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Conheça a história da saúde pública no brasileiros, ou formados no Brasil.

Brasil Caridade, filantropia e saúde: o papel das


Você tem ideia de como era o sistema de saúde Santas Casas de Misericórdia
pública antes do SUS? Ou antes de existirem os A ligação entre entidades religiosas e tratamentos
planos de saúde? Hoje, dos 200 milhões de de saúde é bastante forte e existe desde a
habitantes no Brasil, ¾ são diretamente colonização do Brasil. Movimentos da Igreja
dependentes do sistema público de saúde – o outro Católica, da Igreja Protestante, da Igreja
quarto, isto é, os outros 51 milhões usam a Evangélica, da Comunidade Espírita, entre outras,
chamada saúde suplementar. O SUS veio da chegam a ter 2.100 estabelecimentos de saúde
evolução de um direito chamado direito à saúde, espalhados por todo o território brasileiro, de
que há pouco tempo foi definitivamente acordo com a Confederação de Santas Casas de
estabelecido no Brasil. Vamos entender como foi a Misericórdia (CMB).
história da saúde pública e como chegamos onde As Santas Casas de Misericórdia são uma dessas
estamos? entidades que se destinaram a prestar assistência
LINHA DO TEMPO: A HISTÓRIA DA médica às pessoas. As santas casas foram, durante
SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL décadas, a única opção de acolhimento e
Com 518 anos de história brasileira – contados a tratamento de saúde para quem não tinha
partir da vinda dos portugueses –, as políticas de dinheiro. Elas eram fundadas pelos religiosos e,
saúde sofreram diversas mudanças. Quais foram num primeiro momento, conectadas com a ideia
os momentos decisivos com relação à saúde no de caridade – entre o século XVIII e o ano de 1837.
Brasil? Quando o Estado passou a agir? E, Sobre seu financiamento, a CMB explica: “desde
enquanto não agia, quais eram os responsáveis sua origem, até o início das relações com os
pelos cuidados médicos da população? Entenda a governos (especialmente na década de 1960), as
linha do tempo da saúde pública no Brasil: Santas Casas foram criadas e mantidas pelas
Colonização e Império: pouco – ou nada – doações das comunidades, vivendo períodos
feito em relação à saúde pública no Brasil áureos, em que construíram seus patrimônios,
Como se sabe, antes da chegada de europeus em sendo boa parte destes tombados como patrimônio
território brasileiro, os povos indígenas já o histórico.”
habitavam há centenas de anos. Os povos De acordo com a Confederação das Santas Casas de
indígenas já tinham enfermidades, mas com a Misericórdia do Brasil, o surgimento das primeiras
colonização portuguesa tudo piorou, santas casas coincidiu já com o “descobrimento”
principalmente pela conhecida expressão usada do Brasil. Elas foram criadas antes mesmo de o
em aulas sobre a história do Brasil: as “doenças de país se organizar juridicamente e determinar as
branco”. Doenças comuns na Europa, que não funções do Estado – a organização jurídica
existiam no Brasil, acabaram sendo trazidas. O brasileira ocorreu, de fato, com a Constituição
ponto de atenção é de que os indígenas não tinham Imperial de 1824.
imunidade para elas e a consequência foi a morte Antes da Constituição de 1824, algumas das santas
de milhares deles. casas no Brasil eram: as Santas Casas de Santos
Durante os 389 anos de duração da Colônia e do (1543), Salvador (1549), Rio de Janeiro (1567),
Império, pouco ou nada foi feito com relação à Vitória (1818), São Paulo (1599), João Pessoa
saúde. Não havia políticas públicas estruturadas, (1602), Belém (1619), entre diversas outras.
muito menos a construção de centros de De 1838 a 1940, as santas casas mudaram seu
atendimento à população. Além disso, o acesso a propósito e começaram a agir por meio da
tratamentos e cuidados médicos dependia da filantropia, que é, de acordo com a CMB, uma
classe social: pessoas pobres e escravos viviam em forma de “tornar a ajuda útil àqueles que dela
condições duras e poucos sobreviviam às doenças necessitam”. Mais importante do que bens, a
que tinham. As pessoas nobres e colonos brancos, filantropia seria a orientação das pessoas e a
que tivessem terras e posses, tinham maior preocupação com o seu bem-estar futuro.
facilidade de acesso a médicos e remédios da Independência ou morte? Mudanças nas
época. Portanto, suas chances de sobrevivência políticas de saúde durante o Império
eram maiores. Em 1822, D. Pedro II declara a independência
Com a chegada da Família Real portuguesa ao brasileira com relação a Portugal bradando:
Brasil, em 1808, e a sua vontade em desenvolver o “Independência ou morte!”. Relacionando o
Brasil para que se aproximasse da realidade vivida bordão com a saúde pública, pode-se dizer que
em Portugal, uma das primeiras medidas foi a houve avanços durante o período imperial – de
fundação de cursos universitários. Foram criados acordo com o Dr. Dráuzio Varella, pouco eficazes.
cursos de Medicina, Cirurgia e Química, sendo os Além de transformar escolas em faculdades, D.
pioneiros: a Escola de Cirurgia do Rio de Janeiro e Pedro II criou órgãos para vistoriar a higiene
o Colégio Médico-Cirúrgico no Real Hospital pública principalmente na nova capital brasileira,
Militar de Salvador. Assim, aos poucos, os médicos o Rio de Janeiro. A cidade, além de sofrer diversas
estrangeiros foram substituídos por médicos mudanças urbanas, como calçamento de ruas e
iluminação pública, também visava a higienizar o para o financiamento da industrialização.
centro urbano – de maneira sanitária e social. A Constituição de 1934, promulgada durante o
Social, pois expulsava do centro da cidade os governo Vargas, concedia novos direitos aos
casebres e as pessoas de classe social mais inferior, trabalhadores, como assistência médica e “licença-
proliferando então o desenvolvimento de favelas gestante”. Além disso, a Consolidação das Leis
nas áreas periféricas. Trabalhistas de 1943, a CLT, determina aos
A higienização sanitária deveria ocorrer por conta trabalhadores de carteira assinada, além do salário
das recorrentes endemias de febre amarela, peste mínimo, também benefícios à saúde.
bubônica, malária e varíola, doenças associadas à Anos 50 e a 3ª Conferência Nacional da
falta de saneamento básico e de higiene. Os Saúde
esgotos, na época, corriam a céu aberto e o lixo era Em 1953, foi criado o Ministério da Saúde. Foi a
depositado em valas. Assim, o alvo da campanha primeira vez em que houve um ministério
pela saúde pública nesse princípio de século XIX dedicado exclusivamente à criação de políticas de
foi estruturar o saneamento básico. saúde, com foco principalmente no atendimento
Saúde pública na República: as vacinas e os em zonas rurais, já que nas cidades a saúde era
sanitaristas privilégio de quem tinha carteira assinada.
Com a declaração do fim da escravidão em 1888, o As Conferências Nacionais de Saúde tiveram um
país ficou dependente de mão de obra imigrante papel muito importante na consolidação do
para continuar no cultivo de insumos que eram a entendimento da importância da saúde pública no
base da economia brasileira, principalmente o Brasil – mais adiante, você entenderá por quê. A
café. Entre 1900 e 1920, o Brasil ainda era refém 3ª Conferência Nacional de Saúde ocorreu no final
dos problemas sanitários e das epidemias. de 1963 e apresentou diversos estudos sobre a
Portanto, para a recepção dos imigrantes criação de um sistema de saúde. De acordo com o
europeus, houve diversas reformas urbanas e doutor em saúde pública Gilson Carvalho, houve
sanitárias nas grandes cidades, como o Rio de duas bandeiras principais nessa conferência:
Janeiro, em que houve atenção especial às suas 1. A criação de um sistema de saúde para todos, o
áreas portuárias. Para o governo, o crescimento do direito à saúde deveria ser universal;
país dependia de uma população saudável e com 2. A organização de um sistema descentralizado,
capacidade produtiva, portanto era de seu visando ao protagonismo do município. Além
interesse que sua saúde estivesse em bom estado. disso, afirma que a ditadura militar, iniciada em
Os sanitaristas comandaram esse período com março de 1964, sepultou a proposta poucos meses
campanhas de saúde, sendo um dos destaques o depois.
médico Oswaldo Cruz, que enfrentou revoltas A saúde pública durante a ditadura militar
populares na defesa da vacina obrigatória contra a (1964-1985)
varíola – na época, a população revoltou-se com a A saúde sofreu com o corte de verbas durante o
medida, pois não foram explicados os objetivos da período de regime militar e doenças como dengue,
campanha e do que se tratavam as vacinas. As meningite e malária se intensificaram. Houve
ações dos sanitaristas chegaram até o Sertão aumento das epidemias e da mortalidade infantil,
Nordestino, divulgando a importância dos até que o governo buscou fazer algo. Uma das
cuidados com a saúde no meio rural. Lá, porém, as medidas foi a criação do INPS, que foi a união de
pessoas eram muito pobres e continuavam em todos os órgãos previdenciários que funcionavam
moradias precárias, vitimadas por doenças mesmo desde 1930, a fim de melhorar o atendimento
com a disseminação de vacinas. médico.
Ainda nos anos de 1920, foram criadas as CAPS: Passou-se a enxergar a atenção primária de
Caixas de Aposentadoria e Pensão. Os pacientes cada vez mais como responsabilidade
trabalhadores as criaram para garantir proteção na dos municípios; os casos mais complexos eram
velhice e na doença. Posteriormente e devido à responsabilidade dos governos estadual e federal.
pressão popular, Getúlio Vargas ampliou as CAPS De acordo com o Dr. Gilson Carvalho, houve
para outras categorias profissionais, tornando-se o “projetos privatizantes como o do Vale Consulta e
IAPS: Instituto de Aposentadorias e Pensões. para as regiões mais pobres uma reedição da
Fundação Sesp denominado Programa de
Período Getulista: o começo da organização Interiorização de Ações e Serviços de Saúde
das leis (Piass). O Piass não se implantou por falta de
Com a presidência de Getúlio Vargas, houve vontade política dos governos à época. Tinha mais
reformulações no sistema a fim de criar uma virtudes que defeitos. Faltou interesse público para
atuação mais centralizada, inclusive quanto à levá-lo à frente.”
saúde pública. O foco de seu governo foi o Durante os anos de 1970, mesmo no auge do
tratamento de epidemias e endemias, sem muitos milagre econômico, as verbas para saúde eram
avanços, pois os recursos destinados à saúde eram baixas: 1% do orçamento geral da União. Ao fim da
desviados a outros setores – de acordo com o Dr. década, as prefeituras das cidades que mais
Dráuzio Varella, parte dos recursos dos IAPS ia cresciam começaram a se organizar para receber e
conceder aos migrantes algum tipo de realização da 8ª Conferência Nacional da Saúde
atendimento na área da saúde. Começou-se a em 1986. Pela primeira vez na história, foi possível
estruturar políticas públicas que envolveram as a participação da sociedade civil organizada no
Secretarias Municipais de Saúde, que depois se processo de construção do que seria o novo modelo
estenderam aos estados e a ministérios, como os de saúde pública brasileiro.
Ministérios da Previdência Social e da Saúde. Essa conferência foi tão importante pois desde o
Anos 80 e o princípio da saúde pública seu tema – “saúde como direito de todos e dever do
como direito Estado” – teve como resultado uma série de
O Movimento Sanitarista e a 8ª Conferência documentos que basicamente esboçaram o
Nacional de Saúde surgimento do Sistema Único de Saúde (SUS). A
O movimento sanitarista foi de importância ímpar conferência ampliou os conceitos de saúde pública
ao entendimento de saúde pública, do conceito de no Brasil, propôs mudanças baseadas no direito
saúde e também da evolução do direito à saúde no universal à saúde com melhores condições de vida,
Brasil. A reforma sanitária se refere às ideias de além de fazer menção à saúde preventiva, à
uma série de mudanças e transformações descentralização dos serviços e à participação da
necessárias à saúde. Sua composição era de população nas decisões. O relatório da conferência
técnicos da saúde – médicos, enfermeiros, teve suas principais resoluções incorporadas à
biomédicos… – e intelectuais, partidos políticos, Constituição Federal de 1988.
diferentes correntes e tendências e movimentos A Constituição de 1988 e a criação do SUS:
sociais diversos. Ao fim da década de 1970, o o direito à saúde como dever do Estado
movimento adquiriu certa maturidade em função A Constituição Federal de 1988 foi o primeiro
de uma série de estudos acadêmicos e práticos documento a colocar o direito à saúde
realizados, principalmente, nas faculdades de definitivamente no ordenamento jurídico
Medicina. Nas universidades, o entendimento de brasileiro. A saúde passa a ser um direito do
medicina se tornava cada mais social, pensando a cidadão e um dever do Estado – essa última
saúde como uma série de fatores que vão além do posição é problematizada pelo Dr. Dráuzio Varella
bem-estar do corpo humano. por, na sua concepção, retirar a responsabilidade
De acordo com a Fundação Oswaldo Cruz do cidadão sobre o cuidado da própria saúde. A
(Fiocruz), alguns dos atores do movimento Constituição ainda determina que o sistema de
sanitarista foram os médicos residentes, “que na saúde pública deve ser gratuito, de qualidade e
época trabalhavam sem carteira assinada e com universal, isto é, acessível a todos os brasileiros
uma carga horária excessiva”, por exemplo. Outras e/ou residentes no Brasil.
movimentações da Reforma Sanitária foram as O Sistema Único de Saúde foi regulado
primeiras greves realizadas depois de 1968 e os posteriormente pela lei 8.080 de 1990, em que
sindicatos médicos, que também estavam em fase estão distribuídas todas as suas atribuições e
de transformação. funções como um sistema público.
“Esse movimento entra também nos conselhos
regionais, no Conselho Nacional de Medicina e na
Associação Médica Brasileira – as entidades
médicas começam a ser renovadas. A criação do
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), em
1976, também é importante na luta pela reforma
sanitária. A entidade surge com o propósito de
lutar pela democracia, de ser um espaço de
divulgação do movimento sanitário, e reúne
pessoas que já pensavam dessa forma e realizavam
projetos inovadores”, de acordo com a Fiocruz.
Enquanto a ditadura militar existia, o movimento
sanitarista foi “testando” uma série de hipóteses a
respeito do seu entendimento de saúde. Na Escola
Nacional de Saúde Pública (Ensp) da Fundação
Oswaldo Cruz são colocados em prática diversos
projetos “e pessoas que faziam política em todo
Brasil foram treinadas”. Os projetos envolviam:
– saúde comunitária;
– clínica de família;
– pesquisas comunitárias.
Ao fim da ditadura, as propostas da Reforma
Sanitária foram reunidas num documento
chamado Saúde e Democracia, enviado para
aprovação do Legislativo. Uma das conquistas foi a

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