Conhecer a história da saúde pública no Brasil, através da análise de seu processo
evolutivo e as múltiplas variáveis que contribuíram para a sua efetivação, tendo como referência os principais períodos políticos da história do país.
O Brasil é um país de tentativas. É difícil estabelecer a real dimensão de suas
conquistas no campo das políticas sociais. Seus indicadores sociodemográficos exemplificam a crueza de suas mazelas e injustiças sociais, e somente estudando e compreendendo sua história podemos encontrar algumas respostas para explicar os problemas ainda presentes neste século. Com a saúde brasileira não poderia ser diferente, apesar de termos obtido conquistas importantes nas últimas décadas, com a implantação do Sistema Único de Saúde. Para compreendermos esse contexto, é necessário fazermos uma retrospectiva nas bases da história da saúde no Brasil. 1. Brasil Colônia (1500 - 1808) A primeira referência de saúde de que se tem notícia no Brasil remete ao descobrimento, quando, junto à tripulação de Pedro Alvares Cabral, vieram para o país os primeiros médicos. No período colonial brasileiro, no entanto, não existiu um projeto de medicina social. O médico desempenhava o papel de funcionário e suas atividades estavam sob o controle da coroa real. Eram raros os médicos que aceitavam transferir-se para cá, desestimulados pelos baixos vencimentos e pelo medo dos perigos que enfrentariam. O povo, por sua vez, tinha medo de se submeter aos tratamentos então vigentes, baseados em purgantes e sangrias, preferindo utilizar-se dos remédios recomendados pelos curandeiros negros ou indígenas. A ausência de serviços de saúde melhor estruturados contribuía para que as orientações dos médicos só fossem aceitas, ainda que parcialmente, em épocas de epidemias, como a de varíola, principal motivo de óbitos naquele período. A única medida preventiva existente para as doenças infectocontagiosas era o afastamento e isolamento dos doentes, medida que remonta aos séculos VI e VII, na Europa (Idade Média), quando as pessoas acometidas por lepra (atualmente Hanseníase) eram afastadas do convívio da sociedade. 2. O império enfermo (1808 – 1889) A vinda da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, determinou mudanças na administração pública colonial, inclusive na área da saúde, com a introdução da medicina europeia, através dos “físicos”, “cirurgiões- barbeiros”, boticários e os cirurgiões-dentistas. Todos tinham como concorrentes para a população pobre, no saber e no poder social, os curadores. Os doentes ricos, por sua vez, buscavam assistência médica na Europa. O Rio de Janeiro, sede provisória do império lusitano, tornou-se centro das ações sanitárias. Foram fundadas, por ordem real, as academias médico-cirúrgicas do Rio de Janeiro e da Bahia, respectivamente em 1813 e 1815, logo transformadas nas duas primeiras escolas de medicina do país. Em 1828 foi criada a Inspetoria de Saúde dos Portos, como resposta à preocupação imperial com os espaços de circulação de mercadorias, área vital para economia nacional. Foi dada também atenção especial às melhorias de condições sanitárias das cidades, ficando o meio rural relegado a segundo plano, destacando somente quando os problemas sanitários comprometiam a produção agrícola ou extrativista, destinada à exportação. A fase imperial da história brasileira encerrou-se sem que o Estado solucionasse os graves problemas de saúde da coletividade. Apesar das tentativas, no final do segundo reinado o Brasil mantinha a fama de ser um dos países mais insalubres do planeta, e isso se tornou uma preocupação de caráter econômico e político. 3. Na República Velha, a ordem é o progresso (1889 – 1930). Em 1889 a saúde pública passa ao domínio estatal, através da criação das políticas de saúde que, articuladas a outros setores, inseriam-se no quadro das políticas sociais. Entre 1898 a 1910, ocorrem no Brasil às primeiras campanhas sanitárias nos principais portos brasileiros (Santos, Rio de Janeiro e Recife), integrando-se a um vasto programa de saneamento marítimo em nível mundial e sob imposição do imperialismo internacional, uma vez que as epidemias nos Portos comprometiam a circulação de mercadorias e valores. A desorganização dos serviços de saúde, nos primeiros anos da República, facilitou a ocorrência de novas ondas epidêmicas no país (varíola, febre amarela, peste bubônica, febre tifoide e cólera). Médicos higienistas receberam incentivo do governo federal assumindo, em troca, o compromisso de estabelecer estratégias para o saneamento de áreas pré-determinadas. Apesar da alta mortalidade, não existiam hospitais públicos, apenas entidades filantrópicas, mantidas parcialmente por contribuições e auxílios governamentais. Nesse contexto destacavam-se as Santas Casas de Misericórdia, ligadas à Igreja Católica. Para as pessoas com melhores condições financeiras existia a assistência médica familiar. Os poucos hospitais existentes até então contavam apenas com trabalho voluntário, sendo um depósito de doentes que eram isolados da sociedade com o objetivo de não a contagiar ou contaminá-la. A medicina assumiu o papel de guia do Estado para assuntos sanitários. Porém, a atuação médica enfrentaria o choque entre as ideias tradicionais, que atribuíam as epidemias aos “miasmas”, e as teorias da medicina moderna, baseadas nos conceitos da Bacteriologia e da Fisiologia, desenvolvidas na Europa. Neste período, o Brasil presenciou um grande progresso na área da pesquisa laboratorial, especialmente realizada na região Sudeste/Sul, através da contribuição de médicos eminentes como Oswaldo Cruz e Carlos Chagas. Assegurando a eficiência das tarefas dos higienistas e fiscais sanitários, foram articulados vários institutos de pesquisa. Em 1892, foram criados os laboratórios Bacteriológico, Vacinogênico e de Análises Clínicas e Farmacêuticas (atuais Institutos Butantã e Adolfo Lutz). No Rio de Janeiro, o principal centro de pesquisas, foi o Instituto Soroterápico de Manguinhos (atual Instituto Oswaldo Cruz), funcionando desde 1899 com o objetivo principal de produzir soros e vacinas. Enquanto a propagação de várias doenças contagiosas ou parasitárias no Rio de Janeiro e em São Paulo era relativamente controlada, no restante do país os índices das mesmas enfermidades mantinham-se altos, tendendo a elevar-se, em parte pela multiplicação dos cortiços e favelas. Nas cidades, as mesmas doenças que atingiam a população nos períodos colonial e imperial ganhavam novas e trágicas dimensões. Foram tomadas as primeiras providências pelo então presidente Rodrigues Alves que, em 1902, lanç ou o Programa de Saneamento do Rio de Janeiro e Programa de combate à Febre Amarela urbana em São Paulo. Ao mesmo tempo, Oswaldo Cruz vinha forçando o Congresso Nacional a aprovar uma lei que tornava obrigatória a vacinação contra a varíola. Como o povo nunca havia passado por um processo semelhante, aliado ao fato de desconhecer a composição e a qualidade do material empregado, tal lei acabou por desencadear, em 1904, a Revolta da Vacina. Apesar das resistências, em 1910 foi implementada houve a Campanha de Erradicação da Febre Amarela no porto do Rio de Janeiro, com a criação da “polícia sanitária” e as ações de vigilância dos portos. Coordenada por Osvaldo Cruz, essa Campanha representou um marco fundamental para o fortalecimento da saúde pública brasileira. Em 1920 foram criados os primeiros centros de saúde em algumas cidades brasileiras, incumbidos de promover ações emergenciais de saúde. O primeiro marco da atuação do governo federal na esfera da saúde deu- se somente em 1923, com a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública e a definição das ações de saúde pública. Em 1923, com a Lei Eloy Chaves, deu-se a criação da “Caixa de Aposentadorias e Pensões” (CAPs) dos Ferroviários; seguida dos marítimos e telegráficos. A filiação às CAPs era feita pelas empresas (natureza civil) e a administração pelos próprios trabalhadores, sendo facultativa a adesão, proporcionando os benefícios de assistência médica, medicamentos (preços especiais); aposentadorias e pensões, contudo, gerava pouco impacto. As Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPs), são consideradas as sementes do sistema previdenciário atual. Pela primeira vez que o Estado interferia para criar um mecanismo destinado a garantir aos trabalhadores urbanos algum tipo de assistência. Todavia, o direito às CAPs é desigual, pois elas são organizadas somente nas empresas que estão ligadas à exportação e ao comércio (ferroviárias, marítimas e bancárias), atividades que na época eram fundamentais para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, beneficiando assim apenas uma pequena parcela da população. 4. A institucionalização da saúde pública na era Vargas (1930 – 1945). Incluída no conjunto de reformas estabelecidas pelo governo Vargas, a área sanitária passou a compartilhar com o setor educacional um ministério próprio, o Ministério da Educação e Saúde Pública, promovendo uma ampla remodelação dos serviços sanitários do país. Atualmente, esses dois Ministérios apresentam gestão separadas. Na nova organização do setor saúde, anunciava-se o compromisso do Estado de zelar pelo bem-estar sanitário da população. Nas áreas onde havia pouca ou nenhuma assistência médico-hospitalar, essa proposta foi naturalmente bem aceita. Nos estados mais ricos, que já possuíam serviços de saúde organizados, a intervenção federal foi considerada desnecessária e centralizadora, mais dificultando que ajudando a melhorar o atendimento à população. As políticas sociais foram a arma utilizada pelo ditador para justificar diante da sociedade o sistema autoritário. Com o crescimento das CAPs, foram criados os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs). Enquanto as CAPs privile giavam a assistência médica como um dos principais benefícios, os IAPs privilegiavam a previdência social, mantendo a assistência médica num segundo plano. As caixas apresentavam um serviço irregular, oferecendo pouca cobertura aos doentes mais graves. Os IAPs eram formados por categoria profissional, com participação direta do Estado, e representavam com um importante mecanismo de poupança interna, A partir da instalação do Estado Novo (de 1937 a 1946, com Getúlio Vargas), a administração sanitária buscou reforçar as campanhas de educação popular, unindo as técnicas pedagógicas vigentes na época com os princípios da medicina sanitária, através da elaboração de cartazes e panfletos que chamavam a atenção pelas ilustrações coloridas, já que grande parte dos brasileiros continuava analfabeta. Durante os anos 30 até metade da década de 40, houve uma nítida diminuição das mortes por enfermidades epidêmicas, principalmente nos grandes centros urbanos do Sudeste e Sul do Brasil. Foi realizada uma série de ações governamentais com vistas ao controle e erradicação de doenças. No entanto, aumentaram as doenças endêmicas, atingindo milhões de pessoas, como a esquistossomose, doença de Chagas, tuberculose, doenças sexualmente transmissíveis e a hanseníase. Mesmo com a expansão da cobertura médico-hospitalar aos trabalhadores urbanos e as novas técnicas de controle das epidemias rurais, o Brasil permanecia como um dos países mais enfermos do continente. 5. A luta pela democratização da saúde (1945 – 1964) A década de 50 foi marcada por manifestações nacionalistas e um forte crescimento da entrada de capital estrangeiro na economia, favorecendo a proposta de modernização econômica e institucional coordenada pelo Estado. Tal proposta foi conhecida como plano Salte, que visava estimular o desenvolvimento de setores de saúde, alimentação, transporte e energia. Em maio de 1953 foi criado o Ministério da Saúde (MS). A nova pasta contou com verbas irrisórias no decorrer da década de 50, confirmando o descaso das autoridades para com a saúde do povo. Em consequência da falta de recursos, o MS atuou de maneira pouco eficiente na redução dos índices de mortalidade e morbidade das doenças, que comprometiam a qualidade de vida e a possibilidade de trabalho de muitos brasileiros. Já em 1956 foi criado o Departamento Nacional de Endemias Rurais que, juntamente com o MS, procurou combater as doenças que atingiam sobretudo a população do interior, tentaram ainda promover a educação sanitária da população rural. A movimentação dos sindicatos, ao longo dos anos, foi forçando o governo a rever a legislação previdenciária. Com a sucessão de leis federais que garantiam o atendimento de saúde dos segurados, a Previdência assumiu a prestação de assistência médico-hospitalar aos trabalhadores, à custa do rebaixamento da qualidade dos serviços. Tornaram-se comuns longas filas, consultas rápidas, dificuldade em se obter internamento e morte de pacientes nas filas. Diante do precário atendimento à infância e índices de mortalidade infant il altíssimos, o MS incumbiu-se em 1956 de desenvolver um novo programa voltado para a assistência às crianças. Multiplicaram-se os serviços de higiene infantil e os postos de puericultura. A fome, entre outras ramificações da miséria e da exploração, tornou-se assunto de interesse político. A maior parte dos brasileiros passava fome, tornando-os presa fácil de enfermidades e da morte. Mesmo assim, as lideranças políticas brasileiras continuaram incapazes de conviver com os compromissos democráticos, como sempre ocorrera ao longo da história do país. 6. Período Militar (1964 – 1985) Durante o período militar, a ideologia e a prática do planejamento, como uma administração “racional”, passaram a desempenhar um importante papel na construção de um Estado centralizador e planificador. Com a individualização da saúde, o Ministério da Saúde, devido à política de contenção de gastos, restringiu suas atividades à elaboração de projetos e programas, delegando às outras pastas parte da execução das tarefas sanitárias. Com essa medida não houve melhorias aos serviços de saúde. Apesar da pregação oficial de que a saúde constituía um “fator de desenvolvimento e de produtividade”, o Ministério da Saúde passou a privilegiar a saúde como elemento individual e não como fenômeno coletivo. Como resultado alastravam-se enfermidades como a dengue, a meningite e a malária. As ações de controle de endemias perderam a sua importância na lógica oficial, ainda que fossem mantidas, mas não mais com a prioridade dada no início da década de 50. Como resultado de sua política centralizador, o governo militar criou em 1965 o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) a partir da unificação de todos os IAP (Institutos de Aposentadorias e Pensões) num único órgão estatal. A sua criação consolidou o modelo brasileiro de seguro social e de prestação de serviços médicos. Ficou estabelecido, na esfera pública, um sistema dual de saúde: o INPS deveria tratar dos doentes individualmente, principalmente através da terceirização de serviços, enquanto o MS deveria elaborar e executar programas sanitários e assistir à saúde da população durante as epidemias. Os baixos preços pagos pelos serviços médico-hospitalares e a demora na transferência das verbas do INPS para as entidades conveniadas determinaram a fragilidade desse sistema de atendimento à população, tendo como consequência mais grave a degradação dos serviços prestados à população trabalhadora e o aumento do número de fraudes financeiras. No tocante à assistência odontológica, só em 1969 foram fixadas, pela primeira vez, diretrizes específicas destinadas a orientar o modelo de prática no âmbito da Previdência Social. Tirando proveito das fragilidades do sistema de Saúde do país, as empresas de medicina de grupo realizaram um forte movimento de implantação no Brasil na década de 1970. As grandes e médias empresas começaram a firmar contratos com grupos médicos, que substituíam os serviços prestados pelo INPS. Como resultado desses acordos, as empresas deixavam de pagar a cota previdenciária ao governo e em troca comprometiam-se a prestar assistência médica a seus empregados. Com essa medida, visavam também reduzir os períodos de afastamento dos funcionários doentes. Em 1974 foi criado o Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) que passou a incorporar o INPS, buscando eliminar fraudes e corrupção bem como renovar a promessa de saúde aos segurados. No ano de 1975 foi criado o Sistema Nacional de Saúde, com a finalidade de baratear e ao mesmo tempo tornar ma is eficazes as ações de saúde em todo o país. Em seguida (1977) surgiu o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (SINPAS), dividindo as ações relativas à previdência e à assistência médica, através do IAPS (Instituto de Administração Financeira da Previdência Social) e INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social), este último responsável pelas ações de assistência médica no Brasil, continuando a mesma política de privilegio do setor privado. Durante o período Militar, o país viveu também a primeira grande crise da previdência Social, que chegou a ser considerada como “tecnicamente falida”. Quando o INPS foi criado, em 1966, o governo liberou verba a fundo perdido para empresas privadas construírem hospitais, depois o INPS enviou seus segurados para estes hospitais, isto é, a Previdência financiou e sustentou estes hospitais por 20 anos. Posteriormente estes proprietários consideraram-se capitalizados e se descredenciaram do INPS. O dinheiro da previdência não era mais suficiente para cobrir os gastos com assistência médica e o número de leitos diminuiu, portanto, um dos motivos da falência da Previdência foram os custos crescentes, determinados pela privatização da rede. O IAPAS não dispunha dos recursos necessários para manter a assistência médica através do INAMPS, nem aposentadorias e pensões através do INPS. Foram tomadas medidas no sentido de diminuir os gastos e benefícios, aumentando -se a contribuição. A construção ou reforma de inúmeras clínicas e hospitais privados, com financiamento da Previdência Social e o enfoque à medicina curativa fez com que multiplicassem, por todo o país, as faculdades particulares de medicina. O ensino médico passou a ser desvinculado da realidade sanitária da população, voltado para a especialização e a sofisticação tecnológica e dependente das indústrias farmacêuticas e de equipamentos médico-hospitalares. 7. O Movimento Sanitário e a criação do SUS. A partir da segunda metade da década de 70, iniciou-se o processo de abertura política. Na área da saúde, veio à tona o Movimento pela Reforma Sanitária, que aglutinava os Movimentos Populares de Saúde (que surgiam na periferia das grandes cidades, movidos principalmente por mulheres em busca de assistência médica para seus filhos e para o conjunto da família) e profissionais da área (que se organizavam e m busca de perspectivas de trabalho digno e de um novo sistema público de saúde para o pais). O Movimento pela Reforma Sanitária advogava pelo conceito ampliado de saúde, e defendia um projeto de transformação do sistema de saúde vigente. Enquanto organizava comunidades e profissionais em torno da defesa da saúde pública, elaborava as bases teóricas de um projeto de transformação: propunha um sistema público, descentralizado, com universalização do direito à saúde, integrando ações preventivas e curativas e com a participação democrática da população na formulação das políticas de saúde e no controle dos recursos públicos da área da saúde. Em 1979, no I Simpósio Nacional de Políticas de Saúde foi apresentado o projeto denominado “Sistema Único de Saúde”, uma proposta para a reformulação do Sistema de Saúde. Baseando-se no conceito ampliado de saúde, e defendendo um modelo de saúde universal (direito de todos e dever do estado), essa proposta incorporava experiências bem-sucedidas de outros países como: universalização, racionalização, integralidade das ações e controle social. Em 1985, para subsidiar a discussão da saúde na Assembleia Nacional Constituinte, o Governo convocou a 8ª Conferência Nacional de Saúde para o ano de 1986. Esse evento é ainda hoje considerado o mais importante momento da saúde pública no Brasil, pois congregou cerca de 5.000 pessoas, representando os movimentos de saúde, os profissionais e suas entidades, universidades, hospitais públicos e privados e gestores municipais, estaduais e federais da área da saúde. O relatório final da 8ª Conferência Nacional de Saúde continha recomendações que passaram a constituir o projeto da Reforma Sanitária Brasileira, com força e apoio suficiente para transformar-se na base para o capítulo da saúde na nova Constituição Brasileira, promulgada em 1988. Assim, a Constituição de 1988 contém avanços importantes para a saúde pública no Brasil, a começar pela definição da Saúde como Direito Universal: “A Saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. ” Para fazer valer esse direito, a Constituição determinou a criação de um novo Sistema Nacional de Saúde, Universal, Integral e Equitativo. Em 1990 foi oficialmente criado o Sistema Único de Saúde, o SUS, adotando os princípios abaixo sucintamente descritos:
Princípios Doutrinários: tratam dos compromissos gerais do SUS com a sociedade:
• Universalização: a saúde é um direito de cidadania de todas as pessoas e cabe
ao Estado assegurar este direito, sendo que o acesso às ações e serviços deve ser garantido a todas as pessoas, independentemente de sexo, raça, ocupação, ou outras características sociais ou pessoais. • Equidade: o objetivo desse princípio é diminuir desigualdades. Apesar de todas as pessoas possuírem direito aos serviços, as pessoas não são iguais e, por isso, têm necessidades distintas. Em outras palavras, equidade significa tratar desigualmente os desiguais, investindo mais onde a carência é maior. • Integralidade: este princípio considera as pessoas como um todo, atendendo a todas as suas necessidades. Para isso, é importante a integração de ações, incluindo a promoção da saúde, a prevenção de doenças, o tratamento e a reabilitação. Juntamente, o princípio de integralidade pressupõe a articulação da saúde com outras políticas públicas, para assegurar uma atuação intersetorial entre as diferentes áreas que tenham repercussão na saúde e qualidade de vida dos indivíduos.
Princípios Organizativos: tratam de mecanismos para implementação do Sistema,
visando cumprir, na prática, os princípios doutrinários:
• Regionalização e Hierarquização: os serviços devem ser organizados em
níveis crescentes de complexidade, circunscritos a uma determinada área geográfica, planejados a partir de critérios epidemiológicos, e com definição e conhecimento da população a ser atendida. A regionalização é um processo de articulação entre os serviços que já existem, visando o comando unificado dos mesmos. Já a hierarquização deve proceder à divisão de níveis de atenção e garantir formas de acesso a serviços que façam parte da complexidade requerida pelo caso, nos limites dos recursos disponíveis numa dada região. • Descentralização e Comando Único: descentralizar é redistribuir poder e responsabilidade entre os três níveis de governo. Com relação à saúde, descentralização objetiva prestar serviços com maior qualidade e garantir o controle e a fiscalização por parte dos cidadãos. No SUS, a responsabilidade pela saúde deve ser descentralizada até o município, ou seja, devem ser fornecidas ao município condições gerenciais, técnicas, administrativas e financeiras para exercer esta função. Para que valha o princípio da descentralização, existe a concepção constitucional do mando único, onde cada esfera de governo é autônoma e soberana nas suas decisões e atividades, respeitando os princípios gerais e a participação da sociedade. • Controle Social: a sociedade deve participar no dia-a-dia do sistema. Para isto, devem ser criados Conselhos Municipais de Saúde em todos os Municípios, e devem ser realizadas Conferências de Saúde nos Municípios (a cada 2 anos), nos Estados e no País (a cada 4 anos). Esses mecanismos de participação visam formular estratégias, controlar e avaliar a execução da política de saúde em cada nível de governo.
8. A implantação do novo sistema – Avanços e dificuldades: A implantação do
novo Sistema, considerando sua complexidade, as dimensões do país, e a necessidade de profundas reformas no aparelho de Estado, é um processo bastante complexo, que não se completou plenamente, mesmo decorridos 28 anos da sua criação oficial. Esse tema será objeto de outras Disciplinas do Núcleo de Saúde Coletiva do Curso de Odontologia da UNI9, mas desde já é importante salientar que o SUS viveu, desde sempre, grandes paradoxos. Por um lado, criou e desenvolveu serviços e ações de alta qualidade e com alto grau de reconhecimento nacional e internacional, tais como a criação do Programa de Saúde da Família, a criação das Agências Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e de Saúde Suplementar (ANS), o Programa dos Medicamentos Genéricos, o Programa de tratamento gratuito às pessoas com HIV/AIDS, o Programa de Imunizações e o Programa de transplantes. Entre os resultados mais visíveis, destacam-se o aumento na expectativa média de vida do brasileiro, a redução dos índices de mortalidade infantil e, no campo da saúde bucal, a significativa redução da prevalência de cárie dentária especialmente em crianças e jovens brasileiros, todos observados ao longo dos últimos 28 anos. Por outro lado, o SUS apresenta grandes problemas, especialmente no que se refere ao acesso a serviços especializados e a cirurgias eletivas (agendadas), além de grandes desigualdades regionais na oferta e na qualidade dos serviços prestados à população. Como principais fatores limitadores ao desenvolvimento do Sistema ao longo da sua história, destacamos a insuficiência de recursos para pleno Financiamento do sistema, problemas relacionados com a Qualificação da Gestão e dificuldades para efetivação do Controle social.