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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA -UFBA

EDUCAÇÃO I
EDCA01 - FUNDAMENTOS PSICOLÓGICOS DA
EDUCAÇÃO
Prof.º Lygia de Sousa Viegas
Graduação em Geografia
João Carlos Cavalcante Sousa

Análise crítica do
PROJETO ‘ESCOLA SEM PARTIDO’

Consta no Projeto de Lei n° 2974/2014, de autoria do deputado Flavio


Bolsonaro:

Art. 2º. É vedada a prática da doutrinação política e ideológica em sala de aula, bem
como a veiculação, em disciplina obrigatória, de conteúdos que possam estar em
conflito com as convicções religiosas ou morais dos estudantes ou de seus pais.

Ou no Projeto de Lei n° 193/2016, apresentado ao Congresso Nacional, em


seu Art. 5°:

V - respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a
educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções;

Tal qual no PL n° 7.081/2014, apensado ao PL 7.080/2014, que também


visa-se legislar sob as perspectivas do movimento Escola Sem Partido:

Art. 1° A educação escolar, promovida em instituições de ensino básico, será


orientada por parâmetros curriculares nacionais, estabelecidos em lei e com
vigência decenal.

§ 1º Os parâmetros curriculares nacionais respeitarão as convicções dos alunos, de


seus pais ou responsáveis, tendo os valores de ordem familiar precedência sobre a
educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa,
vedada a transversalidade ou técnicas subliminares no ensino desses temas.
Segundo a BBC News (2018), um ranking publicado pela Organização para
a Cooperação de Desenvolvimento Econômico (OCDE) no estudo Políticas Eficazes
para Professores: Compreensão do Pisa, mostrou que o Brasil possui um dos maiores
números de alunos por sala de aula no ensino médio. “De acordo com o documento,
as escolas públicas do Brasil têm 37 alunos por sala de aula no primeiro ano do ensino
médio e têm também um dos números mais elevados de alunos por professor, 22.”

Como individualizar os conteúdos aplicados em uma sala com 37 alunos,


de raça, gênero, religião, entre outros recortes sociais, diferentes? Como excluir a
subjetividade e a pluralidade de uma sala de aula? É, em síntese, o que propõe o
projeto Escola sem Partido. É a descaracterização do ambiente escolar, para atender
uma demanda de uma pequena (porém, barulhenta) parcela da sociedade, que
acredita em doutrinação, em suas próprias palavras: “contaminação político-
ideológica” (Escola Sem Partido, 2018).

Art. 4º. Os conteúdos morais dos programas das disciplinas obrigatórias deverão
ser reduzidos ao mínimo indispensável para que a escola possa cumprir sua função
essencial de transmitir conhecimento aos estudantes (PL 2974/2014).

Para além de todos os equívocos abordados nesses PL, e em outros


documentos que fundamentam o ESP, um dos principais é colocar a escola dentro de
uma caixa, atribuindo-lhe, praticamente, uma única função: “transmitir conhecimento
aos estudantes.”. Aparenta-se um retorno as premissas da pedagogia tradicional,
onde há um ensino hierarquizado e verticalizado, no qual o aluno é educado para
seguir atentamente a exposição do professor (VEIGA, 2005, p. 35), uma vez que “na
visão do mundo tradicional, as escolas são simplesmente locais de instrução”
(GIROUX, 1997, p.148, apud MARTINS, s.d.). Quando, na verdade, a escola, como
promotora da educação, é espaço de garantia de direitos. Exerce também função
social, participando na formação da compreensão da realidade e de participação em
relações sociais, políticas e culturais diversificadas, propiciando, assim, condições
para o exercício da cidadania (BRASIL, 1997).

No site do Movimento Escola Sem partido consta um texto intitulado


“Flagrando o doutrinador”, que, transcrevendo Penna (2016):

[...] nada mais é do que uma lista de práticas características de ação do “professor
doutrinador” às quais os alunos devem ficar atentos para que possam denunciá-lo
anonimamente. A lista possui 17 itens, mas o primeiro deles talvez seja o mais
significativo:
Você pode estar sendo vítima de doutrinação ideológica quando seu professor:
- se desvia freqüentemente da matéria objeto da disciplina para assuntos
relacionados ao noticiário político ou internacional;

Resgatemos, mais uma vez, o que se encontra nos Parâmetros


Curriculares Nacionais - PCN (1997) “Se a escola pretende estar em consonância com
as demandas atuais da sociedade, é necessário que trate de questões que interferem
na vida dos alunos e com as quais se veem confrontados no seu dia-a-dia.” Os
Parâmetros Curriculares Nacionais, constituem diretrizes que foram elaboradas para
orientar os educadores por meio da normatização de alguns aspectos fundamentais
referentes a cada disciplina, como bem afirmado por Carvalho e col. (2018):

Os Parâmetros Curriculares Nacionais são uma coletânea de documentos criados


pelo Ministério da Educação para orientar as instituições escolares no que concerne
os conteúdos principais que devem ser trabalhados nas mais diversas áreas do
conhecimento, com o intuito de subsidiar os professores e melhorar as suas práticas
pedagógicas; onde os conteúdos escolares devem ser trabalhados de forma
contextualizada e não com a simples transmissão dos conhecimentos, prática essa
oriunda da escola tradicional.

Como não irão os professores adentrar em assuntos atuais, do noticiário


político ou internacional, quando nos próprios documentos que subsidiam a educação
escolar há indicação de o fazer? Ora, como irão, a exemplo, os professores de
geografia abordar “Os problemas socioambientais e econômicos (...) podem ser
abordados a fim de promover um estudo mais amplo de questões sociais,
econômicas, políticas e ambientais relevantes na atualidade.” (BRASIL, 1998), sem
levar para a sala de aula recortes do noticiário? Ademais, o processo de educação se
desenvolve também afora da escola, acontece dentro da família e da comunidade,
que são espaços que compõe a sociedade.

Penna (2018) afirma que é um discurso autoritário, que limita o debate, pois
defendem que o legislador já determinou qual é a função da escola, portanto não cabe
aos professores e à comunidade escolar debater sobre sua função, acrescido de um
viés antidemocrático, visto que colocam como inimigos aqueles que são contrários a
determinada proposta, portanto, devem ser excluídos do debate.
Se faz necessário resgatar as origens do movimento ESP, que nasce com
Miguel Nagib em 2004, ao se revoltar com uma comparação feita pelo professor de
história de sua filha. Nagib, é associado a movimentos neoliberais. No entanto, o
programa ganhou força somente em 2014, com o já citado PL 7180/2014, passando
a ser difundido em várias esferas do poder administrativo (Ciência Hoje, 2018).

A partidarização da EsP evidencia-se também através da forte associação com


políticos e partidos tipo Izalci Lucas, deputado federal do PSDB, autor de projeto de
lei que visa incluir o EsP na LDBEN; Rogério Marinho, deputado federal do PSDB,
autor de projeto de lei que criminaliza o ‘assédio ideológico’ (PL 1.411/2015);
Dorinha Seabra Rezende, deputado federal do DEM; Jair Bolsonaro, deputado
federal do PSC, e seus filhos Carlos Bolsonaro, vereador do PSC/RJ, autor de
projeto de lei que visa incluir o EsP na educação do seu município (PL 867/2014), e
Flávio Bolsonaro, deputado estadual PSC/RJ, autor de projeto de lei semelhante
para o estado do Rio de Janeiro; Erivelton Santana do PSC; Antônio Carlos M. de
Bulhões do PRB; Marcos Feliciano, deputado federal do PSC; Magno Malta,
senador do PR, autor de projeto de lei de teor semelhante ao PL 867/2015 no
Senado (PL 139/2016); Marcel Van Hattem, deputado estadual do PPB/RS, que
propôs projeto de lei (PL 190/2015) visando instituir no sistema educacional gaúcho
o “programa Escola sem Partido”. Tais são as expressões políticas e legislativas da
EsP, que falam eloquentemente por si mesmas (SOUSA, 2017).

Evidencia-se, ao referenciar os autores do movimento Escola Sem Partido,


o caráter conservador do programa. Fernandes e Ferreira (2021) resgata Botelho e
Ferreira (2012) para afirmar que os valores comuns dos conservadores estão
relacionados à importância atribuída à religião, a valorização das instituições
intermediárias entre o Estado e os indivíduos (como família, corporação, entre outros),
portanto:

A perspectiva educacional proposta pelo movimento Escola sem Partido e o


conservadorismo professado tanto por religiosos quanto por movimentos
autoritários cujo apelo à instrumentalização da religião consubstancia o rechaço ao
debate sobre gênero e sexualidade na escola (MOURA E SILVA, 2023).

Assim sendo, não passa o programa Escola Sem Partido de um movimento


fundamentalista político-religioso para excluir de dentro da escola os assuntos que
seus apoiadores tomam como ideologia doutrinadora, tal qual “ideologia de gênero”,
colocando o professor como promotor dessa doutrinação e o enquadrando como
criminoso, pois incentivam a denúncia:
O site do movimento instrui os alunos sobre como produzir evidências contra os
professores e oferece um modelo de notificação extrajudicial anônima com apenas
algumas lacunas para preencher (ESCOLA SEM PARTIDO, 2018)³.

³ ESCOLA SEM PARTIDO. Modelo de notificação extrajudicial: arma das famílias


contra a doutrinação nas escolas (PENNA, 2018).

Ainda, de acordo com Coimbra e Sousa (2020):

O que é confundido com simples “doutrinação” é, na verdade, a forma, inerente à


educação, de construção do caráter, da personalidade, dos sentidos, da percepção,
ou seja, de construção do sujeito, como ser autônomo e emancipado, por meio dos
“instrumentos culturais”, que, resta dizer, também são produtos das relações
objetivas que os conformam.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais, Introdução. Ensino Fundamental.


Brasília, DF: MEC/SEF, 1997.

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COIMBRA, L. J. P.; SOUSA, A. P. R. de. Conservadorismo e (neo)positivismo na


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MOURA, F. P. DE. Escola Sem Partido: origens e ideologias. Ciência Hoje, nov. 2018.
Disponível em: https://cienciahoje.org.br/artigo/escola-sem-partido-origens-e-
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PENNA, F. de A. Programa “Escola Sem Partido”: Uma Ameaça à Educação


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Narrativas do Rio de Janeiro nas aulas de história. 1. ed. Rio de Janeiro: Mauad X,
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PENNA, F. de A. O discurso reacionário de defesa do projeto “Escola sem Partido”:


analisando o caráter antipolítico e antidemocrático. Quaestio - Revista de Estudos em
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SOUSA, J. DE .. Escola ‘sem’ partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade


brasileira. Trabalho, Educação e Saúde, v. 15, n. 3, p. 953–956, set. 2017.
VEIGA, I. P. A. (coord.). Repensando a Didática. – 22° ed. ver. e atual. – Campinas,
SP; Papirus, 2005.

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