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CORPOS QUE ESCAPAM

Guacira Lopes Louro


Doutora em Educação pela UNICAMP
Professora no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS
Mesa-redonda nº58 – Eixo temático 7 – Educação, Infância e Juventude

Palavras-chave: corpo, gênero, sexualidade

Na tradição do humanismo ocidental, aprendi a pensar o corpo como o elemento


menos nobre de uma série de pares: corpo-alma, corpo-espírito, corpo-mente, corpo-
razão. Nesses pares, ele ocupava o lugar da natureza em oposição ao da cultura; o local
do primitivo em oposição ao do civilizado; o lado animal e instintivo em oposição ao
racional ou ao humano. Para que tais dicotomias “funcionassem” era preciso tomar seus
pólos como exteriores um ao outro, como independentes e incontaminados. O corpo,
nesta lógica tradicional, não poderia ser pensado como instância da cultura ou como
esfera da política.
No entanto, pergunto: como as sociedades têm distinguidos seus filhos e filhas?
Para onde se voltam os olhares quando se quer classificar e “localizar” alguém? Quais
as referências a que se recorre para, de imediato, dizer quem alguém é ?
A determinação das posições dos sujeitos no interior de uma cultura remete-se,
usualmente, à aparência de seus corpos. Ao longo dos séculos, os sujeitos vêm sendo
examinados, classificados, ordenados, nomeados e definidos por seus corpos, ou
melhor, pelas marcas que são atribuídas a seus corpos.
Diz o dicionário Houaiss, que aparência é “a configuração exterior de alguém ou
de algo, aquilo que se mostra imediatamente, o aspecto”. A aparência é, pois, algo que
se apresenta ou que se representa. Vê-se o que se mostra, o que aparece; e ao que se vê
se atribui significados. Pele, pêlos, seios, olhos são significados culturalmente. Muitos
são os significados atribuídos ao formato dos olhos ou da boca; à cor da pele; à presença
da vagina ou do pênis; ao tamanho das mãos e à redondeza das ancas. Significados que
não são sempre os mesmos — os grupos e as culturas divergem sobre as formas
adequadas e legítimas de interpretar ou de ler tais características. Alguns desses
aspectos podem ser considerados extremamente relevantes (para alguns grupos) e,
então, podem vir a se constituir em marcas definidoras dos sujeitos — marcas de raça,
de gênero, de etnia, de classe ou de nacionalidade, decisivas para dizer do lugar social
de cada um. Para outros grupos, as mesmas marcas podem ser irrelevantes e sem
validade em seu sistema classificatório. De qualquer modo, há que admitir que, no
interior de uma cultura, há marcas que valem mais e marcas que valem menos. Possuir
(ou não possuir) uma marca valorizada permite antecipar as possibilidades e os limites
de um sujeito; em outras palavras, pode servir para dizer até onde alguém pode ir, no
contexto de uma cultura.
O dicionário também diz que a aparência pode ser “uma ilusão, um disfarce”.
Neste caso, o dicionário faz supor que existe, embaixo desse disfarce, uma “verdade”.
Se é à aparência dos corpos que se está referindo, então, a verdade deve ser,
provavelmente, a da natureza, ou melhor, a da biologia. Não é à toa que as discussões
sobre gênero e sexualidade, embora pretendam aceitar a importância da cultura, acabem
por se remeter, sempre, a uma “verdade” inexorável dos corpos. Ainda que
comportamentos, códigos e normas culturais sejam reconhecidos, eles são considerados,
de certa forma, como algo que se agrega, como algo que é “posto sobre” uma superfície
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preexistente. É como se os corpos portassem, desde o nascimento, a essência e a certeza


dos sujeitos. Como se os corpos possuíssem um núcleo que poderia ser disfarçado ou
transfigurado pela cultura, mas que se constituiria, ao fim e ao cabo, essencialmente, em
sua verdade. Mas onde fica essa essência, esse núcleo? Quais as certezas possíveis sobre
os corpos, hoje, num tempo em que as intervenções são tantas, tão refinadas, sutis e
significativas que se tornam, muitas vezes, absolutamente imperceptíveis e, ao mesmo
tempo, absolutamente subversivas? Como, onde, através de que recursos pode-se
estabelecer um limite entre natureza e cultura, entre biologia e tecnologia? O que é, de
fato, natural? Onde começa o artifício? Os corpos são, em algum momento, somente
biológicos? É possível dizer que na tela do aparelho de ecografia que mostra os
primeiros momentos da vida de um feto, temos, enfim, um corpo ainda não nomeado
pela cultura?
As respostas a essas perguntas indicam a impossibilidade de isolar a natureza, a
impossibilidade de definir onde “começa” a cultura. Tomaz Tadeu da Silva afirma que
“não existe nada mais que seja simplesmente ‘puro’ em qualquer dos lados da linha de
‘divisão’: a ciência, a tecnologia, a natureza puras; o puramente social, o puramente
político, o puramente cultural. Total e inevitável embaraço” (SILVA, 2000, p.13). Por
tudo isso, é imprescindível admitir que os corpos são o que são na cultura. A linguagem,
os signos, as convenções e as tecnologias usadas para referi-los são dispositivos da
cultura. E se ele, o corpo, “fala”, o faz através de uma série de códigos, de adornos, de
cheiros, de comportamentos e de gestos que só podem ser “lidos”, ou seja, significados
no contexto de uma dada cultura.

Os significados dos corpos deslizam

Os significados dos corpos deslizam e escapam, eles são múltiplos e mutantes.


Até mesmo o gênero e a sexualidade — aparentemente deduzidos de uma “base” natural
— são atributos que se inscrevem e se expressam nos corpos através das artimanhas e
dos artifícios da cultura. Gênero e sexualidade não são definições seguras e estáveis,
mas históricas e cambiantes. Deve-se reconhecer que a maioria das sociedades possui
algum tipo de distinção masculino/feminino e que essa distinção geralmente é
relacionada ao corpo. Contudo, isso não quer dizer que os corpos são “lidos” ou
compreendidos do mesmo modo em qualquer tempo ou lugar, nem que seja atribuído
valor ou importância semelhante às características corporais em distintas culturas.
Geográfica e historicamente, os significados atribuídos aos corpos mudam. Linda
Nicholson lembra como o significado das características físicas dos corpos de homens e
mulheres modificou-se, ao longo dos séculos. Diz ela: “de um sinal ou marca da
distinção masculino/feminino passaram a ser sua causa, aquilo que dá origem”
(NICHOLSON, 2000, p. 18). Houve tempo em que a Bíblia era a “fonte de autoridade”,
lembra a autora, e nela se buscava a explicação sobre o relacionamento entre mulheres e
homens e também sobre qualquer diferença percebida entre eles. Neste tempo, o corpo
importava pouco como fonte da distinção, mas, posteriormente, tudo mudou: o corpo
tornou-se causa e justificativa das diferenças. Os significados das marcas dos corpos se
alteram, pois, ao longo da existência das sociedades e dos sujeitos: mudam as fontes da
autoridade, mudam os discursos, mudam os códigos, muda a medicina, a tecnologia e a
moda, mudam os hábitos; os sujeitos envelhecem, adoecem, morrem.
Os significados dos corpos deslizam e escapam não apenas porque são alterados,
mas porque são objeto de disputas. Distintas instâncias culturais falam dos corpos,
afirmam o que eles são, explicam-nos, dizem como são, como devem ser. Decidem
sobre a sexualidade, sobre a vida, o prazer, o nascimento e a morte. Foucault afirma
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que, nos últimos séculos mais do que nunca, se produziu um “saber sobre o prazer” e,
simultaneamente, o “prazer de saber” — “o sexo foi colocado em discurso”
(FOUCAULT, 1993). A sexualidade, os corpos e os gêneros vêm sendo, desde então,
descritos, compreendidos, explicados, regulados, saneados e educados, por muitas
instâncias, através das mais variadas táticas, estratégias e técnicas. Estado, igreja,
ciência – instituições que, tradicionalmente, arrogavam-se a autoridade para definir e
para delimitar padrões de normalidade, pureza ou sanidade – concorrem hoje com a
mídia, o cinema e a televisão, com grupos organizados de feministas e de “minorias
sexuais” que pretendem decidir, também, sobre a sexualidade, o exercício do prazer, as
possibilidades de experimentar os gêneros, de transformar e viver os corpos.
Mais do que nunca, o corpo tem de ser compreendido, agora, como “um projeto”
(cf. SCHILLING, 1997), um empreendimento que é passível de mudanças e de
alterações. Marcam-se os corpos social, simbólica e materialmente. Marcas distintivas,
expressivas, sutis ou violentas, que podem ser inflingidas pelo próprio sujeito ou pelo
grupo social. Seja de quem for a iniciativa, é indispensável reconhecer que essa
“marcação” tem efeitos. Uma multiplicidade de sinais, códigos e atitudes produz
referências que “fazem sentido” no interior da cultura e que definem (pelo menos
momentaneamente) quem é o sujeito. A marcação pode ser simbólica ou física, pode ser
indicada por uma aliança de ouro, por um véu, pela colocação de um piercing, por uma
tatuagem, pela implantação de uma prótese... E essa marcação terá, além de seus efeitos
simbólicos, expressão social e material. Ela irá permitir que o sujeito seja reconhecido
como pertencendo a uma determinada identidade; que seja incluído ou excluído de
determinados espaços; que seja acolhido ou recusado por um grupo; que possa (ou não)
usufruir de direitos; que possa (ou não) realizar determinadas funções ou ocupar
determinados postos; que tenha deveres ou privilégios; que seja, em síntese, aprovado,
tolerado ou rejeitado.
Como um “projeto”, o corpo é construído. A marcação que sobre ele se executa
é cotidiana; supõe investimento, intervenção. Processos que se fazem ao longo da
existência de cada sujeito, de forma continuada e permanente. Processos que estão
articulados aos inúmeros discursos que circulam numa sociedade e que podem ser
compreendidos como pedagogias voltadas à produção dos corpos. Essas pedagogias são,
usualmente, reiterativas das normas regulatórias de uma cultura: suas normas de gênero
e sexuais, em especial. Elas não são, contudo, sempre convergentes ou homogêneas. Os
sujeitos são alvo de pedagogias distintas, discordantes, por vezes contraditórias. Tudo
isso torna cada vez mais problemática a pretensão de tomar os corpos como estáveis e
definidos. Tudo isso torna cada vez mais impossível a pretensão de tomá-los como
naturais.
É indispensável admitir, ainda, que o sujeito não é um mero receptor de
pedagogias exteriores a ele, mas sim que ele participa, ativamente, deste
empreendimento. Os discursos produzidos e veiculados pelos institutos oficiais de
saúde, pelas revistas e jornais, pelo cinema, pela internet ou pela moda certamente têm
efeitos sobre seus corpos e mentes, mas seus efeitos não são previsíveis, irresistíveis ou
implacáveis. Os sujeitos não somente respondem, resistem e reagem, como também
intervêm em seus próprios corpos para inscrever-lhes, decididamente, suas próprias
marcas e códigos identitários e, por vezes, para escapar ou confundir normas
estabelecidas.
Num tom um tanto nostálgico, David le Breton afirma:

Nas nossas sociedades, a parte da bricolagem simbólica se ampliou (...) A


maleabilidade de si, a plasticidade do corpo tornam-se lugares comuns. A
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anatomia não é mais um destino, mas um acessório da presença, uma matéria


prima a aperfeiçoar, a redefinir, a submeter ao design do momento. O corpo
tornou-se, para muitos contemporâneos, uma representação provisória, um gadget,
um lugar ideal para realização de “efeitos especiais” (LE BRETON, 1999, p.23).

Seu texto sugere uma crítica ou um lamento pelas certezas que agora escapam.
Seu texto também parece sugerir que o corpo foi — em algum momento ou num tempo
remoto ideal — um lugar intocado pela cultura; um lugar no qual hoje, lastima ele, se
realizam “efeitos especiais”, pirotecnia, artifícios inusitados, invenções. Contudo,
podem os corpos ser considerados, em alguma circunstância, como um lugar não-
marcado, não-referido? Acompanhe-se ou não as idéias do autor, parece imprescindível
reconhecer que os corpos sempre foram e são, agora, de uma forma talvez mais visível
do que nunca, ditos e feitos na cultura. É imprescindível admitir que os artifícios e as
invenções se constituem na possibilidade mesma de fazer o corpo falar e dizer de si.
O autor prioriza, na sua análise sobre a maleabilidade dos corpos, as
intervenções que o próprio sujeito impõe a seu corpo. Atravessa toda sua análise um
tom voluntarista que dá ao sujeito a responsabilidade e a autoria pela definição ou
redefinição de sua aparência. Seria interessante lembrar, contudo, que os corpos são
também marcados, fortemente, a partir da exterioridade do olhar e do dizer do outro. Os
corpos são nomeados e discriminados conforme se ajustem, ou não, aos ditames e às
normas de sua cultura. Portanto, os corpos são feitos, inventados, também, por tudo que
— de fora — se diz ao sujeito, sobre o sujeito, para o sujeito.

O gênero e a sexualidade deslizam

Analisando os corpos de transexuais, Le Breton afirma que, para estes, a


feminilidade e a masculinidade, longe de serem evidentes, “são objeto de uma produção
permanente pelo uso apropriado de signos” e, desta forma, tornam-se “um vasto campo
de experimentação (LE BRETON, 1999, p. 28). Pergunto: essas afirmações deveriam
ficar restritas a transexuais? Não seria possível pensar que toda forma de feminilidade e
de masculinidade é objeto de uma produção? Ao assumir que os gêneros são produzidos
cultural e historicamente, parece ser imprescindível admitir que os gêneros se “fazem”,
sempre, com as marcas particulares de uma cultura, com os recursos e signos
específicos de um tempo e de um lugar.
Colocando-se em outra perspectiva, estudiosas queer1 reconhecem ou até mesmo
celebram as transformações dos corpos e as transgressões dos gêneros como um
importante evento da contemporaneidade. Acompanham Foucault em sua constatação
de que se vive, há algum tempo, uma proliferação e uma dispersão de discursos, bem
como uma dispersão de sexualidades. Diz o filósofo:

assistimos a uma explosão visível das sexualidades heréticas, mas sobretudo – e é


esse o ponto importante – a um dispositivo bem diferente da lei: mesmo que se
apoie localmente em procedimentos de interdição, ele assegura, através de uma
rede de mecanismos entrecruzados, a proliferação de prazeres específicos e a
multiplicação de sexualidades disparatadas (FOUCAULT, 1993, p.48).

Intelectuais queer concordam que hoje convive uma “multiplicidade de


sexualidades disparatadas”. Assumindo que as posições de gênero e sexuais se
multiplicaram, entendem que é impossível lidar com elas apoiadas em esquemas
binários. Reconhecem que a ambiguidade tornou-se uma constante e que tal
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multiplicidade de posições é constituída por e constituinte de profundas mudanças


teórico-metodológicas. Conforme Debbie Epstein e Richard Johnson (1988):

A agenda teórica moveu-se da análise das desigualdades e das relações de poder


entre categorias sociais relativamente dadas ou fixas (homens e mulheres, gays e
heterossexuais) para o questionamento das próprias categorias – sua fixidez,
separação ou limites – e para ver o jogo do poder ao redor delas como menos
binário e menos unidirecional (p. 37).

Adotando estratégias descentradoras e desconstrutivas, estudiosas e estudiosos


queer vão questionar a heteronormatividade compulsória da sociedade, denunciar a
lógica heterossexual/homossexual como princípio onipresente regulador do
conhecimento, do poder e da existência dos sujeitos. Contestando qualquer forma de
normalização, algumas dessas estudiosas apelam para a figura da drag-queen para
desenvolver suas análises. Escolhem, pois um sujeito que, explicitamente, assume
fabricar seu corpo, para, a partir dele, pensar o quanto cada sujeito “comum” também
“fabrica”, cotidianamente, seu corpo manejando os signos e códigos de sua cultura.
Afirmam que, se a drag-queen propositalmente exagera os traços convencionais do
feminino, se exorbita e acentua “marcas” corporais, comportamentos, atitudes e
vestimentas, ela não o faz com o propósito de se “passar por uma mulher”, mas sim com
o propósito de exercer uma paródia de gênero. A drag repete e exagera, se aproxima,
legitima e, ao mesmo tempo, subverte o sujeito que copia. Conforme acentuam teóricas
e teóricos, tal paródia — característica da pós-modernidade — não significa a imitação
ridicularizadora, mas sim uma “repetição com distância crítica que permite a indicação
irônica da diferença no próprio âmago da semelhança” (HUTCHEON, 1991, p.47). Isto
pode significar apropriar-se dos códigos ou das marcas daquele que se parodia para ser
capaz de expo-los, de torná-los mais evidentes e, assim, subverte-los, critica-los e
desconstrui-los. Por tudo isso, a paródia permite repensar ou problematizar a idéia de
originalidade ou de autenticidade. E é exatamente neste sentido que a figura da drag-
queen é produtiva para se pensar sobre os gêneros e a sexualidade: ela põe em questãoa
essência ou a autenticidade dessas dimensões e leva a refletir sobre seu caráter
construído. Sua figura estranha e insólita aponta para o fato de que as formas usuais e
rotineiras com que os sujeitos se apresentam são, sempre, formas inventadas e
sancionadas pelas circunstâncias culturais.
A instabilidade dos corpos e as possibilidades de experimentá-los —
circunstâncias que parecem incomodar a Le Breton e a tantos outros — têm de ser
compreendidas como eventos da contemporaneidade. O atravessamento das fronteiras
de gênero e sexuais hoje já não é mais objeto de espanto; de certo modo, tal
atravessamento já se tornou praticamente um lugar-comum que não merece mais a
manchete dos jornais de escândalos. Isso não significa afirmar, contudo, que o lugar
social dos sujeitos que vivem tais práticas seja um lugar reconhecido ou cômodo. Ao
desafiar as normas regulatórias dos gêneros e da sexualidade e ao ousar afirmar-se como
sujeitos mutantes, tais sujeitos se assumem como “identidades prescritas e proscritas”,
como lembra Maria Consuelo Cunha Campos (1999, p. 39). “A identi
não lhes interessa, também, serem acolhidos ou integrados ao “sistema”. Sua aspiração
parece ser a de romper com a lógica hegemônica, melhor dizendo, interessa-lhes romper
com a lógica que, a favor ou contra, continua se remetendo, sempre, ao sujeito central
(masculino, branco, heterossexual, de classe média). Tais sujeitos se assumem como
excêntricos (fora-do-centro) e pretendem viver como tais.
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não lhes interessa, também, serem acolhidos ou integrados ao “sistema”. Sua aspiração
parece ser a de romper com a lógica hegemônica, melhor dizendo, interessa-lhes romper
com a lógica que, a favor ou contra, continua se remetendo, sempre, ao sujeito central
(masculino, branco, heterossexual, de classe média). Tais sujeitos se assumem como
excêntricos (fora-do-centro) e pretendem viver como tais.

Os desafios para Educação

Como pensar tais sujeitos no campo da Educação? O que dizem sobre eles
nossas teorias e nossas tradições? Que recursos ou estratégias teriam de ser acionados
para integrá-los a nossos projetos?
Para o campo educacional, a afirmação desses grupos é profundamente
perturbadora. Não se dispõe de referências ou de tradições para lidar com os desafios aí
implicados. Não parece mais adequado “encaminhá-los” para os serviços e instituições
especializados. Provavelmente será ineficaz tentar “corrigi-los”, reorientá-los. Eles
integram a contemporaneidade e, ainda que não se enquadrem nas referências ditadas
pelas tradições educacionais e acadêmicas, estão aí, para provocar ou exigir que se
inventem novas formas de convivência. Considerados por muitos como irreverentes e
desrespeitosos, eles desafiam e colocam em xeque normas, códigos, comportamentos,
que, por sua permanência e estabilidade, pareciam ser, há muito tempo, incontroversos,
inquestionáveis, naturais. Suas críticas são produzidas a partir de um lugar
praticamente inabitável, a partir de uma posição desconfortável e indesejada e, por isso
mesmo, uma posição incomum. Daí porque suas críticas são inéditas, são
desconcertantes. No entanto, por todas essas razões, é possível que essas críticas
também possam ser produtivas.
Esses sujeitos estão nas ruas, nos shopping-centers, nas praças e também nas
escolas. Não se pode deixar de lhes prestar atenção. Sua ambivalência desconforta e
ameaça; mas também fascina. Talvez seja mais produtivo para estudiosas e intelectuais,
deixar de lamentar a instabilidade de seus corpos (a instabilidade de todos os corpos) e
abandonar qualquer pretensão de retorno a um tempo idílico em que as coisas e as
pessoas pareciam estar todas em seus devidos lugares. (E esse tempo terá existido?) É
inevitável fazer face a essa diversidade de sujeitos e de práticas É indispensável encará-
la como constituinte do nosso tempo. Um tempo em que a diversidade não funciona
mais com base na lógica da oposição e da exclusão binárias, mas, em vez disso, supõe
uma lógica mais complexa. Um tempo em que a multiplicidade de sujeitos e de práticas
sugere o abandono do discurso que posiciona, hierarquicamente, centro e margens,
dominantes e dominados, em favor de outro discurso que assume a dispersão e a
circulação do poder.
A diferença se multiplicou. As histórias e as lutas de um grupo cultural são
atravessadas e contingenciadas por experiências e lutas conflitantes, protagonizadas por
outros grupos. Por isso, nas escolas e na vida, há que aprender, nesses tempos pós-
modernos, a aceitar que a verdade é plural, que ela é definida pelo local, pelo particular,
pelo limitado, temporário, provisório. Há que se voltar para práticas que desestabilizem
e desconstruam a naturalidade, a universalidade e a unidade dos corpos, da identidade e
da cultura centrais e que reafirmem o caráter construído, movente e plural de todas as
posições. É possível, então, que a história, o movimento e as mudanças pareçam menos
ameaçadores.

Nota:
7

1. Queer pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário. Mas a
expressão também se constitui na forma pejorativa com que são designados homens e mulheres
homossexuais. (...) Este termo, com toda sua carga de estranheza e de deboche, é assumido por uma
vertente dos movimentos homossexuais precisamente para caracterizar sua perspectiva de oposição e de
contestação. Para esse grupo, queer significa colocar-se contra a normalização – venha ela de onde vier.
Seu alvo mais imediato de oposição é, certamente, a heteronormatividade compulsória da sociedade; mas
não escaparia de sua crítica a normalização e a estabilidade propostas pela política de identidade do
movimento homossexual dominante. Queer representa claramente a diferença que não quer ser assimilada
ou tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturbadora (LOURO, 2001, p.
546).

Referências bibliográficas

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EPSTEIN, Debbie; JOHNSON, Richard. Schooling Sexualities. Buckinghan: Open
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FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade. Vol.1. A vontade de saber.11ª ed..
Rio de Janeiro: Graal, 1993.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
LE BRETON, David. L’Adieu au corps. Paris: Éditions Métailié, 1999.
LOURO, Guacira. “Teoria queer — uma política pós-identitária para a educação”.
Revista Estudos Feministas. Vol. 9 (2), 2001: 541-553.
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SCHILING, Chris. “The body and difference”. In WOODWARD, K. (org.). Identity
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SILVA, Tomaz Tadeu. “Nós, ciborgues: o corpo elétrico e a dissolução do humano”. In
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