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VII Congresso Internacional da ABRAMD

05 a 08 de junho de 2019 - Curitiba

GT 5: ​ "Cuidados, abusos e tabus nas intersecções: questionamentos abertos sobre gênero,


sexualidade e uso de psicoativos"

A CRIAÇÃO DE UM GRUPO DE SEXUALIDADE E AS


REVERBERAÇÕES DESTE DISPOSITIVO NO CAPS AD CENTRO EM
SÃO BERNARDO DO CAMPO/SÃO PAULO

Amanda Giron Galindo

Equipe Trajetos
Ao trabalhar no CAPS AD Centro de SBC percebia algumas questões em relação à
sexualidade que pareciam silenciadas naquele lugar: onde está a população LGBT? Por
que poucxs chegam ao CAPS AD e quase ninguém mantem o acompanhamento? Por que
não falamos sobre outros prazeres para além do prazer do uso de substâncias? Quais
relações poderíamos pensar entre o forte consumo de SPA e a intensificação de situações
de violências? Como ampliar as discussões de estereótipos de gênero que via bem
marcadas no CAPS? Foi nesse emaranhado de dúvidas que criei o "Grupo de Sexualidade",
que se reunia semanalmente e contava com cerca de 15 interessadxs assíduxs,
fortalecendo um espaço de troca baseado na confiança e segurança para que situações
vividas, dúvidas e preconceitos pudessem ser expostos e repensados.

Para além da inauguração deste importante momento de compartilhamento em que o tema


da sexualidade era o pano de fundo de nossos encontros regados a risadas, confissões,
acolhidas e reflexões do cotidiano, destaco outros “efeitos colaterais” deste novo dispositivo
grupal: a criação de um “Grupo de Sexualidade dos funcionários” que acontecia na copa no
dia anterior ao referido Grupo; a construção de um mural com os materiais utilizados nos
encontros e que possibilitou interlocuções entre usuárixs, familiares, trabalhadorxs e demais
visitantes a respeito dos temas sinalizados no cartaz; o desenvolvimento de um encontro de
formação sobre sexualidade para a equipe do CAPS; a ampliação da discussão sobre
violência sexual e machismo sinalizando importantes mudanças de comportamentos que
passaram a demonstrar mais respeito pela diversidade sexual e com discursos que
reforçavam equidade de direitos.

A vivência destes grupos de compartilhamentos evidenciou a necessidade de fortalecermos


espaços de diálogos que coloquem em pauta diversas reflexões atuais acerca da
sexualidade, para que tabus, preconceitos e experiências possam ser refletidas e
elaboradas coletivamente.

Palavras-chave: ​grupo ; sexualidade ; diálogos


São Bernardo do Campo (SBC), município próximo à cidade de São Paulo e que
compõe a grande região do ABC, conta com uma população estimada (em 20181) de
833.240 pessoas e, que em 2009, data do último censo, por uma rede de Saúde que
dispunha de 70 estabelecimentos. Atualmente, contamos com diversos equipamentos que
compõe a rede de Saúde Mental, dentre eles: os Centros de Apoio Psicossocial, CAPS (um
CAPSI, um CAPS ADij, três CAPSIII, um CAPSII e dois CAPSAD III), o Pronto Atendimento
em Psiquiatria, as Residências Terapêuticas e o Núcleo de Trabalho e Arte (NUTRARTE). É
em um desses CAPS AD que se localiza esse relato de experiência grupal.

O CAPS AD Centro recebe o importante nome de “Antonio Lancetti”, psiquiatra


argentino que muito colaborou com a Reforma Psiquiátrica do país, e que foi homenageado
postumamente por ter sido uma grande influência neste equipamento, uma vez que foi
também o supervisor da equipe técnica por alguns anos. Este CAPS AD é referência para
sete dos nove territórios de SBC, e se for pensarmos em bairros, este equipamento é
referência em atendimento para 49 bairros da cidade2.

Entre meados de 2017 e fim de 2018, período em que este relato de experiência se
situa, a equipe diurna do CAPS AD Centro era composta por diversos profissionais: uma
terapeuta ocupacional, um professor de Educação Física, dois médicos e uma médica
psiquiatras, três enfermeiras, seis técnicos de enfermagem, três oficineiros, duas
recepcionistas, um arquivista, dois administradores, uma gerente, uma assistente social, um
psicólogo e uma psicóloga, esta última, a que faz este relato.

Este CAPS AD é um serviço que promove o cuidado em saúde mental para adultos
que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas, oferecendo atendimentos
multiprofissionais em forma de acolhimento, atendimentos individuais e familiares e
atividades terapêuticas grupais para usuários e seus familiares, bem como dispõe de
atendimento em hospitalidade integral de curta permanência.

Quanto aos grupos oferecidos, muitos são os temas propostos e cada um conta com
a sua especificidade de conteúdo e público-alvo, como por exemplo: Oportunidades de
Trabalho, Atividade Física, Mulheres, Prevenção, Expressão, Memória e Arte, Família,
Oficina de Música, dentre outros. Cada técnico era responsável por facilitar três grupos
semanais no serviço, e a maioria deles contava com outro profissional auxiliar, como

1
​BRASIL, IBGE. Disponível em: ​https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/sao-bernardo-do-campo/panora​ma
2
Para mais detalhes, ver:
https://www.saobernardo.sp.gov.br/web/sbc/centro-de-atencao-psicossocial-caps-iii-alcool-e-drogas-centro-a
dult​o
co-terapeuta. Alguns grupos foram passados de geração em geração (entre os técnicos que
saiam do equipamento e outros que entravam), bem como outros poderiam ser criados de
acordo com a demanda e interesse compartilhado entre usuários e funcionários.

Isto posto, inicio o relato da experiência de criação do Grupo de Sexualidade neste


equipamento de saúde mental. Ao entrar no CAPS AD em junho de 2017, participo de
grupos e atividades já em andamento para conhecer tanto as ações propostas quanto o
público que frequenta e participa destas. Tive a oportunidade de zigzaguear em diversas
propostas terapêuticas, dentre elas destaco: remar com usuários na represa Bilings no
Programa Remando pra Vida, soltar pipas no estacionamento do estádio ao lado do CAPS
em uma atividade do Grupo dxs Novinhxs voltado à pessoas de até 25 anos, participar de
discussões acaloradas no Grupo Ponto de Encontro destinado ao público em que
trabalhávamos mais intensamente com a Política de Redução de Danos, acolher os choros
e desabafos dos familiares que vinham buscar acolhida nos Grupos de Família, ouvir os
relatos dolorosos de violências em quase todos os grupos terapêuticos, tanto no papel de
vítima quanto no de agressor.

Após esse período de vivências diversificadas nos grupos, no acompanhamento dos


atendimentos técnicos e com elementos captados na observação participante, me vejo
imbuída de perguntas as quais não conseguia responder: onde está a população LGBT?
Por que poucxs chegam ao CAPS AD e quase ninguém mantém o acompanhamento? A
maioria dos grupos é composto majoritariamente por homens cis héteros, será que este
público LGBT não se sente confortável ou não é acolhido nestes espaços? Por que não
falamos sobre outros prazeres para além do prazer do uso de substâncias? Quais relações
poderíamos pensar entre o forte consumo de SPA e a intensificação de situações de
violências? Como ampliar as discussões de estereótipos de gênero que via bem marcadas
no CAPS?

Converso com a equipe sobre essas questões em momentos como o cafézinho


entre uma atividade e outra, algumas discussões de casos em mini-equipes e levo inclusive
para a Reunião de Equipe semanal, espaço no qual inauguro a ideia da criação do Grupo
de Sexualidade, e recebo apoio de todas as pessoas presentes, ainda que para alguns não
tivesse clara a relação deste com os demais grupos do serviço.

Monto um planejamento de grupo considerando temas importantes, pesquisas


científicas para embasar discussões, criações de atividades lúdicas e recursos visuais para
elucidar questões com o tema da sexualidade como fio condutor. O Grupo de Sexualidade
passou a acontecer todas às sextas-feiras às 14 horas sendo, portanto, o último grupo da
semana. Logo foi considerado como um “esquenta para o fim de semana”, remetendo os
temas quentes e intensos trazidos em grupo com a proposta de preparação para a
casualidade e festas dos finais de semana.

A intenção de trabalhar sobre sexualidade com adultos era ampliar e complexificar o


repertório temático das pessoas, para que pudéssemos criar um espaço de aprendizagem,
troca, escuta, debate e acolhimento da diversidade sexual neste e em outros lugares que
fossem tocados a partir deste grupo embrionário. Entendendo que sexualidade seria como
um “tema guarda-chuva”, que abarca diversos aspectos da vida, assim como esta
concepção trazida por especialistas no encontro da World Health Organization:

“Sexuality is a central aspect of being human throughout life and


encompasses sex, gender identities and roles, sexual orientation, eroticism,
pleasure, intimacy and reproduction. Sexuality is experienced and expressed
in thoughts, fantasies, desires, beliefs, attitudes, values, behaviours,
practices, roles and relationships. While sexuality can include all of these
dimensions, not all of them are always experienced or expressed. Sexuality is
influenced by the interaction of biological, psychological, social, economic,
political, cultural, ethical, legal, historical, religious and spiritual factors”
(WHO, 2002, p.5)

O Grupo de Sexualidade começou tímido, mas logo no terceiro dia já alcançamos


um número de dez pessoas, e eis que mantivemos cerca de quinze participantes ao longo
de nossos encontros. Começamos elucidando a diferença entre sexo e sexualidade e
buscando entender quais eram os signos, as dúvidas e algumas das concepções acerca do
tema que aquele conjunto de pessoas tinha: foram as nossas “preliminares”. Momentos
gostosos de descontração, de aproximação, de flerte com aquele que seria o nosso mote
das sextas-feiras: falar de sexualidade com liberdade, respeito, conhecimento e sigilo.

Nos primeiros encontros foi importante reforçar que aquele era um espaço
cuidadoso em que íriamos esmiuçar assuntos delicados, que muitas vezes eram tratados
como tabus, e para isso precisaríamos contar com o respeito de todas as pessoas
presentes, entendendo que cada um e cada uma ali presentes tinham uma história de vida,
com experiências, crenças e expectativas diferentes e que aquele era o nosso momento de
ouvir, de entender e de conversar com respeito.

Outro ponto importante foi destacar que o que conversávamos ali sobre as nossas
experiências ficariam ali, sem fofocas no corredor e nas áreas comuns do CAPS. O bom e
velho “o que acontece em Vegas, fica em Vegas” foi facilmente substituído por “o que
acontece no Grupo, fica no Grupo”, frase repetida pelos velhos participantes para os novos
integrantes que iam surgindo no transcorrer do tempo. Assim como nos apropriamos das
expressões “meu vizinho quer saber”, “minha prima falou”, “o namorado da minha amiga
que fez isso”, para também trazer questões que pediam passagem na fala, mas sem que
identificassem a pessoa que perguntava.

Profissionais da saúde muitas vezes são impelidos a falar sobre sexo de forma
científica, utilizando linguagem técnica, como por exemplo fazendo uso dos termos: “órgão
genitor”, “coito”, “ânus”, “pênis” etc. Funciona para trabalhar educação sexual com algumas
pessoas, mas não todas, e não em todo lugar. Senti que ali não cabia, precisava ser
acessível, mas também esclarecedor. Desde o primeiro encontro estabeleci que ali a nossa
língua poderia chegar em lugares muito mais prazerosos se permitíssemos explorá-la, e se
fizéssemos com um tantinho de humor e cuidado. No grupo, criei a liberdade de falar
“pênis”, “pau”, “pica”, “pinto”, como sinônimos que muito bem cabiam em nossas conversas.
Sem pudor, mas com a possibilidade de trazermos também as palavras e expressões
cotidianas para dialogar com as palavras e expressões científicas.

Nas nossas “preliminares” vivenciamos a criação do nosso grupo: um espaço


acolhedor que ofereceu escuta das dúvidas, dos desabafos e das histórias marcadas pela
experiência da sexualidade de diferentes formas. Logo senti que era importante entender a
base de Educação Sexual que aquelas pessoas viveram, e me surpreendi quando percebi a
deficiência neste quesito educacional expressa no primeiro jogo que propus quando dividi a
turma em dois pequenos grupos. A tarefa era elencar os nomes das partes do corpo a partir
dos órgãos sexuais, de um lado estavam os desenhos do corpo humano, de outro uma lista
de nomes para encaixar nas lacunas propostas. Alguns acreditavam que o pênis se ligava
ao ovário por meio das trompas, outros não sabiam dizer onde estava o clitóris, outros não
tinham ideia da diferença entre saco escrotal e testículo, outros ainda confundiam a uretra
com a vagina.

Dessa forma, foi interessante perceber quais eram as dificuldades para entender
estes nomes e os circuitos corporais para então explicar o funcionamento dos sistemas
reprodutores. Assim, partimos do reconhecimento dos nossos corpos para falar sobre
outros temas correlatos e complexificar nossas discussões. Percebemos também que era
importante deixar exposto estas figuras para que elas pudessem ser revistas quando outras
questões fossem trazidas, como por exemplo aborto, cirurgias íntimas, zonas erógenas,
vasectomia etc.
Criamos um mural com os temas que íamos trabalhando e sempre íamos e
voltávamos, propúnhamos relações, intersecções, questionamentos. Afinal, “o que era ser
homem?” ou “o que era ser mulher?”, “o que significava a sigla LGBTQI+?”, “será que se o
homem gosta de sexo anal ele é gay?”, “porque será que o país que mais mata transexuais
no mundo é também o que mais consome pornografia trans?”, “será que é possível mudar a
nossa linguagem para uma menos sexista?”, “o que é feminismo?”, “será que é verdade
essa frase de que ‘agora é tudo assédio’?”, “o que é violência sexual?”, e exploramos tantas
outras perguntas que foram surgindo em nossos encontros.

Assim, nossos cartazes foram tomando as paredes daquela sala, o que possibilitou a
interlocução com outras pessoas que por ali passavam (técnicos, familiares e outros
usuários do equipamento). O mural era coletivo, colorido e convidativo para interações. Ali
ficavam expostas imagens, letras de músicas, perguntas, dicas apimentadas, informações
científicas, dados relativos à outros países (como por exemplo quanto à legalização do
aborto), charges provocativas, envelopes com fotos de diferentes corpos, absorventes
abertos e possíveis de tocar, pesquisas, trechos da legislação brasileira, indicações de
lugares para atendimento à população LGBT, informativo sobre o acolhimento de mulheres
vítimas de violência, propagandas veiculadas pela mídia, dentre tantos outros materiais que
compunham aqueles painéis. (Ver Figuras 1.1, 1.2 e 1.3)

Muitas pesquisas eram realizadas nos computadores da recepção, outros materiais


eram produzidos em salas compartilhadas com demais funcionários e era inevitável que os
temas chamassem a atenção das pessoas que trabalhavam por ali. Entre risadas,
perguntas, demonstrações de interesse, expressões de constrangimento e de curiosidade,
logo percebi que a recepção ficava lotada quando abria páginas na internet sobre os
assuntos do grupo, e cresciam o número de perguntas a respeito “Qual é o tema do grupo
dessa semana?”, “Você vai falar de sexo oral?”, “Eu vi esse site de sex shop que você
deixou aberto, você vai falar com a gente também sobre isso?”, “Uau! Você vai mostrar
essas fotos?”, “Quando você terminar de usar esse material, a gente pode dar uma olhada
também?”.

Grande parte destes questionamentos vinham na quinta-feira à tarde, no dia anterior


ao referido Grupo, período em que mais funcionários ficavam na unidade para realizar dois
grupos terapêuticos entre 17 e 19 horas. Sendo assim, como um movimento instituinte,
espontâneo e que logo virou rotina, aconteceu o “Grupo de Sexualidade dos funcionários”.
Todas às quintas, aproveitávamos o intervalo do café entre um turno e outro e nos
encontrávamos na copa da unidade para conversar sobre os assunto do grupo. Ora
usufruíamos do humor, ora da curiosidade, ora da simples possibilidade de falar sobre um
assunto tabu ou de sacanagem, foi assim que fui percebendo que criávamos ali as
preliminares do Grupo de Sexualidade já consolidado com os usuários. Semanalmente, este
foi se constituindo como um espaço potente, que possibilitava trocas e facilitava
desconstruções de estereótipos e de discursos heteronormativos e machistas em um
espaço comum para os trabalhadores.

Foi a partir do pedido da equipe de que houvesse um espaço de formação sobre


gênero e sexualidade que fui convidada para para criar uma aula sobre o tema em uma
Reunião de Equipe. O questionamento principal era a respeito da identidade de gênero. Já
atendíamos pessoas trans, mas eram poucas e conhecidas, então elas eram tratadas por
seus nomes sociais e uma inclusive participava do Grupo de Mulheres sendo uma mulher
trans. Mas a dúvida era em como falar com as pessoas novas que chegavam e que agora
manifestavam diferentes expressões de gênero que aquele equipamento de saúde pouco
conhecia. Ou ainda, quando alguma pessoa, que era atendida no CAPS AD, relatava uma
questão importante a respeito da sexualidade e as pessoas que trabalhavam ali tinham
dúvidas de como lidar com a situação.

Também era essencial marcar a diferenciação entre orientação sexual e identidade


de gênero, tópicos muitas vezes confundidos pelos trabalhadores. Assim como considerava
importante provocar o debate e implicar aquelas pessoas que ali trabalhavam em
discussões relativas à a acessibilidade daquele equipamento de saúde para a população
LGBT e a permanência das mulheres nos acompanhamentos do serviço, considerando
questões sociais, culturais e históricas.

Com base nestes pontos, fizemos um importante encontro de formação com a


equipe. Interessante ressaltar que mesmo profissionais de saúde imersos no cotidiano
diversificado do SUS possuem pouca experiência de formação sobre essa temática.
Cardoso e Ferro (2012), inspirados por Lionço (2008), destacam a importância de que os
profissionais da área da saúde tenham mais conhecimento à respeito das políticas públicas
e das problemáticas da população LGBT, aumentando assim a qualificação dos serviços
prestados pelas diversas áreas. E reforçam que estes profissionais devem estar atentos
“aos processos de vulnerabilidade que leva ao adoecimento dessa população, bem como às
políticas públicas que facilitam o acesso ao sistema de saúde.” (p.562)

Aos poucos, notava que falas imbuídas de estereótipos de gênero davam lugar a
outras mais respeitosas com as diversidades sexuais. Destaco que mais atividades foram
debatidas e pensadas em equipe a partir de posicionamentos que traziam questões
feministas, assim como a possibilidade de revermos discursos, piadas, expressões e ações
à luz de nossas conversas em equipe sobre estes assuntos.

Trouxemos para o CAPS o assunto que antes só cabia no bar: falar de sexo. Assim,
o Grupo de Sexualidade se tornou um espaço potente de discussão e debate para além dos
tabus, era possível relativizar polêmicas sobre essa temática e explicitar dúvidas. Este
relato salienta a aposta educacional da facilitadora, pautada em uma abordagem crítica e
emancipatória. Corroborando com Figueiró quando a autora defende que a abordagem de
educação sexual que ela adota é:

“a abordagem política, ou seja, emancipatória (...) que concebe a educação


sexual como um caminho para preparar o educando para viver a sexualidade
de forma positiva, saudável e feliz, e, sobretudo, para formá-lo como cidadão
consciente, crítico e engajado nas transformações de todas as questões
sociais ligadas, direta ou indiretamente, à sexualidade.”. (FIGUEIRÓ, 2006,
p.31)

Ao final dos nossos encontros, estipulávamos o enunciado do próximo, mas para


além dos conteúdos que achávamos interessante discutir, dávamos espaço para conversar
sobre assuntos recentes, que marcaram a semana, ou que estavam nos noticiários naquele
momento (por exemplo: a ejaculação em um ônibus público, a votação sobre o aborto na
Argentina, entre outros.).

Dito isto, eis que noto que o grupo toma para si a discussão sobre assédio e
estupro, a partir de uma cena que viram no jornal: atrizes famosas denunciavam um
produtor por assédio e estupro muitos anos depois do ocorrido.3 O coletivo, formado por sua
maioria de homens com idade entre 40 e 60 anos, reforçam as falas de que “as mulheres só
estavam denunciando porque queriam subir na carreira às custas dele”, “agora tudo é
assédio”, “no meio artístico é assim mesmo e todos sabem disso”, “elas só querem o
dinheiro” ou ainda “que nem deveriam ser verdade aqueles relatos porque elas demoraram
tempo demais para falar”, e complementavam: “se era então tão violento, por que não
falaram antes?”.

Provocava para que ampliássem o debate pensando em outros elementos: será que
as mulheres já não tinham denunciado antes e foram silenciadas de alguma forma? Por que
uma atriz tão famosa e rica como a Uma Thurman faria uma denúncia pensando no dinheiro
que iria ganhar? Era fácil para atrizes aspirantes em Hollywood denunciarem um produtor

3
Ver mais em: ​https://www.bbc.com/portuguese/internacional-44228482
tão famoso? Elas seriam ouvidas? O que poderia acontecer com a carreira delas? Alguém
se masturbar na sua frente enquanto você faz um teste para o papel de atriz, não seria
mesmo assédio? A aposta era de que as perguntas suscitassem a revisão daqueles pontos
de vistas que ao início do grupo deslegitimavam a fala das mulheres enquanto vítimas de
situações de violências.

Sentia que as perguntas de fato incomodavam porque as “respostas prontas”, como


“elas querem dinheiro” ou “ele é tão poderoso não pode ter feito isso” já não cabiam mais,
assim passaram a relativizar a situação, “se isso aconteceu mesmo, como é que só falaram
agora”. Algumas aberturas possíveis, mas as vozes masculinas ainda se apegavam à
questão do tempo, e se posicionavam marcando a dificuldade em entender como alguém
levaria tanto tempo para denunciar. Trazia para o grupo noções de como as mulheres foram
silenciadas ao longo da história e de como poderia ser difícil também lidar com aqueles
relatos. O coletivo masculino pouco parecia entender a dimensão e o peso disso.

Eis que uma das mulheres do Grupo fala: “eu fui estuprada pelo meu marido por 10
anos e demorei mais de 15 anos para falar isso. Ninguém aqui sabe, mas estou contando
agora para vocês”. Ela chora, os demais silenciam. Todos atentos e com olhares
acolhedores, agora em silêncio para ouvir aquela que fora silenciada por tanto tempo. Ela
compartilhou a sua história, entre dor e sofrimento nos contou que só depois de alcançar a
independência financeira e de fugir com sua filha é que conseguiu se separar de seu marido
agressor. Ainda hoje sua família duvida de seus relatos e defende seu ex-marido, alegando
que ele “era uma boa pessoa e que o conheciam”. Mas ela reforça que só ela conhecia o
estupros que sofria em sua cama. O Grupo acolhe, ouve, chora, demonstra apoio e quando
ela termina de contar sua história eles falam que agora entendem como é difícil contar um
relato tão intenso e ainda não acreditarem. Ali, a escuta ensina. Ensina a ouvir, a respeitar,
a ampliar as discussões para outros patamares.

No começo sinto que parecia distante para aquele coletivo a ligação entre
sexualidade e as drogas, mas em pouco tempo víamos a proximidade e as intersecções
dessas relações. Primeiro, a sensação de que aqueles assuntos só eram levados ao bar,
lugar muito frequentado por todos ali, e inauguramos a possibilidade de conversarmos
sobre isso em uma sala sem o uso de substâncias. Segundo, nas falas que traziam a
presença principalmente do álcool para a aproximação sexual, no flerte e nas tentativas de
lidar com a timidez diluindo-a em copos de bebidas. E em seguida nas muitas relações que
pudemos debater quanto ao uso abusivo e às sensações corporais, como aumento ou
diminuição da libido, da ereção, da lubrificação, dos pudores, até chegarmos na liberdade
de conversarmos sobre a associação do uso de substâncias com a desinibição para
experiências sexuais diversas.

Destaco a importância de dialogarmos sobre a presença destas substâncias em


momentos de discussões, brigas e violências. Zilberman e Blume (2005) ressaltam a
relação entre o uso de substâncias psicoativas (SPA) e diversas situações de violências. As
autoras trazem pesquisas que indicam que o álcool está presente em mais de 90% dos
episódios notificados de violência doméstica, assim como também o uso de estimulantes
(tais como cocaína, crack e anfetaminas) também está freqüentemente envolvido, por
reduzirem a capacidade de controle dos impulsos e por aumentar as sensações de
persecutoriedade. Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) demonstram
que a relação entre ingestão de álcool associada às situações de violência, como por
exemplo, “estupros de crianças, adolescentes e adultos estão numa ordem de pelo menos
20% a 40% dos casos” (CERQUEIRA e COELHO, 2014, p.10).

Já Minayo e Deslandes (1998), trazem a dificuldade em encontrar o nexo causal


entre o uso de determinadas substâncias e as situações de violência, pois entendem que
para isso seria necessário saber “se os comportamentos e atitudes violentas ocorreriam ou
não no interior desses segmentos, caso a droga e o álcool não estivessem presentes.”
(p.10). As autoras nos estimulam a ampliar a questão para entendermos que as
experiências de violências possuem outros marcadores importantes como os sociais, os
culturais, os individuais e os históricos.

Considerando os muitos relatos compartilhados no Grupo que revelavam situações


de violências, associadas ou não com experiências de uso intenso de álcool ou SPAs,
trabalhamos com este tema diversas vezes. Utilizamos materiais diversos como os exibidos
pelo Instituto Maria da Penha, por meio do “Relógio da Violência”4, com a pesquisa
realizada pela ONG Olga por meio da Think Olga (“Chega de Fiu-Fiu”)5, e com o “Dossiê
Violência contra as Mulheres” realizado pelo Instituto Patrícia Galvão6. Ou seja, trazíamos
as experiências de vida compartilhadas por aquele coletivo para dialogar com as pesquisas
e os números de dados do país, bem como com as notícias recentes em jornais e revistas
de fácil acesso ao grupo.

Outro ponto chave que permeia todo este trabalho grupal realizado, é pautado na
ideia de que Educação Sexual não serve apenas para falar sobre métodos de

4
Disponível em: ​https://www.relogiosdaviolencia.com.br/#
5
Disponível em: ​https://olga-project.herokuapp.com/2013/09/09/chega-de-fiu-fiu-resultado-da-pesquisa/
6
Disponível em: ​https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/violencias/violencia-sexual/
contracepção, gravidez indesejada e/ou DSTs, como muitas vezes ela é associada. Mas
pensamos o desenvolvimento da sexualidade enquanto experiência de prazer, de
responsabilização, de cuidado com si e com as demais pessoas, como relação com o
mundo. Sexo como possibilidade de exercício do prazer.

Não nos eximimos em trabalhar com os assuntos que geralmente são os mais
abordados. Foi importante apresentar os métodos de contracepção, principalmente o mais
conhecido, a camisinha masculina e também explorarmos as indicações de manuseio,
colocação e retirada, pois, ainda que fosse um material muito cotidiano, existiam muitas
dúvidas e relatos de dificuldades em seu uso. Também apresentei o preservativo feminino,
que embora também fosse distribuído na unidade, nenhuma pessoa do grupo já tinha visto
aberto e sabia como ele poderia ser utilizado.

Neste Grupo foi crucial ressaltar essa conexão entre outras atividades prazerosas,
para além do uso de substâncias. Prazer com responsabilidade, ou seja, sim, as atividades
sexuais e a vivência plena da sexualidade podem ser muito gostosas, mas elas também
requerem lidarmos com outras questões, como limites e expressões corporais, normas
sociais, preconceitos, relações afetivas e perspectivas histórico-culturais.

O cuidado de si e a valorização do próprio corpo também foram assuntos


emblemáticos neste Grupo. Imersos nesta sociedade que reitera padrões de beleza,
principalmente pela exploração de “corpos-modelos” veiculados nas mídias que vendem um
“padrão ideal”, somos constantemente influenciados por fotos, produtos e promessas irreais
de conquistas de um “corpo ideal” socialmente. Quando trouxe este assunto para o Grupo,
o fiz por meio de uma grande exposição de fotos com diferentes tipos de corpos explorando
as muitas possibilidades e diversidades em nossa sociedade. A quantidade de fotos era
enorme, e convidei todo mundo que participava da atividade para olhar de perto e explorar
aquela apresentação de imagens, depois escolher uma que mais se identificasse (seja
como o corpo que tem, ou que desejava ter, ou com quem desejava se relacionar).

Neste dia tínhamos uma nova integrante no Grupo, foi ela a primeira pessoa que
quis falar sobre sua escolha de imagem. Escolheu uma foto que trazia uma pessoa nua com
maquiagem, cabelos arrumados e penteados, seios grandes e pênis. Ela mostrou a
imagem para o grupo e disse que se surpreendeu por ter achado essa e outras tantas fotos
ali que representavam pessoas transgêneras e travestis. Disse que não esperava encontrar
nessa dinâmica alguém que se parecia com ela, e foi então que a novata se apresentou
com uma mulher trans - a primeira que participou de nosso Grupo. Ela era nova no CAPS
AD e logo foi acolhida por todo o coletivo. Ao final do encontro ela reforça a importância
daquele acolhimento, e os integrantes reforçam que “já tinham aprendido sobre transfobia”
e sobre “pessoas trans” e que entendiam a sua identidade de gênero. Noto silenciosamente
que o Grupo tinha evoluído significativamente, o conhecimento passou por cima do
preconceito e aquelas pessoas poderiam acolher a diferença, sem risadas e com respeito
sincero.

Necessitamos fortalecer espaços de diálogo que possibilitem reflexões sobre


sexualidade, para que assim os tabus e preconceitos possam ser elaborados, questionados,
e para que as experiências sejam refletidas individual e coletivamente. Este relato vivencial
reforça a importância de formações para os profissionais que trabalham principalmente com
políticas públicas, reiterando a valorização desta temática neste campo.

Por fim, indico que este é um relato de experiência grupal datado, mas suas
reverberações são incalculáveis. O Grupo de Sexualidade aconteceu no período entre
setembro de 2017 e janeiro de 2019, e foi encerrado com a saída da técnica que facilitava
essa atividade. Os cartazes permanecem pendurados nas paredes e as pessoas continuam
interagindo com eles. Alguns trabalhadores que vivenciaram esse período continuam
atuando neste equipamento de saúde, bem como alguns usuários que participaram do
Grupo mantém seus acompanhamentos ali. Marcas foram deixadas e outras tantas
reverberaram fora dali. Como uma experiência sexual prazerosa, chegamos ao êxtase
durante a realização deste trabalho, e hoje olho com afetividade e saudade para essa
experiência que vivi no Grupo. E se me perguntarem, como facilitadora desse grupo, foi
bom pra você? Posso responder com sorriso no rosto, foi uma delícia!

Ilustrações

1. Imagens do Mural do Grupo de Sexualidade


Figura 1.1 - Painel 1

Fonte: acervo fotográfico da autora

Figura 1. 2 - Painel 2

Fonte: acervo fotográfico da autora

Figura 1.3 - Painel 3


Fonte: acervo fotográfico da autora

Referências
CARDOSO, M. R. ; FERRO, L. F. Saúde e População LGBT: Demandas e Especificidades
em Questão. PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2012, 32 (3), 552-563

CERQUEIRA, D. ; COELHO, D.S.C. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados


da Saúde. (versão preliminar). Nota Técnica: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
IPEA), 2014. Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/artigo/21/estupro-no-brasil-uma-radiografia-segundo-os
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FIGUEIRÓ, M.N.D. Formação de educadores sexuais: adiar não é mais possível. Campinas,
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LIONÇO, T. Que direito à saúde para a população GLBT? Considerando direitos humanos,
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