadêmico,
não localizo trabalhos com este recorte – sendo uma ausência
mais ampla, com poucos trabalhos sobre cultura popular com
este enfoque analítico (Albernaz, 2010 e 2011). Na observa-
ção de campo e nas entrevistas, como visto aqui, a presença
desses homens parece mais reforçar os valores hegemônicos
do que contestá-los. Uma prática aparentemente de resistência
aos valores naturalizados, especialmente por legitimar a discor-
dância entre biologia (sexo) e representação (gênero), como é
a travestilidade, reconverte-se como afirmação da hierarquia
de gênero. Valora a posição da mulher da casa e coloca sob
domínio de homens a possibilidade de vir a ser uma mulher da
rua. Desencoraja as mulheres a estar em todos os lugares, de-
vendo antes preferir o céu que lhes protege – o lar sacrossanto.
São esquemas simbólicos, decerto, mas sua realização ritual,
reconhecidamente tipo de eventos e performances de maior
densidade simbólica, configura experiências poderosas para
compor subjetividades – estruturas de emoções e sentimentos
(Turner, 1986,1987; Ortner, 2007).
O ordenamento estético do ritual requisita um olhar para
os artefatos, em que cores, tipos de tecidos, modos corporais
ganham e ressaltam a importância na elaboração da pessoa.
A materialidade elaborada no ritual oferece relevo para o modo
de incorporação de qualidades subjetivas. O caso dos homens
travestidos colabora para compreender um rol de femininos
possíveis, entretanto, hierarquicamente valorados e, como alu-
dem a possibilidades de práticas de sexualidade, remetem para
78 | Contextos de Sociabilidade

a mais profunda individualidade. Permite acessar como supos-


tas essências do feminino, permanecem relativamente inalte-
radas, como se fora uma constelação simbólica que concebe
ser mulher de forma estática, aquela sobre a qual se silencia,
resguardada de polêmicas relativas ao poder. Estudos de ri-
tuais populares favorecem, pelo menos para mim, retornar ao
cotidiano para questionar a inocência dos objetos, alerta para
como eles materializam sentidos das relações, por demais or-
ganizadas para serem colocadas na zona do caos das disputas
ideológicas. Como bem diz a música, cujos versos percorreram
os subtítulos deste artigo: organizando, posso desorganizar.
Ou, dito de outro modo, que da lama possamos criar um caos.
Isto em parte vem sendo alcançado no debate sobre
relações raciais relacionadas com o maracatu, mas é pouco
nítido no que toca a gênero. As mulheres podem constituir fe-
minilidades que comportem o trabalho realizado na rua, circu-
lando legitimamente neste espaço quando realizam atividades
profissionais – a contra-ideologia saiu vencedora neste campo
simbólico. Mas parecem ainda fadadas a reproduzir um tipo
de família, especialmente nas camadas populares, em que a
liberdade sexual se subordina à esfera do casamento. Mesmo
que tal constrangimento derive em alguma medida da respec-
tiva classe, a recorrência desse valor não é menos importante.
Para contrabalançar, as baianas ricas atuais são geralmente
mulheres mais velhas e donas de casa. A presença de jovens
mulheres que bailam com outros gestos, criando novos passos
na corte do maracatu, sinaliza para mudanças, assim se es-
pera, com possibilidades de novas verdades que poderemos
dançar.

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Capítulo 3
Mulheres em movimento: estudo da identi-
dade, sujeito e formação política em cole-
tivos feministas e LGBT
Viviane Melo de Mendonça

1 • Introdução

O presente trabalho analisa os discursos produzidos por


mulheres que são participantes de coletivos feministas e LGBT¹
da região de Sorocaba, e discute as concepções de identidade
e sujeito e as articula com a história de formação política des-
tas mulheres. O interesse pelo tema decorreu das discussões
acerca dos resultados de outra pesquisa sobre a formação e
atuação de militantes que participaram do I Encontro UFSCar
- Movimentos Sindicais e Sociais da Região de Sorocaba, rea-
lizado em julho de 2011.
Tal evento foi uma atividade de extensão organizada por
dez docentes e cinco alunos do Departamento de Ciências Hu-
manas e Educação da UFSCar, campus Sorocaba, com 40 or-
ganizações e movimentos sociais da região. Participaram o total
de 234 militantes. Os objetivos principais para o evento foram:
1º) promover o encontro da comunidade da UFSCar-Sorocaba
com os movimentos sociais; 2º) resgatar a história, as conquis-
tas e apontar os desafios dos movimentos e organizações que
atuam na região; 3º) viabilizar parcerias entre os movimentos e
organizações, e deles com a UFSCar nos âmbitos de ensino,
pesquisa e extensão. A participação dos movimentos sociais,
organizações e coletivos ocorreu voluntariamente e de acordo
com o interesse em estabelecer parcerias com a universidade.
______________________________________________________________________

¹ LGBT é a sigla de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros


84 | Contextos de Sociabilidade

Após o evento, foi realizada uma pesquisa que analisou o


processo de formação e atuação dos militantes dos movimen-
tos sociais e em que medida a escola e outros espaços edu-
cativos contribuíram com o processo de formação para a mili-
tância. Foram respondidos, durante o evento, 87 questionários.
Dos resultados da análise realizada, um dado que nos chamou
a atenção foi o da participação das mulheres. Dos responden-
tes, 40,69% eram mulheres, e 59,31%, homens. Entende-se
que um número significativo de mulheres militantes participou
do evento (Martins e Mendonça, 2012). No entanto, a espe-
cificidade da participação e militância não foi problematizada
naquele momento.
Tornou-se mais provocador este resultado quando se
constatou que, das 40 organizações e movimentos sociais que
participaram do evento, apenas uma era específica de e para
mulheres, a que tratava de “aleitamento materno”. Identificou-
-se também uma organização não governamental (ONG) que,
dentre diversas frentes, explicitou alguns projetos pelos direi-
tos das mulheres. Ressalta-se ainda que em nenhum dos oito
eixos temáticos trabalhados no evento - nem mesmo os que
tratavam das questões da sexualidade e diversidade -, tinha
como foco o tema da mulher, da mulher lésbica, do feminismo
ou outras questões específicas de mulheres.
Após estes resultados, provocada pela invisibilidade de-
las e respectivas pautas nos encontros dos movimentos sociais
e sindicais realizados com a universidade, surgiu a necessida-
de de se compreender a participação política das mulheres no
contexto da região. Assim, as questões que se colocam são:
como as mulheres produzem suas identidades quando se orga-
nizam em lutas específicas de mulheres, lutas feministas e/ou
por direitos sexuais e reprodutivos em Sorocaba? Que forma-
ção política permeia as práticas delas? Para isto, foi realizada a
presente pesquisa que teve como objetivo analisar as práticas
discursivas produzidas por mulheres que são participantes de
coletivos feministas e LGBT do público especificado, com foco
nas concepções de identidade e sujeito e na história de forma-
ção política dessas mulheres.
Mulheres em movimento - Viviane Melo de Mendonça | 85

2 • Metodologia

Participaram da pesquisa dez mulheres, entre 18 e 35


anos, que fazem parte de coletivos feministas de Sorocaba.
Uma delas também faz parte de um coletivo LGBT. As entrevis-
tas foram semiestruturadas, gravadas e transcritas.
As participantes foram esclarecidas sobre os objetivos da
pesquisa e registraram concordância na participação. Foi acor-
dado que se evitaria qualquer possibilidade de identificação.
Portanto, não serão revelados os nomes e nem dos coletivos e
instituições em que atuam ou estudam.
Sobre os pressupostos metodológicos, a pesquisa visou
a investigar a produção de sentidos na perspectiva da lingua-
gem em ação, que é a linguagem em uso, tomada como prática
social, que implica em “trabalhar a interface entre os aspectos
performáticos da linguagem (quando, em que condições, com
que intenção, de que modo) e as condições de produção (en-
tendidas aqui tanto como contexto social e interacional, quan-
to no sentido foucaultiano de construções históricas)” (Spink,
2010, p.26).
Para esta investigação, outra noção que se tornou im-
portante foi a de posicionamento. Diferentemente de uma con-
cepção de identidade - pautada na ideia de fixidez, mesmida-
de, essência -, a noção de posicionamento, nesta abordagem,
apresenta-se como uma alternativa para um caráter fluído e
contextual das assunções conscientes ou não das pessoas no
processo de interação com o mundo; ou seja, são as manei-
ras com as quais as pessoas constroem realidades sociais e
psicológicas por meio das práticas discursivas. Quando a pes-
soa se posiciona, isto implica em múltiplas narrativas que são
produzidas no processo pelo qual os selves são situados nas
conversações e numa linha de história que é produzida em de-
terminados contextos.
Pretendeu-se, nesta pesquisa, trabalhar com o material
discursivo dentro da interanimação dialógica, buscando o jogo
de posicionamentos de mulheres participantes dos movimen-
86 | Contextos de Sociabilidade

tos feministas e LGBT, de modo a compreender os discursos


de identidade e de “sujeito político” destas mulheres e respecti-
vas trajetórias de formação política.
Os resultados produzidos pela análise interpretativa
das práticas discursivas de mulheres participantes de grupos
feministas e LGBT dialogaram com os pressupostos teóricos
dos estudos e pesquisas feministas que realizam o debate con-
temporâneo sobre “sujeito” e “identidade”, em especial, dos
pressupostos pós-estruturalistas.
Almeja-se, neste sentido, compreender - em um contexto
social, geográfico e histórico do município de Sorocaba², inte-
rior de São Paulo, marcado pelo conservadorismo e situado
na região com o menor IDH deste estado - como as mulhe-
res se constituem como sujeito político e quais jogos de iden-
tidades que são produzidos por estas quando se colocam no
debate e na participação política, para, deste modo, apontar
para algumas possibilidades de compreensão da invisibilidade
das ações delas. A proposta, portanto, configurou-se como um
trabalho que buscou discorrer sobre as relações de poder e
resistências presentes nas suas práticas e nas suas posiciona-
lidades como sujeito.

3 • Posicionalidades de sujeito e identidade nas


práticas política

O debate sobre o sujeito se tornou uma importante ferra-


menta de análise das perguntas suscitadas neste trabalho. Nas
pesquisas feministas, no que se refere a este debate, eviden-
cia-se uma crítica, de diferentes modos, à concepção de sujei-
to como universal, autônomo e dotado de uma racionalidade
absoluta. É uma crítica, tal como descreve Mariana (2005), à
concepção de existência humana como universal, homogênea
e unitária, ou, em outras palavras, a uma concepção de sujeito
própria do pensamento liberal.
______________________________________________________________________

² Sorocaba é um município de São Paulo. Possui 55% de área urbana e 45% de área rural. A po-
pulação é de 586.625 habitantes (IBGE). É o terceiro mais populoso do interior paulista e o quarto
mercado consumidor do estado fora da região metropolitana da capital.
Mulheres em movimento - Viviane Melo de Mendonça | 87

A crítica a este pensamento também foi tarefa das pensa-


doras feministas marxistas, que - para além de uma abordagem
que questiona esta concepção de sujeito universal, utilizando-
-se dos conceitos de classe social, mais-valia e alienação, se-
gundo os quais o sujeito universal era o sujeito do privilégio, ou
seja, de uma classe específica, a burguesia - atribuíram tam-
bém a este sujeito “universal” um gênero, o masculino. Decor-
re, desta perspectiva, a existência da operação de hierarquias
das diferenças de classe e das diferenças sexuais. Revelam,
portanto, que o sujeito universal do pensamento liberal e ilu-
minista é específico, tem uma classe e um gênero (Mariana,
2005).
Com base nesta noção de sujeito, as feministas marxis-
tas se posicionam tendo como uma preocupação central as
mulheres trabalhadoras e, de modo específico, analisam como
a instituição “família” está relacionada ao capitalismo, denun-
ciando de modo fundamental, em muitas de suas abordagens,
o patriarcado.
É interessante observar que algumas entrevistadas desta
pesquisa produziram um discurso em que a concepção de su-
jeito feminista ou militante era a da “mulher trabalhadora” ou se
fundamentava em uma perspectiva marxista:

(...) quando penso no feminismo, penso nas várias cor-


rentes, mas ainda é a que se fundamenta no livro do En-
gels [Origem da Família e da Propriedade Privada]... E,
aí, a gente vai falar mais na mulher trabalhadora, e que é
explorada no trabalho da casa, no trabalho doméstico...
Esse trabalho da mulher, por não ser remunerado, ele
é importante para o capitalismo. Então, quando penso
em feminismo, eu penso no fim do capitalismo, sabe? A
luta feminista converge para isso. A feminista é a mulher
trabalhadora (...). (...) tenho que pensar que a mulher é
a mulher trabalhadora. (E3, coletivo feminista, 22 anos)

Observou-se que, nas histórias relatadas, as formações


políticas destas mulheres se davam em partidos socialistas e
comunistas, movimentos estudantis, bem como em outros mo-
vimentos com pautas predominantemente classistas, antes de
se envolverem com as questões feministas e LGBT.
88 | Contextos de Sociabilidade

O socialismo surgiu primeiro em minha vida porque


eram injustas as relações de classe. Depois, a ques-
tão de ser mulher e a questão de ser lésbica surgiram
depois porque era injusto o papel que temos na socie-
dade, e você tem que lutar para que seja justo (...). A
militância envolve fazer o seu espaço, construir o seu
espaço, a militância envolve você fazer, você construir,
você intervir. A mulher [militante] é a que intervém, é a
que faz, não necessariamente no movimento feminista,
mas de diversas formas (...) o marxismo, Marx e Engel,
a minha definição de militância vem muito deles, porque
comecei ali. (E1, coletivo feminista e LGBT, 22 anos)

No entanto, embora tenham base no feminismo marxista,


ainda incipiente, parecem apontar para uma noção de sujeito
relacional que ainda está pautado por uma concepção “essen-
cialista” (de classe social e gênero) que ainda mantém certa
homogeneidade e unidade. Aqui, nestes discursos, as mulhe-
res são “as trabalhadoras”, marcando uma identidade homo-
gênea de sujeito político, e indicando como a única via de luta
e transformação social - e da própria condição da mulher - a
superação do capitalismo.
As demandas de lésbicas, gays, transexuais, bem como
da mulher negra e indígena, não aparecem como uma pauta
significativa dos coletivos em que as entrevistadas participam,
porém, por outro lado, esta constatação é apresentada com crí-
ticas e indignação por elas. Apontam, com isto, para um equí-
voco nas pautas de lutas travadas pelos respectivos coletivos.

Uma coisa que tenho visto com muita preocupação den-


tro da esquerda é que tem muito machismo e homofobia.
E as organizações de esquerda tendem a ver isto sem
muito espírito de autocrítica, e isto afasta muita gente...
E não só por afastar as pessoas, sabe? Este movimento
da crítica e autocrítica precisa ser feito para a esquer-
da se revigorar (...). (...) eu vejo uma resistência para
falar das questões LGBT na esquerda muito parecida
como a que vejo na sociedade, ou na minha família.
Esta resistência também tem a ver porque muito do de-
bate sobre sexualidade vem de uma linha de pensamen-
to que tem muito conflito com o marxismo, aí, vira um
sectarismo, o que eu não concordo. Tem uma estrada
grande para percorrer... (E3, coletivo feminista, 22 anos)
Mulheres em movimento - Viviane Melo de Mendonça | 89

Uma destas entrevistadas, lésbica, relatou que, quando


militava no movimento estudantil e em um partido comunista,
participou de congresso no Rio de Janeiro de entidades gerais
da União Nacional dos Estudantes (UNE). Neste congresso,
havia uma mulher transexual. Ela percebeu ali, indignada, que
esta pessoa estava sofrendo muita discriminação por parte dos
militantes do partido. Este acontecimento foi apontado por ela
como crucial para o rompimento com o partido comunista do
qual participava. Neste contexto, ainda destacou a falta de li-
berdade para a expressão da própria identidade sexual no par-
tido. A sensação de incompatibilidade para a vivência das lu-
tas socialista, feminista e LGBT, concomitantemente, foi vivida
como um período de crise e afastamento da militância.

Eu fiquei muito brava, foi um momento de ruptura com


o partido porque era um partido de esquerda, socialista,
mas que era machista, homofófico e transfóbico. Isso
me abalou muito, porque a forma como eles trataram
esse colega era desumano. Ela se sentia muito mal no
congresso inteiro. E isto me fez questionar muito o par-
tido (...). (...) este evento fez com que eu começasse a
debater estas causas dentro do partido, só que eu não
tinha voz porque eles ficavam muito presos à questão
da classe. Que engraçado, eu não militei no movimento
LGBT porque não debatia classe, e no partido porque não
debatiam outras coisas, só classe (...). Eu não era assu-
mida dentro do partido, porque não conseguia me assu-
mir [como lésbica] dentro do partido, aí, saí do partido
(...). (...) mas, embora tenha saído do partido, eu acredito
nisso, na importância da revolução, aí, eu fiquei muito
tempo em crise. (E1, coletivo feminista e LGBT, 22 anos)

A perspectiva marxista, tal como entendida por alguns


grupos e partidos, produz uma explicação material a partir de
uma causalidade econômica na qual o sistema de gênero se
interage para produzir experiências sociais e históricas. Scott
(1990), por outro lado, aponta para a necessidade de se rever-
ter e deslocar as operações da construção hierárquica da rela-
ção feminino-masculino produzida apenas por uma causalida-
de econômica; e coloca o gênero como uma categoria analítica
90 | Contextos de Sociabilidade

que, juntando-se às categorias de classe social e raça, faz um


reexame e alargamento das noções tradicionais daquilo que é
historicamente importante. Este parece ser um desafio destes
coletivos aos quais as entrevistadas pertencem.
A rejeição da noção de sujeito universal ou apenas deter-
minado pelo econômico, no entanto, fizeram com que algumas
feministas caíssem em outra armadilha: a busca pelo sujeito
político feminista que tenha uma unidade e coerência (ou mes-
mo racionalidade do que é “ser” mulher), o que redundou em
outro tipo de universalização, a do sujeito “mulher” das feminis-
tas brancas, heterossexuais e primeiro-mundistas. Ainda hoje,
esta concepção é criticada pelas feministas negras, lésbicas e
dos países do Terceiro Mundo. Estas reivindicam que a cate-
goria “sujeito” - como universal, homogêneo e racional - seja
abandonada de vez, visto que cria hierarquias e opressões
(Hooks, 2000). A categoria “sujeito” deve se tornar então mar-
cada pela diversidade, pluralidade e contingência.
Apesar destas reivindicações, ainda se destacam nos
movimentos sociais as hierarquizações destes marcadores de
gênero, raça/etnia, orientação sexual e classe nas definições
das respectivas pautas privilegiadas de luta. Estas hierarqui-
zações também aparecem nos movimentos feministas e LGBT,
objeto dos discursos das entrevistadas, tensionando as políti-
cas de identidade.
Uma das entrevistadas, 20 anos, lésbica, que participa de
um coletivo feminista em Sorocaba criado há três anos, relatou
na entrevista que a pauta das lésbicas nunca foi colocada nas
reuniões e ações do coletivo. A diversidade sexual, sim, era
discutida, mas nunca de modo específico, ou seja, a partir do
ponto de vista e das demandas das lésbicas e bissexuais do
grupo. Ela própria nunca sentiu a necessidade, como se não
fosse ali necessariamente um espaço para esta demanda. O
coletivo é concebido com um espaço de “mulheres feministas”,
onde outros marcadores, como raça, etnia, classe e orientação
sexual, são importantes, mas dizem respeito à sociedade em
geral e não ao grupo em si mesmo.
Mulheres em movimento - Viviane Melo de Mendonça | 91

Outra integrante, 32 anos, heterossexual, do mesmo co-


letivo da entrevistada acima, mostrou no discurso sobre o que é
feminismo uma afirmação da diversidade e pluralidade no mo-
vimento feminista, porém, ainda apontou para a dificuldade que
sentem para colocar em ação este fazer político.

O feminismo é a ideia radical de que mulheres são


seres humanos. Direitos, libertação. É uma luta pra
pararem de explorar tanto. Tem especificidades das
mulheres, e nós temos que estar juntas, as mulhe-
res trans, as mulheres negras, as homossexualida-
des, de classes, e a gente tem que estar junta... É
uma luta com a gente mesmo, com a sociedade, mas
como a gente faz isso, não sei... O feminismo não ex-
clui. Contra todas as opressões de gênero, a gente tem
que lutar contra isso. (E5, coletivo feminista, 32 anos)

No discurso produzido por uma participante de outro co-


letivo feminista, as mulheres lésbicas também não aparecem
com as pautas colocadas, nem mesmo há um debate mais
profundo sobre heteronormatividade. De modo geral, ela com-
preende esta invisibilidade da lésbica e também das negras e
indígenas como uma característica específica de Sorocaba.

Sobre a mulher lésbica, não tem, sempre fica o de-


bate meio raso, sempre o debate de gênero, e não
passa por isso... Em Sorocaba, especificamen-
te, não. Nem o debate da mulher negra ou indíge-
na, só quando vêm pessoas de outras partes, aí, tem.
Mas em Sorocaba não. (E6, coletivo feminista, 35)

É interessante observar que os coletivos LGBT também


são identificados como espaços de invisibilidade da mulher
lésbica, questionando este sujeito político normatizador como
constituído predominantante pelos homens e as próprias pau-
tas, como uma das entrevistadas relatou:

Tem muita lésbica na universidade, mas poucas se en-


volvem no movimento. Começou com uma briga (...) para
saber como a gente ia lidar com o coletivo LGBT. Uma das
coisas que pra mim ficou clara: (...) não ofuscar a mulher
92 | Contextos de Sociabilidade

lésbica dentro do coletivo LGBT. Tinha, sim, que trazer


a visibilidade da mulher lésbica, para que elas se sintam
pertencentes ao movimento LGBT, porque as mulheres
não se sentem. A bandeira do arco-íris não representa as
mulheres. (...) Eu não me sinto representada pelas cores
da bandeira. A gente quer trazer elas e eles para den-
tro do coletivo. (E1, coletivo feminista e LGBT, 22 anos)

Com esta demanda por uma concepção de sujeito mar-


cada pela diversidade, pluralidade e contingência, construíram-
-se críticas às políticas de identidade ou conceitos identitários,
que, para Costa (2002), “já demonstram extrema instabilidade,
fragilidade e vulnerabilidade na sustentação de qualquer tipo
de projeto político de emancipação” (p.70).
Teresa de Lauretis (1999), por conseguinte, argumenta
que a identidade se torna um lugar de múltiplas posições den-
tro do campo social e que a experiência é concebida como um
processo constante de negociações e renegociações das pres-
sões externas e resistências internas. Ela anuncia aqui a pers-
pectiva da posicionalidade do sujeito nos estudos feministas e
inclui a noção de lugar/localização, o lugar da enunciação. A
posicionalidade é construída pelo discurso dentro de um con-
texto político específico, e é também contingente.

O sujeito do feminismo que tenho em mente não é assim


definido: é um sujeito cuja definição ou concepção se en-
contra em andamento, neste e em outros textos críticos
feministas (...). (...) é uma construção teórica, uma forma
de conceitualizar, de entender, de explicar certos pro-
cessos, e não as mulheres” (De Lauretis, 1999, p. 217).

Configurou-se, portanto, a crítica feminista pós-estrutura-


lista à essencialização, que “desconstrói” e descentra a cons-
tituição do sujeito e da identidade, e postula que o sujeito e
as representações dele estão marcados por relações de poder
(Mariana, 2005).
Uma das entrevistadas, quando perguntada sobre a iden-
tidade de gênero dela, apresentou um questionamento e tam-
bém possibilidades de flexibilidade no discurso.
Mulheres em movimento - Viviane Melo de Mendonça | 93

Eu me defino como mulher, sou mulher, nasci mulher...


Embora estive pensando durante a Semana Trans³:
“Será que sou mulher?” [risos] Prefiro me colocar...
Como aquela questão de se tornar mulher. Acho que
me tornei. Cresci e fui criada enquanto mulher. Sofri
as opressões enquanto mulher. Todos os problemas
de mulher, eu sofri. Portanto, posso me classificar en-
quanto mulher (E1, coletivo feminista e LGBT, 22 anos)

Esta é uma das entrevistadas que se fundamentam em


uma perspectiva marxista de mulher militante, o que poderia ser
interpretado apressadamente como uma contradição a certa ten-
dência dela à essencialização da categoria mulher apenas pelo
marcador de classe. No entanto, ela revela também no discurso
a construção de uma posicionalidade no que se refere à prática
política, tal como apontado por de Lauretis (1999). O “ser mu-
lher” é definido pelas contingências, contexto e condição históri-
ca, porém, não certa e segura, sempre passível de dúvida: “será
que sou uma mulher?” Aqui, nesta fala, o “ser mulher” também
é definido por “opressão” e “sofrimento” pelos quais as mulheres
passam em nossa sociedade. Revela, portanto, relações de po-
der que se produzem no cotidiano das respectivas histórias, es-
tão marcados na memória e se tornam elementos constituidores
da identidade de gênero delas.
Outra entrevistada, quando foi falar sobre a orientação
sexual, disse: “eu não sei... Eu acho lésbica, mas me interesso
por alguns meninos...” (E2, coletivo feminista, 25 anos). A fala
expressava uma reticência, parecia não encontrar uma segu-
rança na identidade narrada e tomava uma posição de produzir
uma abertura do desejo para além da identidade. Por outro lado,
no decorrer da entrevista, em diversos momentos, a narrativa
era sobre o processo de se tornar lesbiana, no qual havia uma
tentativa durante a infância e adolescência de encontrar, para
esta identidade, uma coerência com a identidade de gênero,
pautada pela heteronormatividade. Neste período, por já sentir
atração por meninas, tendia a achar que ela deveria ser menino
______________________________________________________________________

³ “Semana Trans” foi uma atividade realizada por um grupo de estudantes da universidade para
debater a transexualidade e identidade de gênero.
94 | Contextos de Sociabilidade

ou um homem. Esta tentativa seguiu até o fim da adolescência,


em outra cidade na qual foi morar, quando longe da família,
pode usar “roupas de homem”. Mas, ao contrário do que es-
perava, não se sentiu adequada. A partir daí, descobriu que o
desejo por mulheres não a obrigava a se tornar do sexo mascu-
lino. É neste momento em que ela assume para si a identidade
“mulher” e “lésbica”, articulando as duas identidades.

Quando fui me assumindo [lésbica], meu estilo foi


mudando porque fui me aceitando mulher. Hoje,
eu adoro usar roupas femininas, tipo saia, adoro.
Eu sempre gostei, mas nunca ia usar, porque não
me via naquilo” (E2, coletivo feminista, 25 anos).

Uma das entrevistadas, referindo-se ao que entende


como mulher, diz:

“a mulher modelo é a Frida [Kahlo]4. Ela era totalmente


livre da questão do rótulo. Ela era livre para ser o que
queria ser. Ela estava para além dos rótulos.” (E6, coleti-
vo feminista, 35 anos)

Ela coloca, no discurso, Frida Kahlo como um modelo que


traz a perspectiva da liberdade e de uma identidade não reifi-
cada pela identidade fixa e essencial, e, assim, a entrevistada
define o próprio conceito de mulher.
Diante destes discursos aqui descritos, parece interessan-
te retomar algumas ideias da filósofa Judith Butler (2003) e a
crítica que faz a qualquer substancialização de gênero e identi-
dade, a qualquer possibilidade de unidade, coerência ou essên-
cia. O que observamos nos resultados desta pesquisa é que os
mecanismos de repressão das diferenças dentro de um grupo
de gênero apenas funcionam como produtores de hierarquias
sociais no jogo das relações de poder existentes. De acordo com
Butler (2003), o que há é a multiplicidade das intersecções cul-
turais, sociais e políticas na qual se constroem as mulheres; e,
deste modo, constrói-se uma tendência para a rejeição na práti-
ca política de qualquer modo de normatização das identidades.
______________________________________________________________________
4
Frida Kahlo, pintora mexicana, 1907-1954.
Mulheres em movimento - Viviane Melo de Mendonça | 95

Um dos elementos aqui questionado pelas entrevistadas,


embora não conceituado, foi o da heterossexualidade compul-
sória. Para Butler (2003), esta é normatizadora das relações de
gênero, e, quando discutimos a questão do sujeito e identidade,
é também um instrumento que busca uma unidade opressora
do que é “ser” mulher na coerência sexo, gênero e desejo - o
que pudemos observar nas falas aqui descritas.
Parece que uma política de subversão das identidades é
proposta como alternativa para a radicalização da democracia.
Deste modo, a análise de como a categoria “mulher” é produ-
zida pelas estruturas de poder, por uma heteronormatividade e
por discursos hegemônicos, deve ser empreendida e, portanto,
não deve encontrar ancoragem nessas estruturas como a pos-
sibilidade, às vezes única, para emancipação.
Neste caso, é o estabelecimento do político no próprio
discurso pelos quais a identidade se articula. Significa reconhe-
cer e analisar as operações de exclusão, elisão e abjeção na
construção discursiva do sujeito, tal como proposta por Butler
(Almeida, 2008).
Dos discursos analisados sobre a perspectiva de sujeito
e a identidade política produzidos pelas mulheres entrevista-
das, podemos entender que a unidade da categoria “mulhe-
res” não precisa ser pressuposta e nem desejada, mas que,
ela própria, na insistência de se definir, causa a fragmentação,
a divisão, a resistência e formação de facções, que são causa-
doras da fragilidade de uma ação política. No entanto, isto não
quer dizer que se deva abandonar a política representacional,
mas, conforme a proposta de Butler (2003), é ter como ponto
de partida o presente histórico, do ponto de vista marxista, para
realizar uma crítica às categorias de identidade que o jurídico
contemporâneo engendra, naturaliza e imobiliza. Neste caso, o
que se torna necessário é repensar as construções ontológicas
na prática feminista, empreender uma crítica radical ao proces-
so de construção de um sujeito feminista.
96 | Contextos de Sociabilidade

Enfim, reafirma-se, com base em vários conceitos e figu-


rações de autoras feministas, que não significa que não exista
o sujeito político ou a prática política. Mas que a prática política
se constitui como uma política de articulação, ou um reassenta-
mento estratégico, ou uma política de coalizões, ou política de
afinidades, sem pressupostos fundacionistas, sem uma política
de identidade. Considera-se aqui que é a diferença que forta-
lece a prática política feminista, uma articulação entre diversas
posições de sujeitos, que produz agenciamentos e resistências
(Anzaldúa, 1999; Braidotti, 1994; Butler, 1998; Mouffe, 1999;
Haraway, 2000).
Esta visão se aproxima da análise de Costa (2002), para
a qual a “mulher” é uma “categoria histórica e heterogenea-
mente construída dentro de uma gama de práticas e discursos,
e sobre os quais os movimentos das mulheres se fundamen-
tam” (p. 71). Seguindo argumento dele, a questão sobre iden-
tidade e sujeito na prática política de mulheres nos coloca em
uma análise de campo histórico-discursivo, em que a história
da categoria é compreendida apenas na relação com as de-
mais categorias, tais como classe, raça, etnia, sexualidade e
regionalidades.

4 • Considerações finais

A presente pesquisa analisou os discursos produzidos por


mulheres que são participantes de coletivos feministas e LGBT
da região de Sorocaba, com foco nas concepções de identida-
de e sujeito e na história de formação política destas mulheres.
As questões aqui colocadas surgiram das discussões dos re-
sultados de outra pesquisa que tratava da formação e atuação
de militantes que participaram do I Encontro UFSCar - Movi-
mentos Sindicais e Sociais da Região de Sorocaba, realizado
em julho de 2011, as quais apontavam para uma invisibilidade
das pautas e da participação de mulheres feministas, lésbicas
e de respectivos coletivos no evento analisado.
Mulheres em movimento - Viviane Melo de Mendonça | 97

Foram entrevistadas dez mulheres, entre 18 e 35 anos.


Todas participam de coletivos feministas de Sorocaba - apenas
uma delas faz parte também de um coletivo LGBT. Este dado
apontou para uma das dificuldades da pesquisa: encontrar co-
letivos, movimento ou organizações LGBT ou de lésbicas com
participação efetiva de mulheres no município. Exceto este, no
qual a entrevistada desta pesquisa participa, nenhum outro foi
identificado até o momento.

Não conheço um grupo lésbico em Sorocaba, vejo para meni-


nos, mas não vejo política para lésbicas... (E4, coletivo feminis-
ta, 35 anos)

Revela com isto, e com as ausências de debates espe-


cíficos sobre as mulheres lésbicas também nos coletivos fe-
ministas, que algumas questões precisam ser mais bem apro-
fundadas: quais os espaços de discussão, debates, articulação
política, ou mesmo de sociabilidade e lazer, em que as mu-
lheres lésbicas de Sorocaba participam? Quais as dinâmicas
que justificam a invisibilidade delas e das próprias pautas nos
movimentos sociais e culturais no município?
No que se refere à formação política das mulheres entre-
vistadas, observou-se que quatro participaram de partidos so-
cialistas e comunistas, movimentos estudantis, bem como em
outros movimentos com pautas predominantemente classistas,
antes de se envolverem com as questões feministas e LGBT,
sendo estas questões suscitadas e aprofundadas nestes es-
paços; as demais entrevistadas nunca participaram de organi-
zações, coletivos ou movimentos sociais; e que o debate e o
desejo de participação política feminista se deram por vivên-
cias pessoais, leituras de livros, música, movimentos culturais
feministas e pelo contato com outras mulheres que se interes-
savam pelas questões feministas. Porém, de um modo geral,
todas relataram que, no que tange à formação e educação,
parece haver carência de espaços de estudos, debate e articu-
lação política sobre temáticas feministas e LGBT na região e,
em específico, ainda mais, sobre a temática da mulher lésbica.
98 | Contextos de Sociabilidade

Conforme relatados pela maioria das entrevistadas, esta lacu-


na pode ser entendida pela cultura e história da própria cidade,
considerada por todas como conservadora. No entanto, esta
afirmação precisa de estudos mais aprofundados e de saber
como ela se articula, de modo mais amplo, com a sociedade
brasileira.

Há muita falta de espaço para se discutir, a cidade é muito


conservadora. Tem a parte religiosa, tem a parte maçônica,
a parte que acha melhor deixar como está, isso de gente
intelectualizada mesmo... Fizemos um festival de gênero
e vieram muitas mulheres de fora, as daqui não... (...)
aqui é tudo camuflado... (E5, coletivo feminista, 32 anos)

Você está lidando com uma cidade que tem aquela men-
talidade que [afirma que] “lugar de mulher é na cozinha”,
que “você tem que se dar o respeito”. E, se tem filho viado,
tem que, pelo menos, se comportar na sociedade. Uma
mentalidade bem provinciana, bem medieval... Tipo: ele
pode até ser gay, mas precisa... Não dá para ser discreto?
Até mesmo as pessoas LGBTs aqui, tipo: “pode ser bicha,
mas tem que ser discreto”. Ser discreto como [se] “ser dis-
creto” resolvesse um problema (E6, coletivo feminista, 35)

Vale ressaltar que todos os coletivos feministas e LGBT


nos quais as entrevistadas participam foram recentemente fun-
dados. Possuem entre um e quatro anos de existência, o que
de certo modo pode explicar a invisibilidade das pautas femi-
nistas e de mulheres lésbicas no I Encontro UFSCar - Movi-
mentos Sociais e Sindicais da Região de Sorocaba. Mas as
falas das entrevistadas, sobretudo as que estão na faixa de 30
anos, também apontam para um crescimento do interesse pelo
feminismo pelas mulheres jovens, o que elas consideram como
positivo e transformador para a cidade.
Está aparecendo esta vontade de querer saber mais, se arti-
cular, de aprender, tanto que tenho feito bastante palestras...
As pessoas querem saber o que as feministas pensam sobre
as coisas... Estou sentindo uma articulação, porque em So-
rocaba não tem muito, o movimento feminista de Sorocaba
é antigo... Aqui, tem mais mulheres de movimentos de mu-
lheres ligadas à filantropia... (E4, coletivo feminista, 35 anos)
Mulheres em movimento - Viviane Melo de Mendonça | 99

(...) mas percebo que várias pessoas têm tomado para


si o debate [feminista], o debate há, mesmo com pau-
tas específicas... Tem aumentado quando compara-
do a quatro anos atrás. (E6, coletivo feminista, 35)

Enfim, os discursos - produzidos sobre identidade e su-


jeito da prática política pelas mulheres aqui entrevistadas - re-
velam que a identidade passa a ser entendida como uma es-
tratégia política pessoal e/ou coletiva de sobrevivência, uma
estratégia múltipla, fluida e contraditória (Costa, 2002). A identi-
dade é uma conquista, um resultado de uma luta constante e é
produzida positivamente nas margens dos discursos dominan-
tes, ou seja, há um posicionamento diante das estruturas de
opressão, que visa à própria superação.
A constituição do sujeito ou da identidade, nesta concep-
ção, aproxima-se da perspectiva de Costa (2002), que pres-
supõe o reconhecimento de camadas de subordinação ou ei-
xos de diferenças (raça, classe, orientação sexual, etc.) que se
articulam com contextos históricos e geográficos específicos,
produzem posições de sujeitos e, por conseguinte, agendas te-
óricas e políticas. Constitui-se, portanto, como uma ampliação
do conceito de gênero, tornando-o heterogêneo, móvel e trans-
formador do campo social.

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brica Braço de Prata, 5 de Abril de 2008.

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100 | Contextos de Sociabilidade

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SPINK, M. J. Linguagem e Produção de Sentidos no Cotidiano. Rio


de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010.


Capítulo 4
Travestis: entre a vulnerabilidade e as es-
tratégias de sobrevivência
Daniela Torres Barros
Luciana Leila Fontes Vieira

O presente estudo fez parte de uma pesquisa de mestra-


do do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPE e
estava inserido no Programa Diálogos para o Desenvolvimento
de SUAPE, mais especificamente o Chá de Damas (Menezes,
Adrião, Cavalcanti et al, 2015), cujo público-alvo foi formado
por profissionais do sexo da sub-região do Cabo e de Ipojuca.
Ocorreu ao longo do ano de 2013, objetivando compreender
as experiências, no espaço escolar, de travestis residentes no
município do Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco. Para
tanto, investigou-se como se deu o acolhimento das travestis,
considerando os aspectos que favoreciam e desfavoreciam a
permanência. Percebemos diferentes experiências escolares
(positivas e negativas) e diversas estratégias de sobrevivência,
porém, constatamos o uso do nome social e do banheiro como
gargalos/crivos que cerceavam as existências delas. Este arti-
go pretende denunciar o alto grau de intensa exclusão e vulne-
rabilidade social por elas vivido, o que, certamente, interfere na
própria inserção no contexto escolar.

1 • Contexto

O município do Cabo de Santo Agostinho é localizado na


Zona da Mata de Pernambuco e é considerado de porte médio,
em termos de habitantes. Em 2012, possuía 189.222 pessoas
(BDE, 2012). Tem como principais fontes de renda a explora-
ção turística das praias, a monocultura da cana-de-açúcar e,
mais recentemente, o Complexo Industrial Portuário de Suape.
Com esse novo investimento, houve mudanças no cenário eco-
nômico.
Travestis - Daniela Torres Barros e Luciana Leila Fontes Vieira | 103

Todavia, essas transformações não parecem ter reverti-


do em diminuição das desigualdades. Observando os indica-
dores socioeconômicos, podemos ver a discrepância entre o
indicador do Produto Interno Bruto (PIB) per capita (que é cal-
culado tomando a produção de riqueza econômica e dividido
igualmente pelo número de habitantes). Em 2010, somava R$
24.194,00 por pessoa, destoando enormemente da realidade
de renda média domiciliar de apenas R$ 745,10 por pessoa
(BDE, 2012).
Além do mais, para as instituições governamentais, a
chegada de uma quantidade significativa de trabalhadores
gerou impactos sociais considerados negativos, tais como: o
aumento de circulação de drogas, de prostituição e de gravi-
dez na adolescência. Esses “efeitos colaterais indesejados do
progresso” geraram a demanda e a iniciativa da Petrobras de
subsidiar o Diálogos, que assumiu a tarefa de minimizar os im-
pactos sociais na comunidade, ao trabalhar com os temas da
saúde do trabalhador, direitos sexuais e reprodutivos, protago-
nismo juvenil e prostituição (Rios et al, 2015).
Vale salientar que nossas interlocutoras invertem um pou-
co a lógica da chegada “messiânica” do capital e a prostituição
como problema social ao narrarem uma mudança substancial
na cultura, na economia do município e na cartografia da pros-
tituição, devido à implantação do complexo portuário. Pois, se-
gundo os relatos delas, houve um cerceamento maior da pre-
feitura no combate à prostituição, associada a ponto de tráfico
de drogas, o que empurrou a maioria das mulheres e travestis
para regiões afastadas do centro urbano, sendo compelidas a
aderir ao regime das casas de prostituição e a se submeter a
relações mais acentuadas de exploração.
Essa mudança dissipou as travestis do centro urbano, que
passaram a trabalhar mais isoladamente, alterando as relações
de coproteção. Provocou uma desarticulação nas redes de cuida-
do entre as mulheres e entre as travestis, o que impactou direta-
mente vidas, esfarelando laços, como também dificultou o nosso
contato com as travestis e a formação dos grupos para construção
das oficinas.
104 | Acesso à educação e saúde

Diante disso, gostaríamos de resgatar as contribuições


de Gyan Prakash (1994), autora que adota a perspectiva do
pós-colonialismo, no que concerne à necessidade de proble-
matizar a tendência histórica e colonialista em se compreender,
avaliar e responder como negativo e insatisfatório o desenvolvi-
mento de uma região sob critérios capitalistas.
Nesse sentido, estávamos em alerta para que a própria
chegada do Programa Diálogos ao Cabo de Santo Agostinho
não se restringisse à missão de mapear, diagnosticar e mitigar
os “problemas sociais” causados pela instalação do complexo.
Afinal, corremos o sério risco de reproduzir um padrão colonial,
higienista, norteado por um viés epidemiológico de agravo/do-
ença e de prevenção.
A existência do Diálogos, no entanto, parece ser o reco-
nhecimento de que o desenvolvimento econômico de uma re-
gião não implica, necessariamente, na melhoria das condições
de vida da população. Pensando em dirimir essa condição de
invasores, de um grupo de “forasteiros intelectuais” que irão
destrinchar e produzir um saber sobre a população da região
de Suape, as estratégias do Chá de Damas, mais precisamen-
te desta pesquisa, seguiram no sentido de buscar pactuar com
as coparticipantes, o quê, como, onde e quando as ações se-
riam traçadas.

2 • Natureza da pesquisa

Tratou-se de uma pesquisa qualitativa, de cunho partici-


pativo, na qual foram aplicados questionários sociodemográfi-
cos e realizadas oficinas com grupos de travestis residentes no
Cabo de Santo Agostinho. As oficinas estiveram ancoradas na
perspectiva de pesquisa participante em Paulo Freire (1984) e
permeadas pela noção de cuidado de si e de práticas de liber-
dade em Foucault (2010).
Em consonância com a proposição de Marcos Benedetti
(2005) em não definir um conceito fechado ou estabelecer um
único modo de ser travesti, adotamos, inicialmente, a autode-
Travestis - Daniela Torres Barros e Luciana Leila Fontes Vieira | 105

nominação das travestis como critério que pode desestabilizar


as concepções estagnadas sobre a travestilidade, o feminino e
o masculino. As nossas interlocutoras foram, portanto, inicial-
mente travestis, todas maiores de idade e residentes no citado
município.
Consideramos o interesse e a disponibilidade de partici-
par da pesquisa como critério na escolha das coparticipantes.
Fomos aceitando a indicação de integrantes por membros do
próprio grupo em formação. Contudo, no segundo encontro,
surgiu uma pessoa que se dizia transexual, a qual acolhemos
no grupo, pois justificou a participação, tranquilamente, dizen-
do: “Há bem pouco tempo, eu fui travesti... Sou solidária a essa
causa”.
Ademais, movimentos sociais e intelectuais engajados
têm questionado o uso das categorias nosográficas travesti,
transexual, intersexo e preferido adotar a denominação trans-
gêneros para falar de sujeitos que transgridem as linhas sociais
que definem o gênero (Bento e Pelucio, 2012). Neste sentido,
as diferenças entre as ditas identidades sexuais são relativiza-
das e é enfatizada a dimensão inventiva dos respectivos mo-
dos de ser. Afinal, nossa intenção não era de criar um discurso
universal ou descobrir verdades sobre o que seria ser travesti,
mas conhecer um pouco as realidades para problematizar.
Os questionários serviram para obtermos algumas infor-
mações a respeito da renda, escolaridade, etnia/raça, religio-
sidade do grupo participante das oficinas. De modo geral, ob-
servamos o baixo poder aquisitivo das integrantes, cuja renda
mensal se situava, em média, abaixo de dois salários mínimos.
Vale salientar que aquelas que se prostituíam tinham uma con-
dição financeira um pouco melhor, pois a renda mensal se situ-
ava entre R$ 700,00 e R$1.500,00.
As atividades laborais se concentraram nas profissões
consideradas eminentemente femininas: quatro delas eram
profissionais do sexo; duas eram cabeleireiras e revendedo-
ras de cosméticos; outra era manicure e fazia programas para
complementar a renda.¹ Todas estudaram somente em escolas
106 | Acesso à educação e saúde

públicas. Quanto ao nível de escolaridade, quatro conseguiram


concluir o ensino médio e três tinham o ensino fundamental
incompleto. A faixa etária variava entre 24 e 37 anos.

3 • Encontro com o campo

A chegada ao Cabo e as oficinas não ocorreram de modo


absolutamente controlado e dentro do planejado. A entrada no
campo se deu através da parceria do Centro de Mulheres do
Cabo que nos conferiu credibilidade e nos separou de um papel
investigativo, policialesco (desconfiança pertinente ao âmbito
da prostituição). Após a troca de e-mails, de telefonemas, de al-
gumas reuniões canceladas, colocaram-nos em contato direto
com uma das travestis da região.
No primeiro contato, em um ponto² em frente a um hos-
pital com nome de santo, numa rua mal iluminada e bastante
movimentada, nós nos apresentamos a uma travesti conside-
rada liderança local. Ela se mostrou extremamente atenciosa
e disponível (mesmo no horário de trabalho) ao explicamos ra-
pidamente do que se tratava o Programa Diálogos, o Chá de
Damas e a pesquisa.
Posteriormente, uma reunião oficial ocorreu no Centro
de Mulheres do Cabo, instituição parceira do Diálogos e de
articulação com a comunidade. Quatro pessoas ficaram inte-
ressadas em conhecer a pesquisa. A intenção era esclarecer
dúvidas, falar da metodologia e dos procedimentos éticos e
técnicos (Termos de Livre Esclarecimento (TCLE), gravação
audiovisual), deixando abertura para sugestões, obedecendo
à importância dada por Freire (1984) da pesquisa ser pactuada
com os sujeitos.
Nesse primeiro momento, resolvemos abandonar as for-
malidades da gravação, dos Termos de Consentimento Livre e
Esclarecido e da aplicação do questionário. Afinal, o intuito era
de sedução (no sentido de uma primeira paquera, se teriam
______________________________________________________________________

¹ Durante a pesquisa, uma das integrantes arranjou trabalho como cozinheira, mas continuou “na
lida” (gíria usada para falar prostituição).
² Local de apresentação de prostitutas para o trabalho sexual.
Travestis - Daniela Torres Barros e Luciana Leila Fontes Vieira | 107

ou não o interesse de continuar conosco), de buscar criar vín-


culos. Apesar dessa escolha, explicamos sobre essa etapa da
pesquisa e os elementos necessários para o desenvolvimento
do trabalho.
Foram devidamente informadas de que, tanto os nomes
sociais, quanto os civis seriam preservados na escrita da dis-
sertação e na publicação de artigos científicos, por meio da
utilização de nomes fictícios (Spink, 2000). Ao longo de todo o
trabalho, no trato com as travestis, buscamos respeitar o uso
do nome social.
Durante a pesquisa, foram realizadas quatro oficinas, com
duração (entre uma hora e meia até duas horas cada) e núme-
ro de participantes variáveis (entre quatro e sete pessoas). Os
trabalhos em grupo foram filmados para facilitar a transcrição,
devido à interposição de falas, e também para evitar a perda
de informações não verbais importantes para a compreensão
do que foi dito.
Fazendo uma clara referência ao subprojeto Chá de Da-
mas, durante os encontros ofertamos um lanche simples com
chá, café, bolo e bolacha, o que tornava as reuniões menos
formais, um bate-papo. Devido à condição econômica precária
das interlocutoras, além desse lanche foi disponibilizada ajuda
de custo para locomoção.
Os dois primeiros encontros ocorreram no Centro de
Mulheres do Cabo (com quatro e cinco participantes). Poste-
riormente, houve uma oficina na Câmara de Vereadores (com
sete integrantes) e as duas últimas ocorreram na Secretaria
Municipal de Educação (com quatro pessoas). As mudanças de
localização se deram levando em consideração a conveniência
do grupo quanto aos horários disponíveis pelas instituições e à
facilidade de deslocamento geográfico das participantes.
A alternância de lugares das oficinas não havia sido pla-
nejada, mas produziu efeitos de visibilidade nesses diferentes
cenários. No Centro de Mulheres do Cabo, representantes des-
ta organização não governamental (ONG) perceberam quão
importante era a articulação com as travestis e que a vulnerabi-
lidade delas se relacionava à discussão de gênero.
108 | Acesso à educação e saúde

Além disso, a partir de oficina realizada na Câmara de


Vereadores – com o objetivo de informar e discutir as legis-
lações referentes às travestis –, as participantes agendaram
reunião com vereador e presidente. Na ocasião, lançaram mão
de material organizado e distribuído em oficina, como docu-
mento base na discussão, juntamente à legislação do Recife de
número 16.7080/2002 (que institui punições para atos de pre-
conceito por orientação ou identidade sexual), disponibilizada
pelas pesquisadoras às participantes.
Como desdobramento dessa reunião, ocorreu uma audi-
ência pública, na qual reivindicaram a necessidade de leis que
instituem sanções a ações de cunho preconceituoso quanto
à orientação sexual ou identidade de gênero. Nesse evento,
cobraram providências das autoridades locais quanto aos vio-
lentos homicídios de homossexuais no município, defenderam
mais empenho na investigação desses crimes, além de mais
reforço nas ações de segurança e de prevenção à violência.
Consideramos que este efeito disparador é desejável e
esperado em uma pesquisa participante, pois ela “se torna for-
madora de pessoas mais aptas a uma integração mais conse-
quente e corresponsável na vida social” (Brandão, 2006, p. 47).
As oficinas que ocorreram na Secretaria Municipal de
Educação possibilitaram ainda a apresentação da pesquisado-
ra e proposta da pesquisa ao secretário da pasta. Esta aproxi-
mação resultou no convite para apresentação dos resultados
junto aos servidores e população locais, criando uma excelente
oportunidade para devolução e a discussão da pesquisa jun-
to à comunidade, etapa que faz parte da produção de um sa-
ber comprometido com transformações locais (Brandão, 2006;
Gergen, 2006).
Travestis - Daniela Torres Barros e Luciana Leila Fontes Vieira | 109

4 • No caminho para a escola há o mundo

A discussão sobre as experiências das travestis nas es-


colas foi radicalmente marcada pelos aspectos apontados pe-
las travestis que interferem, diretamente, na permanência na
escola, tais como o direito de ir e vir e a segurança.
De modo geral, a precariedade das condições de vida
das travestis abre margem para a discussão das políticas so-
ciais que legislam, gerenciam vidas e permitem a assistência
à saúde, à educação, à visibilidade nas ruas, o que nos leva a
refletir como as normas e as relações de poder se operaciona-
lizam (Butler, 2009). Tal discussão pode gerar transformação
social, por meio da subversão e rearticulação de novas práticas
e relações sociais, pois evidencia condicionantes de vidas pre-
cárias. Nesta direção, Alfonso Adac (2004) elenca o esgarçar
das redes de apoio, as dificuldades de entrada no mercado de
trabalho e a baixa escolaridade como fatores que aumentam a
vulnerabilidade das travestis e a probabilidade de desenvolve-
rem problemas de saúde.
Vale salientar que houve relatos sobre o exílio noturno,
ou seja, momento demarcado em que podem sair às ruas com
um pouco mais de tranquilidade. De fato, esta informação sur-
giu quando conversamos a respeito do melhor horário para nos
encontrarmos. Duas das participantes, Xuxa e Blenda afirma-
ram que muitas travestis têm as vidas cerceadas pelo medo de
sair durante o dia, pela vergonha dos olhares insistentes, dos
cochichos, dos xingamentos e das piadinhas, como também
pelo medo da violência física. Chegaram a contar que, ao fazer
feira, durante o dia, era comum serem atiradas frutas e verdu-
ras estragadas contra elas. Ainda assim, muitas enfrentam o
dia a dia nas ruas e procuram tomar esse espaço.
Outro fato chocante ocorreu durante o período das ofi-
cinas, quando houve, de acordo com uma das participantes,
o assassinato brutal de uma colega, conhecida dos membros
do grupo. Segundo relato, o corpo da vítima foi encontrado na
praia (lugar conhecido na região de “pegação gay”) mutilado e
110 | Acesso à educação e saúde

decapitado. Mais estarrecedor ainda (para nós) foi o fato das


participantes não escolherem cancelar o compromisso firmado
conosco e agirem com naturalidade diante de tal atrocidade,
tão corriqueira, tão banalizada.
Nessa situação, fica atestada a vulnerabilidade dos cor-
pos que se situam, mais claramente, fora da norma de gênero
e que arcam com graves restrições nas próprias possibilidades
de existência. Constata-se que algumas vidas são mais bem
protegidas do que outras. Algumas vidas chegam a não ser se-
quer consideradas como vidas e a violência física passa essa
mensagem de desumanização (Butler, 2010b).
Vale denunciar as preocupações das interlocutoras quan-
to ao aumento de violência, de assassinatos cometidos contra
homossexuais na região: “Foram seis homossexuais assassi-
nados no município do Cabo [ano passado]. Com este ano,
mais três. Foi uns oito, eu acho” (Xuxa). Essas mortes passam
a sensação de medo, sobretudo por estarem aliadas à consta-
tação de impunidade e de descomprometimento das autorida-
des responsáveis: “Enquanto o assassino não matar e colocar
uma placa em cima, dizendo ‘É homofobia’, a polícia vai dizer
que não é”. E a seguinte situação: “Cartazes homofóbicos pela
cidade dizendo “Homem com homem é igual a interrogação”, e
outro, ‘Mulher com homem é igual à família’. A Polícia Federal
entrou no caso e não deu em nada.”
Colaborando para a visualização desse quadro de vio-
lência, o Grupo Gay da Bahia (GGB) vem produzindo, desde
a década de 1980, levantamentos de assassinatos e crimes
contra homossexuais no Brasil, entre os quais sublinha espe-
cialmente a violência contra travestis. Nessa direção, a organi-
zação contabilizou na última edição, em 2012, um total de 338
homicídios de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexu-
ais. De tal sorte que ocorre uma morte a cada 26 horas. Sa-
bendo que há subnotificação, a situação é ainda mais alarman-
te. Consequentemente, o Brasil consolida a liderança mundial
em homicídios de homossexuais, com destaque para a região
Nordeste (onde ocorreram 45% dos casos registrados naque-
Travestis - Daniela Torres Barros e Luciana Leila Fontes Vieira | 111

le ano). Confirmando as impressões de indiferença diante das


violações desses corpos, observamos que 80% dos assassina-
tos com vírimas semelhantes em Pernambuco, em 2012, estão
sem resolução ou medidas punitivas (GGB, 2013).
Somando a essa situação, Butler (2009) elenca especifi-
camente o trabalho sexual como uma condição de precarieda-
de por terem de se proteger tanto da violência típica das ruas,
como da perseguição por parte de policiais. Para ilustrar essa
sensação de insegurança e impunidade, as meninas relataram
uma situação em que policiais atiraram bolas de borracha, sem
nenhuma justificativa, em uma delas, que apenas andava na
rua durante o dia: “Dois policiais militar brincando de tiro ao
alvo, não foi, mona? Mirou pro lado da Bruna com aquelas boli-
nhas verde. Bicha, foi tão rápido! Bicha, queimou!”
Assim se reeditam, cotidianamente, a desumanização e
a constatação de que há vidas que são menos importantes de
ser preservadas e que não há a quem recorrer, pois aqueles
que deveriam proteger são os próprios agressores. Visualiza-
mos aqui o outro lado da moeda da governamentalidade, no-
toriamente tida como gestão das populações e do biopoder,
cujo objetivo seria a garantia e expansão do tempo de vida,
mas que, segundo Butler (2008a), teria também a dimensão do
deixar morrer, uma maneira silenciosa de matar, de gerir quais
corpos devem ou não ser cuidados. Para a autora (2010), a via-
bilidade de nossa individualidade depende de como as normas
sociais nos constituem. Dito de outra forma, a violência de gê-
nero (pautada no referencial heteronormativo) conduz a vidas
de exclusão, espécie de suspensão da vida, ou de sentença de
morte sustentada socialmente (Butler, 2008).
A violência contra os corpos produz corpos abjetos. Ela
surge como uma tentativa de restaurar a ordem, de convertê-
-los em irreais e impossíveis, ratificando a norma. Os atos de
violência, portanto, que acometem as minorias sexuais, de-
monstram a necessidade urgente de estabelecer um tipo espe-
cífico de política que favoreça a apreensão do ser humano na
respectiva vulnerabilidade – carente de proteção e de reconhe-
112 | Acesso à educação e saúde

cimento público, salientando os aspectos físicos, a relevância


do contexto socioeconômico e as relações interpessoais para
a sua sobrevivência (Butler, 2010b; Cavarero e Butler, 2007).
Paradoxalmente, estes atos de violência tornam evidente
a condição de vulnerabilidade humana e, consequentemente,
o reconhecimento da responsabilidade coletiva na formação de
uma prática de cuidado: “Os corpos devem, todavia, ser apre-
endidos como algo que se entrega para ser cuidado” (Butler,
2010, p. 44, tradução nossa). Em outras palavras, a vulnerabi-
lidade convoca a dimensão ética do cuidado, pois “implica re-
almente uma obrigação ética, uma atenção especial diante da
precariedade da vida, uma responsabilidade para encontrar as
condições em que essa vida frágil possa prosperar” (Cavarero
e Butler, 2007, p. 653).
Juracy Toneli e Marília Amaral (2013), no texto Sobre Tra-
vestilidade e Políticas Públicas: como se produzem os sujeitos
da vulnerabilidade, enfatizam a dimensão política e econômica
da noção de vulnerabilidade. Neste sentido, apontam a neces-
sidade imperiosa de romper com o silêncio sobre a violência
contra esses corpos; ou seja, mapear e expor as vulnerabilida-
des da população de travestis e de transexuais contribuiriam
para “a ampliação e facilitação de acesso aos direitos dessa
população” (Toneli e Amaral, 2013, p. 45).
Ademais, a sintonia dessa perspectiva com a realidade
do Cabo é enorme. Lembramos quando Xuxa afirmou, cate-
goricamente, que elas são pessoas e que os outros a tratam
como se não fosse humana, como se fosse menos humana:
“Conscientizar as pessoas de que travesti sente dor como qual-
quer outra pessoa sente, sofre como qualquer outra pessoa
sofre, e que não é diferente de ninguém, sofre como todo mun-
do sofre.” Ou seja, também perece e também precisa de cui-
dado. Ou na afirmação da humanidade pelo reconhecimento
da própria vulnerabilidade, pertencente a todo ser vivente: “É
a mesma cor do sangue que corre em mim, corre neles, tudo
vermelho” (Bárbara).
Travestis - Daniela Torres Barros e Luciana Leila Fontes Vieira | 113

A constatação de Nara de que “Infelizmente, pra socieda-


de, somos ninguém, essa é a realidade” resume uma verdade
árdua destinada aos corpos abjetos. A abjeção nomeia esse
passo ao largo, essa zona proibida de corpos que habitam lu-
gares inóspitos e inabitáveis. Para Julia Kristeva (1988), a ab-
jeção é a zona da negação que abarca o proibido e representa
as barreiras culturais.
A formação de sujeitos dentro da norma exige a identi-
ficação com um sexo e forma um campo de abjeção, um fan-
tasma que provoca repúdio, sem o qual o sujeito da norma não
emerge (Butler, 2002b). A abjeção aterroriza, causa horror e
rejeição, mas seria um elemento crucial, que demarca frontei-
ras e contribui para a constituição de subjetividades normais,
desejáveis por meio da veemente negação. Assim sendo, refle-
timos sobre como as normas criam marginalidades e somente
existem por causa delas.
Neste momento, Xuxa relativiza e aceita a existência
de normas, ao afirmar que o preconceito pode existir em dife-
rentes níveis e por diversas razões (gordo, preto, pobre, feio).
Mas, traz a questão ética, ao ratificar que não podemos deixar
de respeitá-la. Saindo do lugar de somente vítima, ela assume:
“Eu mesma já fui preconceituosa de não querer ver a bichinha
mais nova, de não gostar da bicha mais velha, mangar da ve-
lha, não querer a novinha.” E ainda concluem que “preconceito
todo mundo tem dentro de si mesmo” (Xuxa) ou “infelizmente o
preconceito não deixa de ser” (Nara).
De certa maneira, todos/todas estamos enredados em
normas, em padrões. Cabe, no entanto, refletirmos perma-
nentemente a respeito das consequências, dos efeitos desses
padrões e normas para poder revê-las e fazer deslocamentos
em algumas delas. No entanto, Butler (2010) considera que,
quando se trata de travestis, transexuais e intergêneros, a vio-
lência é maior, por serem figuras que transitam e violam mais
visivelmente as normas de gênero.
114 | Acesso à educação e saúde

Nesse contexto, as noções identitárias, padronizantes e


patologizantes sobre as travestis também nortearam posturas
e ações excludentes e violentas.

5 • A comédia, o engano aos sentidos e o desvio

A dimensão da comédia, daquilo que é absurdo, do extra-


ordinário e do inesperado apareceu associada à figura da traves-
ti: “parece que quando chega uma travesti... parece que chega
uma palhaça!” Ela chama a atenção, causa cochichos, olhares,
risadas: “... o povo pensa que a travesti é como uma palhaça”
(Bárbara). Na fala de Xuxa, “travesti nunca vai ser... travesti sem-
pre vai ser a estrela de qualquer lugar, a gente nunca vai ser...
as pessoas são um rosto... é uma pessoa normal no meio da
multidão; a gente, quando chega, é o centro das atenções”.
Esse frisson provocado pela presença de uma travesti nos
remete à ideia de um ser que paradoxalmente assusta, encanta
e seduz, como descrito por Bárbara: “A gente tenta levar a vida
como uma pessoa normal, porque, pra comunidade, a gente é
uma coisa do outro mundo, não se acostuma, não se habitua
com a gente não”, bem como a figura mitológica da hermafrodita
descrita por Leite Junior (2011).
Outra dimensão da comédia seria o uso do humor por elas
como uma estratégia, um modo de viver mais leve. Ao longo das
oficinas, aprendemos bastante com o grupo a buscar ser mais
leve e mais alegre diante da vida. Apesar das inúmeras adver-
sidades enfrentadas, o grupo se mostrava sempre bastante sa-
gaz, irônico e divertido.
Xuxa nos contou uma história de uma amiga: “Ela pas-
sou pelo ponto de ônibus. ‘Seu veado!’ Ela voltou. Aí, ela disse
assim: ‘Quem foi que disse que eu era veado?’ Aí, um homem
disse assim: ‘Foi ele’ (bem baixinho). ‘Acertou!’ (Risos) E foi sim-
bora! E se ela fosse bater boca, mona?” A sensação que nos
dava era de que não valia a pena viver de modo tão sério, tão
pesado. Ao compartilharem as próprias vidas, as pessoas vão
se dando conta de que o sofrimento que as atinge não é o único,
não é sempre o maior.
Travestis - Daniela Torres Barros e Luciana Leila Fontes Vieira | 115

Havia muitas brincadeiras, piadas, mesmo quando falá-


vamos de situações extremamente difíceis. Então, poderíamos
nos perguntar se não se trataria de uma defesa egóica, de uma
negação. Diante dessa questão, responderíamos que, se fosse
uma defesa, parecia uma estratégia bastante eficaz para lidar
com tamanhas adversidades. Estratégias que convocam Paiva
(2008, p.67) a pensar na “artificialização da vida, humor, cria-
ção, paródia, como remédio aos afetos tristes.”
Ademais, nascida a partir dos guetos, das comunidades
gays, de prostitutas, de excluídos, a proposta da teoria queer é
usar o humor, a sátira e a paródia como estratégias de suspen-
são e reflexão do que se conhece como realidade. Uma manei-
ra eficaz de realizar deslocamentos no discurso, por subverter
o sentido valorativo de negatividade e, com isso, reinventar ou-
tros olhares.
O humor e a ironia, portanto, além de potencialmente pro-
duzirem deslocamentos, por subverterem bom/ruim, negativo/
positivo, podem ser uma maneira de dizer algo difícil de ser
dito: “É possível perceber potencial subversivo na ironia e no
humor e esses, muitas vezes, podem constituir formas privile-
giadas de dizer o que, de outro modo, não pode ser dito” (Lou-
ro, 2009, p. 138).
Por vezes, a indiferença parece ser uma forma de pou-
par energia, de evitar desgaste: “Eu sei que a gente incomoda,
Dani, e eu vou brigar com o povo? Vou nada!” (Xuxa). Ou mais
adiante: “Nem toda hora, Nara, você tem aquele tempo, você
entendeu, Dani? De ‘tá batendo de frente, de estar discutin-
do. Você termina perdendo seu tempo, você tem outras coisas
para fazer.” Mas, essa leveza pode recair em certo descaso.
Expressões como “nem ligo” e “eu até gosto”, porque ti-
ram algum benefício residual de determinada situação, falavam
de uma tentativa de não se abalar tanto, diante da cotidiana
violência. Todavia, trata-se de uma estratégia que, se muito re-
petida, pode ser por demais apaziguadora, pois, se evitarem
constantemente os conflitos, a tendência é a perpetuação des-
se status quo.
116 | Acesso à educação e saúde

No discurso de Nara, as travestis são vistas como criatu-


ras ardilosas que buscam enganar os sentidos, com a intenção
de confundir e desestabilizar as pessoas: “Parabéns! Você me
enganou” – fala irônica de um senhor para com Nara, por ter
pensado que lidava com uma mulher “de verdade”. Como se
houvesse um sexo verdadeiro descoberto por detrás dos ape-
trechos e gestos considerados femininos e a travesti estivesse
brincando com esses símbolos, ludibriando, fazendo-nos inten-
cionalmente cair em um erro de julgamento, da razão, dentro
de uma lógica de binarismo sexual e da heteronormatividade.
Curioso notar que a definição da palavra travesti surge
no dicionário de língua portuguesa enquanto disfarce, vestir-se
de acordo com um sexo que não se pertence (Michaelis, 2000).
Como se quisesse enganar o outro, usando vestes opostas à
prescrição social.
Retomando historicamente esses sentidos da dúvida,
encontramos fortes valores morais associados à necessidade
de saber de um sexo-verdade. Essa sede de verdade sobre o
sexo adentrou no discurso científico sob diferentes formas: de
doenças a serem tratadas, de um sexo verdadeiro a ser desco-
berto pela ciência, aliado ao imperativo de um único sexo a ser
assumido pelo indivíduo (Foucault, 2011b).
Além do mais, na lógica binária do sexo único do indiví-
duo, a figura hermafrodita se torna apenas mitologia longínqua,
“não mais o incômodo de um ser intermediário, mas o impasse
de um ser impossível. Não há mais lugar na ciência para al-
guém com os dois sexos/gêneros” (Leite Júnior, 2011, p. 59).
Nesse âmbito determinista, a associação entre um desvio
do comportamento heteronormativo e a criminalidade perma-
nece nos discursos sobre as travestis. São vistas como seres
que passam uma mensagem de ameaça para a integridade fí-
sica das pessoas, da sociedade, seres à margem, verdadeiros
marginais: “O travesti na sociedade brasileira é de forma ge-
ral marginal... Travesti rouba, travesti mata, travesti faz isso”
(Nara). Ou no relato de Luana: “A gente é ladrão, marginal.
Pronto, se tiver um grupinho, se a gente tivesse ali fora, pas-
Travestis - Daniela Torres Barros e Luciana Leila Fontes Vieira | 117

sassem: ‘Ali’tá bom de separar’. Ligam pro 190, mulher! Para


um carro do lado: ‘‘tá tendo reunião aí, é?’ Já aconteceu co-
migo.” Semelhante visão, relacionada à marginalidade, confu-
são e baderna, foi constatada por Rubens Ferreira (2009), em
pesquisa realizada com a comunidade ao redor de um notório
ponto de prostituição de travestis em Fortaleza, Ceará.
Parece-nos que a travesti comete, de antemão, um crime
fundamental e inalienável – a transgressão das fronteiras de
gênero – e isso as torna eternas fora-da-lei e criminosas para o
imaginário coletivo enquadrado no discurso jurídico, da manu-
tenção de norma, das regras.
Na obra Os anormais, de Foucault (2010), as travestis
podem ser consideradas como uma das monstruosidades de
nosso tempo, figuras assustadoras, que fogem às normas, mas
que, ao mesmo tempo, e por isso mesmo, reificam-nas. Além
disso, tudo o que foge à racionalidade vigente é jogado para a
dimensão da loucura, da aberração como modo de preserva-
ção da norma e da razão (Foucault, 2010).
Percebe-se, a partir da análise de Foucault (2010), que
as categorias hermafrodita e andrógino passaram ao discurso
cristão com ares de periculosidade e de pecado. No cristianis-
mo, a ambiguidade, o duvidoso e o pecaminoso eram repre-
sentantes de uma sexualidade considerada exacerbada; uma
criatura com características físicas dos sexos (seios e pênis)
virou sinônimo do diabo, e a certeza, como a verdade, era a
manifestação de Deus em perfeição, arrodeado de anjos asse-
xuados (Leite Júnior, 2011).
Com base nesse mesmo entendimento, Leite sugeriu
repensar os limites da categoria humana com a relação que
temos com os nossos monstros – que funciona como outra ca-
tegoria de inteligibilidade, que alegoriza e aterroriza a saída da
norma (Leite Júnior, 2012). Faz refletir na maneira de nos re-
lacionarmos com os “outros” que criamos e mesmo na neces-
sidade desse e de alimentarmos o medo infantil de criaturas
tenebrosas, fora da norma, como mecanismo de controle de
subjetividades enquadradas, encarceradas.
118 | Acesso à educação e saúde

Diante de acusações de cunho moral e religioso, Carla


costuma se defender da seguinte maneira: “Digo logo: atire a
primeira pedra quem não tiver pecado”, colocando-se como
igualmente errada, pecadora. Contudo, a tentativa de se afirmar
pela via da igualdade, não obstante, recai no anúncio humanis-
ta de que somos iguais e necessariamente reifica a norma. A
estreita relação entre norma e igualdade é problematizada por
David Blacker (2011, p. 159), na qual a afirmação da igualdade
torna-se uma reafirmação da norma:

Quando a conformidade torna-se a norma reinan-


te (talvez, inicialmente, uma mudança quase imper-
ceptível no ideal da igualdade), começa um proces-
so que leva ao alinhamento e a uma ordenação cada
vez mais estreitos de acordo com aquela norma.

Ou seja, o normal e a igualdade andam de mãos dadas,


estabelecendo parâmetros. Esse tipo de crítica se aproxima da
produzida pelos estudos queer, que propõem não a defesa de
uma igualdade, mas a valoração das diferenças e compreen-
são dos aspectos históricos e relações de poder que a aco-
modam como tal (Furlani, 2005), bem como na proposta de
feministas com influências no pós-estruturalismo, como Brah
(2006), Nogueira (2008), Scott (1999b) e Pelúcio (2009).

6 • Considerações

Nesse estudo, problematizamos sobre as condições de


vida de travestis residentes no Cabo. A partir dos diferentes
relatos, verificamos como variados discursos posicionam as
travestis fora da norma, por meio de atribuição de vidas menos
valoradas socialmente. Ora, um elemento que nos inquietava
era anterior às penúrias escolares, ou seja, dizia da dificuldade
de circular nos espaços públicos, de sofrerem violência ver-
bal, física ao tentarem, simplesmente, andar pela cidade. Essa
constatação nos fez indagar sobre o lugar que elas ocupavam
e nos motivou a escrever a respeito.
Travestis - Daniela Torres Barros e Luciana Leila Fontes Vieira | 119

Todavia, visibilizar tal situação é somente um dos ele-


mentos relevantes dessa pesquisa. Sendo assim, seria inte-
ressante uma ampliação dos investimentos em pesquisas/in-
tervenções que abordem a questão da travestilidade sob outros
aspectos, diferentes da vida na prostituição, das técnicas de
transformação corporal, a fim de nos ajudar a compreender os
efeitos da exclusão social, contribuindo para a produção de no-
vas configurações, táticas e técnicas de si.
Este trabalho, outrossim, ofereceu acesso ao discurso ju-
rídico como uma possível ferramenta de aquisição de direitos,
de esclarecimentos, de modificações em posicionamentos – o
que nos leva a pensar na pesquisa como um ato eminentemen-
te político e, como tal, demanda algum retorno mais palpável
para a comunidade pesquisada (não no sentido da disposição
de soluções imediatistas, mas de uma troca de saberes que as
favoreça). Nesse plano, sentimos a necessidade de mais pes-
quisas na área da psicologia que tratem dos aspectos teórico-
-metodológicos de cunho interventivo, que indiquem caminhos
e sugiram novas maneiras de trabalhar.
Do ponto de vista macropolítico, consideramos essen-
cial um maior investimento, sobretudo nos recursos humanos
e materiais didáticos. Iniciativas que promovam uma maior di-
vulgação de legislação pertinente; a capacitação ampliada de
profissionais da educação sobre diversidade sexual, direitos
humanos, sexualidade, gênero; a elaboração de materiais in-
formativos e de sensibilização (cartilhas, cartazes, documen-
tátios, curta-metragens, etc). Para tais objetivos, sinalizamos
a indispensabilidade da aproximação com ONGs, serviços go-
vernamentais, academia e movimentos sociais, contribuindo
também para a construção de políticas, estabelecendo redes
de apoio e disparando discussões producentes.
Em suma, foi muito importante discutir com elas sobre
esse contexto e pensar em maneiras e estratégias de resistên-
cia. Um exemplo disso foi que, em decorrência dos encontros,
elas passaram a fortalecer laços de amizade que repercutiram
na ampliação das próprias redes de cuidado. Destarte, pude-
120 | Acesso à educação e saúde

ram repensar o lugar cristalizado de travesti como sinônimo de


prostituição e se verem exercendo também outras atividades/
funções sociais, inclusive no âmbito político.

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Capítulo 5
A heteronormatividade na escola e os desa-
fios para a construção de processos educa-
tivos voltados à garantia dos direitos sexuais
de crianças e adolescentes¹
Marivete Gesser
Leandro Castro Oltramari
Gelson Panisson

1 • Introdução

Desde a emergência dos Parâmetros Curriculares Nacio-


nais, nos quais se destaca, no caderno referente à temática da
sexualidade, que esta deve ser trabalhada em todas as disci-
plinas de forma transversal, inúmeros estudos têm surgido com
a finalidade de auxiliar na construção de pressupostos teórico-
-metodológicos voltados à formação de educadores no seg-
mento. Todavia, as pesquisas que vêm sendo realizadas nas
escolas brasileiras apontam grandes desafios a serem trans-
postos para a promoção de uma educação voltada à garan-
tia dos direitos sexuais e reprodutivos no âmbito em questão.
Neste sentido, autores como Seffner (2013), Costa (2012), Alós
(2011) e Louro (2008) têm apontado que as práticas pedagó-
gicas abordando a sexualidade, ao contrário do que preveem
os documentos oficiais, têm fomentado predominantemente a
patologização e o preconceito contra pessoas que divergem do
modelo heteronormativo.
Além disso, há um processo de pedagogização dos cor-
pos e das sexualidades voltado à manutenção de padrões bi-
nários de masculinidades e feminilidades, os quais são con-
siderados saudáveis e legítimos perante a Igreja e o Estado.
______________________________________________________________________

¹ Agradecemos aos bolsistas de pesquisa do curso de Psicologia da UFSC Luiz Henrique Fernan-
des dos Reis e Alisson de Abreu pela colaboração na realização das entrevistas e transcrições das
informações desta pesquisa.
A heteronormatividade na escola - Marivete Gesser et al. | 125

Esse processo está presente nos variados contextos sociais


e contribui para a manutenção de binarismos e fundamenta-
lismos relacionados ao gênero e à sexualidade. Ademais, as
Pedagogias Culturais corroboram o adestramento do olhar,
direcionando o que é considerado saudável e legítimo para a
conduta de nossos alunos e alunas. Neste sentido, Alós (2011)
destaca que

os discursos religiosos, as morais hegemônicas das clas-


ses dominantes, e mesmo algumas teorias pedagógicas,
sociológicas e biológicas exercem suas funções de ‘pe-
dagogias culturais’, definindo o que deve ser considera-
do como um comportamento masculino ‘saudável’ ou um
comportamento feminino ‘saudável’ (Alós, 2011, p. 425).

Destaca-se ainda que esse processo corrobora a manu-


tenção das desigualdades de gênero (Alós, 2011) e do precon-
ceito aos sujeitos que desviam desses padrões (Costa, 2012).
Partindo do pressuposto de que as(os) professoras(es)
se constituem sujeitos atravessados pelos discursos morais,
religiosos e biomédicos acerca da sexualidade, e de que as
próprias concepções sobre o tema vão constituir as práticas em
sala de aula, foi realizada uma pesquisa que teve como objeti-
vo estudar as concepções de sexualidade de professoras(es)
que atuam na educação básica de uma capital do Sul do país.
Neste ensejo, far-se-á um recorte no qual serão focalizados os
resultados acerca da concepção heteronormativa de sexuali-
dade explicitada nas falas dos entrevistados e as implicações
desta nas práticas pedagógicas. A demanda pela realização da
pesquisa surgiu a partir de uma parceria entre a universidade
e o município onde ela está inserida, quando a Secretaria Mu-
nicipal de Educação solicitou uma avaliação de como a sexu-
alidade vinha sendo abordada, para, com base nisso, elaborar
ações de formação de docentes.
Acredita-se que a identificação do modo como estes con-
cebem a sexualidade pode contribuir para a construção de pro-
postas de formação inicial e continuada, com base em uma
126 | Acesso à educação e saúde

perspectiva ético-política acerca deste tema. Essa, segundo


Gesser et al (2012), volta-se à desconstrução das significações
de gênero e sexualidade opressoras das pessoas que não se
encaixam no padrão heteronormativo, à desnaturalização das
violências, à ampliação da autonomia, à garantia dos direitos
sexuais e reprodutivos e à diminuição da vulnerabilidade dos
sujeitos que expressam as próprias sexualidades de forma di-
vergente do padrão heterossexual.
Diversos estudos apontaram que os profissionais da edu-
cação têm apresentado muitas dificuldades na implementação
do que propõe o caderno de orientação sexual dos Parâmetros
Curriculares Nacionais, a Política de Prevenção e Combate à
Homofobia e demais documentos oficiais (Seffner, 2013; Ges-
ser et al, 2012; Nardi e Quartiero, 2012; Avila, Toneli e Andaló,
2011). Os discursos morais, religiosos e biomédicos – os que
negam a existência da sexualidade na infância e deslegitimam-
-na na adolescência – têm produzido efeitos voltados à patolo-
gização das expressões de sexualidade que fogem ao padrão
heteronormativo.
Em pesquisa de Almeida et al (2011) com professoras(es)
de um município do Nordeste do Brasil, os autores identifica-
ram que estes profissionais abordavam as discussões sobre
sexualidade somente em momentos pontuais quando se depa-
ravam com tais situações no cotidiano escolar. Além disso, os
entrevistados relatavam dificuldades do ponto de vista pessoal
e técnico para abordar tal temática em sala de aula, o que pro-
duzia como efeito a supressão da discussão de forma sistema-
tizada no espaço.
Rohden (2009) realizou uma pesquisa com os profissio-
nais da educação participantes do Curso de Formação Gêne-
ro e Diversidade na Escola, evento financiado pelo Governo
Federal com intuito de formar docentes para abordar tais te-
máticas onde lecionavam. A avaliação acerca dos fóruns de
discussão realizados na plataforma virtual do curso evidenciou
que, principalmente quando proposta a discussão acerca das
diferentes expressões de sexualidade, os comentários das(os)
A heteronormatividade na escola - Marivete Gesser et al. | 127

professoras(es) eram pautados em posturas pessoais ancora-


das em discursos religiosos e biomédicos, os quais corrobora-
vam a naturalização da heterossexualidade como norma e das
diferentes expressões sexuais como desvio. Esse dado tam-
bém foi identificado em um estudo realizado por Avila, Toneli
e Andaló (2011) junto a profissionais que atuam na educação
básica.
Nesta pesquisa, entendeu-se sexualidade como um fe-
nômeno complexo e multifacetado, que incorpora aspectos
culturais, históricos, biológicos e políticos que atravessam e
constituem a experiência dos sujeitos nesse âmbito. Não nega-
mos a materialidade do corpo, mas destacamos, com base em
autores como Laqueur (2001) e Butler (2003), o quanto essa
materialidade é discursivamente produzida e atravessada por
relações de poder, as quais definem os corpos que importam
na arena social e política. Destacamos ainda que, por mais
que haja discursos voltados à normalização da sexualidade,
tentando o tempo todo produzi-la performativamente, os sujei-
tos resistem a esses produzindo formas diversas de vivenciá-
-la (Foucault, 1988), o que impossibilita a universalização dos
comportamentos sexuais. Ressalta-se também a transversali-
dade da sexualidade com os marcadores identitários de gêne-
ro, etnia/raça, classe social, geração, orientação sexual, entre
outros que constituem a subjetividade.

2 • Método

A presente pesquisa foi realizada a partir de uma solici-


tação da Secretaria Municipal de Educação de uma capital do
Sul do Brasil. O pedido foi feito pelos gestores dessa pasta, no
intuito de avaliar o impacto de uma lei aprovada pelo municí-
pio que prevê a discussão de temas como gênero e emancipa-
ção feminina nas escolas, sendo essa uma atribuição das(os)
professoras(es) de História, Geografia, Língua Portuguesa e
Ciências.
128 | Acesso à educação e saúde

Considerando que, como base nos autores pós-estru-


turalistas como Butler (2003) e Louro (2010), não há como
dissociar gênero e sexualidade, optou-se por incorporar essa
segunda categoria também na pesquisa, buscando analisá-las
de forma indissociável. Por meio das análises das informações
obtidas, foram identificadas três categorias no que se refere às
concepções de sexualidade, a saber: concepção preventivista,
concepção heteronormativa e concepção de democracia sexu-
al. Neste texto, abordaremos as informações obtidas acerca da
concepção heteronormativa de sexualidade e as implicações
desta nas práticas pedagógicas.
Após a aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética
com Seres Humanos da Universidade (Parecer de número
34567/2012), em parceria com a Secretaria Municipal de Edu-
cação, foram mapeadas 12 escolas, situadas nas regiões nor-
te, sul, leste e central do município. Com base nisso, foi reali-
zado o contato com as unidades para posterior agendamento
das entrevistas.
As (os) professoras(es), no momento do convite, recebe-
ram duas cópias do Termo de Consentimento Livre e Esclare-
cido, o qual explicitava os objetivos e procedimentos da pes-
quisa, bem como garantia o sigilo das informações e explicava
que elas seriam utilizadas somente para fins de pesquisa e que
as identidades seriam preservadas. Após a leitura deste, eles
tiveram a possibilidade de escolher participar ou não da pesqui-
sa. Dos 24 convidados, um escolheu não participar e os demais
aceitaram.
As entrevistas foram realizadas nas escolas onde os pro-
fessores trabalhavam, em sala reservada e de forma individual.
Elas foram gravadas para posterior transcrição com a autoriza-
ção dos participantes. No momento da realização, buscou-se,
além das concepções de gênero e sexualidade, a obtenção de
informações como: área de formação, tempo de docência, tipo
de vínculo empregatício (se assessor temporariamente con-
tratado ou professor(a) efetivo(a)), idade, religião, estado civil,
conhecimento acerca dos documentos oficiais e acesso à for-
mação inicial e formação continuada em gênero e sexualidade.
A heteronormatividade na escola - Marivete Gesser et al. | 129

No que se refere ao perfil dos participantes, esses tinham


idades variando entre 25 e 66 anos e experiência na área da
educação variando entre quatro meses e 33 anos. Em relação
à religião declarada por eles, dez se caracterizaram como não
tendo religião, nove como católicos, dois como protestantes,
um como evangélico, um como cristão e uma como espírita.
No que se refere ao conhecimento que os entrevistados
relataram ter acerca dos documentos oficiais sobre gênero e
sexualidade, apenas cinco dos 23 entrevistados afirmaram que
conheciam, até o momento da entrevista, os PCNs e/ou outros
documentos norteadores da atuação em relação a esses temas
na escola, sendo que dois deles afirmaram ter apenas conhe-
cimento superficial acerca dos PCNs. Em relação ao acesso à
formação inicial e continuada em gênero e sexualidade, apenas
nove (na modalidade inicial) e sete (na modalidade continuada)
dos 23 entrevistados relataram ter acesso, sendo que, nessa
última modalidade, um participante disse que teve apenas uma
palestra, outro apenas um curso intensivo e outra teve um cur-
so, mas não se lembra sobre o conteúdo.
As informações foram obtidas por meio de entrevistas
semiestruturadas, gravadas e analisadas posteriormente por
meio da técnica de Análise de Conteúdo temático do tipo ca-
tegorial pautado em Bardin (2000). Quanto aos procedimentos
utilizados na análise, primeiramente realizou-se a transcrição
detalhada das falas. Em seguida, foi realizada a leitura flutu-
ante do material, buscando-se identificar os elementos de con-
teúdo a serem submetidos posteriormente à classificação por
categorias. Por fim, esses conteúdos foram agrupados em ca-
tegorias de análise. Destaca-se que, para a garantia do sigilo,
foram atribuídos nomes fictícios aos participantes da pesquisa.

3 • Resultados e discussão

Serão apresentados e discutidos os resultados referen-


tes ao atravessamento da concepção heteronormativa nas fa-
las dos sujeitos e os efeitos nas práticas pedagógicas. A he-
130 | Acesso à educação e saúde

teronormatividade foi entendida, com base no pensamento de


Judith Butler (2003), como as relações de poder entre homens
e mulheres e entre homossexualidade e heterossexualidade,
demonstrando a construção do dispositivo da sexualidade
como marcado pela norma heterossexual. Deste modo, a he-
teronormatividade se caracteriza como uma prática que pro-
duz discriminação baseada na suposição da normalidade da
heterossexualidade e dos estereótipos de gênero. Portanto,
destacam-se, como efeitos da heteronormatividade, a pedago-
gização dos gêneros e sexualidades sob uma norma sexista e
heteronormativa e a manutenção dos binarismos homem/mu-
lher e homossexual/heterossexual.
As principais questões identificadas quanto à heteronor-
matividade referem-se a: preocupação excessiva com a inicia-
ção “precoce” da sexualidade dos jovens; preocupação com
a pedagogização das masculinidades e, principalmente, das
feminilidades com base em normas cristalizadas de gênero e
opressoras das mulheres; responsabilização das meninas pela
gravidez na adolescência; incômodo com as expressões de se-
xualidade não heterossexuais. Essas questões estarão englo-
badas nos dois tópicos a seguir.

3.1 • Pedagogização dos corpos e das sexualidades

A pedagogização dos corpos e das sexualidades consis-


te em um processo por meio do qual as práticas pedagógicas
direcionam os gêneros e as sexualidades à reprodução do
modelo da heteronormatividade. Conforme já destacado, esse
processo contribuiu para a manutenção de binarismos e funda-
mentalismos que mantêm as desigualdades de gênero e para a
patologização das diferentes expressões da sexualidade.
As falas de alguns dos entrevistados evidenciaram um
processo de pedagogização das masculinidades e, principal-
mente, das feminilidades com base em normas cristalizadas de
gênero que oprimem não somente as mulheres, mas todas as
pessoas que expressam o próprio gênero de forma diferente da
A heteronormatividade na escola - Marivete Gesser et al. | 131

instituída socialmente. Percebeu-se uma preocupação muito


grande com expressões da sexualidade por meio da utilização
de maquiagem, roupas curtas e, principalmente, um incômodo
em relação às meninas que “paqueram” meninos. Os depoi-
mentos abaixo expressam essa questão:

É a menina botando a roupinha mais curta, come-


çando a se maquiar com 11, 12 anos; (...) a gente
percebe alguns traços, entendeu? De que a menina
está querendo iniciar uma vida sexual sem antes sa-
ber mesmo o porquê (José, professor de Ciências).

Nós, professores, nós observamos o comportamento em


sala de aula. É a roupa, é a paquerinha. É a menina
que ‘tá sempre grudada num menino (...); num dia, gru-
dada em um e, no outro, grudada em outro. Isso apa-
rece o tempo todo (Cristina, professora de Português).

Percebe-se, nas falas dos entrevistados, uma preocupa-


ção maior em relação às expressões de sexualidade das me-
ninas em detrimento do comportamento sexual dos meninos,
corroborando as informações obtidas nos estudos realizados
por Villela e Doreto (2006). Essa percepção é mediada pelos
discursos sobre gênero que atribuem à mulher o lugar social de
meiga, recatada e discreta, ao passo que, dos meninos, espe-
ram-se comportamentos que expressem virilidade e iniciativa
até como forma de provar a masculinidade.
Essas normas de gênero, que são o tempo todo reitera-
das nas práticas educativas, produzem como efeito a respon-
sabilização das adolescentes e isenção dos meninos pela gra-
videz na adolescência e demais consequências das relações
sexuais. Os depoimentos abaixo explicitam essa questão:
E é normal uma menina namorar com quase todos da tur-
ma. Uui! E eles ficam fazendo um intercâmbio entre eles
(...). E outra coisa que eu fico assim muito chocada, que
eu trabalho com eles, é a questão da gravidez e de doen-
ças, né? Principalmente pela promiscuidade que acon-
tece e muita gravidez (Nina, professora de Geografia).
132 | Acesso à educação e saúde

Porque uma menina de 14 anos já estava casada (...),


uma menina da quinta série engravidou e criou-se um
alvoroço na turma (Bete, professora de Português).

Portanto, percebe-se um incômodo com a (im)possibili-


dade de normalizar o comportamento sexual das adolescentes
de acordo com as prescrições de gênero e sexualidade natu-
ralizadas e instituídas pelo dispositivo da heteronormatividade.
Ou seja, por um lado, há um investimento da escola para a
normatização desses sujeitos, haja vista que, segundo Louro
(2008, p. 17), “gênero e sexualidade são construídos através
de inúmeras aprendizagens e práticas, empreendidas por um
conjunto inesgotável de instâncias sociais e culturais, de modo
explícito ou dissimulado, num processo sempre inacabado”.
Todavia, os sujeitos resistem a essas normas, vivenciando a
sexualidade de forma diferente da esperada pelos profissionais
da escola.
Outra questão que também foi identificada refere-se a
uma preocupação muito grande acerca da postergação da ini-
ciação sexual entre os alunos, sendo que a sexualidade das
meninas é alvo de maior investimento em relação ao controle
do próprio início. A sexualidade aparece como algo perigoso e
os alunos aparecem como “criancinhas com a sexualidade aflo-
rada” (Maria, professora de Ciências). Neste sentido, Renata,
professora de Português, afirmou que é relevante que o tema
da sexualidade seja trabalhado na escola “até porque é super-
comum eles desenvolverem a sexualidade precocemente”.
Alguns entrevistados relataram angústia e constrangi-
mento por conta das expressões de sexualidade que, na visão
deles, vêm aparecendo cada vez mais cedo entre os alunos,
muitas vezes já desde o terceiro ou quarto ano. Isso pode ser
identificado no depoimento da Cíntia, professora de História,
ao ser questionada sobre se percebia uma demanda por parte
das(os) professoras(es) sobre a abordagem do gênero e da
sexualidade: “Estamos cada vez mais apavorados com quão
precoce estão sendo certas coisas”.
A heteronormatividade na escola - Marivete Gesser et al. | 133

É importante problematizar a noção de precocidade da


sexualidade, uma vez que ela parece estar ancorada em pre-
ceitos morais e religiosos que, por restringirem a sexualidade
ao coito pênis-vagina e à reprodução dentro de relações está-
veis e heterossexuais, produzem como efeito o lugar de asse-
xuados às crianças e aos adolescentes. Essa perspectiva, no
nosso entendimento, pode operar como uma barreira progra-
mática que dificulta a abordagem dessa temática no contexto
da sala de aula em conformidade com os PCNs e demais do-
cumentos oficiais que a legitimam.

3.2 • Incômodo com as expressões de sexualidade


não heterossexuais

No que se refere à concepção heteronormativa de se-


xualidade, também ficaram evidenciadas, no subtexto de al-
gumas falas, a apropriação dos discursos heterossexistas e a
dificuldade de lidar com expressões de sexualidade que fogem
a esse padrão normativo. Todavia, identificou-se uma preocu-
pação com o modo como os educadores falavam sobre essa
questão, haja vista a preocupação com o “discurso do politica-
mente correto”.
Um dos entrevistados explicitou com mais clareza o dis-
curso heteronormativo. A fala do professor evidencia inquieta-
ção e incômodo com a alta da temática homossexualidade, a
qual, segundo ele, vem sendo “glamourizada” pelo destaque
do tema nos diversos espaços sociais, conforme o depoimento
abaixo:

[A homossexualidade] é quase um modismo, se já não


for. Quer dizer, tem a parte de um modismo e tem a parte
que não é. Também não vou achar que tudo seja modis-
mo, né? Mas parece até que (...) não é que parece (...)
é que isso vem sendo feito há muito tempo, a glamou-
rização. Então, ser gay hoje em dia é você estar ligado
a uma vida glamourosa. Embora, aí, gay na geografia
já me vem a ideia da imagem (...) da aparência e da
essência. Será que a vida de um gay é sempre glamou-
134 | Acesso à educação e saúde

rosa? Eu não acredito! Mas já vi alguns documentários


sobre travestis etc., e às vezes as pessoas que estão ali
estão num submundo, e um submundo muito mais so-
cial do que sexual, né? (Paulo, professor de Geografia)

Corroborando o pensamento de Borrillo (2001), o depoi-


mento acima se evidencia como atravessado pelo discurso ho-
mofóbico, uma vez que desqualifica e inferioriza as pessoas
que expressam a sexualidade de forma divergente da norma,
tornando-as abjetas. Nas palavras do autor, a homofobia é:

la hostilidad general, psicológica y social, respecto a


aquellos y aquellas de quienes se supone que desean a in-
dividuos de su propio sexo o tienen prácticas sexuales con
ellos. Forma específica del sexismo, la homofobia rechaza
también a todos los que no se conforman con el papel pre-
determinado por su sexo biológico. (Borrillo, 2001, p. 36)

A fala do professor também corrobora o heterossexismo


“entendido como uma concepção de mundo que hierarquiza e
subordina todas as manifestações da sexualidade a partir da
ideia de ‘superioridade’ e de ‘normalidade’ da heterossexuali-
dade” (Rios, 2010, p. 39). Nardi (2010) destaca, em relação a
esse conceito, que ele se funda na noção de complementari-
dade entre a masculinidade e a feminilidade e entre os genitais
definidos como femininos e masculinos.
Todavia, é necessário destacar que as concepções de
gênero e sexualidade das(os) professoras(es), as quais fun-
damentam as respectivas práticas, são pautadas nos precon-
ceitos, normas e valores presentes nos contextos culturais e
históricos em que eles se constituíram como sujeitos. Diante
disso, temos que tomar o cuidado de compreender as práticas
heterossexistas como efeito do processo de naturalização da
heterossexualidade como uma norma que institui o que é con-
siderado como um modo saudável de ser e estar no mundo.
A heteronormatividade na escola - Marivete Gesser et al. | 135

3.3 • Implicações da concepção heteronormativa


nas práticas pedagógicas

As informações obtidas na pesquisa evidenciaram que a


concepção heteronormativa de sexualidade medeia com bas-
tante influência as ações pedagógicas dos docentes entrevis-
tados. Essa questão foi identificada na busca dos profissionais
por estratégias voltadas à pedagogização dos comportamen-
tos dos jovens com base em normas sexistas de gênero, bem
como pela culpabilização individual pelos efeitos da sexualida-
de. Abaixo apresentamos alguns depoimentos que evidenciam
a forma como isso ocorre:

E, aí, eu digo pra eles: melhor você indo devaga-


rinho, curtindo a infância, a adolescência, usan-
do a camisinha, descobrindo as coisas que tem que
descobrir, pra depois encontrar a mulher ideal, sa-
ber que com ela pode ter uma relação segura, des-
de que não fique traindo, trazendo doença de fora
pra dentro da família (José, professor de Ciências).

Porque dentro da geografia eu trabalho com a parte


de planejamento familiar, com IDH, né? Que é o Índice
de Desenvolvimento Humano, com população (...) En-
tão, eu sempre busco, eu sempre estou amarrando as
questões da geografia junto com a prática deles, com
o dia a dia deles. Até porque se tem (...) Aqui nessa es-
cola, a vida sexual inicia muito cedo. Onze, doze anos
já tem gestante, né? Em sala de aula mesmo, tu já vê
os comportamentos. Então, eu estou sempre puxan-
do pra esse assunto (Nina, professora de Geografia).

E também, quando eu dou conselhos e quando converso


com eles, eu tomo muito cuidado para não causar mui-
ta polêmica na cabeça deles. Eu tento conversar a coi-
sa [sexualidade] de um jeito mais (...), eu não sei como
eu posso dizer isso, assim: (...) eu tento conversar de
uma forma mais educativa para não chegarem em casa
muito apavorados (Cristina, professora de Português).

As falas acima apresentam alguns elementos que devem


ser destacados. O primeiro deles se refere à instituição de uma
norma acerca da feminilidade, pela qual se acredita que há um
136 | Acesso à educação e saúde

padrão de mulher ideal a ser buscado pelos rapazes para o


casamento. Isso pode produzir como efeito a ideia da cons-
trução de “desvio de comportamento” das mulheres que não
se comportam de acordo com o esperado, as quais, conforme
aponta o subtexto do segundo depoimento, podem engravidar
e contribuir para piorar o IDH do país, já que o desenvolvimento
humano deve ser buscado com o planejamento familiar.
Já em relação aos meninos, o subtexto dos depoimen-
tos acima indica que, além de saber escolher uma mulher que
está de acordo com um ideal constituído com base em normas
de gênero sexistas, esses devem ser responsáveis pela pró-
pria saúde, buscando descobrir “as coisas que têm que des-
cobrir” (até para legitimarem as próprias masculinidades) uti-
lizando preservativo. Destaca-se que essa expectativa de que
o adolescente tenha total responsabilidade pelos próprios atos
é antagônica à forma como muitos dos educadores entrevista-
dos afirmaram lidar com a sexualidade no contexto da sala de
aula em que, por razões variadas (medo do que as famílias vão
pensar, medo de incitar processos precocemente), deixam de
abordar a temática com base no que os documentos oficiais
propõem.
Todas as falas acima apresentam a sexualidade na ado-
lescência como uma coisa perigosa, que deve ser gerida cui-
dadosamente para evitar possíveis consequências caracteri-
zadas como indesejáveis. O medo de abordar a temática da
sexualidade e provocar tanto a ira dos pais, quanto a antecipa-
ção dos processos de sexualização dos jovens, é um dos prin-
cipais temores das(os) professoras(es). A insegurança ao tratar
o tema foi identificada em pesquisas realizadas por outros au-
tores, como Toneli (2004), Avila, Toneli e Andaló (2011). Essa
perspectiva acerca da sexualidade foi identificada também por
Foucault (1988), quando esse autor sinaliza que há, nas socie-
dades ocidentais, a busca pela construção de mecanismos de
regulação da sexualidade e que essa deve ocorrer somente no
interior do casal heterossexual e ser voltada à reprodução.
A heteronormatividade na escola - Marivete Gesser et al. | 137

Por fim, os depoimentos também evidenciam que exis-


tem normas que regulam o que pode ou não ser dito e que são
reproduzidas mesmo não estando em consonância com o que
sinalizam os documentos oficiais sobre o tema (PCNs, Política
Brasil sem Homofobia, Programa Saúde e Prevenção das Es-
colas).
Outra prática, efeito da heteronormatividade, refere-se ao
posicionamento contra atividades propostas para a inclusão da
diversidade sexual e de gênero na escola. Nesse sentido, o
professor Paulo se posicionou contra a ação da escola onde
trabalha de expor, no pátio em que os alunos de todas as ida-
des circulam, os cartazes referentes ao V Concurso de Carta-
zes sobre Homofobia, Transfobia, Lesbofobia e Heterossexis-
mo, evento que vem ocorrendo há cinco anos no município.
Segundo ele, esse material não deveria ficar acessível a todos
os estudantes, independentemente da idade deles, concordan-
do com o fato de muitos pais terem reclamado sobre o ocorri-
do. A fala evidencia o que Borges e Meyer (2008) caracterizam
como pânico moral com a possibilidade de os alunos serem in-
fluenciados a se tornarem homossexuais desde a tenra idade.
Além disso, observou-se que algumas(ns) professoras(es),
com base em uma perspectiva voltada à democracia sexual
(Fassin, 2009), consideram importante que questões ligadas à
diversidade sexual e de gênero sejam abordadas na escola. No
entanto, esses têm muitas dificuldades em implementar estra-
tégias para isso, pelo fato de os contextos em que atuam terem
princípios morais e religiosos – os quais corroboram o discurso
heteronormativo – muito presentes no cotidiano.
Nesse sentido, alguns entrevistados defendem uma prá-
tica voltada ao acolhimento da diversidade sexual e de gêne-
ro, manifestando preocupação com o possível sofrimento vi-
venciado pelos alunos que fogem ao padrão heteronormativo.
Isso pode ser evidenciado no depoimento do Carlos, professor
de Geografia, o qual apresentou conhecimento bastante am-
plo sobre o papel do movimento LGBT na garantia de direitos.
Também destacou a necessidade de rompermos com a ideia
138 | Acesso à educação e saúde

de superioridade do homem em relação à mulher. Todavia, o


subtexto da fala dele evidenciou medo de discutir essa questão
junto aos alunos pelo risco de eles pensarem que ele é homos-
sexual. Ele destaca: “Mas eu vejo que a maior dificuldade não
seria da minha parte, acho que seria dos alunos, de receber,
né? Porque podem entender que está fazendo alusão, né? ‘Ah,
por que ele está querendo debater isso?’”
Por fim, as informações obtidas na pesquisa evidenciam
a presença da violência normativa. Destaca-se que essa é ca-
racterizada como a violência das normas de gênero e sexuali-
dade.

A violência normativa é primária em um duplo sentido:


ela permite a ocorrência da violência secundária que
então consideramos como típica, e serve para apa-
gar essa última. Ou seja, a violência normativa exerci-
da ‘antes’ da violência cotidiana/rotineira invisibiliza-
-a, torna-a inexistente (Toneli e Becker, 2010, p. 6).

Diante da violência normativa exercida pela heteronor-


matividade e dos efeitos produzidos a partir dela, emerge o
desafio de se construírem práticas pedagógicas destinadas ao
rompimento dela no cotidiano escolar. Daí, surge a seguinte
questão: Como construir processos educativos para a descons-
trução dos binarismos e polaridades hierarquizadas reproduzi-
dos no cotidiano escolar? Sem ter a pretensão de esgotar essa
questão, no próximo tópico propomos alguns subsídios teórico-
-metodológicos que poderão contribuir com esse processo.

4 • Alguns pressupostos teórico-metodológicos


para a formação de professoras(es) em educação
e sexualidade

A pesquisa apontou importantes resultados para se pen-


sar a construção de processos educacionais voltados à garan-
tia dos direitos sexuais e reprodutivos no âmbito da educação
brasileira. Um deles é que os profissionais entrevistados, mes-
A heteronormatividade na escola - Marivete Gesser et al. | 139

mo quando tinham vontade de realizar trabalhos no âmbito em


questão, sentiam-se despreparados para justificar a implemen-
tação destes. Isso mostra a relevância de que os programas
de formação no âmbito da sexualidade ocorram já na formação
inicial e que estes oportunizem o acesso aos principais docu-
mentos norteadores da atuação dos educadores no contexto
da sala de aula.
Acredita-se que o conhecimento da legislação destinada
à garantia dos direitos sexuais e reprodutivos pode instrumen-
talizar os educadores para lidarem com situações de tensão
relacionadas aos muitos preconceitos e discriminações que
atravessam e constituem as relações sociais na escola. Toda-
via, ressalta-se que ele é necessário, mas não suficiente para
garantir a efetivação desses direitos.
Destaca-se, com base nos resultados da pesquisa, que
as políticas públicas voltadas à formação de educadores no
âmbito do gênero e da sexualidade, as quais se propõem a
nortear as práticas educativas, por mais que tenham como ob-
jetivo a garantia dos direitos humanos, podem se tornar “im-
permeáveis” se não tiverem o olhar para a subjetividade. Isso
porque as (os) professoras(es) são sujeitos que se constituem
atravessados por concepções de sexualidade higienistas e he-
teronormativas que – considerando a indissociabilidade das di-
mensões do pensar, sentir e agir – vão constituir as respectivas
práticas educativas em sala de aula.
Diante disso, um dos grandes desafios dos programas
de formação inicial e continuada de docentes é o de criar
dispositivos que tenham como foco o resgate da história de
educação sexual vivenciada pelos educadores e os múltiplos
atravessamentos, bem como a ampliação da percepção dos
efeitos dessas concepções nas práticas pedagógicas. Nesse
sentido, experiências anteriores (Gesser, Mello e Stuker, 2014)
realizadas a partir do Programa Gênero e Diversidade na Es-
cola evidenciaram a importância da utilização, nos programas
de formação de professoras(es), de dispositivos que oportu-
nizem aos educadores o resgate das trajetórias de educação
140 | Acesso à educação e saúde

sexual, bem como a identificação da forma como essas con-


cepções são reproduzidas de forma naturalizada nas práticas
pedagógicas. A estratégia de partir das situações relacionadas
à sexualidade vivenciadas pelas(os) profissionais nos locais de
trabalho também se mostrou bastante profícua na experiência
acima citada.
Outra importante questão a ser trabalhada no âmbito da
formação de educadores se refere à interseccionalidade en-
tre as questões de gênero, raça, orientação sexual, deficiência
e demais marcadores sociais. Isso demanda uma abordagem
transversal dessas questões no contexto pedagógico, tendo
como norte o rompimento com a naturalização e biologização
dessas questões, o que acaba por construir polaridades hierar-
quizadas, as quais corroboram a transformação das diferenças
em desigualdades.
Por fim, ressalta-se que, por meio da essencialização
das masculinidades e feminilidades com base nos binarismos
e fundamentalismos, ratifica-se a diminuição da capacidade de
agência dos sujeitos da educação, tornando-os vulneráveis a
diferentes formas de violência. Isto posto, destaca-se o caráter
ético e político presente na construção de processos educati-
vos voltados à inclusão das diferentes formas de os sujeitos
expressarem o gênero e a sexualidade.

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Capítulo 6
O(s) gênero(s) da universidade: das hie-
rarquias e das possibilidades
Paula Sandrine Machado
Henrique Caetano Nardi

1 • Preâmbulo

As hierarquias relativas ao gênero e as expressões da


sexualidade são produto de relações de poder. A universida-
de, apesar de ser um substantivo feminino, performativamen-
te, ainda se mantém como uma instituição de reafirmação das
desigualdades associadas à cisheteronormatividade¹ sexista
e elitista. Esta constatação não remete ao imobilismo, mas à
luta pela equidade, pois o espaço universitário é uma arena de
disputas. Além disso, não se trata de um ambiente homogêneo
e, apesar de se caracterizar por um movimento interno lento,
existe atualmente um tensionamento produzido pelos movi-
mentos sociais na associação com pesquisador*s que lutam
pela igualdade de direitos, pelo justo acesso e permanência na
universidade, assim como pela democracia na distribuição de
postos, recursos e pelo respeito à diversidade epistemológica
no ensino superior. Sinais desse processo podem ser percebi-
dos, por exemplo, na crescente feminização do corpo docen-
te e discente em diversas áreas do conhecimento. Entretanto,
basta olharmos para as posições de direção das instituições de
______________________________________________________________________

¹ O conceito de heterocisnormatividade remete à norma relativa à orientação sexual, identidade


de gênero e atribuição de sentido aos corpos, a qual situa a heterossexualidade e a cisgeneridade
como “normais” e as demais formas de expressão da sexualidade (homo, bi, assexuais, entre ou-
tras) e de identificações e atribuições de sentido aos corpos (travestis, transexuais, não binári*s,
etc.) como mais ou menos distantes deste “normal”. Esta distância depende da legitimidade so-
cial das práticas, expressões e corpos. Cabe lembrar que, no interior das heterossexualidades (e
das não-heterossexualidades) e das cisgeneridades (e das travestilidades/transexualidades), há
também hierarquias da normalidade ligadas à moral (fidelidade, monogamia, etc.) e às lógicas de
adequação corporal/ expressões de gênero, como aquelas presentes nos critérios de passabilidade
para pessoas trans. Cabe, ainda, indicar que cisgeneridade pode ser definida como uma expressão
que remete àquel*s que se identificam/construíram o próprio gênero de acordo com o sexo que lhes
foi atribuído ao nascer.
O(s) gênero(s) da universidade - Paula Sandrine e Henrique Nardi | 145

ensino do tipo brasileiras, para percebermos que as reitorias,


pró-reitorias, direções de centros, departamentos e unidades
ainda são, em grande maioria, ocupados por homens brancos,
supostamente heterossexuais, sobretudo nas universidades de
maior prestígio.
Situações de discriminação, violência e expressões do
preconceito associados à intolerância em relação à diversida-
de sexual e de gênero fazem parte do cotidiano universitário,
sendo que os ritos de entrada – os chamados trotes – são uma
forma de marcação simbólica de lugares na hierarquia universi-
tária, além de uma legitimação de expressões heterocisnorma-
tivas e uma deslegitimação da diversidade (Nardi et al, 2013;
Costa et al, 2015). Apesar dos avanços recentes que envolvem
a denúncia de situações de discriminação e que, em alguns ca-
sos, levou à punição, o cenário nacional é inquietante em razão
de uma reação conservadora em múltiplos planos, sobretudo
no campo dos direitos humanos no que tange à igualdade de
direitos e políticas específicas. O saber científico tem sido des-
legitimado no Congresso Nacional e em instâncias múltiplas de
representação política em nome da religião, de uma suposta
“tradição”, muitas vezes invocando seletivamente argumentos
da “natureza”.
Buscando delinear algumas tensões e avanços no ce-
nário atual a partir de nossa experiência, propomos uma dis-
cussão das transformações internas ao contexto universitário,
assinalando o papel fundamental da ação política e do saber
construídos no contexto acadêmico em parceria com os movi-
mentos sociais no reconhecimento da diversidade de constitui-
ção do humano.

2 • O contexto universitário e as questões


LGBTT

Esse tema remete, entre outros elementos, ao espaço


que a universidade oferece (e que construímos) para discutir-
mos as questões de gênero e diversidade sexual, bem como ao
146 | Acesso à educação e saúde

debate sobre o acesso e permanência da população LGBTT na


instituição de ensino superior. Mais amplamente, impõe pen-
sar que espaço a universidade oferece para problematizar e
desmantelar a lógica que a organiza, aquela que supõe uma
distribuição diferenciada e hierarquizante das posições sociais
(Nardi et al, 2013). Essa lógica naturalizada reitera desigualda-
des, distribui e naturaliza privilégios, assim como autoriza uma
série de violências perpetradas cotidianamente, entre as quais
podemos situar aquelas que envolvem a diversidade de gêne-
ro, da sexualidade e do corpo sexuado.
Essas questões são centrais para a vida universitária. As-
sim, dependendo das escolhas ético-políticas de uma institui-
ção, podem-se abrir ou fechar caminhos, ampliar ou restringir
potencialidades. Historicamente, a universidade tem sido uma
instituição marcada como um espaço de reprodução das elites,
sobretudo em sociedades altamente desiguais e hierárquicas
como a brasileira. Assim, no Brasil, foi construída ao longo de
uma história de reiteração das violências, as quais impedem ou
restringem fortemente o acesso e a permanência de determina-
dos grupos na academia.
Frente a uma série de resistências institucionais, bem
como ao preconceito e à discriminação em relação ao gêne-
ro e à sexualidade vivenciados todos os dias no contexto uni-
versitário, o lançamento de iniciativas tão importantes como a
Campanha de Sensibilização e Conscientização sobre o Uso
do Nome Social e dos Banheiros na Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE) é um exemplo a ser seguido². O evento
de lançamento de tal campanha, que ocorreu nos dias 24 e
25 de setembro de 2015 (ocasião em que foi trazido o deba-
te realizado no presente texto pela primeira autora), interpela-
-nos e também nos faz perguntar: o que conquistas e eventos
______________________________________________________________________

² A campanha “Meu nome importa” objetiva sensibilizar e conscientizar a comunidade acadêmica


UFPE sobre a importância de respeitar o uso do nome social e uso do banheiro. Está em consonân-
cia com a portaria normativa três, de 23 de março de 2015, que regulamenta a política de utilização
do nome social e uso do banheiro para as pessoas que se denominam travestis, transexuais, trans-
gêneros e intersexuais. A campanha foi elaborada pela Pró-Reitoria de Comunicação, Informação e
Tecnologia da Informação (Procit), em parceria com a Diretoria LGBT e com alunos e alunas trans
e travestis da Universidade.
O(s) gênero(s) da universidade - Paula Sandrine e Henrique Nardi | 147

como esses nos dizem do lugar que as questões de gênero e


sexualidade ocupam institucionalmente nas diferentes univer-
sidades? Elas se inscrevem no horizonte ético-político dessas
instituições? De que modo? O compromisso com políticas de
inclusão, assumido pelas universidades, supõe quais sujeitos
para inclusão? Inclusão significa o quê? Incluir na norma exis-
tente ou a inclusão pressupõe alterar essa mesma norma? Da
política institucional às praticas cotidianas, quais hierarquias
são forjadas? Como operam as violências mais ou menos ex-
plícitas? Para aqueles e aquelas que acabam acessando a uni-
versidade, ela se oferece como espaço seguro?
Dito isto, é importante tomar posição nesse debate, reco-
nhecendo que não há neutralidade possível de onde possam
partir nossas análises. Fazemos isso, portanto, a partir da ex-
periência com algumas ações que temos nos envolvido como
núcleo de pesquisa (Nupsex - Núcleo de Pesquisa em Sexua-
lidade e Relações de Gênero) e programa de extensão (CRDH
- Centro de Referência em Direitos Humanos: Relações de Gê-
nero, Diversidade Sexual e de Raça). Situando nossa escrita,
é importante localizar que a primeira autora vem trabalhando
academicamente nos últimos anos com o tema da intersexua-
lidade, gerenciamento sociomédico e cotidiano desta, trabalho
realizado com um forte envolvimento e compromisso ético e po-
lítico com o tema, a partir de uma perspectiva crítica em relação
às cirurgias desnecessárias e não consentidas em crianças que
nasceram com corpos que os padrões de normalidade biomé-
dicos classificam como “ambíguos” ou “incompletos”. O segun-
do autor tem trabalhado com as transformações no interior do
dispositivo da sexualidade (Foucault, 1976) e a forma como as
disputas pela legitimação dos discursos têm se dado no campo
das políticas públicas, sobretudo, saúde e educação. As ações
e pesquisas de ambos têm se dado a partir de uma aliança per-
manente com os movimentos sociais LGBTT. A primeira autora
faz parte do Departamento de Psicologia Social e Institucional
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como docente,
desde 2010, e o segundo desde 2002. Ambos integram o Nup-
148 | Acesso à educação e saúde

sex e o CRDH. No Nupsex, temos trabalhado com pesquisas


que enfocam diferentes temáticas no campo dos estudos de
gênero e de sexualidade, desde uma perspectiva interseccio-
nal (Crenshaw, 2012; Silveira e Nardi, 2015), ou seja, enten-
demos que diferentes marcadores sociais de diferença como
gênero, sexualidade, raça e classe se atriculam posicionando
os sujeitos socialmente, subjetivando-os e situando as pesso-
as em lugares de maior ou menor vulnerabilidade, maior ou
menor precariedade, maior ou menor legitimidade. No Nupsex,
assumimos nosso compromisso político com essas questões e
muitos alunos e alunas se juntaram a nós motivados e motiva-
das por isso. Em alguns casos, talvez também porque aquele
era justamente um espaço mais seguro na Universidade, mais
protegido das inúmeras violências sofridas e onde se falava
abertamente do preconceito e da discriminação como algo mui-
to concreto que deve ser combatido, analisado, denunciado. O
Nupsex também foi, para muitas e muitos que por ali passaram
e seguem passando, um espaço potencializador para poderem
ensaiar o que começamos a chamar de “terrorismos” cotidia-
nos (que, de fato, constituem contra-terrorismos, uma vez que
busca-se com eles desconstruir combatendo o terror imposto
pela norma cisheterossexual), ou seja, verdadeiros enfrenta-
mentos em sala de aula, dentro ou fora da Universidade, em
relação a diferentes formas de preconceito e discriminação e à
naturalização delas tanto nos conteúdos dados em aula, como
nas conversas com colegas e professoras(es), em casa, com
amigos e amigas, etc.
Muitas demandas chegam ao Nupsex, seja na forma de
convites para oferecermos oficinas em escolas, atividades de
formação em diferentes contextos institucionais, até pedidos
de ajuda e orientação em relação a diversas situações de vio-
lação de direitos vivenciadas dentro e fora da Universidade.
Montamos, então, a partir da identificação dessas demandas, o
CRDH - Centro de Referência em Direitos Humanos, Relações
de Gênero, Diversidade Sexual e de Raça, que é um progra-
ma de extensão financiado pelo PROEXT e que foi formaliza-
O(s) gênero(s) da universidade - Paula Sandrine e Henrique Nardi | 149

do como atividade de extensão em 2012 (embora a pauta de


ações tenha começado anteriormente, em projetos iniciados
em 2003, mais direcionados à questão da violência contra as
mulheres). O Centro de Referência tem atuado principalmente
em quatro eixos de atividades: 1) acolhimento para pessoas
vítimas de preconceito em relação ao respectivo gênero, sexu-
alidade e/ou raça; 2) auxílio para a troca do registro do nome
civil de pessoas transexuais; 3) capacitação dos profissionais
da rede de serviços da área da educação, saúde, assistência e
segurança em relação à temática de gênero, diversidade sexu-
al, identidade de gênero e a interseccionalidade racial; 4) for-
mação com estudantes de ensino fundamental e médio sobre
os temas que temos trabalhado. A produção do CRDH pode ser
acessada livremente online em dois livros editados pela equi-
pe de coordenação do centro (Nardi, Silveira e Machado et al,
2013; Nardi, Machado e Silveira, 2015³).
Dentre as ações do Centro de Referência e do Nupsex, é
importante destacar nossa parceria com o grupo G8 Generali-
zando, do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU)
da UFRGS, e com a organização não governamental Igualda-
de - Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do
Sul. Por meio dessa parceria, é que temos produzido parece-
res psicossociais para os processos de retificação do registro
civil de transexuais desde uma perspectiva alinhada com a luta
pela despatologização das transexualidades. Tivemos tam-
bém participação no processo de construção da política de uso
do nome social da UFRGS. A partir de um parecer solicitado
pela Reitoria da UFRGS, elaborado pela equipe do Nupsex e
CRDH, em razão de uma demanda do Diretório Central de Es-
tudantes da UFRGS ao Conselho Universitário, criou-se uma
comissão para elaboração da proposta de regulamentação da
política de uso de nome social para pessoas trans* no âmbi-
to da Universidade. Em reconhecimento ao nosso trabalho, a
______________________________________________________________________

³ Disponíveis, respectivamente, em: <https://www.academia.edu/4960594/Diversidade_se-


xual_Capa-Completo> e <https://www.academia.edu/16845161/Diversidade_sexual_e_
rela%C3%A7%C3%B5es_de_g%C3%AAnero_nas_pol%C3%ADticas_p%C3%BAblicas_o_
que_a_laicidade_tem_a_ver_com_isso.>
150 | Acesso à educação e saúde

Reitoria solicitou que indicássemos membros para a comissão.


Assim, a primeira autora e Eric Seger, que faz parte do Nupsex
como bolsista de iniciação científica e é integrante do Instituto
Brasileiro de Transmasculinidade (IBRAT), compuseram a co-
missão, formada em junho de 2014. Discutiremos essa ação
mais adiante.
Finalmente, no que se refere à prática docente, no curso
de Graduação em Psicologia, o segundo autor criou, em 2009,
a disciplina “Gênero e Sexualidade nos Modos de Subjetivação
Contemporâneos”, que é ministrada, desde 2010, pela segun-
da autora. Trata-se de uma disciplina eletiva para a Psicolo-
gia e que é aberta para outros cursos, sendo uma das poucas
disciplinas para a graduação no formato interdisciplinar e que
aborda a discussão da diversidade sexual e de gênero na UFR-
GS. Ambos temos oferecido disciplinas na pós-graduação que
giram em torno dessas temáticas, destacando que a primeira
disciplina foi oferecida em 2006, no Programa de Pós Gradu-
ação em Psicologia Social e Institucional, inaugurando a linha
de trabalho que veio a originar o Nupsex, temática inexistente
até então no Instituto de Psicologia (ver tese de Martha Nar-
vaz, 2009) desde uma perspectiva crítica aos essencialismos
biológicos e psicológicos e às naturalizações e às produções
normativas no campo do gênero e da sexualidade. Ou seja,
a temática estava presente no currículo, mas como forma de
reiteração da norma, especialmente nas perspectivas do de-
senvolvimento típico/atípico (eufemismos para normal e patoló-
gico), no campo da psicologia do desenvolvimento, e nas hie-
rarquias criadas em torno do édipo no campo da psicanálise.
Considerando todas essas questões, trabalharemos com
o argumento de que a educação é um sistema epistemológico-
-político. Um sistema que, como tal, produz efeitos muito con-
cretos na vida das pessoas, ao criar barreiras, limitar percursos
e legitimar/deslegitimar saberes. Nesse sistema, as universi-
dades, assim como outros estabelecimentos de ensino brasi-
leiros, estão atravessadas por marcadores sociais de diferen-
ciação, tais como classe, raça, gênero, território e sexualidade.
O(s) gênero(s) da universidade - Paula Sandrine e Henrique Nardi | 151

Para pensar a educação como esse sistema epistemo-


-político, que produz corpos e que participa da construção de
gêneros e sexualidades, tomaremos em análise algumas frases
de professores e professoras da Faculdade de Biblioteconomia
e Comunicação da UFRGS, local onde uma primeira versão
deste texto foi apresentada pela primeira autora. As falas, com
conteúdo sexista, homofóbico, transfóbico e racista foram cole-
tadas e expostas pelos alunos e alunas do curso nos corredo-
res da instituição, nas portas das salas de docentes, nas portas
dos banheiros, etc. Citaremos quatro dessas frases, proferidas
por professores e professoras, para dar um panorama do que
estamos falando: 1) “Tanta coisa importante e tu quer perder
meu tempo com essas coisas de feminismo e gênero”; 2) “Isso
de racismo já ‘tá manjado, todo mundo já sabe”; 3) “Na época,
a gente chamava de putão mesmo, não tinha essas frescuras
de nome que tem hoje”; 4) “O feminismo ‘tá tirando o papel de
protetor do homem”4.
Essas frases, embora proferidas na FABICO, não são ex-
clusivas desse local e remetem a muitos elementos que cons-
tituem o espaço universitário e que buscaremos rapidamente
abordar: os trotes, a ambiência da sala de aula, com conteúdos
muitas vezes sexistas, homofóbicos e transfóbicos, a dificulda-
de de acesso de pessoas trans e travestis à universidade. E,
finalmente, uma questão mais epistemológica: as hierarquias e
exclusões quando se trata de reconhecer os saberes produzi-
dos fora da universidade (e/ou a posicionalidade dos diferentes
saberes na hierarquia internas às ciências também), criando
uma dicotomia entre aquelas(es) que estudam e que podem
ocupar lugares de fala acadêmicos e aquelas(es) que são a
estudadas(os) e acabam se constituindo como os objetos des-
sas falas.

______________________________________________________________________
4
Os registros fotográficos da intervenção realizada, com algumas das frases expostas na FABICO,
podem ser conferidos na página criada para o evento III Semana da Diversidade Sexual e de Gêne-
ro da FABICO, disponível em: <https://www.facebook.com/events/137834696555331/>.
152 | Acesso à educação e saúde

Em um artigo que escrevemos com Frederico Viana Ma-


chado e Letícia Zenevich, publicado no ano passado, que cha-
mamos “O ‘Armário’ da Universidade: O silêncio institucional
e a violência, entre a espetacularização e a vivência cotidia-
na dos preconceitos sexuais e de gênero” (Nardi et al, 2013),
analisamos algumas “observações do cotidiano” e narrativas
de experiências de estudantes e professoras(es) que ocorre-
ram no âmbito da UFRGS. O conteúdo do que analisamos se
aproxima muito ao das frases mencionadas acima. No nosso
caso, selecionamos aquelas situações que foram identificadas
por nós como “situações-chave” e/ou “casos-exemplares” da
(re)produção da intolerância em relação à diversidade sexual e
de gênero na universidade. Tais cenas e narrativas foram aces-
sadas por meio das atividades do Centro de Referência e da
equipe do Nupsex, as quais envolviam, entre outras, a obser-
vação dos trotes na UFRGS e o acolhimento de denúncias de
violência e discriminação associadas às expressões de gênero
e sexualidade dentro ou fora do espaço universitário.
O que apontamos em nosso artigo, que está disponí-
vel na Revista Teoria e Sociedade online, é que há uma vio-
lência do cotidiano, que remete à manutenção da norma por
meio da demarcação dos espaços nos quais se pode falar de
sexualidade e de gênero e dos espaços onde a cisheteronor-
matividade impera, naturalizando as relações de gênero e a
hierarquia sexual. Conforme descrevemos no artigo, vemos,
por exemplo, a celebração da heterossexualidade articulada
ao sexismo nos inúmeros cartazes de festas organizadas pelos
Diretórios Acadêmicos. Indicamos, ainda, em nosso texto, uma
série de relatos discriminatórios e de “silenciamento das dife-
rentes expressões de gênero e da sexualidade que habitam a
universidade, momentos nos quais a disciplina e o controle se
articulam” (Nardi et al, 2013, p. 190).
As piadas, os risos, os trotes - que são extremamente
violentos na imposição das estratégias de dominação moral da
cisheterossexualidade - marcam, assim, a ocupação do espaço
universitário pelo preconceito. Além disso, assim como descrito
O(s) gênero(s) da universidade - Paula Sandrine e Henrique Nardi | 153

no artigo, os cartazes que foram espalhados pela FABICO re-


forçam que os casos de preconceito e discriminação também
envolvem, frequentemente, atitudes e falas de docentes, pes-
soas que “representam o discurso oficial acerca dos saberes
institucionais e que não raro servem de modelo identificatório
para muitos alunos e muitas alunas” (Nardi et al, 2013, p. 191).
A pesquisa realizada por Angelo Brandelli Costa e Henri-
que Nardi, ambos do Nupsex, divulgada no ano passado e pu-
blicada neste ano (Costa et al, 2015), também levanta alguns
achados nessa direção. A pesquisa, sobre atitudes e crenças re-
lacionadas à orientação sexual e identidade/ não conformidade
de gênero dirigida ao corpo discente da graduação da UFRGS,
buscou mapear o preconceito presente na Universidade entre os
e as discentes. Aproximadamente 30% dos alunos e das alunas
da UFRGS responderam à pesquisa, ou seja, 8.184 pessoas.
Houve representação de todos os cursos. Considerando o uni-
verso dos e das respondentes, a análise indicou que 12,17%
apresentam nível mínimo de preconceito, o que, segundo os
pesquisadores, é preocupante, uma vez que a escala utilizada
na pesquisa avalia o preconceito explícito a partir de afirmativas
de extrema sensibilidade como: “Travestis me dão nojo”, “Ho-
mens e mulheres deveriam ser proibidos de mudar de sexo”, “O
casamento entre mulheres lésbicas deveria ser proibido”, “Sexo
entre dois homens é totalmente errado”. Dois outros achados são
também importantes: um deles é que a permanência na universi-
dade não contribui para a diminuição do preconceito (não há um
aumento, mas a vivência universitária também não produz uma
mudança nesses padrões de preconceito). O outro dado, que
parece muito relacionado a esse, é que quase 70% das pes-
soas relataram nunca ter realizado formação ou assistido algu-
ma aula, palestra ou atividade relacionada a gênero, identidade
de gênero, sexualidade ou diversidade sexual na instituição. Tal
achado é alarmante, considerando, como indicado anteriormen-
te, o compromisso da universidade com políticas de inclusão e
a existência de diversos núcleos e organizações de estudantes
envolvidos com as questões de diversidade sexual, de gênero e
de direitos humanos na instituição.
154 | Acesso à educação e saúde

No contexto dessas discussões, destacamos ainda que


apenas em dezembro do ano passado a UFRGS aprovou uma
Política de Uso de Nome Social para Pessoas Travestis e Tran-
sexuais. O grupo que elaborou a proposta de regulamentação
desta medida partiu das já existentes, e almejamos avançar em
alguns pontos, tentando considerar o maior número possível de
situações em que as pessoas poderiam ter problemas, como
espaços segregados por sexo, espaços de publicização do
nome, nos documentos ou comprovantes fornecidos pela Uni-
versidade. Propusemos a eliminação do critério de idade míni-
ma para requerer o uso do nome social e também sugerimos
que não fosse necessário incluir nas informações das pessoas
cadastradas na UFRGS o campo “sexo”. Conversamos muito
sobre o comprovante de matrícula dos alunos e das alunas e
outros documentos que, embora oficiais e de uso não exclusi-
vamente interno, deveriam ser emitidos pela Universidade com
o nome social, na medida em que há toda uma discussão jurí-
dica em torno disso.
A política e todo o debate levantado ao redor dela foi evi-
dentemente uma conquista, já que os alunos e as alunas tran-
sexuais e as alunas travestis passavam por constrangimentos
explícitos na Universidade relacionados ao uso do nome e ao
desrespeito à respectiva identidade de gênero. No entanto, al-
gumas discussões ainda ficam em aberto, o funcionamento da
política ainda possui limitações próprias, pois há ainda muita
falta de informação, há muito cissexismo institucional, o que
submete as pessoas a processos ainda muito problemáticos
(ouvimos queixas, por exemplo, de manutenção do nome de
registro civil em plataformas de educação a distância, como o
Rooda, e sobre os mal-entendidos nos setores que precisam
realizar os acertos no sistema virtual). O comprovante de ma-
trícula ainda tem sido emitido com o nome de registro, pois
talvez nem seja informado que a pessoa pode solicitar essa
alteração. Recebemos queixas de alunas e alunos em Progra-
mas de Pós-Graduação, que também não incorporaram e/ou
desconhecem a política.
O(s) gênero(s) da universidade - Paula Sandrine e Henrique Nardi | 155

Além disso, a implementação da política não parece ter


vindo acompanhada de um incremento em atividades de for-
mação, com professores, professoras, técnicos, técnicas e/ou
corpo discente, ou de uma discussão sobre outros aspectos,
como, por exemplo, a problematização das divisões de banhei-
ros por sexo, presente em praticamente todas as unidades da
UFRGS, a questão do uso dos vestiários ou o respeito ao nome
social e aos pronomes correspondentes no cotidiano mesmo da
universidade: nas salas de aula, em eventos, nos corredores.
Inclusive, a necessidade de promover esses debates e essas
formações tem sido uma das nossas preocupações e pautas
no Nupsex e no Centro de Referência. Ou seja, já que partici-
pamos da construção da política, como poderíamos contribuir
ativamente na direção da plena implementação dela?
O que observamos, então, é que o cissexismo institucio-
nal é ainda mais avassalador. O cissexismo habita os corredo-
res da universidade, as salas de aula, os conteúdos das disci-
plinas e hierarquiza lugares de fala. Entendemos cissexismo,
de forma bem resumida, a partir da definição de Eric Seger e
Henrique Nardi, como um sistema hierárquico fundamentado
na noção de que há uma associação naturalizada e regulató-
ria entre determinadas configurações corporais/anatômicas e
um gênero, a qual classifica outras formas de viver ou de se
expressar como inferiores ou anormais (Seger de Camargo e
Nardi, 2014).
Na área da saúde, por exemplo, multiplicam-se perspecti-
vas que patologizam a diversidade no que se refere às expres-
sões de gênero e da sexualidade, que reforçam uma compre-
ensão do corpo sexuado a qual reitera violações, como no caso
das transexualidades e das travestilidades, mas também no
das intersexualidades. Não são poucas as escalas, os exames
e as teorias que insistem em definir o que é ser mulher e o que
é ser homem, qual a natureza, a biologia e a constituição psi. E
esses mesmos parâmetros não cansam de colocar alguns cor-
pos e formas de expressão do gênero e da sexualidade fora da
curva considerada normal. No que se refere à intersexualidade,
156 | Acesso à educação e saúde

por exemplo, são quase inexistentes espaços na universidade,


ou mesmo no hospital universitário, em que questionemos o
caráter violento e violador de diagnósticos médicos que enqua-
dram e buscam normatizar a diversidade corporal, mutilando
corpos intersex em nome de certa norma corporal que supõe
que a um determinado corpo deve corresponder uma determi-
nada identidade (para uma análise do gerenciamento sociomé-
dico da intersexualidade em um contexto hospitalar no Sul do
Brasil, ver Machado, 2008).
No que se refere a transexuais e travestis, a educação de
forma geral ainda é um lugar de muitas violências. Em uma pes-
quisa realizada pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania
LGBT (Nuh) da Universidade Federal de Minas Gerais, coorde-
nada pelo professor Marco Aurélio Prado, foram entrevistadas
141 travestis e transexuais e os dados são alarmantes. De 138
pessoas que frequentaram a escola, quase 60% estudaram até
o terceiro ano do Ensino Médio, mas apenas 6,5% ingressaram
na universidade e apenas 2,2% concluíram o Ensino Superior.
Esses dados falam de contextos de vulnerabilidade e também
da “escassez de políticas públicas e/ou de instituições que vi-
sem à garantia de direitos” das pessoas trans, como apontado
no relatório da pesquisa (Prado, 2015). Os dados são de Minas
Gerais, mas certamente servem para refletirmos sobre outros
contextos brasileiros.

3 • Concluindo

Se é verdade que existem transformações recentes nas


diversas instâncias dos sistemas e práticas educacionais -
como a introdução das cotas étnico-raciais e para estudantes
de escola pública -, a universidade ainda está longe de ter en-
frentado amplamente a própria estrutura de privilégios, na qual
o cissexismo, o heterossexismo, o sexismo e o racismo ainda
desempenham um papel fundamental.
O(s) gênero(s) da universidade - Paula Sandrine e Henrique Nardi | 157

Uma daquelas frases coletadas na UFRGS, na Faculda-


de de Biblioteconomia e Comunicação, dizia: “A academia não
é lugar pra militância.” Respondemos a ela com uma citação de
Angela Davis, professora da Universidade da Califórnia, ativis-
ta feminista que integrou o coletivo Panteras Negras nos anos
1970. Em uma entrevista realizada e publicada em 2012, no
Brasil5, ela afirma: “É importante que acadêmicos treinados na
estrutura da universidade reconheçam o conhecimento produ-
zido para além das fronteiras dessas instituições. O feminismo,
tanto no âmbito acadêmico, mas também como metodologia de
luta, enfatiza um tipo de interdisciplinaridade. O conhecimento
acadêmico deve estar em diálogo constante com as formas de
luta.” A academia é, nesse sentido, sim, mais um lugar de luta.
E, para algumas pessoas, essa luta é urgente, constante, pois
significa a própria sobrevivência.
Na ocasião de uma das aulas do semestre passado da
disciplina de Gênero e Sexualidade nos Modos de Subjetiva-
ção Contemporâneos, cujo tema era “Ciência e Produção do
Corpo Sexuado”, duas alunas fizeram uma performance. Ofe-
receram os próprios corpos nus, manchados por sangue, ao
escrutínio do nosso olhar. Recitaram um texto impactante para
a turma que observava paralisada. Denunciavam, camada por
camada, nossos lugares de conforto: conforto que, de certa
forma, tornava aquele espaço universitário que compartilháva-
mos, ainda que crítico, cúmplice dessa ciência que normatiza
os corpos, os desejos, os modos de expressão do gênero e da
sexualidade. Quando acabaram de declamar o texto, as alunas
saíram da sala de aula em um rompante, correndo pelos cor-
redores da Faculdade de Educação, numa manhã de quinta-
-feira, fazendo muito barulho. De fato, a resistência não tem
como não ser ruidosa. Um professor, autor de outra das frases
registradas pelos alunos e pelas alunas da UFRGS, disse: “A
parada gay é barulhenta demais.” Com essa frase, temos que
concordar. A “parada gay” é barulhenta demais, assim como foi
______________________________________________________________________
5
Conferir a entrevista, disponível em: <http://atarde.uol.com.br/muito/noticias/1472710-a-questao-
-politica-tornou-se-mais-importante-que-a-racial>.
158 | Acesso à educação e saúde

a performance que relatamos. O transfeminismo, o feminismo


interseccional, as vozes dissidentes também são. E, quanto a
isso, felizmente não há saída senão tapar os ouvidos, pois se e
enquanto for preciso, não temos dúvidas de que o barulho será
cada vez maior. Aqui, as panelas são outras!

Referências

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a Brazilian Public University: Prevalence, Awareness, and the Effects
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NARDI, H. C.; SILVEIRA, R. S.; MACHADO, P. S. (Org.) Diversidade


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NARVAZ, M. A (in)visibilidade do gênero na Psicologia acadêmica:


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SILVEIRA, R. S.; NARDI, H. C. Interseccionalidade e Violência de


Gênero contra as Mulheres: a questão étnico-racial. In: MARTINS, H.
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dades. Florianópolis: Ed. da ABRAPSO, 2015, p. 55-79.
Capítulo 7
Sexo entre homens em Suape: informa-
ções sobre práticas sexuais, prevenção
e acesso à saúde
Celestino Galvão Neto
Benedito Medrado

1 • Introdução

Este texto apresenta alguns dos resultados de pesquisa


de uma dissertação de mestrado produzida no Programa de
Pós-Graduação em Psicologia, cujo objetivo foi investigar com-
portamentos, atitudes e práticas sexuais e prevenção em saú-
de de homens que fazem sexo com homens (HSH) e residem
na microrregião de Suape, no litoral de Pernambuco.
Nas duas últimas décadas, o número de casos novos
de Aids e a prevalência dela entre HSH permanece estabili-
zada em patamares elevados, apesar das várias iniciativas e
esforços, governamentais e não-governamentais, para dar res-
postas a esse problema. Esta situação se deve, entre outras
coisas, às condições em que HSH vivem a sexualidade, numa
cultura tradicionalmente homofóbica que se inscreve em pa-
drões morais, mas também em práticas institucionalizadas no
campo da saúde que dificultam o acesso aos serviços públicos
(Parker, 1991; Parker, 1998; Terto Jr., 2002).
Tal situação se torna ainda mais complexa quando nos
referimos a contextos de grande expansão econômica e sobre
os quais temos poucas informações, como é o caso do Com-
plexo Industrial Portuário de Suape (Galvão-Neto, 2013).
A amostra foi composta por 200 homens que se referiam
como HSH, com média de idade de 26 anos. Eles foram entre-
vistados em espaços de homossociabilidade e lazer, no muni-
cípio do Cabo do Santo Agostinho. O instrumento utilizado foi
Sexo entre homens em Suape - Celestino G. Neto e Benedito Medrado | 161

um roteiro estruturado em módulos temáticos que variavam em


número de perguntas. Os dados foram analisados por meio de
estatística descritiva e processados no Software SPSS (Versão
18).
Buscando facilitar o entendimento e a visualização de
como se deu a análise dos resultados e as discussões des-
tes, optamos por dividir este texto em três tópicos. No primei-
ro deles, apresentamos características sociodemográficas dos
estudados, em contexto específico de homossociabilidade. O
segundo focaliza informações sobre sexo, orientação sexual,
sexualidade e conjugalidade desta população, bem como so-
bre práticas sexuais e de prevenção em saúde. O terceiro e
último analisa informações sobre acesso e uso dos serviços de
saúde disponíveis na região, bem como identifica estratégias
de prevenção promovidas por esses serviços.

2 • Características sociodemográficas

Nossa amostra contou com 200 homens, com média de


idade de 26 anos e desvio padrão de 7,26. As idades variaram
entre 18 e 54 anos. A faixa etária predominante foi entre 18 e
25 anos, correspondendo a 53% dos sujeitos.
Em relação à residência, 88% dos entrevistados informa-
ram residir no município do Cabo de Santo Agostinho e 12%
em Ipojuca. No que diz respeito ao local de nascimento, 37,5%
disseram ter nascido no Cabo de Santo Agostinho, 21,5% em
Recife e 41% em outros, tanto de Pernambuco (25,5%) como
de outros estados do Brasil (15,5%). Essa primeira informação
indica, de antemão, que embora residam na região de Suape,
a maioria dos entrevistados (62,5%) não nasceu lá.
Outra importante característica da população de HSH,
bem como em outros estudos sobre a situação de saúde da
população em geral, é a categoria de raça/cor. Apenas recente-
mente essa informação foi contemplada na ficha de notificação
de casos de Aids. Sabe-se que há inúmeras variações quando
essa informação é obtida por meio da autodefinição, da mes-
162 | Acesso à educação e saúde

ma forma quando a definição é realizada pelos entrevistadores.


Pois, além das questões subjetivas que influenciam essas defi-
nições, deve-se considerar também a grande miscigenação de
raças do Brasil. Qualquer tentativa de classificação não está
isenta de problemas e possíveis questionamentos.
Em relação à cor/raça, 44% dos entrevistados se defi-
niram como pardos, 25,5% como brancos, 20,5% como pre-
tos, 4,5% como indígenas e 2,5% como amarelos. Seguindo o
padrão de classificação do IBGE, essa amostra apresenta um
percentual de negros (pretos + pardos) de 64,5%. Vale ressal-
tar que, em nossa amostra, os “pretos” (20,5%) representaram
um número percentual notavelmente maior do que o encon-
trado pelo Censo de 2010 para o município de Cabo de Santo
Agostinho (8,89%).
Ao analisar os resultados encontrados nesse quesito,
observa-se que a soma das categorias de raça/cor parda e
preta representa mais da metade da amostra (64,5%), dife-
rentemente do estudo realizado no Sudeste do país, no qual
a grande maioria (85%) se classificou como branco (Antunes,
2005). As divergências podem estar relacionadas, em parte,
pelas diferenças das condições socioeconômicas encontradas
no Sudeste e no Nordeste, mas também não se pode deixar
de considerar aspectos relativos à colonização com diferentes
padrões de imigrantes nas duas regiões, desde o século XVI.
No que diz respeito à religião, a maioria disse ter sido
criada nas religiões católica (60%) e evangélica (25%). No en-
tanto, quando questionados sobre a religião que frequentam
atualmente, a maioria (51,5%) disse não estar frequentando
nenhuma. Já quanto ao nível de religiosidade, a maioria (47%)
se disse moderadamente religiosa. Em relação à população
masculina que reside no Cabo de Santo Agostinho, os dados
do Censo 2010 vão na mesma direção apontando que a maioria
dos homens residentes professa as religiões católica (39,41%)
e evangélica (31,33%) e da mesma forma um número expres-
sivo (25,89%) afirmou não possuir religião.
Sexo entre homens em Suape - Celestino G. Neto e Benedito Medrado | 163

Quanto ao nível de instrução, 56% já concluíram o ensino


médio e 13,5% estão cursando o nível superior e 10,5% já con-
cluíram o ensino superior. Deles, 72,5% disseram estar exer-
cendo algum tipo de atividade remunerada, e com renda mé-
dia de R$ 2.124,00. Em relação à coabitação, mais da metade
(59,5%) disse estar morando com familiares e apenas 17,5%
disseram morar sozinhos. Essas informações podem ser me-
lhor observadas na tabela 1.

Tabela 1: Características sociodemográficas dos entrevistados*
164 | Acesso à educação e saúde

No que se refere às características sociodemográficas,


sabendo das limitações na construção de amostras com a po-
pulação HSH, acredita-se que foi possível obter uma diversi-
dade razoável, embora algumas tendências e padrões sejam
percebidos. Em relação à idade, por exemplo, os resultados
obtidos indicam que os HSH mais jovens estão mais represen-
tados na amostra, dado semelhante ao encontrado em outras
pesquisas com o mesmo recorte populacional (Parker, 1998;
Gondim, Kerr-Pontes, 2000; Antunes, 2005; Brignol, 2008;
Kerr-Pontes, 2009).
Sexo entre homens em Suape - Celestino G. Neto e Benedito Medrado | 165

As pesquisas realizadas com HSH apontam a dificuldade


de muitas vezes acessar pessoas com maior idade para serem
entrevistadas. Nesse caminho, Parker (1994) levanta a hipóte-
se de que os HSH nascidos entre as décadas de 1950 e 1960
fizeram parte de um momento histórico de maior repressão,
anterior ao surgimento das políticas para homossexuais e das
lutas políticas pela visibilidade pública, para além dos assim
considerados “guetos”.
Assim, possivelmente, os valores e os aspectos sociocul-
turais que marcam/inscrevem a vulnerabilidade dessa popula-
ção podem ter interferido na maneira como estes assumem a
identidade em relação à sexualidade e consequentemente no
acesso a esses indivíduos.
Ainda em relação às características sociodemográficas,
há uma representação expressiva de pessoas mais escolari-
zadas. Tal aspecto se assemelha a resultados encontrados em
vários estudos realizados em grandes centros do Brasil (Pa-
rker, 1998; Antunes, 2005; Vieira, 2006; Brasil, 2010).
No que se refere à renda e situação laboral, como dito
anteriormente, percebe-se que a maioria das pessoas entrevis-
tadas se encontra empregada e com uma renda média acima
do salário mínimo, porém, contando com uma variação gran-
de dentro da amostram, sendo a menor renda de R$ 250,00
e a maior de R$ 15.000,00 (informante que disse ser proprie-
tário de estabelecimento comercial) - a variabilidade pode ser
observada também no estudo de Antunes (2005). Essa renda
elevada também pode estar relacionada com o fato da grande
maioria dos entrevistados (59,5%) afirmar residir com familia-
res, pois, ao perguntarmos sobre renda, nós nos referimos à
renda familiar.
No que diz respeito à religião e religiosidade, observou-
-se uma diferenciação entre a religião na qual os entrevistados
foram criados e a que professam, com quedas entre aqueles
que foram educados dentro de padrões católicos indo de 60%
para 20%, evangélicos de 25% para 19% e aumento nas reli-
giões de matriz afro-brasileira (umbanda e candomblé) de 2%
166 | Acesso à educação e saúde

para 8% e, nas religiões espírita ou kardecista, de 3% para 5%.


Porém, o que está mais expressivo é o grande aumento de
pessoas que dizem não frequentar, no período da entrevista,
nenhuma religião (indo de 9% para 51%), o mesmo padrão nos
resultados pode ser observado em pesquisa realizada no Rio
de Janeiro (Carrara, 2005), bem como em pesquisa realizada
em Recife (Carrara et al, 2007).

3 • Sobre sexo, orientação sexual, sexualidade


e conjugalidade

Dos 200 HSH entrevistados, todos se disseram do sexo


masculino ao nascer e, quando perguntados sobre a orienta-
ção sexual/ identidade sexual, foram produzidas respostas di-
versas: 65,5% se definiram como gays (36%) ou homossexuais
(29,5%), 16% como bissexuais, enquanto que 4,5% se defini-
ram como heterossexuais, conforme mostra a tabela 2.
Observando a tabela 2, podemos perceber uma plurali-
dade de nomeações assumidas no que se refere à identidade/
orientação sexual dos homens entrevistados. Partindo de uma
noção de comunidade estabelecida por meio de afinidades em
que as diferenças são reconhecidas, a identificação nestes
espaços de homossociabilidade parece ocorrer muito mais no
âmbito do compartilhamento da diversidade, inserido no campo
do desejo (Rios, 2004).
No que diz respeito ao estado civil, 41% disseram estar
solteiros, 22,5% ficando, 21% namorando e 12,5% casado. En-
tre os que disseram estar em algum tipo de arranjo conjugal,
15% disseram estar se relacionando com gay, 17% com ho-
mossexual, 14% com heterossexuais e 8% bissexuais. A maio-
ria (32,5%) disse estar nesse relacionamento há menos de um
ano. Junto a isso, 11% afirmaram ter filhos, dos quais apenas
um foi adotado. Os demais provêm de relacionamentos hete-
rossexuais anteriores.
Sexo entre homens em Suape - Celestino G. Neto e Benedito Medrado | 167

Tabela 2: Sociabilidade homossexual


168 | Acesso à educação e saúde

Os lugares - nos quais conheceram o parceiro atual ou o


último parceiro - mais citados foram locais públicos (33%), bares,
boates ou festas gay (14%). Internet, casa de amigos e bares
e boate hetero foram referidos por 10% da amostra. Pesquisas
anteriores destacam os amigos, bares e boates como as formas
mais comuns de encontro dos parceiros sexuais (Brasil, 2010;
Kerr-Pontes, 2009).
Quando questionados sobre para quem já assumiram a
sexualidade, 93% disseram já ter assumido para amigos, 74%
para colegas de trabalho, 72,5% para familiares, 62% para cole-
gas de escola ou faculdade, 58% para profissionais de saúde e
apenas 3% disseram não ter relatado a orientação sexual para
ninguém. Vale ressaltar que nossa pesquisa foi realizada, como
dito anteriormente, em espaços de lazer e homossociabilidade,
portanto, esperar-se-ia que, de fato, a maioria dos entrevistados
não tivesse dificuldade com expressar a sexualidade.
Sexo entre homens em Suape - Celestino G. Neto e Benedito Medrado | 169

4 • Sobre práticas sexuais e de prevenção

A média de idade em que os entrevistados se iniciaram


sexualmente foi de 15 anos, sendo a idade mínima 5 e a má-
xima 26, com desvio padrão de 9,92. A maioria (80%) disse
ter iniciado a vida sexual com homens. Essa mesma tendência
pode ser observada no estudo de Andrade (2007). No entan-
to, uma iniciação mais cedo é uma tendência não só entre os
HSH - pode ser observada na população em geral como no
estudo de Ribeiro (2010), em que as pessoas estão iniciando
cada vez mais cedo a vida sexual. Essa precocidade pode vir
a se configurar em uma maior vulnerabilidade às DST e à Aids
(Andrade, 2007). Teria sido de grande relevância saber a idade
do(a) parceiro(a) na primeira relação sexual, porém, esta ques-
tão não foi incluída no instrumento.
Pensar na juvenilização da epidemia do HIV/Aids (au-
mento da incidência de casos de Aids em pessoas cada vez
mais jovens) implica falar não somente sobre a não incorpo-
ração do sexo seguro no cotidiano sexual. Nem tampouco li-
mitar a um estado de transição para a vida adulta perpassada
por irresponsabilidades próprias da fase “adolescente”. Mas,
pode-se considerar que as pessoas têm iniciado a vida sexual
cada vez mais cedo e, ainda, que formas de exclusão também
podem (e em geral são) estruturantes para a vulnerabilidade.
De tal modo, a prevenção pode ser mais bem discutida se con-
siderados aspectos como o erotismo, os prazeres do corpo
e os desejos de transgressão. Ao passo que também se faz
necessário encarar a possibilidade de construção de sujeitos
conscientes e capazes de exercer autonomia (Rios, 2004).
Considerando o uso de preservativos nas parcerias fixas
e casuais, nos últimos seis meses, perguntamos sobre esse
uso em algumas situações, obtendo o resultado apresentado
na tabela 3.
170 | Acesso à educação e saúde

Tabela 3: Uso de camisinha segundo tipo de parceria e sexo dos


parceiros

(*) Não foi perguntado, embora, no momento da análise, percebemos que


poderiam ter sido incluídas.
(**) Não se aplica.

Do total dos entrevistados, 63,5% disseram usar preser-


vativos nas relações sexuais com parceiros(as) fixos, enquanto
65,8% em relações com parceiros casuais. Do total que respon-
deu positivamente a questão sobre ter parceria casual, 58,3%
disseram ter tido parceria fixa no mesmo período.
No que se refere à parceria fixa, 75,4% disseram fazer
uso do preservativo no sexo anal passivo com homem e 63,7%
disseram usar preservativo na prática do sexo anal ativo com
homem, porém, apenas 13% no sexual anal ativo se a parceira
for mulher e 16,4% no sexo vaginal. Apenas 36% dos entrevis-
tados informaram usar preservativos em práticas sexuais com
sexo oral ativo (chupar o parceiro). Além disso, 53,3% disseram
ter feito sexo oral ativo sem preservativo, sem ejaculação, po-
rém, 18% dos HSH disseram ter engolido esperma nesta práti-
ca. Quando perguntados sobre propor a camisinha a parceiros
fixos, a maioria (85,2%) alegou não ter nenhuma dificuldade
nessa negociação. Quanto ao sexo oral vaginal, 80,2% dos en-
trevistados disse não ter realizado tal prática.
Em relação ao uso da camisinha nas parcerias casuais,
76,6% disseram fazer uso no sexo anal passivo com homem e
73,2% disseram usar preservativo na prática do sexo anal ativo
com homem, porém, apenas 8,8% no sexual anal ativo se a
Sexo entre homens em Suape - Celestino G. Neto e Benedito Medrado | 171

parceira for mulher e 13,9% no sexo vaginal. Apenas 49,2% dos


entrevistados informaram usar preservativos em práticas sexu-
ais com sexo oral ativo (chupar o parceiro). Além disso, 54,8%
disseram ter feito sexo oral ativo sem preservativo, sem ejacu-
lação, porém, 12,1% dos HSH disseram ter engolido esperma
nesta prática. Quando perguntados sobre propor a camisinha a
parceiros fixos, a maioria (77,3%) alegou não ter nenhuma difi-
culdade nessa negociação. Quanto ao sexo oral vaginal, 85,3%
dos entrevistados disse não ter realizado tal prática.
Ao confrontar os dados relativos às duas formas de par-
ceria (fixa e casual), percebemos uma tendência ao uso fre-
quente do preservativo, porém, as práticas consideradas de
risco, acima referidas, ainda se configuram com taxas preo-
cupantes. Quanto ao sexo vaginal, as porcentagens de uso de
preservativo foram bem menores, no entanto, deve se levar em
consideração o número alto de entrevistados que se abstive-
ram de responder as questões referentes a tal tipo de prática,
por não manterem relações sexuais com mulheres, tendo em
vista que na amostra total contamos com apenas 3,5% pesso-
as que se definiram como bissexuais e 4,5% heterossexuais
que se referiram com estas identidades/orientações sexuais,
número relativamente pequeno para que possamos ter mais in-
formações sobre a prática de sexo mais seguro por parte deste
recorte populacional.
Levando em consideração o uso ou não do preservativo
nas relações sexuais da população em estudo, perguntou-se
aos entrevistados sobre as práticas sexuais em especial a do
anal passivo e ativo. Dos 77% da amostra que afirmou já ter
realizado prática de sexo anal passivo, 54,1% disse não saber
o resultado do teste de HIV de alguns dos parceiros. Quan-
to ao sexo anal ativo, dos 71,7% que afirmaram realizar essa
prática, 48,9% disseram não saber o resultado do teste de HIV
de alguns dos parceiros e, da mesma forma, 24,8% afirmaram
que todos os parceiros tinham o mesmo resultado que eles no
referido exame.
172 | Acesso à educação e saúde

Chama a atenção o fato de que o uso de preservativos


na prática de sexo anal e oral ativos com homens é maior entre
parcerias casuais, quando comparados às parcerias fixas. Nas
demais práticas sexuais, não se observa diferença relevante.
Além disso, o uso de preservativos na prática de sexo anal com
parceiros fixos com homens é maior se o entrevistado se colo-
ca como passivo.
Em relação ao uso de preservativos, quando perguntados
se consideravam a camisinha eficiente, 82% concordaram que
o preservativo é uma medida de prevenção adequada, porém,
ao serem questionados se a camisinha estoura com facilidade,
44% concordaram.
Além disso, ao serem questionados se eram capazes
de usar a camisinha com todos os parceiros sexuais, 14,5%
afirmaram que não, que se sentiam incapazes. Desse total,
a maioria (64,3%) se definiu como gays e/ou homossexuais,
17,9% como bissexuais, 10,7% como travestis e 7,1% como
entendidos. A faixa etária com maior predominância foi a de
18 a 25 anos (57,1%). Não houve casos na faixa que vai dos
42 anos acima. A maioria (57,2%) estava em algum tipo de re-
lacionamento (ficando, namorando ou casado), enquanto que
42,9% se disseram solteiros. Já 53,3% disseram estar em um
relacionamento a menos de um ano.
Quando questionados se sempre usaram camisinha no
sexo anal nos últimos seis meses, a maioria (31%) disse que
não. Desse total, as causas mais recorrentes foram “por conhe-
cer/confiar no parceiro” (58,3%), “por estar com muito tesão”
(50%), “pelo parceiro parecer saudável” (40%).
Além disso, ao serem perguntados se paravam de usar
camisinha com parceiro após algum tempo, 42,1% disseram
sim, sendo o motivo mais recorrente a “confiança no parcei-
ro” (73,8%); outra resposta mais recorrente foi a realização do
teste HIV (17,8%) - estas também foram as mais recorrentes
no estudo de Antunes (2005). Dos entrevistados que disseram
não parar de usar preservativo nas práticas sexuais, a despeito
do tempo de relação, 53,2% disseram não frequentar nenhu-
Sexo entre homens em Suape - Celestino G. Neto e Benedito Medrado | 173

ma religião atualmente (apenas 16,5% se disseram católicos


e 11% evangélicos); no que diz respeito à faixa-etária, o maior
número de respondentes se concentrou na que vai de 18 a 25
anos (53,2%). Quanto à escolaridade, 59,6% deles têm o en-
sino médio completo. Entre esses que disseram não parar de
usar a camisinha, 36,7% se disseram gays, 26,6% homossexu-
ais, 17,4% bissexuais, 5,5% entendidos, 5,5% heterossexuais,
3,7% transexuais e 2,8% travestis.
Também foi perguntado se estes carregavam camisinha
consigo no momento da entrevista: 49,5% disseram estar por-
tando camisinha e 50,5% disseram que não. Os motivos dos
que disseram não estar carregando camisinhas foram: sem
intenção de fazer sexo (42%), esquecimento (15%), por estar
num relacionamento (11%) e não usar (2%). Os motivos alega-
dos pelos que disseram estar portando camisinha foram pre-
venção (61%), habito (7,79%), “ganhou” (10,4%) e porque ia
encontrar o parceiro (6,49%). Dos que haviam dito sempre usar
camisinha no sexo anal, 42,8% deles não estavam portando
camisinha na hora em que foram entrevistados. Dentre os que
disseram estar portando camisinha, a média de camisinhas por
respondente foi de 3,55 com desvio padrão de 2,89. Vale res-
saltar que 2,5% disseram nunca ter usado camisinha nas rela-
ções sexuais.
Quando perguntados se já haviam feito o teste HIV, 35,8%
disseram já ter feito pelo menos uma vez, 25,4% afirmaram fa-
zer periodicamente e 20,7% disseram ter feito apenas uma vez.
Dos HSH entrevistados, 17,6% disseram nunca ter feito o teste
(11,9% disseram ter vontade de fazer e 5,7% por não ter vonta-
de). Apenas uma pessoa não respondeu ou não sabia. A média
de tempo do último teste foi de aproximadamente um ano com
desvio padrão de 20 meses, o mínimo foi um mês e o máximo
de 120 meses. Em relação ao teste para HIV, os resultados
indicam que a população estudada se testa muito, semelhan-
temente aos achados de outros estudos (Ferraz, 2003; Lima et
al, 2008; Silva, 2004; Costa, 2007). Essa informação provoca
questionamentos em torno da possibilidade da testagem estar
174 | Acesso à educação e saúde

sendo utilizada como uma forma de prevenção e negociação


entre os parceiros sexuais. Mesmo tendo encontrado alguns
indícios de que isto esteja ocorrendo, não se pode afirmar por
não ser esta uma amostra que possibilite generalização.
Perguntamos também qual era a chance deles de con-
trair Aids, 29,3% afirmaram ter pouca chance, 27,3% disseram
ter muita, 24,7% disseram não ter nenhuma e 18,6% média.
Ao serem questionados se alguma vez sentiram que poderiam
ter sido infectados, 55,1% disseram ter sentido essa sensação
poucas vezes, 37,2% disseram que não, 5,6% muitas vezes
e 2% apenas disseram se sentir assim sempre. Entre os que
disseram poucas vezes terem sentido que poderiam ser infec-
tados, 20,4% disseram não ter chance de contrair Aids e a mes-
ma porcentagem disse ter muita chance; entre os que disseram
não haver possibilidade de contágio, 49,3% afirmaram não ter
chance de infecção e 13,7% disseram ser moderada a possibi-
lidade de contágio. O mesmo pode ser observado em estudos
como o de Brignol (2008), no qual a maioria dos participantes
declarou se sentir com pouco risco de contrair o HIV. Esse tipo
de resposta pode estar atrelada a um sentimento de invulnera-
bilidade.
Pensando nos locais de encontro e homossociabilidade,
foi perguntado quanto à dificuldade em usar a camisinha nes-
ses lugares. Dos que disseram usar 14,5%, acham difícil o uso
na praia/cachoeira/campo, 12% na rua, 9,5% na própria casa,
9% em motéis/hotéis, 9% na casa de familiares, 8,5% no carro,
8,5% em parques, 8% na casa do parceiro, 5,5% na sauna,
4,5% em banheiros públicos e 4,5% no dark-room. No entanto,
em todos os lugares citados, o percentual de pessoas que res-
ponderam “não usar o local” foi superior ao de respostas “mais
fácil” e “mais difícil”. De acordo com estudos anteriores (Rios,
2003; Parker, 2004), os espaços de “pegação” geralmente são
os locais em que se encontram os parceiros anônimos. Pelas
situações de exposição e transgressão em que acontecem os
encontros, possivelmente o não uso de preservativo pode ser
mais uma atitude de transgressão valorizada eroticamente, no
Sexo entre homens em Suape - Celestino G. Neto e Benedito Medrado | 175

entanto, não é o que se observa, pois lugares que não assu-


mem essas características tiveram uma percentagem alta de
dificuldade de uso, denotando que há várias configurações e
reconfigurações quanto aos usos do preservativo que podem
estar ligadas a vários determinantes.
Ainda sobre as práticas sexuais, perguntamos a frequên-
cia com que o entrevistado usou algumas substâncias antes ou
durante a transa, nos últimos seis meses. No que diz respeito
ao uso de álcool, 33,2% disseram nunca ter feito uso, porém,
30,5% disseram estar frequentemente sob efeito desta subs-
tância antes ou durante o sexo. Quanto à maconha, cocaína,
inalantes e crack: respectivamente, 80,3%, 89,6%, 88,1% e
95,9% disseram não fazer uso dessas substâncias nunca antes
ou durante as relações sexuais.
Ao serem questionados sobre as fontes pelas quais ob-
têm informações sobre Aids, 83,5 % disseram receber infor-
mações por folhetos, 83,4% pela TV, 83,3% via internet, 75%
disseram receber informações de amigos, 72,5% de jornais,
67,5% dos parceiros, 67,5% do médico, 61,7% de jornais para
o público gay, 52,8% do rádio e 51% dos familiares. A partir
disso, podemos inferir que a educação sexual está se dando
de forma mais informal e fluída do que nas grandes instituições
sociais como família e escola. As que se espera que sejam os
grandes responsáveis pela circulação de informações nesse
contexto do HIV/Aids não são as mais efetivas. Por este motivo
que o Departamento Nacional de DST, Aids e Hepatites virais
optou, recentemente, por criar perfis nas redes sociais a fim de
assegurar o acesso às informações de prevenção para popula-
ções vulneráveis, entendendo que este tipo de estratégia pode
ser bem mais eficaz e abrangente.
176 | Acesso à educação e saúde

5 • Sobre acesso e uso dos serviços de saúde disponíveis


na região e estratégias de prevenção que promovem

Na tentativa de obter informações em relação ao uso dos


serviços de saúde pela população de HSH da microrregião de
Suape, foi perguntado se estes já haviam feito uso em algum
momento: 76,8% responderam positivamente ao questiona-
mento. Aos outros 23,2% que responderam negativamente,
foram questionados os motivos do não uso. Desse subtotal,
51,3% disseram não usar por possuir plano de saúde/ serviço
particular e 38,5% não precisaram/ não frequentaram. Ainda
sobre os que responderam não fazer uso dos serviços, foi per-
guntado o que estes fazem quando acreditam estar doentes:
63,3% disseram buscar um serviço particular, 20% realizar au-
tomedicação e 13,3% disseram usar outras formas de cuidado.
Esses dados apontam para uma diferenciação em relação ao
estudo de Lima et al (2008) que indica, nos resultados de pes-
quisa realizada em Brasília, que a maioria dos HSH faz uso dos
serviços particulares em sua maioria.
Questionamos sobre qual a última vez em que os entrevis-
tados procuraram pelos serviços públicos de saúde. Entre aque-
les que faziam uso desse serviço, 62,3% relataram que o fizeram
há menos de seis meses, como mostra a tabela 4. Na intenção
de compreender de que forma se dá o uso dos serviços de saú-
de, separamos as questões em quatro blocos temáticos: 1) porta
de entrada; 2) acesso; 3) vínculo; 4) prevenção nos serviços de
saúde - todas as respostas são apresentadas na tabela 4.
No que diz respeito à “Porta de entrada”, como pode ser
observada na tabela 4, a maioria das porcentagens indica que
os participantes da pesquisa utilizam os postos/unidades/cen-
tros de saúde quando precisam de algum tratamento preventivo
(69,8%), quando têm algum problema de saúde (71,2%) e quan-
do precisam de atendimento antes de buscar um especialista,
desde que não seja em caso de emergência (59%). A partir do
que é apresentado ainda naquele item da tabela 4, entende-se
que tal serviço, em especial, frequentado por esses HSH está
Sexo entre homens em Suape - Celestino G. Neto e Benedito Medrado | 177

Tabela 4: HSH e serviços de saúde


178 | Acesso à educação e saúde

acessível às necessidades do público, então, estariam em con-


formidade com a dimensão do acesso que Sanchez e Ceconelli
(2012) denominam de disponibilidade, ou seja, serviços abertos
e funcionando no momento em que se fazem necessários aos
usuários.
No que diz respeito ao acesso a esses serviços, quan-
do perguntados sobre a facilidade em conseguir uma consulta,
a maioria (47,4%) respondeu ter dificuldade; quanto a estes
postos/unidades/centros estarem abertos nos fins de semana,
48,7% dos respondentes disseram que não; 70,3% disseram
esperar mais de 30 minutos por uma consulta; e 62% disseram
deixar de trabalhar quando precisam de alguma consulta nos
serviços públicos de saúde. Quanto à gratuidade dos serviços
públicos, 73,8% disseram não pagar nem ajudar financeira-
mente. As informações relativas a estes aspectos podem ser
melhor visualizadas no item “Acesso aos serviços de saúde”,
na tabela 4.
Sexo entre homens em Suape - Celestino G. Neto e Benedito Medrado | 179

Quando foram abordadas questões diretamente ligadas


à efetiva utilização dos HSH dos serviços de saúde, percebe-
-se uma diferença quanto à porta de entrada. Parece que as
garantias de um atendimento que realmente supram as ne-
cessidades dos usuários não ocorrem, do ponto de vista dos
entrevistados, indo de encontro com medidas presentes tanto
no Plano Nacional de Saúde Integral LGBT, como do próprio
Plano de Enfrentamento Estadual da Epidemia de Aids e das
DST entre Gays, HSH e Travestis. Tais documentos defendem
que estes serviços estejam prontos a atender às demandas no
momento em que ocorrem, sem interferir na rotina dos usuários
de forma drástica, contribuindo assim para a não procura pelos
serviços, configurando-se como um impeditivo e influenciando
na vulnerabilidade das pessoas aos agravos em saúde.
Quanto ao vínculo, quando perguntados se eram exami-
nados pelo mesmo profissional de saúde nas idas aos serviços,
44,9% responderam que nunca. E 51,3% disseram sempre ter
tempo para explicar aos profissionais as preocupações e tirar
dúvidas; 58,1% disseram que esses profissionais sempre com-
preendem bem as perguntas; e 59,6% afirmaram que os pro-
fissionais sempre respondem as perguntas de maneira clara.
A relação entre profissionais de saúde e usuários dos
serviços é um dos pontos mais relevantes em todos os docu-
mentos relacionados ao acesso aos serviços, tanto para a po-
pulação em geral, quanto na população de HSH, por ser a partir
dessa interação que se materializam os princípios do Sistema
Único de Saúde (SUS) e que se dá um atendimento igualitário.
Por este motivo, o vínculo está intimamente ligado à dimensão
apresentada por Sanchez e Ciconelli (2012) da aceitabilidade,
que consiste na harmonização entre expectativas dos profis-
sionais e dos usuários e que está baseada principalmente no
respeito mútuo. Por isso, no momento em que os entrevistados
deste estudo dizem se sentir à vontade para explicar proble-
mas e dificuldades e se sentem compreendidos e aceitos nos
serviços, isso aumenta a confiança destes nas ações contri-
buindo fortemente para um acesso universal a estas. E esse
180 | Acesso à educação e saúde

retorno dos HSH aos serviços acrescido da confiança pode ca-


racterizar como redutor de vulnerabilidades (Mello et al, 2011;
Cardoso e Ferro, 2012).
Quanto à prevenção nos serviços de saúde, 51,8% disse-
ram sempre haver propagandas, campanhas ou trabalhos edu-
cativos realizados pelos profissionais, e 52% dos respondentes
afirmaram que os serviços sempre ofereceram teste de HIV/
Aids. Da mesma forma, 73,7% afirmaram que estes sempre
distribuem camisinhas. Ao serem perguntados se se sentiam
constrangidos em falar sobre doenças sexualmente transmissí-
veis com os profissionais de saúde, a maioria (73,2%) respon-
deu que nunca se sentiu dessa forma.
A prevenção é algo de extrema importância principal-
mente ao se falar da população de HSH, por ser considerada
de vulnerabilidade acrescida. Por este motivo, ao serem anali-
sadas as informações dispostas no quadro acima, parece que
este serviço citado pelos entrevistados segue as normas e está
em conformidade com os objetivos traçados desde a 13ª Con-
ferência Nacional de Saúde (CNS) (2008) até chegar ao Plano
de Estadual de Enfrentamento (2010), pois assegura aos seus
usuários os insumos necessários para um maior conhecimento
sobre os problemas de saúde que acometem essa população
de HSH, abarcando a dimensão da informação, tendo em vista
que se entende que usuários bem informados dialogam melhor
com o sistema de saúde, facilitando a atuação deste na criação
de políticas públicas da área e planos mais resolutivos, contri-
buindo para a continuidade do uso dos serviços pela população
que este atende (Sanchez e Ciconelle, 2012).
Buscando comparar algumas características entre os
HSH que fizeram e os que não fizeram uso dos serviços de
saúde, produzimos a tabela 5, que, a seguir, apresenta melhor
as semelhanças e/ou diferenças entre esses grupos.
A partir da tabela abaixo, podemos perceber que, de acordo
com os entrevistados, a faixa etária que mais procurou os serviços
foi a que vai de 18 a 25 anos para ambos os grupos. A maioria em
todas as “categorias” identitárias fez uso dos serviços de saúde.
Sexo entre homens em Suape - Celestino G. Neto e Benedito Medrado | 181

Tabela 5: Comparativo entre os HSH que disseram fazer uso e os


que disseram não fazer uso dos serviços de saúde
182 | Acesso à educação e saúde

No grupo que fez uso dos serviços, os entrevistados afirmaram


terem muita chance de contrair Aids, enquanto que, no grupo
que não fez uso, a maioria disse não ter chance alguma de
contrair esta síndrome. Essa relação entre não fazer uso dos
serviços de saúde e achar que não tem chances de contrair
HIV denota ou muita segurança em práticas saudáveis ou alhe-
amento, desinformação quanto aos cuidados em saúde, o que
se constitui num impedimento para a prevenção e aumento da
vulnerabilidade. Ambos os grupos consideraram a camisinha
segura e eficiente e se consideraram capazes de usar a camisi-
nha com todos os respectivos parceiros sexuais. Quanto à tes-
tagem para o HIV, a maioria em ambos os grupos disse ter feito
algumas vezes o exame; no grupo que fez uso dos serviços, a
maioria disse não parar de usar a camisinha; já no grupo que
não fez uso dos serviços, metade disse parar de usar e a outra
metade disse não parar de usar a camisinha. Mais uma vez, o
grupo que não faz uso do serviço de saúde tem práticas mais
“perigosas”. O que pode demonstrar também que os serviços
de saúde são meios fortes de conscientização e informação
sobre prevenção. Quanto a se sentirem contaminados com o
HIV em algum momento, a maioria do primeiro grupo disse ter
sentido isso poucas vezes; o mesmo aconteceu com o grupo
que não fez uso dos serviços.
Em linhas gerais, consideramos que o conjunto de infor-
mações apresentadas aqui pode contribuir para o desenvol-
vimento de ações interventivas e de promoção à saúde junto
à população LGBT da região de Suape, cujas leituras podem
Sexo entre homens em Suape - Celestino G. Neto e Benedito Medrado | 183

ser aprofundadas a partir de contrastes com outras pesquisas


e talvez com o desenvolvimento de análises estatísticas mais
complexas, para as quais se exigiria mais tempo.

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e/ou integrantes da comunidade entendida do Rio de Janeiro. Tese
(Doutoramento em Saúde Coletiva), Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.

RIOS, L. F. Parcerias e práticas sexuais de jovens homossexuais no


Rio de Janeiro. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 19,
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SANCHEZ. R. M.; CICONELLI, R. M. Conceitos de acesso à saúde.


Rev. Panam Salud Publica. n. 31, v. 3, p. 260–8. 2012.

SANTOS, M. A. Prostituição masculina e vulnerabilidade às DSTs/


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186 | Acesso à educação e saúde

VIEIRA, N. A. Entendendo que entende: comportamentos, atitudes e


práticas de risco e de prevenção para aids entre homens que fazem
sexo com homens. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública), Centro
de Pesquisa Aggeu Magalhães, Recife, 2006.
SOBRE OS AUTORES

Amanda França Pereira: graduanda em Psicologia pela Uni-


versidade Federal de Pernambuco (UFPE) e participante do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic),
desta instituição de ensino. Realiza pesquisas no Laborató-
rio de Estudos da Sexualidade Humana (LabESHU). Contato:
amanda_fp13@hotmail.com.

Amanda Pereira de Albuquerque: graduanda em Psicologia


pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), participan-
te do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica,
ligado à Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia de Per-
nambuco (Pibic-Facepe) e pesquisadora no LabESHU. Conta-
to: amanda.palbuquerque@hotmail.com.

Benedito Medrado: doutor em Psicologia Social pela Pontifí-


cia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professor
adjunto da UFPE, vinculado ao Departamento de Psicologia
e ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPG-Psi).
É colaborador do Programa de Pós-Graduação em Estudos
sobre a Mulher da Universidad de Valência (Espanha), líder
do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Masculinidades (Gema-
-UFPE) e bolsista de produtividade em pesquisa do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Coordenou a equipe “Homens, Gênero e Saúde: Diálogos com
os Trabalhadores das Terceirizadas”, do Programa Diálogos
Suape. Contato: beneditomedrado@gmail.com.

Celestino José Mendes Galvão Neto: doutorando em Saúde Públi-


ca pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz-PE), pesquisador do Gema/
UFPE e colaborador no Núcleo de Pesquisas em Vulnerabilidade e
Promoção da Saúde (NPVPS-UFPB). Participou da equipe “Homens,
Gênero e Saúde: Diálogos com os Trabalhadores das Terceirizadas”,
do Programa Diálogos Suape. Contato: celestino.galvao@gmail.com.
188

Clóvis Cabral de Lira Filho: graduando em Psicologia pela


UFPE, bolsista do Pibic/FACEPE e pesquisador no LabESHU.
Contato: clovis_clf@hotmail.com.

Cristiano José de Oliveira Junior: graduando em Psicologia


pela UFPE e bolsista do Pibic/UFPE vinculado ao LabESHU.
Contato: cristiano.stauros@yahoo.com.br.

Daniela Torres Barros: mestra em Psicologia pela UFPE e psi-


cóloga do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
de Pernambuco - Campus Recife. Integrou a equipe “Chá de
Damas”, do Programa Diálogos Suape. Contato: danitorres_
psi@yahoo.com.br.

Gelson Panisson: graduando em Psicologia pela Universida-


de Federal de Santa Catarina (Ufsc) e participante do grupo
de pesquisa Clínica da Atenção Psicossocial e Uso de Álcool
e Outras Drogas. Também é integrante do grupo de pesquisa
Psicologia da Saúde e do Desenvolvimento Humano, da UFSC.
Contato: gpanisson@gmail.com.

Henrique Caetano Nardi: doutor em Sociologia pela Univer-


sidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pós-doutor
na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS)
de Paris, professor associado à UFRGS, diretor do Instituto
de Psicologia, integrante do Programa de Pós-graduação em
Psicologia Social e Institucional e coordenador do Núcleo de
Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero (Nupsex) e
do Centro de Referência em Direitos Humanos: Relações de
Gênero, Diversidade Sexual e Raça (CRDH). Atua ainda como
pesquisador associado ao Institut de Recherche Interdiscipli-
naire sur les Enjeux Sociaux (IRIS-EHESS), membro do grupo
Frontières Identitaires et Représentations de l’Alterité (FIRA) e
integrante do grupo de trabalho Psicologia, Política e Sexuali-
dades, da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação
em Psicologia (Anpepp). Contato: hcnardi@gmail.com.
189

Lady Selma Ferreira Albernaz: doutora em Ciências Sociais


pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pós-dou-
tora em Antropologia no Instituto Superior de Ciência do Traba-
lho e da Empresa - Instituto Universitário de Lisboa (Portugal).
Atualmente, é professora da UFPE, atuando no Departamento
de Antropologia e Museologia e no Programa de Pós-Gradua-
ção em Antropologia. É integrante do Nucléo de Família, Gêne-
ro e Sexualidade (Fages) da UFPE. Fez parte da equipe “Chá
de Damas”, do Programa Diálogos Suape. Contato: selma.al-
bernaz@gmail.com.

Leandro Castro Oltramari: doutor em Ciências Humanas pela


Ufsc e professor adjunto III desta instituição. Participa do grupo
de pesquisa Psicologia e Processos Educacionais, do grupo
Instituto de Estudos de gênero e é vice-lider do grupo de pes-
quisa Clínica da Atenção Psicossocial e Uso de Álcool e Outras
Drogas.

Luciana Leila Fontes Vieira: doutora em Saúde Coletiva pelo


Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (Uerj), professora adjunta do Departamento
de Psicologia da UFPE e integrante do PPG-Psi. Está à frente
da Diretoria LGBT da UFPE e faz parte do grupo de trabalho
Psicologia, Política e Sexualidades da Anpepp. É pesquisadora
associada ao LabESHU e líder do Núcleo de Pesquisa e Es-
tudo em Clínica Contemporânea (Nupecc). Integrou a equipe
“Chá de Damas”, do Programa Diálogos Suape. Contato: lufon-
tesvieira@hotmail.com.

Luís Felipe Rios: doutor em Saúde Coletiva pelo IMS-Uerj,


professor associado ao Departamento de Psicologia da UFPE
e integrante do PPG-Psi. É líder do LabESHU, bolsista de pro-
dutividade em pesquisa do CNPq e faz parte do grupo de traba-
lho Psicologia, Política e Sexualidades, da Anpepp. Coordenou
o Programa Diálogos Suape. Contato: lfelipe.rios@gmail.com.
190

Marivete Gesser: doutora em Psicologia pela UFSC, profes-


sora adjunta III no curso de Psicologia e no Programa de Pós-
-Graduação em Psicologia da UFSC, além de ser integrante do
Laboratório de Psicologia Escolar e Educacional desta institui-
ção, do Margens - Núcleo de Estudos Modos de Vida, Família e
Relações de Dênero e do Núcleo de Estudos sobre Deficiência
(NED). Participa do grupo de trabalho Psicologia, Política e Se-
xualidades, da Anpepp. Foi pesquisadora do Ministério da Edu-
cação (MEC) no âmbito da Prevenção às Violências na Escola.
Contato: marivete@yahoo.com.br.

Paula Sandrine Machado: doutora em Antropologia Social


pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professora
desta instituição, estando vinculada ao Instituto de Psicologia
e ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Ins-
titucional. Participa do Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e
Relações de Gênero (Nupsex) e do Centro de Referência em
Direitos Humanos: Relações de Gênero, Diversidade Sexual e
Raça (CRDH) do Instituto de Psicologia da UFRGS. Participa
do grupo de trabalho Psicologia, Política e Sexualidades, da
Anpepp. Contato: machadops@gmail.com.

Tacinara N. de Queiroz: doutoranda em Psicologia pela UFPE


e pesquisadora do LabESHU. Integrou as equipes “Ação Juve-
nil”, “Caravana da Cidadania” e “Observatório Suape”, do Pro-
grama Diálogos Suape. Contato: tacinq@hotmail.com.

Viviane Melo de Mendonça: doutora em Educação pela Uni-


camp e professora associada à Universidade Federal de São
Carlos (UFSCar). Participa dos grupos de pesquisa Educação,
Comunidade e Movimentos Sociais e Núcleo de Estudos e
Pesquisas Tecnologia, Cultura e Sociedade, além de coorde-
nar o Núcleo de Estudos de Gênero e Diversidade Sexual, liga-
do ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEd) da
UFSCar-Sorocaba. Contato: viviane@ufscar.br.
191

Warlley Joaquim de Santana: graduando em Psicologia pela


UFPE, bolsista pelo Pibic-facepe e pesquisador no LabESHU.
Contato: warlley_knot@hotmail.com.


Os(as) autores(as) que tomam voz em "Gays, lésbicas e tra­
vestis em foco: diálogos sobre sociabilidade e acesso à edu­
cação e saúde" nos interpelam sobre quais estratégias deve­
ríamos inventar para incorporarmos na comunidade humana
as vivências LGBT. Seja no âmbito das universidades, seja
circunscrito à educação básica e média, seja no campo da
atenção à saúde, seja nos coletivos feministas e LGBT, seja
na própria comunidade homossexual, a tônica presente é o
chamamento para construção de um mundo possível para as
múltiplas experiências de gênero e sexualidade. Organizamos
o conjunto de textos em duas partes. A primeira, Contextos de
sociabilidade, é composta de três textos que abordam espa­
ços em que pessoas com práticas homossexuais transitam,
refletindo sobre como constituem/assumem posições identi­
tárias, marcadas por gênero, com desdobramentos na subje­
tividade, na sociabilidade e/ou na luta política. A segunda par­
te, Acesso à educação e saúde, é formada por quatro textos
que discutem o modo como escolas, universidades e equipa­
mentos sociais de saúde constituem situações de estigmati­
zação e opressão, e quais estratégias têm sido ou poderiam
ser utilizadas para garantir os direitos das populações LGBT.

••
Realização:

•diálogos

Apoio:
suape

LabESHU
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�DIRETORIA
iítLGBT
[ij--ééé- UNIVERSIDADE
FEDERAL
DE PERNAMBUCO

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PAIS RICO É PAIS SEM POBREZA

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