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SEÇÃO TEMÁTICA

Motrivivência v. 28, n. 48, p. 15-31, setembro/2016

http://dx.doi.org/10.5007/2175-8042.2016v28n48p15

Corpos resistentes produtores de


culturas corporais. Haverá lugar
na Base Nacional Comum?

Miguel G. Arroyo1

RESUMO

O texto reflete sobre a Base Nacional Comum Curricular, visando aprofundar a análise
dos significados ético-políticos de seus pressupostos. Nesse sentido, discute o lugar dos
corpos reais, de educadores e educandos, produtores de culturas corporais, na definição
do documento do componente Educação Física. Para tanto, o texto traz uma pergunta
mais focada: que embates provoca a BNCC na Educação Física, nos conhecimentos e
no trabalho de seus profissionais?

Palavras-chave: Currículo; Base Nacional Comum Curricular; trabalho docente; cultura


corporal

1 Doutor em Educação pela Stanford University. Professor Titular Emérito da Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor Honoris Causa da Universidade Federal Fluminense
(UFF). Contato: g.arroyo@uol.com.br.
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INTRODUÇÃO análise exige questionar se afirmam a ética


na política ou a negam.
Como aproximar-nos da Base Na- Parto da hipótese de que esses docu-
cional Comum Curricular? Opto por vê-la mentos representam uma negação política
como uma oportunidade para repensar os da ética na condução dos avanços havidos
currículos na prática da educação básica, no direito à educação como direito ao de-
uma oportunidade para repensar cada área senvolvimento humano pleno (Constituição
do conhecimento, a formação dos docentes de 1988 e LDB 1996). Seu caráter impo-
e a própria docência. A outorga do Alto da sitivo, unificador representa um controle
Base Nacional Comum Curricular, como do dos avanços que vinham acontecendo nas
PNE, mexeu com concepções e escolhas de lutas por direitos, pelo direito à educação,
conhecimentos, de docência. Mexeu com o à cultura, ao conhecimento, trazidos pela
lugar de cada área-disciplina e de cada coleti- diversidade de movimentos sociais, em
vo docente. Mexeu com o trabalho docente. tantas lutas pelos direitos humanos mais
básicos: a terra, teto, trabalho, comida,
Mexer no currículo é mexer na espinha dor-
transporte. Coletivos sociais tidos em nossa
sal do sistema escolar: o trabalho docente,
história sem direito a ter direitos, apenas
as autorias docentes com os direitos dos
destinatários de favores das elites, vêm se
educandos e dos docentes-educadores/as.
afirmando conscientes de seus direitos,
exigindo ser reconhecidos sujeitos políticos
Politizar a análise da BNCC e de políticas. Um avanço político da maior
relevância. Mas o estilo continua: outorgar-
-lhes direitos do alto.
Reduzir a análise da BNCC a aspec-
Não apenas os educandos exigem
tos técnicos ou até a que conteúdos entram
ser sujeitos na definição de seus direitos,
ou ficam de fora é ficar no periférico. Urge
sobretudo os educadores avançaram afir-
politizar os significados ético-políticos
mando-se sujeitos de saberes, de autorias
da Base, como do PNE ou das Diretrizes
docentes. Se afirmaram sujeitos de direitos
Curriculares de Formação e das Políticas
ao trabalho docente e a definir seu trabalho:
de Avaliação (Arroyo, 2015a e 2016). Essas
definir o que ensinar, como ensinar, como
políticas outorgadas do Alto, do poder sinte- avaliar seu trabalho. A pergunta obrigatória
tizam estilos de poder. Reforçam o exercício na análise da BNC, das Diretrizes Curricula-
do poder sobre os direitos dos educandos e res de Formação e nas Políticas de Avaliação
dos educadores. é se essas autorias docentes são reconheci-
Como são pensados? Educadores e das ou ainda os professores são pensados
educandos são pensados como destinatários desqualificados no que ensinar, como
passivos dos ditames que vêm do alto. Não educar as crianças, os adolescentes, os
são reconhecidos sujeitos da definição de jovens-adultos com que trabalham. A BNC e
seus direitos em tempos em que vêm se afir- esse conjunto de documentos vindos do alto
mando sujeitos conscientes de seus direitos se justificam em uma visão extremamente
à educação, à cultura, ao conhecimento. Os negativa, desqualificada dos professores:
documentos que definem direitos do alto entrega-lhes o cardápio intelectual pronto
são gestos eminentemente políticos. Logo a e reduzir sua função a requentar a marmita.
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Autorias docentes na Educação Física de políticas de garantia de direitos: política


reconhecidas? agrária, urbana, de previdência, trabalho, de
transporte... sujeitos de políticas educativas
Este texto traz uma pergunta mais atreladas a essas lutas.
focada: que embates provocam esses Os movimentos pressionaram por
documentos, a BNCC especificamente na políticas de educação e por diretrizes espe-
Educação Física, nos conhecimentos e no cíficas de educação do campo, indígenas,
trabalho de seus profissionais? Essa seria quilombolas. Vínhamos de uma história
uma pergunta prévia à leitura e análise de lutas por direito a currículos que afir-
do lugar da Educação Física na BNC: que massem suas identidades culturais, raciais,
avanços vinham acontecendo nos debates étnicas... Exemplos: História da África, da
dos professores de Educação Física, nos seus cultura indígena, quilombola, negra, SEPIR,
congressos, nos cursos de formação, nas Secretaria da Igualdade Racial, da Mulher,
pesquisas e na produção teórica. São reco- da Juventude, dos Direitos Humanos,
nhecidos e incorporados? Avançar para as SECADI-MEC. Uma questão política obriga-
afirmações de autorias docentes-educadoras tória: a Base Nacional Comum reconhece
de tantos professores de Educação Física esses avanços? Reconhece essa diversidade
que vêm reinventando suas identidades de movimentos-sujeitos coletivos de afirma-
em diálogos com os corpos reais, com as ção de direitos?
experiências corpóreas dos educandos, das Os termos Base, Nacional, Comum
educandas na educação pública popular. não são neutros, carregam dimensões, es-
Esses avanços são reconhecidos na BNC? colhas, intenções políticas. Os Parâmetros
A leitura exige um reconhecimento e uma Curriculares Nacionais (PCN), de triste
disputa política por esses avanços. Exige memória, optaram pelo termo diretivo: Parâ-
uma leitura política. metros em plural. Agora é Base em singular.
Sugiro que a leitura da BNC não seja Base única, comum, nacional, aberta ou
feita apenas desde os avanços no próprio fechada a essa dinâmica social e profissio-
campo da Educação Física, mas nos avanços nal? Neste texto, destacamos algumas das
havidos na dinâmica social, política, cultu- indagações mais específicas que vêm da
ral de que vêm sendo sujeitos os coletivos Educação Física, dos seus profissionais e de
sociais na diversidade de seus movimentos. sua função na educação escolar para a Base
Superar vê-los como destinatários agradeci- Nacional Comum. Indagações que poderão
dos de políticas e diretrizes outorgadas e vê- avançar para proposições.
-los como sujeitos políticos e de políticas. A
partir desse reconhecimento aproximar-nos
da análise da Base e do conjunto de diretri- Os corpos humanos provocam o pensa-
zes e planos, para questionar se representam mento
um avanço ou um recuo nos avanços que
vinham acontecendo nas lutas dos trabalha- Tentemos aproximar-nos das inda-
dores empobrecidos, dos indígenas, negros, gações específicas sobre como a Educação
quilombolas, mulheres, LGBT por afirmar-se Física é tratada na Base Nacional Co-
como sujeitos de direitos e até como sujeitos mum. Que dimensões merecem um olhar
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ético-político? Os profissionais da Educação corpóreas tão nos limites são o referente


Física lembram ao pensamento pedagógico das propostas de Educação Física da BNC?
que os educandos e os educadores são Um traço lamentável persistente nos
totalidades humanas corpóreas. Que os documentos, diretrizes outorgadas do alto:
currículos tem de garantir aos educandos os não ver a realidade vivida nem pelos desti-
saberes, valores e culturas dos corpos. Qual natários educandos, nem pelos educadores.
a centralidade dos corpos na Base Nacional Ambos são vistos – nem vistos – apenas des-
Comum? Apontam para outras pedagogias tinatários sem rosto, sem vida, amorfos de
dos corpos? políticas e diretrizes. Quando esses corpos
Parto da hipótese de que os corpos interrogantes são ignorados o pensamento
humanos sempre provocaram o pensamen- educacional se perde. Aproximar-nos da
to. Boaventura de Sousa Santos nos lembra BNC pode ser uma oportunidade para trazer
que “toda experiência social produz e repro- de volta à Educação Física e ao pensamento
duz conhecimento e, ao fazê-lo, pressupõe pedagógico a realidade dos corpos que
uma ou várias epistemologias” (2010). As chegam às escolas, públicas de maneira
experiências humanas quanto mais fortes, particular. Ter um encontro marcado com
mas carregadas de indagações, mais provo- seus corpos, reconhecer as experiências
caram o pensamento ao longo da história corpóreas extremas a que a sociedade os
humana. Se as vivências, experiências dos condena e ouvir suas indagações seria o pro-
corpos sempre foram as mais extremas, as cesso mais político de construir currículos
mais radicais para os seres humanos – sofri- que incorporem os saberes que vêm dessas
mento, dor, pobreza, trabalho, abandono, experiências corpóreas. A BNC parte desse
extermínio de adolescentes e mortandade reconhecimento?
infantil, segregação das pessoas com de-
ficiências, dessas experiências extremas
corpóreas sempre vieram as indagações Ignorar ou ver os Corpos Reais?
mais desestruturantes para o conhecimento
e para a educação. Essas experiências extre- Volta a pergunta nuclear à pedago-
mas corpóreas e suas indagações desestru- gia e à Educação Física: como ver os corpos?
turantes tem sido centrais nas análises, na A hipótese que nos acompanha é que como
produção teórica, nas práticas da Educação os vemos, os pensamos assim os trataremos
Física? A BNC as reconhece e incorpora? até na Educação Física e nas propostas da
As indagações que chegam da cul- BNC. Predomina a visão de estarmos em
tura, do culto e cultivo de corpos sarados tempos de corpos emancipados, ao menos
não tem provocado mais as propostas de emancipáveis pela Educação Física? Se pen-
Educação Física nos cursos de formação samos e destacamos estarmos em tempos
e na BNC? Questões nucleares para uma de autoemancipação dos corpos a função
releitura da BNC, sobretudo diante das dos educadores e das práticas de Educação
experiências corpóreas tão extremas e tão Física será reforçar essa autoemancipação.
comuns das crianças, dos adolescentes, Será essa a proposta da BNC?
jovens-adultos que chegam às escolas pú- Os educadores/as convivendo nas
blicas populares e à EJA. Essas experiências escolas e nas ruas com corpos infanto-juvenis
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não emancipados são obrigados a repensar de seus profissionais propõe a BNC? Incor-
esses olhares que privilegiam processos de pora esses tensos exercícios de ser criança,
autoemancipação dos corpos. Se impõe a adolescente, jovem-adulto?
pergunta: de que sujeitos corpóreos falam Os profissionais da Educação Física
as políticas curriculares de Educação Físi- sabem com que corpos trabalham nas es-
ca? Os veem na concretude dos contextos colas públicas. Como são tratados pela so-
históricos e das vivências corpóreas a que ciedade, pelos órgãos da “ordem”. Milhares
a sociedade os condena? condenados como violentos, extermináveis
A Educação Física e seus currículos e exterminados nos fins de semana (de cada
e profissionais tem tido o mérito de trazer os três, dois negros). Como são pensados pela
corpos para os currículos. Trazer pedagogias sociedade (80% a favor do rebaixamento
para um pensamento pedagógico que não da idade penal), a favor de entregar esses
vê nos educandos mais do que mentes a corpos infantis-adolescentes à justiça penal,
instruir, letrar, ensinar. Nos faltam pedago- porque pensados tão violentos que são sub-
gias dos corpos. A Educação Física e seus -humanos, ineducáveis? (Arroyo, 2015d e
profissionais tem afirmado que educamos 2015c; Waiselfisz, 2014). Na BNC haverá
mentes corpóreas. Tem tido a função de lugar para esses corpos condenados? Quan-
reeducar o próprio pensamento pedagógico do esses corpos concretos são ignorados
para ver sujeitos corpóreos. Para ter de ver toda proposta curricular de educação na
os educandos carregando às escolas públi- BNC e especificamente de Educação Física
cas suas experiências corpóreas radicais a estará fora de foco.
exigir outras pedagogias dos corpos (Arroyo Um exercício revelador esperado
e Silva, 2012a). dos profissionais da Educação Física: na
Nesse livro “Corpo-Infância. Exercí- BNC e nos currículos de formação profis-
cios tensos de ser criança – Por outras pe- sional, nas pesquisas e análises há lugar
dagogias dos corpos”, trazemos 14 textos de para ver os corpos concretos nas tensas
profissionais da Educação Física mostrando experiências do viver, sobreviver, resistir?
crianças-adolescentes vivenciando corpos- Há lugar para exercícios tão tensos? Há
-precarizados, mas também corpos resisten- lugar central para os sujeitos corpóreos? Se
tes, corpos sujeitos de educação, produtores forem ignoradas todas as propostas cairão
de autoimagens corpóreas e sociais. em um vazio social, político. Pedagógico.
Da diversidade de análises dos
profissionais da Educação Física vêm lições
de extrema radicalidade para a educação, Corpos reais produtores de culturas cor-
para o pensamento pedagógico: é possí- póreas
vel abrir-se aos tensos exercícios de ser
crianças-adolescentes-jovens-adultos que Os corpos produzem culturas,
levam às escolas seus corpos precarizados, valores, identidades. Há pedagogias dos
mas resistentes? Uma pergunta obrigatória corpos, são reconhecidas nos currículos e
na análise da BNC: há lugar para milhões nas pedagogias escolares? Os estudos de
de corpos precarizados e resistentes? Que Educação Física tem destacado a necessi-
currículo de Educação Física e de formação dade desse reconhecimento e de um trato
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pedagógico da cultura corporal. Trazer a nos educandos serem sujeitos – com seus
cultura corporal para os currículos tem sido coletivos sociais, raciais – de produção,
uma rica contribuição da Educação Física. manutenção, socialização da riqueza de
Os currículos e as diretrizes curriculares culturas corpóreas. Não é qualquer didática
esqueceram que são a síntese da cultura e que dá conta de um dos processos tão ricos
se empobreceram ao limitar-se a transmitir e complexos como a formação cultural e,
conteúdos de aprendizagem, habilidades, sobretudo, como o reconhecimento de
domínios avaliáveis e quantificáveis. O C serem sujeitos de culturas corpóreas.
do MEC não é mais de Cultura, mas de Uma pergunta obrigatória no diálo-
Conteúdos. go com a BNC: que compreensão predo-
Alertar os currículos de serem a mina de direito à cultura corpórea? Chega
síntese da cultura e que todo conhecimento a profundidade e complexidade, a riqueza
é uma produção da cultura humana e que de nossa cultura corpórea? Esta é reduzida
os corpos são produtores e expressões da a brincadeiras, jogos, esportes, ginásticas,
cultura – culturas corpóreas – tem sido lutas e aventuras? Os corpos não são produ-
uma contribuição de extrema relevância tores de culturas apenas nessas atividades.
pedagógica dos profissionais e dos estudos Através da história os corpos produzem
da Educação Física. Um dos componentes culturas, valores, identidades, concepções
da função da educação entendida como de ser humano para além dessas atividades
formação humana plena é o desenvolvi- esportivas e competitivas e de movimen-
mento da dimensão de todo ser humano tos. Dimensões importantes, mas que não
como sujeito cultural, produtor da cultura esgotam o reconhecimento do direito à
e humanizado na cultura. cultura corporal.
Trazer essa dimensão tão radical Há outras dimensões da formação
à formação dos educandos, à cultura cor- humana a exigir ser reconhecidas e trabalha-
pórea ou a saber-se sujeitos de cultura em das no direito à cultura corporal. A cultura
sua condição corpórea é uma contribuição camponesa do trabalho é inerente à cultura
de extrema relevância para o pensamento corporal. Como a cultura machista é ineren-
pedagógico atual tão empobrecido ao te ao culto da força do corpo. O movimento
limitar-se a aprendizagens de domínios feminista traz como um traço afirmativo e
avaliáveis. Nessas políticas de avaliação emancipatório o corpo. Os movimentos
não haverá lugar para a formação cultural e negro e juvenil fazem dos corpos expres-
menos para a avaliação da cultura corpórea sões de sua cultura. Essas outras dimensões
porque não caem na estreiteza de domínios tão centrais das culturas corpóreas não
quantificáveis. merecem fazer parte do reconhecimento
A análise da BNC ficará enriquecida que a Educação Física destaca de sermos
se destacado o direito dos educandos a sujeitos-produtores de culturas corpóreas?
saber-se sujeitos de produção da cultura Haverá lugar na BNC para essa riqueza de
corpórea, se destacado o direito dos educa- dimensões das culturas corpóreas?
dores a conhecerem a especificidade da cul- A Educação Física ao destacar o
tura corpórea na formação cultural e ainda o direito à cultura corpórea levanta uma
seu direito ao domínio das artes de valorizar questão urgente: os seus profissionais se
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reconhecem profissionais da cultura, os escolas conseguirá educar as outras áreas,


currículos de sua formação aprofundam os currículos, a prática pedagógica escolar
na produção cultural e especificamente para reconhecer e trabalhar a plural riqueza
na produção tensa da cultura corpórea, de linguagens dos corpos? Nessa direção
da diversidade de culturas corpóreas? O teríamos de rever que linguagens dos corpos
reconhecimento de que a Educação Física destaca a BNC e as práticas da Educação
e seus profissionais trabalham esse campo Física, que visão destacam dos corpos
tão complexo da produção-segregação de dos educandos. Os aspectos esportivos,
culturas corpóreas é reconhecido nos cur- competitivos, os movimentos não são as
rículos de formação e na BNC? linguagens corpóreas que esgotam o que os
corpos de crianças, adolescentes repõem a
uma pedagogia que se pauta por manter os
Reconhecer as linguagens dos corpos seus corpos imóveis, silenciosos, discipli-
nados. Corpos ideais para pedagogias de
A Educação Física tem chamado a ensino, de transmissão de conteúdos para
atenção do pensamento pedagógico e dos corpos que se quer passivos, atentos ao
currículos para a função profissional de mestre que ensina.
reconhecer, ouvir, interpretar as linguagens A legítima e pedagógica intenção
dos corpos. Uma urgência especial diante da Educação Física de que as linguagens
de uma tradição escolar reducionista a tra- dos corpos sejam reconhecidas e ouvidas
balhar apenas as linguagens letradas. Visão se choca com as pedagogias escolares e
que acompanha nossa história desde as docentes. A BNC reconhece e enfrenta essas
Escolas das primeiras letras e hoje a redução tensões? Essas tensões fazem parte dos tem-
do Ciclo da Infância, 6-7-8 anos e desde o pos de formação continuada nos coletivos
pré-escolar 4-5, a alfabetização na idade profissionais das escolas? Análises críticas,
certa ou a alfabetização na idade incerta, interrogativas e propositivas.
na EJA. Erradicar o analfabetismo vergonha Há uma questão que interroga a
nacional, uma constante em nossa cultura Base Nacional Comum: que reconheci-
política e pedagógica, até no PNE. mento tem da pluralidade das linguagens
Os profissionais da Educação Física corpóreas? Lembrávamos que a ênfase no
tentam o reconhecimento de outras lin- Comum, no Nacional pode levar a pensar
guagens, as linguagens dos corpos. Haverá que existe uma linguagem corpórea única,
lugar no currículo da BNC para o reconhe- comum, nacional a ser trabalhada como
cimento dessas Outras linguagens? A cultura única, comum, nacional. Por aí tem levado
letrada não bloqueará ouvir, valorizar essas a cultura esportiva nacional: “o País do
linguagens dos corpos? As reduzirá a didá- Futebol” ou do Samba, do Carnaval. Uma
ticas de aprender a ler, contar brincando, visão seletiva de linguagens corpóreas como
movimentando seus corpos infantis? Ques- comuns, nacionais seria uma volta aos
tões obrigatórias na análise da BNC e nos tempos de imposição do alto de práticas de
currículos de formação. educação física únicas, militarizadas.
Uma questão obrigatória: a Edu- Dos profissionais de Educação Física
cação Física na BNC e nas práticas das que vêm reagindo a todo reducionismo
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nas linguagens dos corpos poderá vir uma Humanos? Que Outros corpos desde o gri-
crítica ao estilo inerente à BNC: criticar essa to Terra a Vista foram pensados e tratados
pretensão de pensar e impor um currículo como a-margem da Nação, escravizados?
único, nacional, comum e exigir que os Pensados como sub-humanos, sub-cida-
currículos reconheçam e incorporem a dãos? Logo a-margem da colonização, da
pluralidade de linguagens corpóreas que República e da igualdade democrática? À
constitui a diversidade de experiências margem dos currículos?
corpóreas. É simbólica a fotografia do Brasão
O caminho para reconhecer essa da República ainda trabalhada nas esco-
rica diversidade de linguagens corpóreas las: que rostos, que corpos representam a
será reconhecer a diversidade de corpos, República proclamada? Corpos de homens
de sujeitos, de coletivos que são os sujeitos brancos. O slogan: Ordem e Progresso.
de nossa cultura tão plural. Volta a pergun- Essa fotografia poderia ser comparada com
ta mais instigante para a Base Nacional outra mais recente: a fotografia carregada
Comum: de que sujeitos fala? Reconhece de simbolismo da posse ministerial do go-
essa pluralidade de sujeitos, de corpos, de verno “provisório”. São os mesmos corpos
linguagens? Será aconselhável aproximar- da Nação: homens, brancos. Os corpos, o
-nos das artes, reconhecem a centralidade gênero, a raça da Nação. É o mesmo slogan
dos corpos, artes-corpos se inspiraram ao de governo da Nação: Ordem e Progresso.
longo da história. As artes pensam, interpre- Como a nos dizer: esta Nação sempre teve
taram os corpos com maior profundidade e tem donos. São os Corpos da Nação de
do que as ciências. As pinturas rupestres, a homens brancos donos de bens e do bem.
cultura e religiosidade africana, a escultura Não os corpos comuns, do povo comum,
greco-romana, medieval se alimentam dos sem bens e não reconhecidos do bem, nem
corpos. Reconhecem a corporeidade e sua dos corpos da cor, do gênero que continuam
força socializadora, pedagógica. às-margens do poder, da justiça, da renda,
da terra, do agronegócio, do espaço, da
saúde, da educação.
Que Corpos da Nação? Da área da Educação Física vem
essas indagações tão desestruturantes nos
Lembrávamos que da Educação tratos históricos dados aos corpos na forma-
Física vêm indagações fortes à pretensão ção da Nação. Desses lugares – não-lugares
da Base Nacional Comum de impor conhe- ou lugares marginalizados dos corpos ne-
cimentos, processos de aprender, valores, gros, indígenas, camponeses, do trabalho,
culturas, identidades nacionais, comuns, das periferias (que lentamente chegam às
básicos. Pensando especificamente na cul- escolas públicas, à EJA) vêm indagações
tura corpórea, nas linguagens dos corpos, críticas radicais às pretensões da BNC, de
na educação da phisis, da corporeidade impor um Corpo da Nação, uma Cor da
ou identidade corpórea uma indagação se Nação, um Gênero da Nação.
impõe: cabe um paradigma comum, único, Volta a hipótese que nos acompa-
nacional, básico? Que corpos tem sido nha: dos corpos, das vivências sofridas, dos
reconhecidos em nossa história, os Corpos corpos segregados, oprimidos, precariza-
Nação? Os Corpos Cidadãos? Os corpos dos, dos corpos da pobreza, do trabalho...
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tem vindo sempre as indagações mais adolescentes, jovens, de mulheres estupra-


desestruturantes para o pensamento. Até das como as estatísticas e a mídia mostram
para o pensamento político e pedagógico. exaustivamente.
Desses corpos vêm as críticas mais radicais Mas também corpos-infância (ado-
à pretensão de impor uma Base Nacional lescentes, jovens-adultos) resistentes como
Comum Curricular. Da Educação Física membros de corpos coletivos geracionais,
podem, devem vir as análises mais críticas de classe, raça, etnia, gênero, orientação
a essa imposição de uma Cor, um Corpo, sexual. Corpos tão diferentes, tão comuns
um Gênero da nação como Único, Comum, e tão resistentes que não cabem na foto
Nacional. Os corpos – não reconhecidos – nem do Brasão da República, nem na foto
corpos de trabalho, reagem se mostrando de posse ministerial da nova-velha Ordem
Outros corpos, também da Nação em e Progresso. Corpos que resistem em lutas
marchas, cultos-afro. Até corpos infantis contra essa Ordem e Progresso Nacional
sobrevivendo nas ruas e caminhando para que os explora e oprime. Que os extermina
porque fora da ordem. Que possibilidades
as escolas, “Brasil, mostra sua Cara”. Reco-
e que limites de construir identidades
nhece outros rostos, outros corpos para se
humanas positivas são possíveis nesses
reconhecer diverso e não teimar em impor
corpos precarizados-resistentes aos quais a
um único Corpo-Rosto-Cor da Nação.
BNC impõe currículos a aprender, como os
Tensões históricas que vêm de longe. Tem
saberes, os valores, as culturas Comuns da
sentido teimar em não reconhecê-las e im-
Nação? (Arroyo e Silva, 2012a).
por um Corpo-Cor único da Nação? Tem Os textos insistem na urgência
sentido impor uma Base Nacional Comum? de entender os exercícios tensos de ser
crianças-adolescentes a que esses corpos
precarizados, violentados são submetidos.
Mostrar os Corpos reais da Nação
Tensos exercícios de formar suas identida-
des-culturas corpóreas. Tensos exercícios de
A contribuição riquíssima dos
ir se constituindo como humanos quando
profissionais da Educação Física para uma
a humanidade de seus corpos lhes é rou-
leitura crítica e propositiva da BNC pode e bada. Mas também complexos exercícios
deve passar por mostrar os corpos reais da de resistências até violenta por recuperar
Nação. O grupo de profissionais da área a humanidade que a sociedade lhes rouba.
que contribuiu aos livros “Corpo-Infância” Desses corpos resistentes vêm o apelo à Pe-
e “Trabalho-Infância” mostra com análises dagogia, à Educação Física, aos Currículos
aprofundadas os corpos reais da Nação, que por outras pedagogias dos corpos. Por outra
chegam das periferias, dos campos, das flo- Base Nacional Comum.
restas, dos territórios indígenas, quilombo-
las... às escolas. Corpos precarizados, uma
realidade com que tantos/as educadores/as Corpos precocemente explorados pelo
e os próprios educandos/as se defrontam: trabalho
as experiências cruéis de viver em corpos
violentados, oprimidos, consumidos na Ainda uma pergunta para aproxi-
exploração sexual, não só de crianças, de mar-nos com um olhar crítico-propositivo
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para a BNC como profissionais que traba- valores, identidades, culturas de corpos,
lham as culturas, identidades corpóreas: de trabalho aprendem nessas experiências
haverá lugar nos Currículos da BNC para extremas precoces e pela vida afora? Esses
os Corpos-Trabalho? As crianças, adoles- saberes, culturas corpóreas, identidades,
centes, jovens-adultos em seus itinerários valores serão reconhecidos no trabalho
para a escola pública, para a EJA são vidas- dos corpos na Educação Física? E na BNC?
-corpos marcados pelo trabalho. Trazem as Há estudos que enfatizam que o
marcas do trabalho. De que trabalhos vêm trabalho é princípio educativo, humaniza,
para a escola, para a EJA e a que trabalhos mas esses corpos-trabalho chegam com
voltam? A história desses corpos se mistura marcas profundamente desumanizantes.
com o trabalho. Traz as marcas até físicas, Corpo-vivências de exploração do traba-
tatuadas pelo trabalho, por acidentes de lho desde a infância não humanizam, não
trabalho. Pela exploração do trabalho desde constroem uma cultura, uma identidade
a infância. corpóreas humanizadoras. A BNC do MEC
Aos profissionais da cultura cor- reconhece esses processos humanizadores-
pórea cabe questionar com que olhar ver -desumanizadores como conteúdos do
esses Corpos-Trabalho e com que olhares currículo nacional?
interrogantes nos olham. Não são os corpos Que lições tirar? Deixar que esses
brancos, sadios da foto da posse do minis- Corpos-Trabalho humanizem os estudos e
tério nem do Brasão da República, nem as práticas pedagógicas e especificamente
da Revista Caras. São corpos-trabalho de da Educação Física. Que eduquem, huma-
crianças, passageiros nas ruas durante o dia nizem a Base Nacional Comum. No livro
à procura da sobrevivência. São corpos de “Trabalho-Infância – exercícios tensos de
adolescentes, jovens e adultos Passageiros ser criança. Haverá espaço na agenda pe-
da Noite do trabalho para a EJA.2 dagógica”, 20 trabalhos em sua maioria de
Aceitando que esses Corpos-Tra- profissionais da Educação Física se pergun-
balho nos interrogam e interrogam os tam se haverá lugar para o trabalho na agen-
currículos da BNC, que interrogações da pedagógica. Aprofundam sobre vidas
trazem? Vidas marcadas por trabalhos de marcadas pela exploração do trabalho, pelas
sobrevivência, trabalhos para sobreviver diversas faces da exploração do trabalho,
em corpos-vidas na pobreza extrema (18 pela diversidade de corpos-trabalho, por
milhões nas escolas públicas na pobreza outras linguagens desses corpos-trabalho
extrema e mais 10 milhões na pobreza não (Arroyo, Viella e Silva, 2015b).
extrema obrigados a frequentar a escola Uma forma de aprofundar sobre
para sobreviver). esses Corpos-Trabalho será trazer para os
Corpos-Trabalho resistentes com cursos de formação e para os currículos
suas famílias de trabalhadores empobre- de Educação Física estudos, trabalhos das
cidos, aos padrões classistas, sexistas, ra- áreas das artes, do cinema, da pintura,
cistas do trabalho capitalista. Que saberes, da fotografia que trazem corpos-infância,

2 Arroyo, M. Passageiros da Noite – do Trabalho para a EJA. Itinerários pelo direito a uma vida justa. Petrópolis:
Vozes (no prelo).
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corpos-trabalho. As fotografias de Sebastião corpórea nos currículos. Aproximar-nos


Salgado sobre os trabalhadores do campo desde esse olhar da BNC será um olhar
ou sobre Infância no Êxodo. Trazer filmes interrogante. Reconhecemos que somos
sobre corpos de crianças, adolescentes na corpóreos, que habitamos os espaços
sobrevivência nas ruas. Trazer a literatura dos corpos. Mas que espaços habitam os
narrando seu sobreviver nas cidades, nas corpos? Nem todos os corpos habitam os
praias. Capitães de Areia de Jorge Amado. mesmos espaços da Nação. Nem sequer os
No livro citado Corpo-Infância a Parte V mesmos espaços da cidade e dos campos,
destaca Outras Linguagens, outras imagens, nem os mesmos espaços do sistema esco-
outras estéticas sobre o trabalho infanto- lar. O corpos dos educandos das escolas
-juvenil. Traz fotografias, poesias, gravuras, públicas das periferias, dos campos, dos
que buscam outras formas de ver e de traba- territórios indígenas, quilombolas não são
lhar as vivências dos Corpos-Trabalho. Será os mesmos dos corpos que habitam as es-
pedagógico trazer a história dos corpos nas colas privadas. “O Corpo que Habito”, um
artes, nas pinturas de Portinari, de Goya, de sugestivo filme de Almodóvar.
Picasso. Corpos desfigurados. Interrogantes. A construção da cultura corpórea,
Lembrávamos que a Educação Física das identidades corpóreas é inseparável
tem trazido ao pensamento pedagógico dos corpos que habitamos e dos lugares
as linguagens corpóreas, linguagens que que os corpos habitam, questões, vivências
vão além dos movimentos, do esporte das processos de construção de identidades
aventuras e nos levam à riqueza de lingua- individuais e coletivas que transpassam
gens dos Corpos-Trabalho. As formas de nossa história, nossa cultura, nossas identi-
trabalhá-las são múltiplas, músicas, poemas, dades espaciais. Os milhões de imigrantes
poesias, jogos, filmes, vídeos, desenhos... neste país, os retirantes expostos com tanta
Uma riqueza de material didático para força dramática nas pinturas de Portinari
que não apenas a Educação Física, mas os ou na música de Gonzaga ou em obras
currículos na diversidade das áreas e de como “Vidas Secas” ou “Morte e Vida
práticas formadoras trabalhem o direito Severina”. Que identidades, que culturas
dos educandos a conhecer-se corpóreos, espaço-corpóreas refletem? Corpos esquá-
sujeitos de culturas corpóreas. Avançando lidos, pés desfigurados de tanto percorrer
na compreensão dessa riqueza cultural- caminhos de abrir estradas, à procura de ou-
-corpórea será possível uma aproximação tro lugar por um menos indigno sobreviver.
crítica da BNC: ignora essa riqueza ou a Sem aprofundar nos processos de
incorpora? desterritorialização dos corpos de milhões
de imigrantes não há como entender a espe-
cífica construção da cultura corpórea em nos-
Que espaços habitam os Corpos? sa história. As pedagogias ou antipedagogias
de destruir identidades corpóreas positivas
Nos acompanha a hipótese de nos subalternizados e oprimidos desterrados
que a Educação Física e seus profissionais da terra passam por desenraizá-los, de seu
reeducam o olhar do pensamento pedagó- chão. As pedagogias, antipedagogias de
gico para reconhecer os corpos, a cultura destruir suas culturas coletivas de raça,
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etnia, trabalho, terra, lugar passaram em outros corpos de mãe-mulher, negras em


nossa história por desterritorializá-los. Que sua maioria. Como vê-los, reconhecê-los,
identidades, culturas espaciais-corpóreas tratá-los? Como são vistos na Educação
são possíveis? Física e no currículo da BNC? Como pré-es-
Construímos nossas identidades, colares e pré-letrandos? São reconhecidos
nossas culturas enraizadas no chão de nosso corpos-infância-adolescência? Construindo-
lugar ao ser desenraizadas nossas culturas, -se em que espaços?
até corpóreas, perdem o chão que as ali- Milhões de corpos infantis e adoles-
mentava. Corpos de retirantes são culturas centes se afirmam explorando, dominando
corpóreas desenraizadas. Como aprofundar os espaços precarizados que habitam.
nesses processos na Educação Física, no tra- A formação das identidades corpóreas é
balho com as culturas corpóreas? Diante de inseparável da relação com os espaços
processos tão brutais de desenraizamento de moradia, de trabalho, de jogos de
que fazem parte de nossa história, cultura, convivência e socialização. A Educação
relações sociais e políticas nacionais, somos Física tem destacado essas relações. Como
obrigados a perguntar se a Base Nacional profissionais dessas relações tão estreitas
as incorporará como constituintes de nossos e conflitivas entre corpo-espaços somos
currículos, saberes nacionais? obrigados a aprender com Milton Santos.
As artes, o cinema, a literatura insis- Quando esses espaços desenraizam, segre-
tiram em que esse é um traço nacional, logo gam, precarizam os corpos que identidades
seria de esperar que a intenção de construir são possíveis? Positivas ou negativas?
um Currículo Nacional incorporasse esse Os milhões de deslocados do seu
e outros traços de nossa história-cultura espaço, retirantes à procura de outros es-
Nacional. Volta a hipótese que nos acom- paços, maltratados como crianças de rua,
panha: dos corpos vêm as indagações mais nas vilas, favelas, como estranhos, estran-
desestabilizadoras para o pensamento, para geiros nas cidades e no campo ocupado
a pedagogia, para a docência. Para a Base pelo agronegócio. Que identidades, de
Nacional Comum. que cultura corpórea poderão ser sujeitos?
As resistências a reconhecê-los sujeitos do
direito à cidade, aos espaços da agricultura
Que espaços das cidades, dos campos camponesa e a cultura pública urbana e es-
habitam os corpos-infância? colar que identidades, que cultura espacial
e escolar produz neles? Às escolas, à EJA
A Pedagogia incorpora em sua levam essas marcas tensas de vivências de
identidade, até no nome, a infância. Mas estrangeiros na cidade, na terra e até nas
nem todas as infâncias foram incorporadas escolas, como trabalhar essas vivências e
no pensamento e nas práticas pedagógicas. essas marcas da relação corpos-espaços?
Só recentemente as crianças a partir de 4 Desde crianças se sabem em es-
anos tem direito à educação. Aos Centros paços segregados, convivem com outros
de Educação na Infância chegam crianças corpos de crianças, adolescentes, jovens e
pobres, negras, das periferias e dos campos. adultos em espaços segregados de moradia,
Outros Corpos-Infância carregados por de rua, de trabalho, de ocupação de suas
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terras, de transporte e até de escolas segre- jovens-adultos chegam às escolas públicas


gadas. Se ao menos nas aulas, na Educação e à EJA vítimas desse apartheid social, espa-
Física, no Currículo da BNC aprendessem a cial. Logo, somos obrigados a perguntar-nos
saber mais sobre as relações de poder, de que construção de valores, de identidades
classe, de raça que segregam seus corpos e e de culturas espaciais-corpóreas é possí-
os corpos dos seus a esses espaços merece- vel como vítimas desse apartheid. Somos
ria ir à escola, voltar à EJA. Uma pista para obrigados a interrogar aos outorgantes da
uma aproximação crítica-propositiva dos BNC se essa realidade vivida e sofrida por
currículos e especificamente do Currículo milhões de educandos será reconhecida
da Base Nacional Comum. como Comum, Nacional a exigir centrali-
Se essas vivências desde a infância- dade na BNC.
-adolescência tão tensas e complexas Para avançar em indagações tão ra-
dos corpos-espaço são tão Nacionais, tão dicais podemos aproximar-nos dos estudos
Comuns no viver do povo Comum será de de Milton Santos a quem somos devedores
esperar que um Currículo Nacional Comum de tantas análises sobre cultura e espaço.
as contemple com toda prioridade. As reco- Vê o espaço como palco de disputas. Não
nhece? Uma pergunta obrigatória para uma tem uma visão pacífica, cordial do espaço,
análise crítica da BNC. mas disputado pela força dos diversos gru-
pos sociais.
Milton (2002) destaca um ponto
De que cultura corpórea-espacial estamos que toca em cheio no nosso tema: nos fala
falando? “da força do lugar”. As vivências do lugar
são a base da vida comum, das relações
Boaventura de Sousa Santos (2006) sociais determinantes das identidades
nos pode ajudar a aprofundar sobre essa espaço-corpóreas. A cidade grande é para
relação corpo-espaço-cultura corpórea- Milton Santos o espaço onde os fracos
-espacial. O autor fala-nos de uma forma podem subsistir. Onde buscam sobreviver
de fascismo ou de “apartheid social, por multidões de pobres expulsos do campo (p.
meio de uma cartografia urbana dividida 322). Por aí nos repõe a tensa e complexa
em zonas selvagens e zonas civilizadas, que relação entre corpo-espaço de milhões, de
está a transformar-se em um critério geral multidões de pobres expulsos do campo,
de sociabilidade. Este fascismo social opera desenraizados à procura de um lugar que
como um regime civilizacional” (p. 333). O não os reconhece, que os vê e trata como
espaço do viver-sobreviver como formador- estrangeiros. Marginais.
-deformador. As vivências dos corpos sobre- Quem são esses milhões de viti-
viventes nessas zonas do apartheid como mados carregando corpos desenraizados
civilizatórias de que identidades, de que de seu lugar, retirantes à procura de Outro
valores? De que culturas corpóreas? Diante lugar? Na cultura popular, no artesanato
desse apartheid social-espacial-corpóreo de popular nordestino e do norte são corpos
que culturas estamos falando? esquálidos de adultos na frente do cortejo
Somos obrigados a reconhecer que seguidos de jovens, de crianças e os corpos
milhões de crianças, adolescentes e até maternos como que protegendo os corpos
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retirantes infantis. Imagens fortes nos Reti- que significados antiéticos, antipolíticos e
rantes de Portinari. Destinados a ser corpos antipedagógicos tem teimar em não reco-
desenraizados de crianças-adolescentes nas nhecer essa diversidade espaço-cultural e
ruas das cidades. tentar impor uma cultura única, nacional
Milton Santos leva essa realidade tão como hegemônica.
Nacional e essas questões para o campo da
cultura. Na cidade convivem, se tencionam
culturas, valores, saberes do espaço e dos Duplas culturas-vivências do corpo-
corpos. Como ver esse convívio de cultu- -espaço?
ras espaço-corpóreas? O espaço moderno,
Volta a pergunta de Milton Santos:
de corpos sadios “luminosos” e as zonas
de que cultura estamos falando? O mesmo
“opacas” onde sobrevivem os pobres? A ten-
autor dedica umas páginas aos migrantes no
dência dos estudos do espaço nos currículos
lugar: “Da Memória à Descoberta” (2006,
escolares é ver as zonas dos pobres como p. 327). Nos lembra que nas grandes cida-
opacas. Milton reage a ver as zonas dos des milhões de migrantes buscam um novo
pobres como opacas, sem luminosidades, lugar, sem ter-se deslocado do seu lugar de
as reconhece como espaços de convívios e origem. Que identidades, valores, saberes,
criatividade. De outros valores, outras iden- culturas espaço-corpóreas são passíveis
tidades, outras culturas corpóreas, espaciais. nessas duplas vivências?
Há apenas uma cultura espacial-corpórea Milton nos lembra que “o sujeito
Nacional, Comum? no lugar estava submetido a uma vivência
Por aí Milton nos interroga: quando longa e repetitiva com os mesmos objetos,
falamos em cultura, especificamente em os mesmos trajetos, as mesmas imagens de
cultura espaço-corporal “de que cultura cuja construção participava: uma familiari-
estamos falando? Da cultura popular pro- dade que era fruto de uma história própria
funda que se nutre de homem”? (p. 327). da sociedade local e do lugar onde cada
indivíduo era ativo. Os homens mudam de
Será dessa cultura corpórea de que falam
lugar... Daí a ideia da desterritorialização:
os Currículos de Educação Física na BNC?
Desterritorialização é uma outra palavra a
Os corpos-espaço reais dos Outros,
significar estranhamento que é, também,
dos pobres da Nação desestruturam con- desculturalização” (p. 328).
cepções únicas, nacionais de cultura, de Essas análises tão penetrantes da
conhecimento do currículo. Desestruturam construção dupla de culturas-vivências
ingênuas políticas, diretrizes curriculares que do espaço-corpo tem sido reconhecidas
tentam desde a colonização e a República nos currículos da Educação Física e es-
e persistem na democracia em impor por pecificamente no Currículo da BNC? De
decreto uma única cultura, um único co- estudos como os de Milton Santos chegam
nhecimento, uma identidade nacional única. indagações sobre como entender, trabalhar
A todos como profissionais da cul- e incorporar nos Currículos, na BNC pro-
tura, do conhecimento, mas de maneira cessos tão tensos e diversos de produção
especial aos profissionais da Educação de identidades corpóreas-espaciais nas
Física – da cultura-corpórea cabe trazer vivências tão tensas de desterritorialização,
para o debate político, ético, pedagógico estranhamento, de desculturização vividos
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por milhões de emigrantes e de crianças, reducionismo de domínios de habilidades,


adolescentes que chegam às escolas.3 aprendizagens de conteúdos avaliáveis.
Milton Santos nos adverte: “Vir para Ser profissional da Educação Física exige
a cidade grande é, certamente, deixar atrás assumir a identidade educadora da área
uma cultura herdada para se encontrar com e dos seus profissionais. Dessa identidade
uma outra. Quando o homem se defronta educadora chegam indagações à BNCC, tão
com um espaço que não ajudou a criar, centrada em ensinar apenas e tão distante da
cuja história desconhece, cuja memória função Constitucional de formação humana
lhe é estranha, esse lugar é sede de uma plena. Haverá lugar par a função educadora
vigorosa alienação. Para os migrantes a inerente à Educação Física na estreiteza da
memória é inútil. Trazem consigo um ca-
BNC que opta por reduzir o direito à edu-
bedal de lembranças e experiências criado
cação apenas ao direito a aprendizagens?
em função de outro meio... precisam criar
A resposta da Educação Física e de suas
uma terceira via de entendimento da cidade.
análises da BNC deverá avançar reafirman-
Suas experiência vividas ficaram para trás,
do o direito à educação entendida como
a nova residência obriga a novas experiên-
cias. Trata-se de um embate entre o tempo formação humana plena: intelectual, ética,
da ação e o tempo da memória (p. 328). cultural, corpórea. Concepção que faz parte
Análises lúcidas das duplas culturas- da Educação Física e das identidades dos
-vivências do corpo-espaço! Análises que seus profissionais.
nos instigam a uma crítica radical dos Que dimensões específicas trazer
currículos oficiais, da BNC e dos cursos para uma análise crítico-propositiva para
de formação docente: tem ficado abertos a a BNC? Afirmar que as crianças, os ado-
essas análises na compreensão tão tensa das lescentes, os jovens-adultos se formam e
duplas culturas-vivências espaço-corpóreas exigem ser pensados e formados como
com que se debatem a maioria das crianças, Totalidades Humanas Corpóreas.4 Que di-
dos adolescentes, jovens-adultos que dis- mensões destacar? Ver o ser humano como
putam o direito a entender-se nas escolas totalidade; reconhecer nos educandos tota-
públicas e na EJA? lidades humanas corpóreas; destacar o peso
humanizador-desumanizador das vivências
dos corpos; avançar nas artes de reconhecer
Currículos formadores de Totalidades e trabalhar os educandos como totalidades
Humanas Corpóreas humanas corpóreas, sobretudo quando os
corpos são precarizados, segregados. Apro-
Dessa tensa construção de identida- fundar sobre os limites de humanização.
des corpóreas-espaciais chega à Educação Quando são forçados a tensas vivências de
Física uma reafirmação de sua função desterritorialização-desculturização como
social-pedagógica: Educar. Não ensinar no fora de lugar.

3 Trabalho esses processos de desterritorialização-desculturização no livro “Outros Sujeitos, Outras Pedagogias”,


Petrópolis: Vozes, 2012b.
4 Trabalho essa concepção dos educandos e educadores como Totalidades Humanas Corpóreas e Por Outras
Pedagogias dos Corpos, no livro “Corpo-Infância”, Petrópolis: Vozes, 2012, e no livro “Passageiros da noite –
do trabalho para a EJA”, Vozes (no prelo).
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Voltando a Milton Santos ele aponta -afirmação. “Ao contrário do que se deseja
perspectivas. Nos lembra que as vivências acreditar, quanto mais inserido o indivíduo
do novo lugar, ou de segregados no novo lu- (pobre, minoritário, migrante...) mais fácil o
gar podem operar como detonador de uma choque da novidade o atinge e a descoberta
nova cultura, novos valores, novos saberes, de um novo saber lhe é mais fácil. O homem
novas identidades espaço-corpóreas. Milton de fora é portador de uma memória, espécie
recomenda que o novo tempo-lugar deverá de consciência congelada provinda com ele
ser trabalhado como matriz de um processo de outro lugar. O lugar novo o obriga a um
novo aprendizado e a uma nova formula-
intelectual, cultural, identitário novo. Nova
ção... O espaço é um dado fundamental
territorialidade, nova cultura mudando o ho-
nessa descoberta... Quanto mais instável
mem. “Quando essa síntese é percebida, o
e surpreendedor for o espaço, tanto mais
processo de alienação vai cedendo lugar ao
surpreendido será o indivíduo, e tanto mais
processo de integração e de entendimento
eficaz a operação da descoberta”... (p. 330).
e o indivíduo recupera a parte do seu ser
que parecia perdida” (p. 329).
Não é essa a pedagogia de desa- REFERÊNCIAS
lienação, de humanização, culturização,
afirmação do direito a um digno, justo ARROYO, M. A Base Nacional Comum em
viver por que os coletivos populares lutam disputa: o que está em disputa? APASE,
jogados às margens, nos campos, nos ter- São Paulo, 2016.
ritórios, nas cidades? Um traço marcante ARROYO, M. Para uma releitura do
na diversidade desses coletivos sociais, PNE a partir da diversidade: questões
étnicos, raciais, camponeses, sem-terra, pendentes. In: Educação e Diversidade:
sem-teto, sem-renda é afirmar seus corpos Justiça social, inclusão e direitos
resistentes em movimentos de emancipa- humanos.1 ed. Curitiba: Editora e
ção-humanização. Haverá lugar na BNC Livraria Appris, 2015a, p. 15-64.
para o reconhecimento desses processos ARROYO, M.; VIELLA, M. A. L.; SILVA, M.
afirmativos, humanizadores, pedagógicos R. (Orgs.). Trabalho-Infância: Exercícios
Tensos de ser Criança. Haverá Espaço
que vem de longe na nossa construção
na Agenda Pedagógica? Petrópolis:
tensa como nação? Se os coletivos sociais,
Vozes, 2015b.
étnicos, raciais insistem em afirmar-se não à
ARROYO, M. O humano é viável? É
margem, mas na Base da Nação, sujeitos de educável? Revista Pedagógica
saberes, valores, identidades constituintes (Unochapecó), v.17, p.21-40, 2015c.
da Nação serão reconhecidos na proposta ARROYO, M. O direito à educação e a
da Base Nacional Comum Curricular? nova segregação social e racial – tempos
Milton Santos nos responde com um insatisfatórios? Educação em Revista,
otimismo não romântico, mas realista: Há Belo Horizonte, v. 31, n. 3, p. 15-47,
uma cultura espaço-corpórea, há identida- jul./set. 2015d.
des, valores em construção que pressionam ARROYO, M.; SILVA, M. R. (Orgs.) Corpo-
por reconhecimento como componentes de Infância: Exercícios tensos de ser
todo projeto de educação. Há outras totali- criança; Por outras pedagogias dos
dades humanas corpóreas em construção- corpos. Petrópolis: Vozes, 2012a.
V. 28, n° 48, setembro/2016 31

ARROYO, M. Outros sujeitos, outras SANTOS, M. A natureza do espaço. Técnica


pedagogias. Petrópolis: Vozes, 2012b. e tempo, razão e emoção. São Paulo:
SANTOS, B. S.; MENEZES, M. P. (Orgs.). EDUSP, 2002.
Epistemologias do Sul. São Paulo: WAISELFISZ, J. J. Mapa da Violência: Os
Cortez, 2010. jovens no Brasil. Rio de Janeiro: Flacso-
SANTOS, B. S. A gramática do tempo: por Brasil, 2014.
uma nova cultura política. São Paulo:
Cortez, 2006

Cuerpos resistentes productores de culturas corporales. ¿Habrá lugar


en la Base Nacional Comum?

RESUMEN

El texto reflexiona acerca de la Base Nacional Comum Curricular, teniendo como


objetivo profundizar sobre el análisis de los significados éticos-políticos de sus
presupuestos. En ese sentido, trata el lugar de los cuerpos reales, de educadores y
educandos, productores de culturas corporales, en la definición dentro documento
del componente de la Educación Física. Para ello, el texto propone una pregunta más
directa: ¿qué embates provoca la BNCC en la Educación Física, en los conocimientos
y el trabajo de sus profesionales?

Palabras clave: currículo; Base Nacional Comum Curricular; trabajo docente; cultura
corporal

Resilient bodies as developers of body culture. Is there a place in the


National curricula base?

ABSTRACT

This text discusses the National Curricula Base, aiming at further investigating the
analysis of its ethical-political meanings. Bearing this in mind, the text discusses the
place of actual bodies, of teachers and students, producers of body culture, as of the
definition specified by the document concerning Physical Education. For this purpose,
the text aims at answering the following question: Which confrontation the National
Curricula Base entails on the Physical Education filed, its contents and on the daily
work of its professionals?

Keywords: curriculum; National Curricula Base; teaching; body culture

Recebido em: junho/2016


Aprovado em: agosto/2016

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