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que, nos últimos séculos mais do que nunca, se produziu um “saber sobre o prazer” e,
simultaneamente, o “prazer de saber” — “o sexo foi colocado em discurso”
(FOUCAULT, 1993). A sexualidade, os corpos e os gêneros vêm sendo, desde então,
descritos, compreendidos, explicados, regulados, saneados e educados, por muitas
instâncias, através das mais variadas táticas, estratégias e técnicas. Estado, igreja,
ciência – instituições que, tradicionalmente, arrogavam-se a autoridade para definir e
para delimitar padrões de normalidade, pureza ou sanidade – concorrem hoje com a
mídia, o cinema e a televisão, com grupos organizados de feministas e de “minorias
sexuais” que pretendem decidir, também, sobre a sexualidade, o exercício do prazer, as
possibilidades de experimentar os gêneros, de transformar e viver os corpos.
Mais do que nunca, o corpo tem de ser compreendido, agora, como “um projeto”
(cf. SCHILLING, 1997), um empreendimento que é passível de mudanças e de
alterações. Marcam-se os corpos social, simbólica e materialmente. Marcas distintivas,
expressivas, sutis ou violentas, que podem ser inflingidas pelo próprio sujeito ou pelo
grupo social. Seja de quem for a iniciativa, é indispensável reconhecer que essa
“marcação” tem efeitos. Uma multiplicidade de sinais, códigos e atitudes produz
referências que “fazem sentido” no interior da cultura e que definem (pelo menos
momentaneamente) quem é o sujeito. A marcação pode ser simbólica ou física, pode ser
indicada por uma aliança de ouro, por um véu, pela colocação de um piercing, por uma
tatuagem, pela implantação de uma prótese... E essa marcação terá, além de seus efeitos
simbólicos, expressão social e material. Ela irá permitir que o sujeito seja reconhecido
como pertencendo a uma determinada identidade; que seja incluído ou excluído de
determinados espaços; que seja acolhido ou recusado por um grupo; que possa (ou não)
usufruir de direitos; que possa (ou não) realizar determinadas funções ou ocupar
determinados postos; que tenha deveres ou privilégios; que seja, em síntese, aprovado,
tolerado ou rejeitado.
Como um “projeto”, o corpo é construído. A marcação que sobre ele se executa
é cotidiana; supõe investimento, intervenção. Processos que se fazem ao longo da
existência de cada sujeito, de forma continuada e permanente. Processos que estão
articulados aos inúmeros discursos que circulam numa sociedade e que podem ser
compreendidos como pedagogias voltadas à produção dos corpos. Essas pedagogias são,
usualmente, reiterativas das normas regulatórias de uma cultura: suas normas de gênero
e sexuais, em especial. Elas não são, contudo, sempre convergentes ou homogêneas. Os
sujeitos são alvo de pedagogias distintas, discordantes, por vezes contraditórias. Tudo
isso torna cada vez mais problemática a pretensão de tomar os corpos como estáveis e
definidos. Tudo isso torna cada vez mais impossível a pretensão de tomá-los como
naturais.
É indispensável admitir, ainda, que o sujeito não é um mero receptor de
pedagogias exteriores a ele, mas sim que ele participa, ativamente, deste
empreendimento. Os discursos produzidos e veiculados pelos institutos oficiais de
saúde, pelas revistas e jornais, pelo cinema, pela internet ou pela moda certamente têm
efeitos sobre seus corpos e mentes, mas seus efeitos não são previsíveis, irresistíveis ou
implacáveis. Os sujeitos não somente respondem, resistem e reagem, como também
intervêm em seus próprios corpos para inscrever-lhes, decididamente, suas próprias
marcas e códigos identitários e, por vezes, para escapar ou confundir normas
estabelecidas.
Num tom um tanto nostálgico, David le Breton afirma:
Seu texto sugere uma crítica ou um lamento pelas certezas que agora escapam.
Seu texto também parece sugerir que o corpo foi — em algum momento ou num tempo
remoto ideal — um lugar intocado pela cultura; um lugar no qual hoje, lastima ele, se
realizam “efeitos especiais”, pirotecnia, artifícios inusitados, invenções. Contudo,
podem os corpos ser considerados, em alguma circunstância, como um lugar não-
marcado, não-referido? Acompanhe-se ou não as idéias do autor, parece imprescindível
reconhecer que os corpos sempre foram e são, agora, de uma forma talvez mais visível
do que nunca, ditos e feitos na cultura. É imprescindível admitir que os artifícios e as
invenções se constituem na possibilidade mesma de fazer o corpo falar e dizer de si.
O autor prioriza, na sua análise sobre a maleabilidade dos corpos, as
intervenções que o próprio sujeito impõe a seu corpo. Atravessa toda sua análise um
tom voluntarista que dá ao sujeito a responsabilidade e a autoria pela definição ou
redefinição de sua aparência. Seria interessante lembrar, contudo, que os corpos são
também marcados, fortemente, a partir da exterioridade do olhar e do dizer do outro. Os
corpos são nomeados e discriminados conforme se ajustem, ou não, aos ditames e às
normas de sua cultura. Portanto, os corpos são feitos, inventados, também, por tudo que
— de fora — se diz ao sujeito, sobre o sujeito, para o sujeito.
não lhes interessa, também, serem acolhidos ou integrados ao “sistema”. Sua aspiração
parece ser a de romper com a lógica hegemônica, melhor dizendo, interessa-lhes romper
com a lógica que, a favor ou contra, continua se remetendo, sempre, ao sujeito central
(masculino, branco, heterossexual, de classe média). Tais sujeitos se assumem como
excêntricos (fora-do-centro) e pretendem viver como tais.
Como pensar tais sujeitos no campo da Educação? O que dizem sobre eles
nossas teorias e nossas tradições? Que recursos ou estratégias teriam de ser acionados
para integrá-los a nossos projetos?
Para o campo educacional, a afirmação desses grupos é profundamente
perturbadora. Não se dispõe de referências ou de tradições para lidar com os desafios aí
implicados. Não parece mais adequado “encaminhá-los” para os serviços e instituições
especializados. Provavelmente será ineficaz tentar “corrigi-los”, reorientá-los. Eles
integram a contemporaneidade e, ainda que não se enquadrem nas referências ditadas
pelas tradições educacionais e acadêmicas, estão aí, para provocar ou exigir que se
inventem novas formas de convivência. Considerados por muitos como irreverentes e
desrespeitosos, eles desafiam e colocam em xeque normas, códigos, comportamentos,
que, por sua permanência e estabilidade, pareciam ser, há muito tempo, incontroversos,
inquestionáveis, naturais. Suas críticas são produzidas a partir de um lugar
praticamente inabitável, a partir de uma posição desconfortável e indesejada e, por isso
mesmo, uma posição incomum. Daí porque suas críticas são inéditas, são
desconcertantes. No entanto, por todas essas razões, é possível que essas críticas
também possam ser produtivas.
Esses sujeitos estão nas ruas, nos shopping-centers, nas praças e também nas
escolas. Não se pode deixar de lhes prestar atenção. Sua ambivalência desconforta e
ameaça; mas também fascina. Talvez seja mais produtivo para estudiosas e intelectuais,
deixar de lamentar a instabilidade de seus corpos (a instabilidade de todos os corpos) e
abandonar qualquer pretensão de retorno a um tempo idílico em que as coisas e as
pessoas pareciam estar todas em seus devidos lugares. (E esse tempo terá existido?) É
inevitável fazer face a essa diversidade de sujeitos e de práticas É indispensável encará-
la como constituinte do nosso tempo. Um tempo em que a diversidade não funciona
mais com base na lógica da oposição e da exclusão binárias, mas, em vez disso, supõe
uma lógica mais complexa. Um tempo em que a multiplicidade de sujeitos e de práticas
sugere o abandono do discurso que posiciona, hierarquicamente, centro e margens,
dominantes e dominados, em favor de outro discurso que assume a dispersão e a
circulação do poder.
A diferença se multiplicou. As histórias e as lutas de um grupo cultural são
atravessadas e contingenciadas por experiências e lutas conflitantes, protagonizadas por
outros grupos. Por isso, nas escolas e na vida, há que aprender, nesses tempos pós-
modernos, a aceitar que a verdade é plural, que ela é definida pelo local, pelo particular,
pelo limitado, temporário, provisório. Há que se voltar para práticas que desestabilizem
e desconstruam a naturalidade, a universalidade e a unidade dos corpos, da identidade e
da cultura centrais e que reafirmem o caráter construído, movente e plural de todas as
posições. É possível, então, que a história, o movimento e as mudanças pareçam menos
ameaçadores.
Nota:
7
1. Queer pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário. Mas a
expressão também se constitui na forma pejorativa com que são designados homens e mulheres
homossexuais. (...) Este termo, com toda sua carga de estranheza e de deboche, é assumido por uma
vertente dos movimentos homossexuais precisamente para caracterizar sua perspectiva de oposição e de
contestação. Para esse grupo, queer significa colocar-se contra a normalização – venha ela de onde vier.
Seu alvo mais imediato de oposição é, certamente, a heteronormatividade compulsória da sociedade; mas
não escaparia de sua crítica a normalização e a estabilidade propostas pela política de identidade do
movimento homossexual dominante. Queer representa claramente a diferença que não quer ser assimilada
ou tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturbadora (LOURO, 2001, p.
546).
Referências bibliográficas