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Conheça a história da saúde pública no Brasil

É importante ter conhecimento desse processo para


entender a situação atual

Você tem ideia de como era o sistema de saúde pública antes do Sistema
Único de Saúde (SUS)? Ou antes de existirem os planos de saúde? Hoje, dos
200 milhões de habitantes no Brasil, ¾ são diretamente dependentes do sistema
público de saúde – o outro quarto, isto é, os outros 51 milhões usam a chamada
saúde suplementar. O SUS veio da evolução de um direito chamado direito à
saúde, que há pouco tempo foi definitivamente estabelecido no Brasil. Vamos
entender como foi a história da saúde pública e como chegamos onde estamos?

LINHA DO TEMPO: A HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL

Com 520 anos de história brasileira – contados a partir da vinda dos


portugueses –, as políticas de saúde sofreram diversas mudanças. Quais foram
os momentos decisivos com relação à saúde no Brasil? Quando o Estado passou
a agir? E, enquanto não agia, quais eram os responsáveis pelos cuidados
médicos da população? Entenda a linha do tempo da saúde pública no Brasil:

Colonização e Império: pouco – ou nada – feito em relação à saúde


pública no Brasil

Como se sabe, antes da chegada de europeus em território brasileiro, os


povos indígenas já o habitavam há centenas de anos. Os povos indígenas já
tinham enfermidades, mas com a colonização portuguesa tudo piorou,
principalmente pela conhecida expressão usada em aulas sobre a história do
Brasil: as “doenças de branco”. Doenças comuns na Europa, que não existiam
no Brasil, acabaram sendo trazidas. O ponto de atenção é de que os indígenas
não tinham imunidade para elas e a consequência foi a morte de milhares deles.
Durante os 389 anos de duração da Colônia e do Império, pouco ou nada
foi feito com relação à saúde. Não havia políticas públicas estruturadas, muito
menos a construção de centros de atendimento à população. Além disso, o
acesso a tratamentos e cuidados médicos dependia da classe social: pessoas
pobres e escravos viviam em condições duras e poucos sobreviviam às doenças
que tinham. As pessoas nobres e colonos brancos, que tivessem terras e posses,
tinham maior facilidade de acesso a médicos e remédios da época. Portanto,
suas chances de sobrevivência eram maiores.
Com a chegada da Família Real portuguesa ao Brasil, em 1808, e a sua
vontade em desenvolver o Brasil para que se aproximasse da realidade vivida
em Portugal, uma das primeiras medidas foi a fundação de cursos universitários.
Foram criados cursos de Medicina, Cirurgia e Química, sendo os pioneiros: a
Escola de Cirurgia do Rio de Janeiro e o Colégio Médico-Cirúrgico no Real
Hospital Militar de Salvador. Assim, aos poucos, os médicos estrangeiros foram
substituídos por médicos brasileiros, ou formados no Brasil.

Caridade, filantropia e saúde: o papel das Santas Casas de Misericórdia

A ligação entre entidades religiosas e tratamentos de saúde é bastante


forte e existe desde a colonização do Brasil. Movimentos da Igreja Católica, da
Igreja Protestante, da Igreja Evangélica, da Comunidade Espírita, entre outras,
chegam a ter 2.100 estabelecimentos de saúde espalhados por todo o território
brasileiro, de acordo com a Confederação de Santas Casas de Misericórdia
(CMB).
As Santas Casas de Misericórdia são uma dessas entidades que se
destinaram a prestar assistência médica às pessoas. As Santas Casas foram,
durante décadas, a única opção de acolhimento e tratamento de saúde para
quem não tinha dinheiro. Elas eram fundadas pelos religiosos e, num primeiro
momento, conectadas com a ideia de caridade – entre o século XVIII e o ano de
1837.
Sobre seu financiamento, a CMB explica: “desde sua origem, até o início
das relações com os governos (especialmente na década de 1960), as Santas
Casas foram criadas e mantidas pelas doações das comunidades, vivendo
períodos áureos, em que construíram seus patrimônios, sendo boa parte destes
tombados como patrimônio histórico.”
De acordo com a Confederação das Santas Casas de Misericórdia do
Brasil, o surgimento das primeiras Santas Casas coincidiu já com o
“descobrimento” do Brasil. Elas foram criadas antes mesmo de o país se
organizar juridicamente e determinar as funções do Estado – a organização
jurídica brasileira ocorreu, de fato, com a Constituição Imperial de 1824.
Antes da Constituição de 1824, algumas das Santas Casas no Brasil
eram: as Santas Casas de Santos (1543), Salvador (1549), Rio de Janeiro
(1567), Vitória (1818), São Paulo (1599), João Pessoa (1602), Belém (1619),
entre diversas outras.
De 1838 a 1940, as Santas Casas mudaram seu propósito e começaram
a agir por meio da filantropia, que é, de acordo com a CMB, uma forma de “tornar
a ajuda útil àqueles que dela necessitam”. Mais importante do que bens, a
filantropia seria a orientação das pessoas e a preocupação com o seu bem-estar
futuro.

Independência ou morte? Mudanças nas políticas de saúde durante o


Império

Em 1822, D. Pedro II declara a independência brasileira com relação a


Portugal bradando: “Independência ou morte!”. Relacionando o bordão com a
saúde pública, pode-se dizer que houve avanços durante o período imperial – de
acordo com o Dr. Dráuzio Varella, pouco eficazes.
Além de transformar escolas em faculdades, D. Pedro II criou órgãos para
vistoriar a higiene pública principalmente na nova capital brasileira, o Rio de
Janeiro. A cidade, além de sofrer diversas mudanças urbanas, como calçamento
de ruas e iluminação pública, também visava a higienizar o centro urbano – de
maneira sanitária e social. Social, pois expulsava do centro da cidade os
casebres e as pessoas de classe social mais inferior, proliferando então o
desenvolvimento de favelas nas áreas periféricas.
A higienização sanitária deveria ocorrer por conta das recorrentes
endemias de febre amarela, peste bubônica, malária e varíola, doenças
associadas à falta de saneamento básico e de higiene. Os esgotos, na época,
corriam a céu aberto e o lixo era depositado em valas. Assim, o alvo da
campanha pela saúde pública nesse princípio de século XIX foi estruturar o
saneamento básico.
Saúde pública na República: as vacinas e os sanitaristas

Com a declaração do fim da escravidão em 1888, o país ficou dependente


de mão de obra imigrante para continuar no cultivo de insumos que eram a base
da economia brasileira, principalmente o café. Entre 1900 e 1920, o Brasil ainda
era refém dos problemas sanitários e das epidemias. Portanto, para a recepção
dos imigrantes europeus, houve diversas reformas urbanas e sanitárias nas
grandes cidades, como o Rio de Janeiro, em que houve atenção especial às
suas áreas portuárias. Para o governo, o crescimento do país dependia de uma
população saudável e com capacidade produtiva, portanto era de seu interesse
que sua saúde estivesse em bom estado.
Os sanitaristas comandaram esse período com campanhas de saúde,
sendo um dos destaques o médico Oswaldo Cruz, que enfrentou revoltas
populares na defesa da vacina obrigatória contra a varíola – na época, a
população revoltou-se com a medida, pois não foram explicados os objetivos da
campanha e do que se tratavam as vacinas. As ações dos sanitaristas chegaram
até o Sertão Nordestino, divulgando a importância dos cuidados com a saúde no
meio rural. Lá, porém, as pessoas eram muito pobres e continuavam em
moradias precárias, vitimadas por doenças mesmo com a disseminação de
vacinas.
Ainda nos anos de 1920, foram criadas as CAPS: Caixas de
Aposentadoria e Pensão. Os trabalhadores as criaram para garantir proteção na
velhice e na doença. Posteriormente e devido à pressão popular, Getúlio Vargas
ampliou as CAPS para outras categorias profissionais, tornando-se o IAPS:
Instituto de Aposentadorias e Pensões.

Período Getulista: o começo da organização das leis

Com a presidência de Getúlio Vargas, houve reformulações no sistema a


fim de criar uma atuação mais centralizada, inclusive quanto à saúde pública. O
foco de seu governo foi o tratamento de epidemias e endemias, sem muitos
avanços, pois os recursos destinados à saúde eram desviados a outros setores
– de acordo com o Dr. Dráuzio Varella, parte dos recursos dos IAPS ia para o
financiamento da industrialização.
A Constituição de 1934, promulgada durante o governo Vargas, concedia
novos direitos aos trabalhadores, como assistência médica e “licença-gestante”.
Além disso, a Consolidação das Leis Trabalhistas de 1943, a CLT, determina
aos trabalhadores de carteira assinada, além do salário mínimo, também
benefícios à saúde.

Anos 50 e a 3ª Conferência Nacional da Saúde

Em 1953, foi criado o Ministério da Saúde. Foi a primeira vez em que


houve um ministério dedicado exclusivamente à criação de políticas de saúde,
com foco principalmente no atendimento em zonas rurais, já que nas cidades a
saúde era privilégio de quem tinha carteira assinada.
As Conferências Nacionais de Saúde tiveram um papel muito importante
na consolidação do entendimento da importância da saúde pública no Brasil –
mais adiante, você entenderá por quê. A 3ª Conferência Nacional de Saúde
ocorreu no final de 1963 e apresentou diversos estudos sobre a criação de um
sistema de saúde. De acordo com o doutor em saúde pública Gilson Carvalho,
houve duas bandeiras principais nessa conferência:
1. A criação de um sistema de saúde para todos, o direito à saúde deveria
ser universal;
2. A organização de um sistema descentralizado, visando ao protagonismo
do município. Além disso, afirma que a ditadura militar, iniciada em março
de 1964, sepultou a proposta poucos meses depois.

A saúde pública durante a ditadura militar (1964-1985)

A saúde sofreu com o corte de verbas durante o período de regime militar


e doenças como dengue, meningite e malária se intensificaram. Houve aumento
das epidemias e da mortalidade infantil, até que o governo buscou fazer algo.
Uma das medidas foi a criação do INPS, que foi a união de todos os órgãos
previdenciários que funcionavam desde 1930, a fim de melhorar o atendimento
médico.
Passou-se a enxergar a atenção primária de pacientes cada vez mais
como responsabilidade dos municípios; os casos mais complexos eram
responsabilidade dos governos estadual e federal. De acordo com o Dr. Gilson
Carvalho, houve “projetos privatizantes como o do Vale Consulta e para as
regiões mais pobres uma reedição da Fundação Sesp denominado Programa de
Interiorização de Ações e Serviços de Saúde (Piass). O Piass não se implantou
por falta de vontade política dos governos à época. Tinha mais virtudes que
defeitos. Faltou interesse público para levá-lo à frente.”
Durante os anos de 1970, mesmo no auge do milagre econômico, as
verbas para saúde eram baixas: 1% do orçamento geral da União. Ao fim da
década, as prefeituras das cidades que mais cresciam começaram a se
organizar para receber e conceder aos migrantes algum tipo de atendimento na
área da saúde. Começou-se a estruturar políticas públicas que envolveram as
Secretarias Municipais de Saúde, que depois se estenderam aos estados e a
ministérios, como os Ministérios da Previdência Social e da Saúde.

Anos 80 e o princípio da saúde pública como direito

O Movimento Sanitarista e a 8ª Conferência Nacional de Saúde

O movimento sanitarista foi de importância ímpar ao entendimento de


saúde pública, do conceito de saúde e também da evolução do direito à saúde
no Brasil. A reforma sanitária se refere às ideias de uma série de mudanças e
transformações necessárias à saúde. Sua composição era de técnicos da saúde
– médicos, enfermeiros, farmacêuticos, biomédicos… – e intelectuais, partidos
políticos, diferentes correntes e tendências e movimentos sociais diversos. Ao
fim da década de 1970, o movimento adquiriu certa maturidade em função de
uma série de estudos acadêmicos e práticos realizados, principalmente, nas
faculdades de Medicina. Nas universidades, o entendimento de medicina se
tornava cada mais social, pensando a saúde como uma série de fatores que vão
além do bem-estar do corpo humano.
De acordo com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), alguns dos atores do
movimento sanitarista foram os médicos residentes, “que na época trabalhavam
sem carteira assinada e com uma carga horária excessiva”, por exemplo. Outras
movimentações da Reforma Sanitária foram as primeiras greves realizadas
depois de 1968 e os sindicatos médicos, que também estavam em fase de
transformação.
“Esse movimento entra também nos conselhos regionais, no Conselho
Nacional de Medicina e na Associação Médica Brasileira – as entidades médicas
começam a ser renovadas. A criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
(Cebes), em 1976, também é importante na luta pela reforma sanitária. A
entidade surge com o propósito de lutar pela democracia, de ser um espaço de
divulgação do movimento sanitário, e reúne pessoas que já pensavam dessa
forma e realizavam projetos inovadores”, de acordo com a Fiocruz.
Enquanto a ditadura militar existia, o movimento sanitarista foi “testando”
uma série de hipóteses a respeito do seu entendimento de saúde. Na Escola
Nacional de Saúde Pública (Ensp) da Fundação Oswaldo Cruz são colocados
em prática diversos projetos “e pessoas que faziam política em todo Brasil foram
treinadas”. Os projetos envolviam:
1.saúde comunitária;
2. clínica de família;
3. pesquisas comunitárias;

Ao fim da ditadura, as propostas da Reforma Sanitária foram reunidas


num documento chamado Saúde e Democracia, enviado para aprovação do
Legislativo. Uma das conquistas foi a realização da 8ª Conferência Nacional da
Saúde em 1986. Pela primeira vez na história, foi possível a participação da
sociedade civil organizada no processo de construção do que seria o novo
modelo de saúde pública brasileiro.
Essa conferência foi tão importante pois desde o seu tema – “saúde como
direito de todos e dever do Estado” – teve como resultado uma série de
documentos que basicamente esboçaram o surgimento do Sistema Único de
Saúde (SUS). A conferência ampliou os conceitos de saúde pública no Brasil,
propôs mudanças baseadas no direito universal à saúde com melhores
condições de vida, além de fazer menção à saúde preventiva, à descentralização
dos serviços e à participação da população nas decisões. O relatório da
conferência teve suas principais resoluções incorporadas à Constituição Federal
de 1988.
A Constituição de 1988 e a criação do SUS: o direito à saúde como dever
do Estado

A Constituição Federal de 1988 foi o primeiro documento a colocar o


direito à saúde definitivamente no ordenamento jurídico brasileiro. A saúde
passa a ser um direito do cidadão e um dever do Estado – essa última posição
é problematizada pelo Dr. Dráuzio Varella por, na sua concepção, retirar a
responsabilidade do cidadão sobre o cuidado da própria saúde. A Constituição
ainda determina que o sistema de saúde pública deve ser gratuito, de qualidade
e universal, isto é, acessível a todos os brasileiros e/ou residentes no Brasil.
O Sistema Único de Saúde foi regulado posteriormente pela lei 8.080 de
1990, em que estão distribuídas todas as suas atribuições e funções como um
sistema público. Você poderá ler sobre o SUS em diversos outros textos na
nossa trilha sobre saúde pública.

DISPONÍVEL EM: https://guiadoestudante.abril.com.br/blog/atualidades-


vestibular/conheca-a-historia-da-saude-publica-no-brasil/

Referências
Raio-X da Saúde no Brasil – Dráuzio Varella; Sistema de Saúde no Brasil –
Dráuzio Varella.
Fiocruz – 500 anos de história da saúde pública no Brasil.
Confederação das Santas Casas de Misericórdia (CMB) – História das Santas
Casas.
Revista de Medicina da Universidade de São Paulo: Marcos legais da promoção
de saúde no Brasil – Fernando Mussa Abujamra Aith.
Artigo: A saúde pública no Brasil – Dr. Gilson Carvalho.
Origens da saúde pública no Brasil– Professor Doutor Marco Antônio Moreira
Galvão.
Movimento Sanitarista – Fiocruz.
MV – Sistemas de saúde – Relato da história da saúde pública no Brasil.
Alunos Online (UOL) – Modernização, expulsão e reurbanização do Rio de
Janeiro.
Pense SUS – Reforma Sanistarista.
AS ARTES DE CURAR: HIGIENE E EDUCAÇÃO MÉDICA NA SOCIEDADE –
Carolina Fuzaro Bercho*.
FGV – CPDOC – Institutos de Aposentadorias e Pensões.
Tempos de escala da Cidade e do Urbanismo – Brasília 2014: Amanda Lima dos
Santos Carvalho. O Rio de Janeiro a partir da chegada da Corte Portuguesa:
Planos, Intenções e Intervenções no século XIX. In: PEIXOTO, Elane Ribeiro;
DERNTL, Maria Fernanda; PALAZZO, Pedro Paulo; TREVISAN, Ricardo
(Orgs.) Tempos e escalas da cidade e do urbanismo: Anais do XIII Seminário de
História da Cidade e do Urbanismo. Brasília, DF: Universidade Brasília-
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, 2014.

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