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Ao trabalhar no CAPS AD Centro de SBC percebia algumas questões em relação à
sexualidade que pareciam silenciadas naquele lugar: onde está a população LGBT? Por
que poucxs chegam ao CAPS AD e quase ninguém mantem o acompanhamento? Por que
não falamos sobre outros prazeres para além do prazer do uso de substâncias? Quais
relações poderíamos pensar entre o forte consumo de SPA e a intensificação de situações
de violências? Como ampliar as discussões de estereótipos de gênero que via bem
marcadas no CAPS? Foi nesse emaranhado de dúvidas que criei o "Grupo de Sexualidade",
que se reunia semanalmente e contava com cerca de 15 interessadxs assíduxs,
fortalecendo um espaço de troca baseado na confiança e segurança para que situações
vividas, dúvidas e preconceitos pudessem ser expostos e repensados.
Entre meados de 2017 e fim de 2018, período em que este relato de experiência se
situa, a equipe diurna do CAPS AD Centro era composta por diversos profissionais: uma
terapeuta ocupacional, um professor de Educação Física, dois médicos e uma médica
psiquiatras, três enfermeiras, seis técnicos de enfermagem, três oficineiros, duas
recepcionistas, um arquivista, dois administradores, uma gerente, uma assistente social, um
psicólogo e uma psicóloga, esta última, a que faz este relato.
Este CAPS AD é um serviço que promove o cuidado em saúde mental para adultos
que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas, oferecendo atendimentos
multiprofissionais em forma de acolhimento, atendimentos individuais e familiares e
atividades terapêuticas grupais para usuários e seus familiares, bem como dispõe de
atendimento em hospitalidade integral de curta permanência.
Quanto aos grupos oferecidos, muitos são os temas propostos e cada um conta com
a sua especificidade de conteúdo e público-alvo, como por exemplo: Oportunidades de
Trabalho, Atividade Física, Mulheres, Prevenção, Expressão, Memória e Arte, Família,
Oficina de Música, dentre outros. Cada técnico era responsável por facilitar três grupos
semanais no serviço, e a maioria deles contava com outro profissional auxiliar, como
1
BRASIL, IBGE. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/sao-bernardo-do-campo/panorama
2
Para mais detalhes, ver:
https://www.saobernardo.sp.gov.br/web/sbc/centro-de-atencao-psicossocial-caps-iii-alcool-e-drogas-centro-a
dulto
co-terapeuta. Alguns grupos foram passados de geração em geração (entre os técnicos que
saiam do equipamento e outros que entravam), bem como outros poderiam ser criados de
acordo com a demanda e interesse compartilhado entre usuários e funcionários.
Nos primeiros encontros foi importante reforçar que aquele era um espaço
cuidadoso em que íriamos esmiuçar assuntos delicados, que muitas vezes eram tratados
como tabus, e para isso precisaríamos contar com o respeito de todas as pessoas
presentes, entendendo que cada um e cada uma ali presentes tinham uma história de vida,
com experiências, crenças e expectativas diferentes e que aquele era o nosso momento de
ouvir, de entender e de conversar com respeito.
Outro ponto importante foi destacar que o que conversávamos ali sobre as nossas
experiências ficariam ali, sem fofocas no corredor e nas áreas comuns do CAPS. O bom e
velho “o que acontece em Vegas, fica em Vegas” foi facilmente substituído por “o que
acontece no Grupo, fica no Grupo”, frase repetida pelos velhos participantes para os novos
integrantes que iam surgindo no transcorrer do tempo. Assim como nos apropriamos das
expressões “meu vizinho quer saber”, “minha prima falou”, “o namorado da minha amiga
que fez isso”, para também trazer questões que pediam passagem na fala, mas sem que
identificassem a pessoa que perguntava.
Profissionais da saúde muitas vezes são impelidos a falar sobre sexo de forma
científica, utilizando linguagem técnica, como por exemplo fazendo uso dos termos: “órgão
genitor”, “coito”, “ânus”, “pênis” etc. Funciona para trabalhar educação sexual com algumas
pessoas, mas não todas, e não em todo lugar. Senti que ali não cabia, precisava ser
acessível, mas também esclarecedor. Desde o primeiro encontro estabeleci que ali a nossa
língua poderia chegar em lugares muito mais prazerosos se permitíssemos explorá-la, e se
fizéssemos com um tantinho de humor e cuidado. No grupo, criei a liberdade de falar
“pênis”, “pau”, “pica”, “pinto”, como sinônimos que muito bem cabiam em nossas conversas.
Sem pudor, mas com a possibilidade de trazermos também as palavras e expressões
cotidianas para dialogar com as palavras e expressões científicas.
Dessa forma, foi interessante perceber quais eram as dificuldades para entender
estes nomes e os circuitos corporais para então explicar o funcionamento dos sistemas
reprodutores. Assim, partimos do reconhecimento dos nossos corpos para falar sobre
outros temas correlatos e complexificar nossas discussões. Percebemos também que era
importante deixar exposto estas figuras para que elas pudessem ser revistas quando outras
questões fossem trazidas, como por exemplo aborto, cirurgias íntimas, zonas erógenas,
vasectomia etc.
Criamos um mural com os temas que íamos trabalhando e sempre íamos e
voltávamos, propúnhamos relações, intersecções, questionamentos. Afinal, “o que era ser
homem?” ou “o que era ser mulher?”, “o que significava a sigla LGBTQI+?”, “será que se o
homem gosta de sexo anal ele é gay?”, “porque será que o país que mais mata transexuais
no mundo é também o que mais consome pornografia trans?”, “será que é possível mudar a
nossa linguagem para uma menos sexista?”, “o que é feminismo?”, “será que é verdade
essa frase de que ‘agora é tudo assédio’?”, “o que é violência sexual?”, e exploramos tantas
outras perguntas que foram surgindo em nossos encontros.
Assim, nossos cartazes foram tomando as paredes daquela sala, o que possibilitou a
interlocução com outras pessoas que por ali passavam (técnicos, familiares e outros
usuários do equipamento). O mural era coletivo, colorido e convidativo para interações. Ali
ficavam expostas imagens, letras de músicas, perguntas, dicas apimentadas, informações
científicas, dados relativos à outros países (como por exemplo quanto à legalização do
aborto), charges provocativas, envelopes com fotos de diferentes corpos, absorventes
abertos e possíveis de tocar, pesquisas, trechos da legislação brasileira, indicações de
lugares para atendimento à população LGBT, informativo sobre o acolhimento de mulheres
vítimas de violência, propagandas veiculadas pela mídia, dentre tantos outros materiais que
compunham aqueles painéis. (Ver Figuras 1.1, 1.2 e 1.3)
Aos poucos, notava que falas imbuídas de estereótipos de gênero davam lugar a
outras mais respeitosas com as diversidades sexuais. Destaco que mais atividades foram
debatidas e pensadas em equipe a partir de posicionamentos que traziam questões
feministas, assim como a possibilidade de revermos discursos, piadas, expressões e ações
à luz de nossas conversas em equipe sobre estes assuntos.
Trouxemos para o CAPS o assunto que antes só cabia no bar: falar de sexo. Assim,
o Grupo de Sexualidade se tornou um espaço potente de discussão e debate para além dos
tabus, era possível relativizar polêmicas sobre essa temática e explicitar dúvidas. Este
relato salienta a aposta educacional da facilitadora, pautada em uma abordagem crítica e
emancipatória. Corroborando com Figueiró quando a autora defende que a abordagem de
educação sexual que ela adota é:
Dito isto, eis que noto que o grupo toma para si a discussão sobre assédio e
estupro, a partir de uma cena que viram no jornal: atrizes famosas denunciavam um
produtor por assédio e estupro muitos anos depois do ocorrido.3 O coletivo, formado por sua
maioria de homens com idade entre 40 e 60 anos, reforçam as falas de que “as mulheres só
estavam denunciando porque queriam subir na carreira às custas dele”, “agora tudo é
assédio”, “no meio artístico é assim mesmo e todos sabem disso”, “elas só querem o
dinheiro” ou ainda “que nem deveriam ser verdade aqueles relatos porque elas demoraram
tempo demais para falar”, e complementavam: “se era então tão violento, por que não
falaram antes?”.
Provocava para que ampliássem o debate pensando em outros elementos: será que
as mulheres já não tinham denunciado antes e foram silenciadas de alguma forma? Por que
uma atriz tão famosa e rica como a Uma Thurman faria uma denúncia pensando no dinheiro
que iria ganhar? Era fácil para atrizes aspirantes em Hollywood denunciarem um produtor
3
Ver mais em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-44228482
tão famoso? Elas seriam ouvidas? O que poderia acontecer com a carreira delas? Alguém
se masturbar na sua frente enquanto você faz um teste para o papel de atriz, não seria
mesmo assédio? A aposta era de que as perguntas suscitassem a revisão daqueles pontos
de vistas que ao início do grupo deslegitimavam a fala das mulheres enquanto vítimas de
situações de violências.
Eis que uma das mulheres do Grupo fala: “eu fui estuprada pelo meu marido por 10
anos e demorei mais de 15 anos para falar isso. Ninguém aqui sabe, mas estou contando
agora para vocês”. Ela chora, os demais silenciam. Todos atentos e com olhares
acolhedores, agora em silêncio para ouvir aquela que fora silenciada por tanto tempo. Ela
compartilhou a sua história, entre dor e sofrimento nos contou que só depois de alcançar a
independência financeira e de fugir com sua filha é que conseguiu se separar de seu marido
agressor. Ainda hoje sua família duvida de seus relatos e defende seu ex-marido, alegando
que ele “era uma boa pessoa e que o conheciam”. Mas ela reforça que só ela conhecia o
estupros que sofria em sua cama. O Grupo acolhe, ouve, chora, demonstra apoio e quando
ela termina de contar sua história eles falam que agora entendem como é difícil contar um
relato tão intenso e ainda não acreditarem. Ali, a escuta ensina. Ensina a ouvir, a respeitar,
a ampliar as discussões para outros patamares.
No começo sinto que parecia distante para aquele coletivo a ligação entre
sexualidade e as drogas, mas em pouco tempo víamos a proximidade e as intersecções
dessas relações. Primeiro, a sensação de que aqueles assuntos só eram levados ao bar,
lugar muito frequentado por todos ali, e inauguramos a possibilidade de conversarmos
sobre isso em uma sala sem o uso de substâncias. Segundo, nas falas que traziam a
presença principalmente do álcool para a aproximação sexual, no flerte e nas tentativas de
lidar com a timidez diluindo-a em copos de bebidas. E em seguida nas muitas relações que
pudemos debater quanto ao uso abusivo e às sensações corporais, como aumento ou
diminuição da libido, da ereção, da lubrificação, dos pudores, até chegarmos na liberdade
de conversarmos sobre a associação do uso de substâncias com a desinibição para
experiências sexuais diversas.
Outro ponto chave que permeia todo este trabalho grupal realizado, é pautado na
ideia de que Educação Sexual não serve apenas para falar sobre métodos de
4
Disponível em: https://www.relogiosdaviolencia.com.br/#
5
Disponível em: https://olga-project.herokuapp.com/2013/09/09/chega-de-fiu-fiu-resultado-da-pesquisa/
6
Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/violencias/violencia-sexual/
contracepção, gravidez indesejada e/ou DSTs, como muitas vezes ela é associada. Mas
pensamos o desenvolvimento da sexualidade enquanto experiência de prazer, de
responsabilização, de cuidado com si e com as demais pessoas, como relação com o
mundo. Sexo como possibilidade de exercício do prazer.
Não nos eximimos em trabalhar com os assuntos que geralmente são os mais
abordados. Foi importante apresentar os métodos de contracepção, principalmente o mais
conhecido, a camisinha masculina e também explorarmos as indicações de manuseio,
colocação e retirada, pois, ainda que fosse um material muito cotidiano, existiam muitas
dúvidas e relatos de dificuldades em seu uso. Também apresentei o preservativo feminino,
que embora também fosse distribuído na unidade, nenhuma pessoa do grupo já tinha visto
aberto e sabia como ele poderia ser utilizado.
Neste Grupo foi crucial ressaltar essa conexão entre outras atividades prazerosas,
para além do uso de substâncias. Prazer com responsabilidade, ou seja, sim, as atividades
sexuais e a vivência plena da sexualidade podem ser muito gostosas, mas elas também
requerem lidarmos com outras questões, como limites e expressões corporais, normas
sociais, preconceitos, relações afetivas e perspectivas histórico-culturais.
Neste dia tínhamos uma nova integrante no Grupo, foi ela a primeira pessoa que
quis falar sobre sua escolha de imagem. Escolheu uma foto que trazia uma pessoa nua com
maquiagem, cabelos arrumados e penteados, seios grandes e pênis. Ela mostrou a
imagem para o grupo e disse que se surpreendeu por ter achado essa e outras tantas fotos
ali que representavam pessoas transgêneras e travestis. Disse que não esperava encontrar
nessa dinâmica alguém que se parecia com ela, e foi então que a novata se apresentou
com uma mulher trans - a primeira que participou de nosso Grupo. Ela era nova no CAPS
AD e logo foi acolhida por todo o coletivo. Ao final do encontro ela reforça a importância
daquele acolhimento, e os integrantes reforçam que “já tinham aprendido sobre transfobia”
e sobre “pessoas trans” e que entendiam a sua identidade de gênero. Noto silenciosamente
que o Grupo tinha evoluído significativamente, o conhecimento passou por cima do
preconceito e aquelas pessoas poderiam acolher a diferença, sem risadas e com respeito
sincero.
Por fim, indico que este é um relato de experiência grupal datado, mas suas
reverberações são incalculáveis. O Grupo de Sexualidade aconteceu no período entre
setembro de 2017 e janeiro de 2019, e foi encerrado com a saída da técnica que facilitava
essa atividade. Os cartazes permanecem pendurados nas paredes e as pessoas continuam
interagindo com eles. Alguns trabalhadores que vivenciaram esse período continuam
atuando neste equipamento de saúde, bem como alguns usuários que participaram do
Grupo mantém seus acompanhamentos ali. Marcas foram deixadas e outras tantas
reverberaram fora dali. Como uma experiência sexual prazerosa, chegamos ao êxtase
durante a realização deste trabalho, e hoje olho com afetividade e saudade para essa
experiência que vivi no Grupo. E se me perguntarem, como facilitadora desse grupo, foi
bom pra você? Posso responder com sorriso no rosto, foi uma delícia!
Ilustrações
Figura 1. 2 - Painel 2
Referências
CARDOSO, M. R. ; FERRO, L. F. Saúde e População LGBT: Demandas e Especificidades
em Questão. PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2012, 32 (3), 552-563
FIGUEIRÓ, M.N.D. Formação de educadores sexuais: adiar não é mais possível. Campinas,
SP: Mercado das Letras; Londrina, PR: Eduel, 2006.
LIONÇO, T. Que direito à saúde para a população GLBT? Considerando direitos humanos,
sexuais, reprodutivos em busca da integralidade e da equidade. Saúde Soc., 2008, 17(2),
11-21
WHO, World Health Organization. Defining sexual health: report of a technical consultation
on sexual health, 28–31 January 2002, Geneva. Disponível em:
https://www.who.int/reproductivehealth/publications/sexual_health/defining_sexual_health.pd
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