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2298 ARTIGO ARTICLE

As Ciências Sociais e Humanas em Saúde na


ABRASCO: a construção de um pensamento
social em saúde

Social Sciences and Humanities in Health in


ABRASCO: the construction of social
theory in health

Ciencias Sociales y Humanidades dentro del


ámbito de la salud en ABRASCO: construcción Aurea Maria Zöllner Ianni 1
de un pensamiento social en salud Cristiane Spadacio 1
Renato Barboza 2
Olga Sofia Fabergé Alves 3
Sabrina Daniela Lopes Viana 1

Ane Talita Rocha 4

Abstract Resumen

1 Faculdade de Saúde The development of recent social thinking in O desenvolvimento de um pensamento social em
Pública, Universidade de São
Paulo, São Paulo, Brasil.
health in Brazil is associated with the establish- saúde, recente no Brasil, está relacionado com a
2 Instituto de Saúde, ment of the Public Health field and the Brazilian constituição da Saúde Coletiva e da Associação
Secretaria de Estado da Association of Graduate Studies in Public Health Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva
Saúde de São Paulo, São
Paulo, Brasil. (ABRASCO). The area of Social Sciences in (ABRASCO). Com a criação da ABRASCO, cons-
3 Instituto Butantan, São Health was created together with the founding of tituiu-se também a área de Ciências Sociais. Este
Paulo, Brasil.
4 Faculdade de Filosofia,
ABRASCO. This article presents the main aspects artigo apresenta os principais aspectos referentes
Letras e Ciências Humanas, related to the establishment and institutional- à constituição e institucionalização das Ciências
Universidade de São Paulo, ization of Social Sciences in Health in ABRASCO, Sociais em Saúde na ABRASCO, com base nos
São Paulo, Brasil.
based on interviews with its presidents and the depoimentos de seus presidentes e coordenado-
Correspondência coordinators of the Social Sciences Committees res das Comissões de Ciências Sociais no período
A. M. Z. Ianni from 1995 to 2011. The interviews allowed cap- de 1995 a 2011. Os depoimentos possibilitaram
Faculdade de Saúde Pública,
Universidade de São Paulo.
turing and analyzing the context in which this captar e analisar o contexto de constituição des-
Av. Dr. Arnaldo 715, São field was established and its relevance and his- se campo, sua relevância e trajetória no conjun-
Paulo, SP 01246-904, Brasil. tory in Public Health as a whole, grouped in five to da Saúde Coletiva, tendo sido agrupados em
aureanni@usp.br
analytical categories: (1) the development of So- cinco eixos de análise: (1) o desenvolvimento
cial Sciences and the Humanities in Health; (2) das Ciências Sociais e Humanas em Saúde; (2)
interdisciplinarity in Public Health; (3) the con- a Saúde Coletiva e a interdisciplinaridade; (3) a
tribution of Social Sciences to Public Health; (4) contribuição das Ciências Sociais à Saúde Cole-
Social Sciences in Health and the “traditional” tiva; (4) as Ciências Sociais em Saúde e as Ciên-
Social Sciences; and (5) challenges for Social Sci- cias Sociais “tradicionais”; e (5) os desafios para
ences and the Humanities in Health. as Ciências Sociais e Humanas em Saúde.

Social Sciences; Health Sciences; Scientific Ciências Sociais; Ciências da Saúde; Domínios
Domains Científicos

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 30(11):2298-2308, nov, 2014 http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00214213


CIÊNCIAS SOCIAIS EM SAÚDE NA ABRASCO 2299

Introdução com a transformação da realidade. Nesse senti-


do, a opção pelo termo Saúde Coletiva expres-
O pensamento social em saúde estabeleceu-se sa o movimento de elaboração teórico-prático
de diferentes formas nos mais diversos países, que se institucionaliza por meio da Associação
sempre relacionado às problemáticas sociais, Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva
econômicas, políticas e culturais de cada época (ABRASCO), criada em 1979.
e contextos históricos específicos, com expo- Com a criação da ABRASCO, constituiu-se
entes nos Estados Unidos e na Europa, princi- também a área de Ciências Sociais 3. Certamen-
palmente 1,2. Nesse sentido, discutir a trajetória te, esse foi um espaço privilegiado de pensa-
desse campo no Brasil expressa, em consonância mento e reflexão sobre as práticas e os saberes
com a situação internacional, as peculiaridades da Reforma Sanitária brasileira, um movimento
do contexto sócio-histórico brasileiro e latino- de caráter político-institucional e científico na
americano 3,4,5. história recente da saúde no Brasil 8,9. A Reforma
No Brasil, configura-se um pensamento so- Sanitária, expressão que se refere a um conjunto
cial em saúde com a Primeira República, oligár- de ideias sobre as mudanças e transformações
quica, em torno da questão nacional, e que deu necessárias na área da saúde, foi um movimento
origem às políticas de proteção social da Era Var- social pautado na luta contra a ditadura militar
gas. Tais configurações desdobram-se, na história no Brasil (1964-1985), direcionado à democracia,
brasileira, perpassando os períodos desenvolvi- ao amplo acesso aos serviços de saúde e preo-
mentista e democrático, sendo reconvertidas no cupada com a exclusão da participação dos tra-
período ditatorial 6. Entretanto, no processo da balhadores e técnicos no processo decisório das
redemocratização do país, há o recrudescimento políticas de saúde, que eram tomadas exclusi-
do pensamento social em saúde que se estabele- vamente pelos governos autoritários 12. Naquele
ce como campo específico e institucionalizado 7. contexto, o diálogo interdisciplinar e a multipli-
Ganha configuração no bojo da Saúde Coletiva, cidade metodológica consistiram nos aspectos
com suas origens nos movimentos da Medicina relevantes e estruturantes desse vasto campo de
Social na América Latina entre os anos de 1950 conhecimento que se tornou a Saúde Coletiva
e 1960 e da Reforma Sanitária no início dos anos 12,16. Mas é somente no ano de 1994 que, insti-

de 1980 1,8. A formalização e a incorporação dos tucionalmente, a ABRASCO estrutura a área de


conteúdos de ciências sociais nos cursos de me- ciências sociais, por meio da Comissão de Ciên-
dicina 10 propulsionaram essa nova configura- cias Sociais em Saúde e da iniciativa de organiza-
ção, marcando o pensamento em saúde que se ção do Congresso Brasileiro de Ciências Sociais
expressará no campo da Saúde Coletiva. em Saúde.
O campo da Saúde Coletiva caracteriza-se Nos dias de hoje, é evidente a importância
pela articulação de conhecimentos e práticas, das ciências sociais para a consolidação da Saú-
ancoradas em três áreas disciplinares: Epidemio- de Coletiva no Brasil. Reafirma-se, a partir dos
logia; Política, Planejamento e Gestão; e Ciên- conhecimentos trazidos por essas ciências, que o
cias Sociais e Humanas em Saúde. O termo Saú- social é parte da produção fisiopatológica e epi-
de Coletiva é genuinamente brasileiro e toma o demiológica dos processos saúde-doença, das
coletivo como produto das relações sociais em práticas de atenção e cuidado e das estratégias
determinado contexto sócio-histórico; também políticas de atuação, além de incorporarem as
identifica os movimentos de renovação da saúde questões de natureza subjetiva e os processos e
pública institucionalizada como campo cientí- relações sociais em nível microssociológico 17.
fico, de práticas e profissional, além de evocar Reconhecido como subcampo estruturante
as diferentes coletividades para o entendimen- do campo da Saúde Coletiva, as ciências sociais
to do que é saúde como estado e como objeto representam, hoje, no âmbito da ABRASCO, um
de estudo 11,12,13. Essas formulações expressam campo científico, expressão de um pensamen-
uma contribuição fundamental das ciências to social em saúde. De acordo com Bourdieu 18,
sociais 12,14. campo científico é um espaço social de lutas
Para Paim & Almeida Filho 13, os conceitos competitivas que tem, como desafio específi-
que a estruturam podem ser resumidos nas co, o monopólio da autoridade científica. Essa
ideias de que a saúde está articulada à estrutura autoridade é definida pela capacidade técnica
social em seus aspectos históricos, econômicos e poder social cujo monopólio da competência
e políticos-ideológicos; as ações de saúde são científica é socialmente reconhecido a um agen-
prática social por excelência; o objeto da Saú- te determinado 18.
de Coletiva se constrói nos limites da relação Um campo científico é historicamente cons-
biológico-social, revelando seu caráter interdis- truído por poderes institucionalizados cujas ló-
ciplinar; e o conhecimento está comprometido gicas de atuação são guiadas pelos agentes que o

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constituem. Os conflitos entre os agentes e suas O material analisado provém da pesquisa


disputas, como os que ocorrem na Saúde Co- Questões Contemporâneas nas Ciências Sociais
letiva no Brasil, são estruturantes desse campo em Saúde: O Estudo de Temas Emergentes nos
científico. Esses conflitos, segundo Bourdieu 7, Congressos Brasileiros de Ciências Sociais e Hu-
envolvem uma dupla dimensão, a política e a manas em Saúde, ABRASCO 1995-2007 17, tendo
epistemológica. Como a produção de um campo seu período estendido a 2011, data de realização
científico não passa ao largo de seus praticantes do V Congresso, durante a vigência da pesquisa.
19, faz-se necessário compreender a conexão en- Foi realizado um total de 13 entrevistas com
tre o campo científico e os seus atores, neste caso, presidentes da ABRASCO e coordenadores das
o campo do pensamento social em saúde. Comissões de Ciências Sociais e Humanas em
Com vistas a compreender a estruturação do Saúde, em diferentes gestões (Tabela 1).
pensamento social em saúde no Brasil nas últi- Procurou-se, com as entrevistas, captar, na
mas décadas, este artigo analisa os principais as- ótica desses sujeitos-atores, os seguintes aspec-
pectos referentes à constituição e à instituciona- tos: o contexto de constituição do subcampo das
lização do subcampo das Ciências Sociais e Hu- ciências sociais na ABRASCO; sua instituciona-
manas em Saúde na ABRASCO, com base nos de- lização e evolução; a contribuição das ciências
poimentos de atores importantes, os presidentes sociais para o campo da saúde coletiva em suas
da entidade e os coordenadores das Comissões três dimensões: corrente de pensamento, movi-
de Ciências Sociais no período de 1995-2011. mento social e prática política; e os principais de-
safios das Ciências Sociais e Humanas em Saúde
no campo da Saúde Coletiva.
Metodologia As perguntas formuladas primaram pelo de-
talhamento das experiências vivenciadas pelos
De acordo com Giddens 20 (p. 12), “Todas as disci- entrevistados, e os instrumentos elaborados para
plinas têm seus fundadores porque eles são parte conduzir as entrevistas passaram por pré-testes
de seus mitos de origem” , os quais constituem a fim de assegurar a qualidade da coleta das in-
comunidades imaginadas e imprimem recursos formações. Todas as entrevistas foram gravadas
para cartografar seu próprio desenvolvimento, e transcritas, e, no que se refere aos aspectos éti-
a fim de estabelecer limites em relação a outras cos, o projeto recebeu aprovação de Comitê de
disciplinas. Em se tratando de um subcampo Ética em Pesquisa.
7 que se estrutura em consonância com a his- O material transcrito foi submetido à técnica
tória dos atores envolvidos, decidiu-se realizar de análise de conteúdo, compreendendo as fases
entrevistas com alguns desses atores, informan- de: exploração do material, pré-análise, análise e
tes-chave. sistematização dos resultados 21.

Tabela 1

Presidentes e coordenadores da Comissão de Ciências Sociais e Humanas em Saúde da ABRASCO durante os congressos, 1995 a 2011.

Congressos Ano Local Membros da ABRASCO

I Congresso Brasileiro de Ciências Sociais em Saúde 1995 Curitiba (Paraná) Presidente: Maria Cecília de Souza Minayo
Coordenadora: Ana Maria Canesqui

II Congresso Brasileiro de Ciências Sociais em Saúde 1999 São Paulo Presidente: Rita de Cássia Barradas Barata
Coordenadora: Paulete Goldenberg

III Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e 2005 Florianópolis (Santa Catarina) Presidente: Moisés Goldbaum
Humanas em Saúde Coordenadora: Silvia Gershman

IV Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e 2007 Salvador (Bahia) Presidente: José da Rocha Carvalheiro
Humanas em Saúde Coordenador: Kenneth Camargo Jr.

V Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e 2011 São Paulo Presidente: Luiz Augusto Facchini
Humanas em Saúde Coordenadora: Leny Trad

Fonte: Ianni et al. 17.

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Resultados palmente na América Latina, capitaneado pela


OPAS, de revisão de currículos” (Entrevistado/
A riqueza do material de pesquisa permitiu agru- a no 5).
par os conteúdos das entrevistas em cinco eixos No período de constituição do campo, por-
de análise: (1) o desenvolvimento das Ciências tanto, predominou o ensino das Ciências Sociais
Sociais e Humanas em Saúde; (2) a Saúde Co- nos departamentos de Medicina Preventiva e
letiva e a interdisciplinaridade; (3) a contribui- Social, numa revisão do marco comportamen-
ção das Ciências Sociais à Saúde Coletiva; (4) as talista de matriz sociológica e antropológica an-
Ciências Sociais em Saúde e as Ciências Sociais terior para uma perspectiva mais ampla, articu-
“tradicionais”; e (5) os desafios para as Ciências lada à determinação sócio-histórica do processo
Sociais e Humanas em Saúde. saúde-doença. A vertente marxista surge como
Segue uma discussão detalhada de cada eixo elemento fundamental de reconfiguração teóri-
de análise, permeada pelas falas dos informantes: ca, necessária à produção desse conhecimento,
especialmente quanto à sociologia em saúde que
O desenvolvimento das Ciências Sociais era, até então, herdeira da teoria funcionalista
e Humanas em Saúde sistêmica advinda dos escritos dos norte-ame-
ricanos Talcott Parsons, Samuel Bloom e David
Ao se referir à constituição da área de ciências so- Mechanic 1. Esse processo foi conduzido majo-
ciais na ABRASCO, os informantes destacaram o ritariamente por profissionais médicos, segundo
papel indutor desempenhado pela Organização depoimento que segue:
Pan-Americana da Saúde (OPAS). “Na maioria, eram profissionais formados
É possível identificar três momentos da par- na área da saúde [medicina, principalmente] e
ticipação da OPAS na América Latina: primeiro, ensinavam nos Departamentos, Escolas ou Insti-
décadas de 1930 e 1940, quando foram introduzi- tutos de Saúde, Medicina Social, Saúde Coletiva.
dos alguns antropólogos para desenvolver ações O referencial teórico dominante era o marxista
sanitárias junto às populações rurais e indígenas. estruturalista – uma literatura que extrapolava a
Segundo momento, décadas de 1950 e 1960, con- área das Ciências Sociais” (Entrevistado/a no 12).
texto da Guerra Fria, marcado pelas intenções Ressalte-se que o contexto histórico-social de
norte-americanas de consolidar o modelo capi- constituição do campo da Saúde Coletiva con-
talista de desenvolvimento na América Latina, gregou uma gama de interesses muito amplos,
quando a OPAS foi, dentre algumas fundações mobilizados pelo processo de redemocratização
norte-americanas, estimuladora da reestrutu- do país. Houve, naquele momento, uma grande
ração dos cursos de medicina. Nesse contexto, articulação social e política dos atores da saúde
são introduzidas as Ciências Sociais em Saúde no em torno da Reforma Sanitária para formular um
ensino médico, com base nas ciências do com- projeto que viria resultar na futura Lei Orgânica
portamento. Em meados de 1960, sob liderança da Saúde (Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990)
de Juan César García, há uma reconversão da que fundou o Sistema Único de Saúde (SUS). Essa
OPAS na América Latina, que estimulará um mo- conjuntura aparece nos depoimentos que enfa-
vimento crítico à estratégia norte-americana, re- tizaram as funções política, social e acadêmica
conhecendo o potencial contra-hegemônico dos desempenhada pela ABRASCO no período.
quadros profissionais da saúde nos países latino- A luta contra a ditadura aparece também co-
americanos. O Seminário de Cuenca (Equador), mo um elemento central na agregação e mobili-
em 1972, é um marco; e a Medicina Social, no zação ativa dos sujeitos envolvidos com a forma-
Brasil, incorporará as Ciências Sociais por meio ção da ABRASCO e a reformulação das políticas
de uma abordagem extremamente crítica: o mar- de saúde no país. Também aparece, fortemente, a
co do materialismo histórico-dialético 22. contribuição das ciências sociais, especialmente
Desse processo, emergirão discussões que aquelas que embasaram as análises teórico-me-
resultarão na conformação do campo da Saú- todológicas constitutivas do campo, representa-
de Coletiva e, em decorrência, na criação da das por correntes marxistas.
ABRASCO; estreita-se o diálogo entre a saúde e “Toda a luta contra a ditadura e aí tinha todo
as Ciências Sociais, campo de conhecimentos um alinhamento à esquerda dessas grandes lide-
e de práticas. Esse processo se revela no depoi- ranças, esse alinhamento mais do que à esquerda,
mento que segue: inclusive na perspectiva do socialismo, da luta
“ABRASCO nasce muito apoiada pelo movi- pelo socialismo e aí, então, a teoria marxista co-
mento dos departamentos de medicina social e mo uma teoria que estava estruturando e funda-
preventiva do país. Nesses departamentos, histo- mentando esse campo, de modo que toda a teoria
ricamente quando eles foram constituídos, ha- marxista não era apenas uma base teórica para a
via um movimento na educação médica, princi- luta política, mas também para fundamentação

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da constituição dessa abordagem teórica e analí- processo: o desenvolvimento do subcampo da


tica” (Entrevistado/a no 2). Política, Planejamento e Gestão na ABRASCO,
No que se refere ao desenvolvimento das ci- mais ou menos articulado ao processo de imple-
ências sociais e humanas em saúde, fica evidente mentação do SUS na década de 1990, e muito
a pluralidade e heterogeneidade de instituições especialmente nos anos 2000, e a inserção for-
e atores aglutinados em torno da ABRASCO, mal, ainda que gradual e restrita, de professores
bem como a sua relevância para a constituição de ciências sociais nos cursos de pós-graduação
e o desenvolvimento do campo da Saúde Cole- dos Departamentos de Medicinas Preventivas e
tiva no país. A dupla inserção dos profissionais, Socais e Faculdades de Saúde Pública no país. Es-
nos serviços – órgãos da administração direta se último aspecto contribuiu também para uma
de gestão e gerência do sistema de saúde e nas maior circulação e diversificação de abordagens
universidades –, foi um dos diferenciais que con- teóricas e metodológicas, bem como de objetos
feriram legitimidade ao “novo” campo, inclusive de estudo no campo da Saúde Coletiva.
com lideranças que enalteciam e valorizavam as No período das décadas de 1980 e 1990,
Ciências Sociais, mesmo não sendo profissionais momento em que se dá o processo de institu-
graduados na área. cionalização das Ciências Sociais em Saúde,
“Houve um movimento todo articulado, den- os encontros preparatórios e a realização do
tro da ABRASCO, acho que esse é, digamos, o pulo I Congresso Brasileiro de Ciências Sociais em
do gato do sucesso que a Saúde Coletiva brasi- Saúde, ocorrido em 1995, foram fortemente des-
leira tem, que a ABRASCO teve a habilidade de tacados pelos informantes como um dos mo-
colocar no mesmo campo, os epidemiologistas, os mentos mais marcantes na trajetória da área,
cientistas sociais, os planejadores, os administra- porque, do seu ponto de vista, impulsionaram
dores, com suas diferentes funções, vocações e tal, e e articularam os cientistas sociais no interior
estabelecer, então, esta linha do pensamento, que, da associação.
no conjunto todo, permitiu o desenvolvimento da “Fizemos o Primeiro Encontro Nacional de Ci-
saúde coletiva brasileira” (Entrevistado/a no 3; ências Sociais e Saúde, que foi em Belo Horizonte,
grifo nosso). em 1993 (...) Foi uma reunião pequena para que
Do ponto de vista de evolução do subcampo, os cientistas sociais pensassem, refletissem sobre
inicialmente, os cientistas sociais aglutinaram-se o campo em que estavam; quais as contribuições
em torno da área de conhecimento das ciências que estavam dando” (Entrevistado/a no 6).
políticas, que se estabelece de forma contunden- As realizações posteriores dos congressos
te na década de 1980, em consonância aos movi- desse subcampo consistiram em espaços de
mentos sociais de saúde, pela Reforma Sanitária aglutinação, visibilidade e promoção de discus-
e institucionalização do SUS, caracterizando-se sões sobre os impasses e a identidade dos profis-
crescentemente por uma lógica mais instrumen- sionais dedicados às ciências sociais no campo
tal e aplicada, em função do contexto de redemo- da Saúde Coletiva. Cabe enfatizar que, nesse pro-
cratização do país. A coexistência, no campo das cesso, uma maior diversidade e complexidade
ciências sociais em saúde, de dois subcampos de temas e objetos passaram a ser investigados
internos, um mais atinente às perspectivas socio- pelos cientistas sociais, o que contribuiu para
lógicas e antropológicas e outro mais atinente às o desenvolvimento e institucionalização desse
políticas públicas e gestão em saúde, manteve-se subcampo na ABRASCO.
até o final da década de 1990, quando cresce a No entanto, pode-se observar que as ciências
discussão para a criação da área de Política, Pla- sociais e humanas em saúde foram, e ainda são,
nejamento e Gestão em Saúde 23. marcadas por grandes impasses que traduzem
“Ela [a Comissão de Ciências Sociais] tinha peculiaridades e diferenças e se expressam na
existido no final da década de 1980, mas, como própria produção científica, bem como no seu
era um momento de grandes discussões do SUS, reconhecimento nos espaços formais dedicados
de constituição do SUS, predominou muito mais à ciência e à tecnologia no país.
uma Comissão de Política de Saúde do que pro-
priamente de Ciências Sociais, então, ela ficou A Saúde Coletiva e a interdisciplinaridade
abafada...” (Entrevistado/a no 6).
“No começo, a área de política ficava muito li- É possível dizer que, no bojo da conformação e
gada à área de planejamento e gestão, numa coisa institucionalização da Saúde Coletiva, desenvol-
mais instrumental, mas hoje eu diria que ela está veu-se um pensamento social em saúde no Bra-
muito mais forte no seu lado de ciências sociais, sil 3,24, um pensamento notadamente marcado
como ciência política” (Entrevistado/a no 5). pelo diálogo interdisciplinar entre as ciências
Os depoimentos dos entrevistados indi- biológicas e as ciências sociais 17. Atualmente,
cam dois aspectos que contribuíram para esse segundo Luz 25, a Saúde Coletiva convive com

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três paradigmas: a multidisciplinaridade, a inter- vê esse interdisciplinar como uma relação com o
disciplinaridade e a transdisciplinaridade. campo da saúde, que era necessária, você tam-
Neste trabalho, focaremos as questões refe- bém precisa entender qual é a lógica do sistema de
rentes à interdisciplinaridade, sugeridas pelos saúde, o que a epidemiologia faz, o que o planeja-
informantes da pesquisa, ainda que não seja mento faz, mas, ao mesmo tempo, para essa inter-
possível esquivar-se do intenso debate acerca locução, se possível, criar objetos comuns, sobre
da especificidade paradigmática interdiscipli- os quais você trabalha interdisciplinarmente na
nar do campo da Saúde Coletiva. Cabe ressaltar pesquisa, mas reconhecemos, até hoje, eu pelo me-
dois aspectos que emergiram dos discursos dos nos penso assim, que essa interdisciplinaridade
entrevistados, um, o da relação interdisciplinar não significa perder nossas raízes nas ciências
institucionalmente constituída na ABRASCO, e sociais ou nas demais disciplinas do campo da
outro que diz respeito ao plano das ideias e das saúde. É um interdisciplinar que não destitui a
intenções de produção do conhecimento. Nos disciplinaridade, é preciso ter um jogo de cintu-
depoimentos, esses dois aspectos aparecem em ra” (Entrevistado/a no 6; grifos nossos).
separado ou, muitas vezes, articulados entre si. Em virtude desses desafios, os informantes
Discutir a prática interdisciplinar no âmbito apontam, ainda, alguns caminhos que devem ser
da Saúde Coletiva expressa tensões entre os di- trilhados com vistas a repensar as concepções,
ferentes subcampos, evidenciando tanto as dife- o desenho e a operacionalização dos processos
renças da produção teórica quanto os diferentes de formação no campo da Saúde Coletiva, que
objetos de investigação e as diferentes formas de precisa, necessariamente, contemplar a questão
cada subcampo situar-se nesse território de in- da interdisciplinaridade.
terface disciplinar. “No meu modo de ver, isso fragiliza aquilo que
Ficou perceptível, pela fala dos protagonistas, poderia ser a maior potência da Saúde Coletiva,
um empenho de coesão em torno da Reforma Sa- de fazer com que os egressos dessa área tenham
nitária e da luta contra a ditadura nos primórdios um domínio básico de excelência que articulasse
da constituição da ABRASCO. Naquele momen- essa três áreas, então, você teria um cientista so-
to, a preocupação com a interdisciplinaridade cial, egresso de um programa de Saúde Coletiva,
não foi objeto central da agenda, dada a urgência mas que seria capaz de entender perfeitamente
social de se discutir o tema da Saúde no contexto como ler uma tendência histórica a respeito de
do movimento de redemocratização do país e da mortalidade ou utilização de serviços ou de im-
construção de um sistema nacional de saúde. plementação de políticas” (Entrevistado/a no 2).
“Houve um grande momento político na dé- O reconhecimento, a legitimidade e a visibi-
cada de 1970 e 1980 em relação ao SUS, em que lidade conquistados pelos diferentes subcam-
as forças todas se uniram, além do que tinha o pos da Saúde Coletiva também expressam algu-
contexto de combate à ditadura. Então, ali não mas particularidades da trajetória da própria
estava em questão se era cientista social, se era ABRASCO. No caso das Ciências Sociais, cabe en-
epidemiólogo, se era planejador, se era profissio- fatizar as tensões e as disputas internas quanto
nal do serviço de saúde... Aquelas forças estavam à própria capacidade de captação de recursos
unidas, e a gente se sentia compromissado com financeiros para a realização dos congressos da
a política de saúde, com a constituição do SUS área e quanto às linhas de financiamento e ao
e tudo mais. Mas toda a discussão posterior [a volume de recursos destinados aos projetos de
constituição das comissões dentro da ABRASCO] pesquisa, auxílios e bolsas.
foi para a criação da interdisciplinaridade nesse “Há uma divisão de recursos e temos que bri-
campo” (Entrevistado/a no 6). gar pela representação da nossa área, mas acho
Questões relativas às potencialidades e aos que isso tem mais chances de ser bem-sucedido
limites da perspectiva interdisciplinar na Saúde se tivermos propondo coisas, tanto na ABRASCO
Coletiva foram relatadas por alguns/algumas quanto na Capes e no CNPq, porque, mesmo no
dos/das entrevistados(as) ao analisarem o trân- âmbito da epidemiologia, eu vejo às vezes um cer-
sito das Ciências Sociais nesse contexto multi- to desconforto com certos modelos de ciência que
disciplinar, destacando a relevância da discipli- vigoram. Eu acho que a área de epidemiologia fez
naridade nesse processo, inclusive como um dos plano diretor, fez não sei o quê... Então eu acho
elementos que contribuem para a identidade do que uma parte do congresso deveria ser dedicada
subcampo: a isso...” (Entrevistado/a no 10).
“Agora, interdisciplinaridade não significa Como decorrência dessa discussão, as dis-
perder as suas referências disciplinares, a gente putas institucionais internas foram lembradas
sempre bateu nessa tecla, porque nós vamos be- e alguns dos entrevistados manifestaram pre-
ber nas ciências sociais mesmo, nos seus méto- ocupação com a Comissão de Ciências Sociais
dos, nas suas teorias e tudo mais. Então, a gente e a delimitação dos seus espaços no interior da

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ABRASCO, seus objetivos próprios e até mesmo Também dois/duas coordenadores(as) das
a sua coordenação. Comissões de Ciências Sociais e Humanas em
Outras questões problemáticas foram, ainda, Saúde falaram sobre a contribuição das ciências
levantadas pelos entrevistados, como a apropria- sociais. Para um(a) deles(as), as Ciências Sociais
ção pouco adequada dos conceitos das Ciências foram fundamentais para a reflexão crítica do
Sociais por epidemiologistas e demais profissio- processo saúde-doença e das políticas de saú-
nais do campo; a potencialidade de múltiplas de vigentes, à época, no país. Para o(a) outro(a)
identidades do pesquisador na contemporanei- coordenador(a), Ciências Sociais e Saúde Cole-
dade; o subcampo da epidemiologia como o que tiva estão muito imbricadas, porque as Ciências
mais avançou no processo de consolidação e Sociais ajudaram a construir a área.
institucionalização na ABRASCO, tanto em rela- “É difícil de responder essa pergunta, para mim
ção ao apoio político e à indução financeira das está tão impregnado... Agora se a gente vê com uma
agências internacionais como da OPAS quanto perspectiva histórica, ela vem ajudando a cons-
ao apoio político e interesses do Ministério da truir a área e incorpora discussões, inclusive teó-
Saúde no financiamento dos congressos de epi- ricas, muito importantes” (Entrevistado/a no 11).
demiologia no Brasil; e a própria natureza dos Reconhece-se, portanto, que o arcabouço
objetos de investigação da epidemiologia na Saú- teórico, metodológico e analítico das ciências
de Coletiva e sua incorporação no âmbito das po- sociais contribuiu tanto para a Saúde Coletiva,
líticas e das práticas de saúde no SUS. como um todo, quanto para as outras áreas con-
Evidentemente, os relatos mostram que há formadoras do campo, como a Epidemiologia e a
desafios teóricos e metodológicos para o avan- Política, Planejamento e Gestão. Essa perspectiva
ço da interdisciplinaridade no campo da Saúde traz consigo uma potencialidade contraditória:
Coletiva. Operacionalmente, entretanto, os en- por um lado, as ciências sociais consistem num
trevistados apontam alguns elementos que po- conhecimento transversal que permeia todas as
deriam fortalecer a atuação institucional da Co- esferas da Saúde Coletiva, o que é bastante po-
missão de Ciências Sociais e Humanas em Saúde sitivo; por outro lado, essa característica não lhe
na ABRASCO. São eles: a atuação mais proativa garante uma visibilidade empírica, ou “empiris-
dos membros na organização dos congressos e ta”, nos dizeres de um(a) dos(as) informantes,
na definição dos temas dos congressos; a neces- tornando-a, muitas vezes, conhecimento abs-
sidade de enfatizar temas que apresentem rele- trato e intangível para os outros subcampos da
vância para a sociedade na contemporaneidade, Saúde Coletiva.
em detrimento de assuntos internos ou específi-
cos das ciências sociais. As Ciências Sociais em Saúde e Ciências
Sociais “tradicionais”
A contribuição das Ciências Sociais
à Saúde Coletiva Sobre a relação entre as Ciências Sociais em Saú-
de e as Ciências Sociais “tradicionais”, foram re-
Em quase todos os depoimentos, há demons- latadas dificuldades de legitimação da área de Ci-
trações da importância da contribuição das Ci- ências Sociais em Saúde na própria Saúde Coleti-
ências Sociais para o campo da Saúde Coletiva. va, bem como nas Ciências Sociais tradicionais.
Porém, em apenas um depoimento, de um dos “Então, eu vejo que o cientista social que entra
presidentes da ABRASCO, explicita-se isso: para a área de saúde, ele tem que fazer um esforço,
“(...) das três áreas da Saúde Coletiva, as ciên- porque ele não vai ser peixe, nem tatu, ele vai ser
cias sociais é aquela que tem a característica de uma mistura dos dois... Ele vai ter que ter claro
ser a mais importante do ponto de vista do emba- algumas categorias básicas da sua área, mas es-
samento... Eu acho que a epidemiologia é muito tá voltado para as questões de saúde, analisar as
aplicada, é claro que tem a teoria epidemioló- questões de saúde” (Entrevistado/a no 4).
gica, mas ela é muito aplicada, muito empiris- Também foi abordada a imagem que se tem
ta... A política, planejamento e gestão, da mesma das Ciências Sociais em Saúde como Ciências So-
forma, não poderia ser diferente (...) E as ciências ciais aplicadas, menos científicas, menos nobres
sociais são a grande base, que tem autonomia dos que as Ciências Sociais tradicionalmente
para produzir o seu conhecimento de maneira instituídas, e a dificuldade de consolidar a área
independente das outras, mas, ao mesmo tempo, nas instâncias legitimadoras da produção cientí-
ela tem uma capacidade de contribuição impor- fica e gestoras de recursos financeiros para pes-
tante para as outras duas áreas no sentido de sus- quisas em geral. Foram observadas, ainda, em
tentar as propostas teóricas e metodológicas, as algumas situações, as dificuldades de diálogo e
abordagens e especialmente as interpretações...” cooperação entre elas e as disputas por espaços
(Entrevistado/a no 2). científicos.

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CIÊNCIAS SOCIAIS EM SAÚDE NA ABRASCO 2305

“Primeiro, eu acho que essas relações [Ciências va dentro da ABRASCO e a falta de legitimidade
Sociais e Ciências Sociais em Saúde] nem sempre das Ciências Sociais na associação, bem como
são harmônicas e tranquilas. Elas também têm a dificuldade de falar para um público externo
um certo grau de estranhamento e de resistência à comissão, no sentido de estabelecer um diá-
de ambas as partes. Também uma certa alusão, de logo com a sociedade e com as demais áreas de
uma certa desconfiança de que seriam trabalhos conhecimento. Esperam que as Ciências Sociais
mais superficiais, enfim. Do outro lado, também contribuam, como na gênese do movimento da
há má vontade, (...) porque uma coisa que marca Saúde Coletiva, com novos referenciais teóricos,
o campo da Saúde Coletiva, difícil não se colocar, é conceituais e categorias de análise, atendendo,
a aplicação política, não é?” (Entrevistado/a no 8). assim, às demandas de questões emergentes na
As interdependências, influências e afinida- área da saúde. Alguns dos depoimentos mencio-
des, entretanto, também foram mencionadas: nam a falta de interação com os novos problemas
“Na minha opinião, elas [as Ciências Sociais da sociologia.
‘tradicionais’ e as Ciências Sociais em Saúde] Há grande insistência na questão da interdis-
estão afinadas, pois, quando se começa a fazer a ciplinaridade, sugerindo a quebra de um conser-
discussão da crise dos paradigmas lá nas Ciências vadorismo disciplinar visto como intrínseco às
Sociais ‘tradicionais’, nós também estávamos fa- Ciências Sociais “tradicionais”. E, com relação à
zendo aqui, quer dizer, uma coisa reflete na outra precariedade da formação acadêmica dos ato-
(...) Então, eu acho que é o conjunto de coisas, não res que transitam no campo das Ciências Sociais
dá pra gente dizer que somos um monobloco e eu em Saúde, denunciam a superficialidade no uso
acho que o mesmo se dá dentro das Ciências So- dos referenciais teóricos das Ciências Sociais e a
ciais” (Entrevistado/a no 6). vulgarização das análises ditas qualitativas. Tam-
Fica evidente a latência de uma tensão entre bém mencionam que um dos grandes desafios é
as Ciências Sociais em Saúde e as Ciências So- o de não esvaziar ou empobrecer as análises do
ciais tradicionais. A percepção sobre as dificul- campo da Saúde Coletiva, mantendo o ensino
dades de diálogo e cooperação e as disputas por das Ciências Sociais nas áreas da saúde.
espaços científicos estiveram presentes desde Indicam a necessidade de legitimar e consoli-
sua origem. Hoje, essa tensão parece estar sen- dar, no âmbito do sistema de Ciência & Tecnolo-
do diluída – provavelmente resultado do cresci- gia, a área das Ciências Sociais em Saúde, criando
mento das Ciências Sociais na saúde e seu pro- uma identidade própria, porém enfrentando o
tagonismo na Saúde Coletiva. Nesse contexto, risco da fragmentação da área em outros sub-
são reafirmadas as influências e afinidades entre campos da Saúde Coletiva. Nesse sentido, apare-
ambas; reconhecendo-se diferença significativa cem, nos depoimentos, sugestões de aumentar o
entre estar numa instituição de saúde realizando grupo de estudiosos da área, a sua disseminação
trabalhos de Ciências Sociais e pertencer a uma pelo país e maior articulação; a retomada da es-
Faculdade de Ciências Sociais. sência das ciências sociais e dos seus temas ori-
ginais; e uma maior objetividade da Comissão de
Os desafios para as Ciências Sociais e Ciências Sociais, estabelecendo um planejamen-
Humanas em Saúde to mais estruturado para a comissão sob a forma
de um plano diretor.
Quanto aos principais desafios das Ciências
Sociais em Saúde no campo da Saúde Coletiva,
os(as) entrevistados(as) levantaram diversos as- Considerações finais
pectos que aparecem tanto nos relatos dos(as)
presidentes da ABRASCO quanto no(as) dos(as) Em linhas gerais, constatou-se que a sustentabi-
coordenadores(as) das Comissões das Ciências lidade das Ciências Sociais e Humanas em Saúde
Sociais e Humanas em Saúde. Os pontos mais na ABRASCO depende da sua legitimidade cien-
relevantes referidos pelos entrevistados espe- tífica, teórica e técnica. Pelos relatos, ficou clara
lham a reflexão que cada um deles fez sobre o uma capacidade deficitária nas dimensões téc-
campo, sobre sua constituição e trajetória, sinali- nica e política dessa área em ancorar processos
zando novas possibilidades de desenvolvimento que conduzam a patamares mais sustentáveis
e articulação. das Ciências Sociais no campo da Saúde Coleti-
Sugerem a recuperação do vigor que as ci- va. As descontinuidades das ações da comissão
ências sociais tiveram na origem do campo, e da agenda dos congressos refletem uma bai-
contribuindo para o seu embasamento teórico, xa institucionalização do processo de trabalho.
analítico e interpretativo. Indicam a importân- Por outro lado, as disputas internas ao campo
cia da superação do distanciamento entre as das Ciências Sociais em Saúde acirraram a de-
áreas constitutivas do campo da Saúde Coleti- limitação de espaços e territórios, muitas vezes

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2306 Ianni AMZ et al.

intradisciplinares, na defesa de determinados que pode ser considerado vital para a sustentabi-
objetos e linhas de investigação, distanciando- lidade das Ciências Sociais em Saúde e Humanas
-os mutuamente e os tornando pouco permeá- na ABRASCO. Tal plano poderia, como apontado
veis e até vulneráveis ao intercâmbio e interface nos depoimentos, contribuir como um meio efi-
com os outros atores e instituições. Tal situação caz para aumentar a capacidade de negociação e
restringe, ainda, a possibilidade de incorporar, captação de recursos regulares para as atividades
na agenda de pesquisa, “novos” objetos e estu- da comissão, entre elas os congressos. Seria, ain-
dos que venham a contribuir para o avanço da da, um instrumento adequado para potenciali-
Saúde Coletiva na contemporaneidade, em con- zar as dimensões técnica e política da sustentabi-
sonância com abordagens “complexas”, neces- lidade da subárea, bem como para a interlocução
sariamente ancoradas em concepções e práticas com as agências nacionais e internacionais de
interdisciplinares. fomento e apoio à pesquisa no campo da Saúde
É interessante notar, nas falas atores, uma Pública/Coletiva.
certa “dança identitária” das Ciências Sociais em Resta ainda o desafio da incorporação dos
Saúde, que tem, como eixo balizador, a relação resultados das pesquisas para o fortalecimento
dicotômica entre teoria x prática. Quando postas do SUS, enfrentando a contradição entre a inten-
no campo da Saúde Coletiva, as Ciências Sociais cionalidade e pragmatismo da gestão da políti-
são tidas como extremamente teóricas e inter- ca de saúde e as recomendações e subsídios dos
pretativas, trazendo consigo um tom de abstra- estudos “sociais” na identificação de lacunas e
ção típico das reflexões puramente teóricas, em- melhoria das políticas e, consequentemente, das
bora seja evidente o reconhecimento da impor- práticas de saúde.
tância dessas “abstrações” para a constituição do São muitos os desafios e os caminhos que os
campo da Saúde Coletiva no Brasil. Quando pos- resultados da pesquisa oferecem para as Ciências
tas em relação às ciências sociais “tradicionais”, Sociais e Humanas em Saúde no Brasil. Mais uma
as Ciências Sociais em Saúde são acusadas de vez, reafirma-se a força dos depoimentos que re-
empíricas, aplicadas, e, por isso mesmo, menos tomam a história das Ciências Sociais em Saúde
científicas. Denota-se, assim, uma dificuldade de na ABRASCO, seu desenvolvimento e os impas-
diálogo entre as ciências sociais que são produ- ses atuais. E, sobretudo, revelam um fragmento
zidas no âmbito da saúde, mais especificamente, da história social contemporânea do pensamen-
no interior da ABRASCO, e as ciências sociais que to social em saúde no Brasil, permitindo recupe-
estão sendo produzidas nos centros tradicionais rar as estratégias de construção de um campo tão
de ensino e pesquisa dessa área. potente na história recente do país como é o da
A necessidade de um plano diretor da comis- Saúde Coletiva.
são, destacado pelos informantes, é outro ponto

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Resumen Colaboradores

El pensamiento social de la salud en Brasil está asocia- A. M. Z. Ianni participou da concepção e projeto, aná-
do a la creación de la Asociación Brasileña de Postgra- lise, interpretação dos dados e redação do artigo. C.
do en Salud Pública (ABRASCO), al establecerse un área Spadacio colaborou na interpretação dos dados, reda-
de especialización en el ámbito de las Ciencias Sociales. ção do artigo e revisão crítica relevante do conteúdo
Este artículo destaca los principales aspectos relacio- intelectual e aprovação final da versão a ser publicada.
nados con el establecimiento y la institucionalización R. Barboza, O. S. F. Alves, S. D. L. Viana e A. T. Rocha con-
de las Ciencias Sociales en salud dentro de ABRASCO, tribuíram na análise e interpretação dos dados, revisão
basándose en el testimonio de sus funcionarios y líderes crítica relevante do conteúdo intelectual e aprovação
durante el período 1994-2011, así como en los coordina- final da versão a ser publicada.
dores de las comisiones de ciencias sociales ABRASCO
durante el mismo período. Se recogieron testimonios
autorizados y se analizó el contexto de la constitución Agradecimentos
de estos estudios, su pertinencia y evolución a lo largo
de la trayectoria en salud de la comunidad. El conte- À Capes e ao CNPq (Edital MCT/CNPq 14/2009 – Uni-
nido de las entrevistas fue agrupado en cinco grandes versal) pelo financiamento.
áreas de análisis: (1) desarrollo de las Ciencias Sociales
y Humanidades dentro del ámbito de la salud; (2) sa-
lud pública y su interdisciplinariedad; 3) contribución
de las Ciencias Sociales a la salud pública; (4) Ciencias
Sociales en salud y las Ciencias Sociales “tradicionales”,
y (5) desafíos de las Ciencias Sociales y Humanidades
dentro del ámbito de la salud.

Ciencias Sociales; Ciencias de la Salud; Dominios


Científicos

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