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Marcas do corpo, marcas de podal

.,,1
.. ,

Diz-se que corpos carregam marcas. Poderíamos, cntno, 1

pcrgunr:u: onde das se inscrevem? Na pele, nos pelos, nas for-


mas, nos traços, nos gestos? O que elas "dizem" dos corpo~~
Que significam? São tangíveis, palpéÍvcis, físicas? Exibem-se F.tciJ ..
mente, à espera de serem reconhecidas? Ou se insinuam, suge ..
rindo, qualificando, nomeando? HJ corpos "não-marcadns"?
Elas, as marcas, existem, de fato? Ou são uma invençâ() do
olhar do otmo?
Hoje, como antes , a determinação d_os lugares sociais ou
das posições dos sujeitos no interior de um grupo é referida n
seus corpos. Ao longo dos tempos, os sujeitos vêm sendo indi-
ciados, classificados, ordenados, hierarquizados c definidos pela
aparência de seus corpos; a partir dos padrões c referência!!,
das normas, valores e ideais da cultura. Então, os corpos são o
que são na cultura. A cor da pele ou dos cabelos; o formato dos
olhos, do nariz ou da boca; a presença da vagina ou do pênis: o
tamanho das mãos, a redondeza das ancas e dos seios são,
sempre, significados culturalmente c é assim que se tornam
(ou não) nzarcaJ de raça, de gênero, de etnia, até mesmo de
classe e de nacionalidade. Podem valer mais ou valer menos,

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pu

Podem ser decisivos p;Ha dizer do lugar social de um sujc iro, importância . Posteriormente, no entalHo, ele ganhou um papel
l• ou podem ser irrelevantes, sem qualquer validade para o siste- prirnordial- o corpo se tornou cawrz cju:;tijicativa das difcren•
ma classificnório de cerro grupo cu Irural. C;uacrerísricas dos ças. ''De um sinal ou marca da disrínç:ío masculino/feminino [u
corpos significadas como marcas pela cu ltu ra distingu em su- cuactcrísricas] passaram a ser sua ca usa, aqui lo que dá origem",
jeitose se constituem cm marcJs de poder. allrrna ::-\icholson (2000, p.] 8).Tais mudanças não são banni11:

Enr rc ranras marcas, ao longo dos séculos, a maioria das elas denotam profundas c relevantes transformações nas form;ls

lc;>_çiedadcs vem estabelecendo a di\'isão masculino/ feminino de dar significado ao que representa se r homem ou mulher em

çg_rpp uma divisão primordial. Cma divisão usualmente com- dcrenninada sociedade, elas sugerem mudanças nas suas rela-
preend i&\ como primeira, origin;iria ou esscnóal c, quase sem- ções c, portanto , nas formas como o poder se exercita .

pre, relacionada ao corpo. l~ u1~1_ ~~1gano, comudo, supor que Até o início do século XIX. confórme conta Laqueur, per- : I
... ,
\ '' ' ·

Q m~_cf<) como pensamos o corpo c a forma como, a partir de sua sistira o modelo sex ual que hierarquizava os sujeitos ao longo ... ,. . ' '

materiaJidadc, "deduzimos'' identidades de gênero c sexuais seja de um ünico eixo, cujo te/os era o masculino; portanto, enten- ~-'
gener aliz <"Í.n~ l para qualquer cultura, para qualquer rcmpo c dia-se que os corpos de mulheres c de homens diferiam em
.. '
l~g~_r. A idcnridadc sex ual rem de ser pensada "como enra iza- "graus'' de perfeição. As exp li cações da vida sexua l apoiavam-
da historicamente" , diz Linda Nicholson (2000, p. 15). Preci- se na idéia de que as mulheres tinharn, "dentro de seu corpo",
samos esrar <ttcntos para o carátcr específico (c também transi- os rnesmos ôrgãos genitais que os homens tinham externamen-
tório) do sistema de crenças com o qual operamos; precisamos te. Em outras palavras, "as mulh eres eram essencialmente ho-
nos dar conta de que os corpos vêm sendo ''lidos'' ou compre- mens nos quais uma f1lta de calor \'i ta l -- de perfeição- havia
endidos de formas distintas em diferentes cult uras, de que o resultad o na retenção, interna, de estruturas que nos machos
modo como a distinçâo masculino/ feminino vem sendo enten- eram ,·isíveis'' (L·\C~LTC R, 1990, p. 4). í\ subst iw ição desse mode-
dida diverge c se modifica histórica e cu lturalmente. lo (de urn ünico sexo) pelo modelo de dois sexos oposros, que é o
~o tempo cm que a B.íblia era a ''fonte da autoridade", era modelo que até hoje prevalece, tem de ser entend ida como arti-

no texto sagrado que se buscava :1. exp licação sobre o relacio- culada a mudanças epistemológicas c políticas.
namento entre rnulhcrcs c homens c sobre qualquer dife- O discurso sobre o corpo c sobre a sexualidade muda na
ren ça percebida entre eles. Nesse tempo, o corpo tinha menos medid a un que o corpo n5o é mais comprc.endido como "um

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~ÍÇ!.Ç)COSJE<? de uma ordem maior". A amiga concepção, que c se voltaram, então, para a disciplinarização e regulaçlo d.
.~ Ugava a experiência sexual humana à realidade metafísica c à família, da reprodução c das pdricas sexuais. Nas décadu
ordem social, cede espaço à ourra, que permitid desvincular o fin~_is_do século XIX, homens vitorianos, médicos e tamb4m
éorpo desse am plo contexto c, ao mesmo tempo, irá atribuir ao filósofos, moralistas c pensadores flzem "descobertas", definiç001
~exo uma centralidade nunca vista. Experimenta-se uma trans- e classiflcaçóes sobre os corpos de homens e mulheres. Suas llrO•
fo.r mação de paradigmas. Formulações filosóficas, religiosas c clamações tem express ivos e persistentes efeitos de verdade:,
t~óricas ligadas ao Ilumin ismo; novos arranjos entre as classes A partir de seu olhar "aurorizado", diferenças entre sujcitos.c
SQciais decorren rcs da Revolução Francesa e do conservadoris- práticas sexuais são inapclavelmcnrc estabelecidas. Não ~ de:
mo pós-revolucionário; mudaJ1Ç1S nas relac;õcs entre homens e
estranhar, pois, que a linguagem c a ótica em pregadas em tai11
mulheres, vinculadas ao industrialismo, à divisão sexual do tra-
definições sejam marcadamcnrc masculinas; que as mulheres se-
balho, bem como às idéias de carátcr feminista então cm circu-
jam concebidas como portadoras de uma sexualidade ambígua,
lação, são algumas das condiçócs que possibilitam essa mudan-
escorregadia c potencialmente perigosa; que o comportamento
ça de paradigmas. Mas, como aflrma Laqueur ( 1990, p. ll ),
das classes média c alta dos grupos hr::tncos cbs sociedades urba-
''nenhuma dessas coisas provocou a construção de um novo corpo
nas ocidentais tenha se constituído na referência para estabele-
seX:uado. Em vez disso, a reconstrução do corpo é, ela própria,
cer as práticas moralmente apropriadas ou higien icamente sãs.
intrínseca a cada um desses desenvolvimentos". Portanto, é pos-
Tipologias c relatos de casos, classificações c minuciosas hierar-
sível dizer que novos discursos, outra retórica, outra epistcme se
instalam c, nessa nova formação discursiva, a sexualidade passa quias caracterizam os estudos da nascente sexologia. Busca-se,

~l ganh ar centralidade na compreensão e na org;1nizaçác) da tenazmente, conhecer, explicar, identificar c também classificar,
~~)ciedade. Por certo o surgimento desse novo modelo não sig- dividir, regrar c disciplinar a sexualidade. Produzem-se discursos
nificou o completo rechaço do anterior; por um largo tempo, carregados da autoridade da ciência. Discursos que se confron-
travaram-se di sp utas em torno do significado atribuído aos tam ou se combinam com os da igreja, da moral c da lei.
corpos , ~l sexualidade c à existência de homens c mulheres. Tudo isso permite dizer, como faz Judith Butler, que os
Organizados politicamente, os estados passaram a se pre- discursos "habitam corpos", que "eles se aco modam em cor-
ocupar, cada vez mais, com o controle de sua população, com pos" ou, ainda mais contundentemente, que "os corpos, na ver-
medidas que garantissem a vida e a produtividade de seu povo dade, carregam discursos como pane de seu próprio sangue"

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(Btri'LERem entrevista a P Rli\S c ~v1 F I]ER, 2002, p. 163). Ponan- c desenvolve sua sexualidade, rendo como alvo o pólo oposto, ou
~- ·to; antes de pretender, simplcsmcnrc, '' ler'' os gêneros c as seja, o corpo diferente do seu. Essa scqüênciaserá, contudo, im•
8exttalidadcs com base nos ''dados" dos corpos, parece prudente perativa? Natural? Jncomest;:ívcl? Que garantias há de que ela
pensar tais dimensões como sendo discursivamcntc inscrit<lS nos ocorra, independente de acidentes, acasos? Não há qualquer
..c()rpose se exp ressando através deles; pensar as formas de gêne- garantia. {\ seqli2ncia não é natural n em segura, muito meno1
ro e de sexualidade flZendo-sc c transformando-se histórica c _jndiscurívcl. !\ ordcrnpodc ser_ncgada, desviada. A seqü!ncia I '

culturalme nte. Não se pretende, com isso, negar a mareri,did a- d es liza c escapa. r1a é desafiada c subve rtid a. Para suportá-la ou
de dos corpos, mas o que secnfuiza são os processos c as prácicas assegurar seu funcionamento são ncccssürios investimentos con·
~iscursivas que fazem com que aspectos dos corpos se conver- rinuados e repetidos; não se poupam csfon;os para defende-la.
tam em ddlnidorcs de gênero e de sexualidade c, como conse- j\ ordem srí parece segura por se asscn ta r sobre o duvido-
qüênci a, acabem por se converter cm definidores dos sujeitos. so pressuposto de que o sexo existe fcHa da cultura e, consc-
Certa premissa, bastante consagrada, costuma afirmar que qüenremcntc, por inscrevê-lo num domínio aparentemente
d<::tcrminado sexo (e ntendido , nes re caso, em termos de carac- estável c universal, o domínio da natureza . i\ ordem "funcio-
terísticas biológicas) indica determinado gênero c este gênero, na" co mo se os co rpos carregassem uma essência desde o nasci-
por sua vez, indica o desejo ou induz a ele . Essa seqiit~ n c i a su- mento ; como se corpos sexuados se constituíssem numa espé-
pôc e institui uma çocrência c uma continuidade entre sexo- cie de superfície pré-existente, a nter ior :1 cultura. Onde
género-sexualidade. Ela supõe e institui urna conseqüência, da encontrar, contudo, esse corpo pré-cultural? Como acessá-lo?
afirma e repete uma norma, apostando numa lógica bin <í ria ).Ja tela do aparelho de ecograf!a qu e mostra os primeiros mo-
pela qual o cQxpo, identificado como macho ou como ffJ1)~ ~l, mentos da vida de um f"Cto, teríamos, aflnaJ, um corpo ainda não
cierermina o gênero (um de dois gêneros possíveis: masculino non1eado pela cultura ? J\ resposta red de ser negativa. Não há 1 1 1 ( ,·

ou feminino) e leva a urna fcmna de desejo (especiflcamente, o ~orpo que não seja, desde sempre, diro e feiro na cultura; descri-

desejo dirigido ao sexo/gênero oposto). Ainda que o corpo possa to, nomeado c reconhecido na linguage rn , através dos signos,

se transform ar, ao longo d:1 vida, espera-se que ral rransforma- dos dispositivos, das convenções c das tecnologias.
çao se d ê numa direção ünica e legítima, na medida cm que A concepção bin:iria do sexo, tomado como um "dado" que /1 , I

esse corpo adquire c exibe os atributos próprios de seu gênero indcpcndc da cultura, impôe, portanto, li mires ú concepção de

s:: SI
senoJ.To e toma a heterossexualidade o destino inexorável, a for- constantemente, reiterados, renovados e refeitos. Não lúWif
mil compulsó ria de sexualid~1de. As descontinuidades, as trans- __l111_um-· núcleo
· ~ · --· - -
.
cfctivo e confiável com base no qual a ''norml'f,
.
gressões e as subversões que essas três categorias (scxo-gênero- ou seja, a consagrada seqüência sexo-gênero-sexualidaclc•pOIJI
s~dade) podem experimentar são empmradas para o terreno fluir ou emanar com segurança. O mesmo se pode dizor lll'CI•
dGl:Íncomprecnsível ou do patológico. Para garantir a coerên- peit_o dos _movimentos para transgredi-la. Esses também ~upOQQ'l
cia, asolidez c a permanência da norma , são realizados investi- intervenção, deslocamento, ingerência. Em ambas as di~çôca,
mentos- continuados, rciterarivos, repetidos. ]nvcsrimentos é no <::Qrpo c através do corp_o ~JU:C os processos de afirmaçãq .OU
produzidos a partir de múltiplas instâncias sociais e culturais: _!r<!QSgfǧ_~?,o das normas rcgularórias se realizam e se ~x.pr.~• ..
posros em ação pelas famílias, pelas escolas, pelas igrejas, pelas s~!P· Assim, os corpos são marcados social, simbólica e material~ ) ( Pl1'' ·,
mente- pelo próprio sujeito c pelos outros. É pouco relcvan.t~ ' ~
1
kis, pela n1Ídia ou pelos médicos, com o propósito de aflrmar c '

reafirmar as normas que regulam os gêneros e as sexualidades. definir quem tem a iniciativa dessa "marcação" ou quais su~
As normas rcgulatórias voltam-se para os corpos para indicar- intenções, o que importa é examinar como ocorrem esf~C$
lhes limites de sanidade, de legitimidade, de moralidade ou de processos e os seus efeitos.
coerência. Daí porque aqueles que escapam ou atravessam es- Uma multiplicidade de sinais, códigos c atitudes produ7.
ses omites ficam marcados como corpos- e sujeitos- ilegítimos, referências quefazern sentido no interior da cultura e que dcfl ..
irnorais ou parológicos. nem (pelo menos momentaneamente) qu e m é o sujeito.
Apesar de rodo esse Ím'estimento, os corpos se alteram A marcação pode ser simbólica ou física, pode ser indicada por
continuamente. Não somente sua aparência, seus sinais ou seu uma aliança de ouro, por um véu, pela colocação de um pitr·
funcionamento se modificam ao longo do tempo; de.s podem, cing, por uma tatuagem , por uma musculaçáo "trabalhada" 1
ainda, ser negados ou rcaf!rrnados, manipulados, ~Jrcrados, trans- pela implanraçao de uma prótese ... O que importa é que ela
formados ou subvertidos.As marcas de gênero e sexualidade, terá, além de efeitos simbólicos, expressão social e material. Ela
significadas e nomeadas no contexto de um:1 cultura , são tam- poderá permitir que o sujeito seja reconhecido como perten·
bém cambiantes e provisó rias, e estão , indubitavelmente, en- cendo a determinada identidade; que seja incluído em ou
volvidas em relações de poder. Os esforços empreendidos para excluído de determinados espaços; que seja acolhido ou recu·
instituir a no rma nos co rpos (e nos suj eitos) precisam, pois, ser, sado por um grupo; que possa (ou não) usufruir de direitOS!

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ii 11 .

que possa (ou não) rea!iz:n dctc:rrninadas funçôcs ou ocupar ou o delineador dos olhos, a "drflg 'baixa' '' - co nf(nm e uma
determinados postos; que tenha deveres ou privilégios: que seja, delas aflrma. I~ nesse momento q11c a drrzge fc rivamcnrc inror-
em síntese, aprovado, rolcrado ou rcjc ic1do. pom , que ela toma corpo, qu e eh se materiali za c passa a cxisrir
O argum ento se rorna mais co Jwinccnre, se colocannos como personagem. Fla cst:í, agora, pronra para ganh:t r a rua,
ifn em evi dência o corpo de umadrrtg-rjueen . Embora :llguns pos- para se apresentar num show, a rratHlho, para "fazer'' o cuna-
sam afirmar que esse é um corpo ''excepcional" c, por isso, ina- val ou simplesmente para se di\·cnir. Anna Paula reproduz ~~

dequado para pensar os corpos "normais", insisro no exernplo , fala de uma rlmg, j<í montada c maquiada , numa noite de car-
confi ando que ele podeLi fornecer pisras ir11porranrcs para navaL tentando convencer a colega que resistia a se produzir,
pensarmos os corpos "comuns" c o coridiano. Admgé, funda- porque "i<1 não rinha mais corpo": ''Corpo? Corpo se f1brica ...
menralm cnte, uma figura "pública" , isto é, urna flgura que se cu não E1briquci um agora? '' ( V FNC\TO, 2002, p. 46).
apresenr:l c surge como tal apenas no espaço público . Desco- A dmg assume, explicitamente, que bbrica seu corpo;
bri-la no seu processo de produç:ío é, pois, uma tarefa difícil. cb intervém , esconde, agrega, exp0c. Dclibcradamcme, rea-
Conduzidos por urna pesquisa realizada por Anna Paula \'en- liza rodos esses aros nJo porque pretenda se fazer passar por
cato (2002 ) com rlrrzg-rptt CI/Jda Ilha de Sanra Catarina, entra- uma mulher. Seu propósito n ão é esse; ela não quer ser con-
mos no cun<!rim de urna dmg, espaço usualmente interditado fundid a ou tomada por uma mulher. A d!'rlg propositalmen-
aos olh os elos outros. f no camarim que ela "se monta". A ''mon- te exagera os traços convencionais do feminino, exorbita c
rari:l'' comisrc na minuciosa c longa uref:1 de transformação acentua nurcas corporai s, comportanH:nros, ati rudes , vcsri-
d e seu corpo, urn processo que sup0c téc nicas c truques (como mentas culturalnJctHc idcnrif]cada s como fe mininas. O que
tuna c uidados a dcpilaçJo , a dissimulação do pênis ou, ainda, faz pode ser compreendido como .t,JJila p aródia de género:
por exemplo , o 11so de seis pares de meias-calças para ''corrigir" ela imita e exagera, aproxima- se, legitima c, ao mesmo tem-
as pernas flnas); um processo que continua com uma exube- po, subvcnc o sujciro que copia.
rante \'Cstimcnta, muira purpurina, sapatos de alras platafor- l\'a pós-modernidade , a p aródia se constirui n ão somente
ma s c que se completa com pesada maquiagcm (corretivo, numa possibilid ade cs rérica rccorrcnrc , m~ls ru forma mais efe-
base, batom, muito b!ush, cílios postiços c perucas) . Ao cxe- riva de crítica, n a medida cm c1uc imp lica, paradoxalmente, a
curar, por ílm, seus últimos !ll OYimcntos , rcrocando o batom identificl~':l.o c o dis tanciamento cm relação ao objeto ou ao

85
p

SUJJjeito parodiado. Conforme acentuam teóricas e teóricos con- circunstâncias ct!_IE~lr~~~~ -emque vivem~~· q_~?!.PDS conside ..
l
ttmporâneos, não se trata de uma imitaçáo ridicularizadora, rados "normaj{ s "comuns'' são, també1n,produzidos atra-:- ~~· • •' I '

' mas de uma "repetição com distância crítica que permite a vés de uma série de artcfaros, acessórios, gestos e atitudes que
I

1 \ indicação irónica da diferença no próprio âmago da scme- uma sociedade arbitrariamente estabeleceu como adequados
\ lhança" (H UTCJ·IEO:\, 1991, p. 47). Para exercer a paródia, c legítimos. Nós também nos valemos de artifícios e de signos
I

parece neccssúio, pois, cena "afiliação'' ou alguma intimida- para nos apresentarmos, para dizer quem somos c dizer quem
decon1 aquilo que se vai parodiar e criticar. A paródia supõe, são os ou r r os.
'como afirma Judirh Burlcr (1998/99, p. 54), "entrar, ao mcs- Aqueles e ~:qttcbs que rransgri~cm as front~iras de gênero
':mo rcmpo, numa relação de desejo e de ambivalência". Isso
ou de scxualicbdc, q~te as atravessam ou que, de algum modo,
pode significar apropriar-se dos códigos ou das marcas da- embaralham c confundem os sinais considerados "próprios"
quele que se parodia para ser capaz de expô-los, de torná-los de cada um desses territórios são marcados como _sujeitos di-
m?ÍS eviJenres e, assim, subvertê-los, criticá-los e desconstruí- _fcrentcs c desviantes. Tal como atravessadores ilegais de terri-
los. Por tudo isso, ~_ paródia pode nos fazer repensar ou pro- tórios , como migrantes clandestinos que escapam do lugar onde
blematizarª idéia de originalidade ou de autenticidade- em deveriam permanecer, esses sujeitos são tratados como infrato-
muitos terrenos. .res e devem sofrer penalidades. Acabam por ser punidos, de
f~ cxatamentc nesse sentido que a f-Igura da drag permite alguma forma, ou , na melhor das hipóteses, tornam-se alvo de
pensar sobre os gêneros e a sexualidade: ela permite questionar correção. Possivelmente experimentarão o desprezo ou a su-
a essência ou a autenticidade dessas dimensóes e refletir sobre bordinação. Provavelmente serão rotulados (e isolados) como
1 seu caráter construído. A dmg-queen rcp~te e subverte o fe- "minorias". Talvez sejam suportados, desde que encontrem seus
' - .
: _mjni~o , utilizando e salientando os códigos culturais que mar- guetos e permaneçam circulando nesses espaços restritos. Já
. cam esse gênero. Ao jogar e brincar com esses códigos, ao que não se ajustaram c desobedeceram às normas que regulam
exagerá-los e exaltá-los, ela leva a perceber sua não-naturali- os gêneros e as sexualidades, são considerados transgressores e,
dade. Sua figura estranha c insólita ajuda a lembrar que as for- então, desvalorizados e desacreditados. Uma série de estraté-
!!las co!Tlono.s apresentamos como sujeitos de gênero e de se- gias e técnicas poderá ser acionada para recuperá~los: bus-
xualidade são, sempre, formas inventadas e sancionadas pel~s cando curá-los, por serem doentes, ou salvá~los, por estarem

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.i ;: . . t L ,.II !L . . L . l!iii~
/

em pecado; re-educando-os nos serviços especializados, por mortos ou de tomar decisões quando ele/ela enfrenta perigo
padecerem de "desordem" psicológica ou por perrencerem a de vida. Essas e outras privações precisariam ser compreendidaa,
famílias "desestruturadas"; reabilitando -os cm espaços que os como sugere Butler, como algo mais do que a mera circulaçlo
mantenham a salvo das "m;is companhias'' . de atitudes culturais indignas, ou seja, como "uma operaçlo
\1\1'. A coerência e a continuidade supostas ent re sexo-gêne- específica da distribuição sexual e da reprodução dos direitos
~,,,,..1 rE_:~~~~al_idadc servem para sustentar a norn1atiza ~;-i o da_yida legais c econôm icos" (Bt:rLER, ] 998/99, p. 56).
dos indivíduos c das sociedades. A fo rma ·'norma l" de viver Pcfinir algttérn s:(~fl2<)hom_~·~l1.S?~- ~!:!L~-~!?..~()!J:1~sujcito d~ . \I ' " ,,
,,
~s gêr;cros aponta para a constituição da fornu "normal"' de t;~ n c ro c de sexualidade signifl~_a, _E_<}j~_, _ !:_eses~~~i'.l_J:Il..~l1tc,_ ~<>· .·- ; I ... t ••

' ·~ I ,.
fam ília , a qual, por sua vez, se sustenta sobre a reprodução md-lo segundo as marcas distintivas de uma cultura- com
---- ·---·----·-----·
,\..· . .. . ... ... -- - -- -
" - -· - ·-- - . ··· - -·· · -·-···
-- - -·-·-- -- ~-- - . · ·- - -~- --

sexual c, con scqücnrcmcnrc, sob re a heterossexualidade. I~ rodas as conscqüê·ncias qu e esse gcsro acarreta: a atribuição de
evidt·nte o ca dtcr político dessa premissa, n a qual ~1~o há lu- direitos ou de\'C:n:s, privil égios ou dcsv:Jntagens. Nomeados c
gar para ac1ucles homens c mulheres que, de algum modo, classifl c.Hios no interior de urna cultu ra, 9_,~ çorpos se fazem
i;;nurb cm a o r~lcn1 o u dela cscapen_l. Os custos cobrados hj_.~~(>ricos c sirua~tos. O s corpos sJo "datados", ganham um va-
desses sujeitos são altos. Sã~) -_Jhc~ ir!1postos custos morais , po- lor que é sempre trans itório c ci rcunstan cial. A significação que
líticos, materiais , soc ia is, econtJ mi cos, mesmo que, hoje, a dc- se lhes atr ibui é arhirr;iria, relacional c é, também, disputada.
sol;cdiência ~1 essa ordem c o d~sY.io .dela sejam mais vish·eis c P<l_ra construir a marcrialidade dos corpos c, ass im, garantir
at é rncsmo mais ''suportados" do qu e cm o utro s mom entos. legitimidade aos su jeitos , I}()_!:In_as r~g~_d~l~0-~_i_;_J5_ .Q~~[lero c de
Custos que vão além do seu não-reconhecimento culrural. sexua lidade precisam ser conrin uamcme rc;_ir er;l~-a~_~refcitas.
Co mo lembra Judirh Butlcr, são inúm eros os efeitos m ateri- Ess;lS normas, como quaisquer o utras , s:ío irwcnções sociais.
ais e as privações civis que se arriculam a esse não-reconhecimen- Sendo ass im, corno acontece com quaisquer outras normas,
to. A Eunília sancionach pelo Estado exclui gays c lóbicas . alguns sujciros as rcpctcn1 c reafirmam c outros delas buscam
Como conseqüência, c1sais constituídos por sujeitos domes- escapar. ' lódos esses movimentos, seja para se aproximar, seja
mo sexo cnfrcnram im ensas dit}culdadcs de manter a guarda p ara se afastar cbs convençôcs, seja para rci nvcnrá-la!j, seja para
de fi lho s ou sJo sumariamente impedidos de ado rar crianças; subverré - b.'i , .-;upôcrn i n\'esri me mos. requerem esforços c
aos membros dessas L1mílias ''ilegítimas" usualmente se nega implicam cusros. Todos esses movim e ntos s5.o tramados c
o direito de receber herança do compa nheiro ou companheira funcionam através de redes de pod er.

ss
Referências

BUTLER, Judith. ·· 0-lcrmlerHc u dtu r;.tl ". FI Rod:/J,do. '[í ,Hl. :\lici,t ck San to>.
Buenosi\ ircs : .\tlll\', r1 'l, l')')í.:l;J().

HUTCHLC)N , Lind.t l'o/u(,; do l'ri• -ittodall!.•ino. Tr.~d.)cn·mc S.donún. Ri o dt:


Janeiro: lm:~go, 1 '>'>i.

L\.QtT L R. ['hu nus. ;\/,t!·iug .<n. llod)' .mrlgewfa(i·om .f!.1'<'t'!ê.< to hntrl C;unbrid-
ge e Lortdrcs: l !.Jr\·,J rd l'11 iversir-'· Prcss, 1<) <)()

.!'-:I C I· I Ol.Sl ) N, I in cb . .. I nr,T tnc·u ndo u v/ncn," . Tr ;~cl. l..tti l Fd ipc C rti m:H:ics
So:Hc .s. /(,., irr.z Fcutr!os r;·minisiOI.I. \'. 1:\ (2) . 201JO .

PRP\ S, Baul;jc; ,\ íFI] LR, !reDe. "Come> os corpus se torrnm rnatc:rt;l: crnrcvisra
com }1dith !lu der" '[i'.Jd Sman.t Bor 1\c:o Funde RtTÍ•I<i L• tudo, h ·m n!Útds . v. 1()
( I ), .: 002 .

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