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SEXLIFE: O FEMININO E O CONTROLE DO PATRIARCADO - UMA

CRÍTICA À PARTIR DA PSICANÁLISE.

Antônia Valéria Ferreira Fernandes 1


Claudia Freitas dos Santos 2
Joana Glecy Messias Da Silva Ferreira 3
Mônica Fernanda Neukamp Wille 4

RESUMO
Este artigo vem propor uma crítica sobre a primeira temporada da série Sex
Life, a partir do viés psicanalítico. A série apresenta “a mulher autêntica”, segundo
a autora da série, porém a psicanálise nos leva a perceber que a mulher autêntica se
apresenta de forma bem diversa da que a protagonista nos mostra. Não há espaço
para a mulher autêntica na sociedade patriarcal, a psicanálise nos faz pensar sobre o
lugar da mulher na sociedade atual. Na série, a protagonista é um ser desejante que
está sendo castrada de todas as formas possíveis pelo esposo e pela sociedade em
que vive, buscando se encontrar nos seus desencontros de mãe, esposa e mulher. A
mulher é posta como objeto na série, porém esse lugar não lhe pertence, por isso ela
não se acomoda neste lugar onde não se reconhece.

Palavra-chave: feminino, dominância, sujeito, objeto, patriarcado

ABSTRACT
This article proposes an analysis of the first season of the Sex Life series, from the
psychoanalytic point of view. The series presents “the authentic woman”,
according to the author of the series, but psychoanalysis leads us to realize that the
authentic woman presents herself in a very different way from what the protagonist
shows us. There is no place for the authentic woman in patriarchal society,
psychoanalysis makes us think about the position of women in today's society. In
the series, the protagonist is a desiring being who is being castrated in every
possible way by her husband and the society in which she lives, seeking to find
herself in her mismatches of mother, wife and woman. The woman is placed as an

.
object in the series, but this place does not belong to her, so she does not settle in
this place where she does not recognize herself.

Keywords: feminine, dominance, subject, object, patriarchy

INTRODUÇÃO

É a partir do enfoque da psicanálise sobre o poder e domínio do patriarcado no


afetamento do feminino onde a predominância estrutural das funções de liderança,
privilégios sociais e manutenção da autoridade sobre a família e dominação da
mulher que observamos na primeira temporada da série SexLife essa relação de
favorecimento de hierarquia atravessando e soterrando o feminino. A série SexLife
está na plataforma de streaming Netflix, na descrição da sinopse Billie Connelly
(Sarah Shahi) é uma dona de casa que tem dois filhos pequenos e mora em um
subúrbio de Connecticut. Mas nem sempre foi assim, antes de se casar com o bem-
sucedido Cooper (Mike Vogel), ela levava a vida com liberdade na cidade de Nova
York. Junto de sua melhor amiga Sasha (Margaret Odette), ela costumava se
divertir todas as noites, sem nunca perder uma oportunidade. Agora, quanto mais
Billie se envolve no cotidiano familiar, mais, sente falta de seu passado tão agitado
e, sobretudo, do relacionamento com seu ex-namorado Brad (Adam Demos). Presa
entre suas responsabilidades maternais e seus desejos sexuais, ela começa a
escrever um diário, de forma descritiva das suas fantasias sexuais experienciadas
com seu ex-namorado são reveladas assim Billie ao escrever revive
sentimentalmente e intensamente tais experiências vividas. Até que, um dia seu
marido encontra os escritos e percebe a necessidade de Billie voltar a ser quem era.
Assim, o casal embarca em uma jornada de descoberta sobre si mesmo, que vai
colocar o casamento em meios conflituosos. Para além desta descrição da sinopse
já nos primeiros minutos da cena inicial é possível observar as nuances da
dominação masculina sobre o feminino. Quando Hudson (Phoenix Reich), filho
mais velho do casal, prende em um recipiente uma mariposa e a mãe Bille diz para
ele libertar o inseto e ele responde “não, é uma menina e eu a amo” essa narrativa
que podia passar despercebida é o engodo de toda trama. O suposto lugar da mulher
nessa relação objetal do masculino com o feminino onde a mulher é esse objeto de
desejo do homem e a causa de sustentação é a dominação, vai ser o bordejamento
do conteúdo textual.

A proposta da série, como o próprio nome anuncia, Sexlife (Vida sexual),


retrata a vida da personagem Bille, uma mulher marcada pelo desejo de retorno ao
lugar antes pertencente a ela, uma mulher atravessada sexualmente, em um
social/cultural que a reprime e dita o que é ser mulher. A vocação para a
maternidade faria com que essa mulher trabalhasse no espaço familiar, não no
espaço público. A série retrata homens que comandam o poder no âmbito público.
Enquanto isso, as mulheres são responsáveis pelas ocupações relativas aos cuidados
com a casa e os filhos.

ANÁLISE E COMENTÁRIO DO CONTEÚDO

Falar do lugar da mulher e dos desígnios do feminino é tarefa complexa, pois de


forma enraizada, destino, lugar e papel relacionados a estas, sofre de um
determinismo secular.
A cultura domesticou a mulher na sua qualidade de selvagem, deu ao homem
poder, dominância, privilégios e autoridade sobre tudo em relação ao feminino, que
é sempre observado pelo externo. (FREUD, 1914) diz que uma vez reprimida, a
libido causa adoecimento, inclusive a histeria advinda da repressão sexual
feminina. Freud afirma que quanto mais severa houver sido a educação de uma
mulher e quanto mais ela se submeter às exigências civilizatórias, maior a
possibilidade dela se refugiar na neurose diante do conflito entre seus desejos e
seus deveres.
A personagem Billie sofre com a captura do patriarcado, sendo um lugar de
dominância masculina nos é apresentado logo nas primeiras cenas Bille em uma
espécie de devaneio com seu antigo namorado Brad e suas vivências amorosas
passadas com este, sendo mordida por sua bebê, é retirada bruscamente pela dor do
real, quando desfrutava de uma vida badalada junto de sua amiga Sasha, memórias
do que fora mas que agora não é mais.
Freud (1914), em sua obra os Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade,
quando afirma que a “anatomia é destino” reforça e sela um ideal do que seria a
mulher, ou seja, a maternidade é a única saída para conseguir ser. A personagem
encontra-se sob a natureza determinista que o social diz ser a felicidade e
completude.
O feminino em Lacan é uma metáfora, ora como qualificador da mulher,
ora radicalizado em um novo conceito, no qual a noção de alteridade e de limite o
constituem. Fala sobre a mulher ser não-toda fálica, incompleta mais que isso
impossibilitada da sensação de completude, pois A mulher não existe.
Dessa forma observamos que os espaços não apenas social, na
cultura, o homem é o principal protagonista. É necessário entender que
civilizadamente o homem foi educado para o poder e dominação como estrutura
permanente. O corpo masculino é controlado e o corpo feminino é dominado. O
discurso do patriarcado manda na mulher no que ela pode escolher.
O patriarcado é um lugar restrito da dominação masculina, onde à mulher
restam papéis de esposa, mãe ou dona de casa. Sofrendo pressões para o cuidado
com todos. E o feminino, fica soterrado em sua domesticação.
Em uma outra cena, a personagem Billie está no jardim de sua casa com os
filhos e recebe o marido Cooper que vem do trabalho, Billie está em uma camisola
de dormir o descuido com sua aparência se evidencia e ela se cobra, além disso se
justifica na fala: “ eu ia trocar de roupa em alguma hora”
A personagem encontra-se às voltas com sua instabilidade do ser desejante
mulher, as lembranças com Brad a perseguem, o que era sinônimo de felicidade
agora se mostrava insuficiente, portanto a protagonista principal almejava ser
percebida enquanto mulher, na sua natureza sexual desejada.
As demandas do homem e da mulher são diferentes em muitos âmbitos,
sendo o sexual o que ganha mais visibilidade e maior direito para o homem.
Na cena em que Billie procura fazer sexo com seu parceiro é frustrada pelo
desinteresse e a falta de empenho deste, ao mesmo tempo, que é mãe e a
maternagem a chama.
Como meio de tentar dar soluções ao seu desejo, a personagem começa a
escrever um diário onde discorre, sobre seu passado quando morava com Sasha, a
vida badalada das duas, e sobre quem era com seu antigo namorado Brad. As
memórias sexuais eram vívidas em detalhes, Billie se sentia desejada,
aventuravam-se em loucuras características dos amantes apaixonados, lembranças
do que um dia existiu. Interessante dar um destaque a personagem Sasha, enquanto
o inverso de Billie, nas questões que envolvem os supostos desejos e destino feliz
do feminino, vemos essa personagem em contra partida a esses supostos desejos,
quando a mesma concentra-se em obter sucesso em sua vida acadêmica, deixando
aquilo que seria o sonho de toda mulher ou seja: casamento, filhos… em segundo
plano.
Existem duas coisas que contribuem para a felicidade do feminino: O amor
(e todos os seus aspectos) e a escrita (KEHL, 2008)
Percebe-se em Billie o mesmo que a personagem Emma Bovary, de
Flaubert, onde tal personagem leva uma vida tediosa, ao lado de seu marido
displicente, e nem um pouco satisfeita se arrisca em aventuras amorosas, fora deste
casamento, movida por seus desejos.

Como um paradigma da mulher


freudiana, alienada nas malhas de um
discurso em que seus anseios latentes
não encontram lugar ou palavras;
discurso que ela é (ainda) incapaz de
dominar ou modificar a seu favor,
inscrevendo nele um significante que a
represente enquanto sujeito. (KEHL,
2008)

Em fantasia se ampara ao próprio toque, dele extrai prazer máximo. O


desejo sexual encontra saída na masturbação. No aforismo lacaniano (LACAN,
1972 – 1973), a relação sexual não existe, um corpo o próprio, é o bastante, para
obter o prazer sexual, portanto a relação sexual é uma fantasia de como eu desejo o
Outro e de como eu espero ser colocada como objeto desejante, é o anseio de ser
completude, formar laço a partir do discurso de amor. Billie deseja pertencer a um
lugar onde possa ser validada socialmente e ter seus instintos selvagens
relacionados ao sexual satisfeitos, Billie não abre mão de ser mãe ao passo que
almeja seu lugar de mulher desejada, ela precisa dos dois, quer tudo, em busca de
se sentir toda.
A autora Estés, (1992) completa com o seguinte: “para conquistar o coração
de uma mulher selvagem, seu parceiro deve entender profundamente sua dualidade
natural”. A intimidade com o ser selvagem de uma mulher é apresentada de
maneira dual, ou seja, um ser facilmente notado, conhecido e um outro, que
repousa à sombra do desconhecido, duas mulheres coexistem em uma. É um
desafio para ambos os gêneros o manejo com essa particularidade.
Na cena em que o personagem Cooper descobre e lê o diário da esposa, se
surpreende e fica confuso com o que acabara descobrindo, pois não reconhece essa
outra mulher, não entende como pode ser a mesma com quem é casado e mãe dos
seus filhos.
A forma como homem e mulher são atravessados pelo patriarcado são as
seguintes: enquanto a mulher é vigiada e calada o homem tem privilégios, e apoio
no meio sócio-cultural. “Quanto a você, homem, pode despencar, quanto a mim,
sou uma pedra bem soldada'', (BOURDIEU, 2012) referindo-se à vagina. Desde o
nascimento a mulher é entendida como sexo frágil e já na infância percebe-se uma
forte repressão em seus comportamentos, enquanto os meninos são condicionados à
virilidade. Sua existência é condicionada a um homem que a sustente e a tome
como propriedade. No casamento, vem a premissa de ser mãe e dona de casa.
A reação de Cooper, ao ter acesso às revelações contidas no diário de uma
mulher selvagem, de uma mulher outra desconhecida por ele, ameaçam sua
condição masculina frágil, como pode ser observado, na cena em que ele a toma
bruscamente em ato sexual, como meio de exigir e reivindicar seu lugar de
domínio, de poder e falo exclusivo: -“você é minha Billie, só minha”

O poder do patriarcado é notado no decorrer das cenas, a forma como influencia a


decisão e comportamento dos personagens é por vezes sutil, já em outras aparece
de forma mais destacada, como na cena em que Billie anuncia querer voltar a
trabalhar, dar continuidade a sua formação acadêmica , também não tem aprovação,
tão pouco apoio por parte da instituição de ensino onde colocara seu filho com a
alegação de que este era pequeno e necessitava dela. Fora assim antes invalidada do
seu direito de escolha, no seu antigo relacionamento com o então Brad, onde o ex–
namorado, perante o ocorrido da gravidez de Billie, a atitude do mesmo foi de não
aceitar e responder pelo desejo desta na fala: - “ nós não queremos isso, você não
quer isso!”ainda questiona sobre os anos que faltam para sua formação acadêmica.
Onde tem a ciência e o capital, a violência simbólica está presente na
dominação masculina (BOURDIEU, 2012). Há uma destituição da mulher de
capital simbólico, tornando-se um objeto desse capital, o feminino sofre pelo
excesso de domesticação.
No decorrer dos capítulos, vão sendo mostrados situações onde a
personagem Billie, tenta diversas formas de ser vista a partir de um Ser mulher que
tem desejos e sonhos, que almeja exercer seu profissional, o lugar de mãe e família,
e viver o antigo romance com seu ex namorado Brad, com quem experienciou
intensa paixão, sem ter que abrir mão de seu esposo Cooper pai de seus filhos, e
que por este também tem sentimentos.
O que resta ao personagem? Decidir abdicar, conciliar? Terá a mulher um lugar?
Qual lugar? E se ela decidir por isso?
São alguns questionamentos que excedem, vão para além do entretenimento da
trama.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensamos a partir da psicanálise o feminino. Os espaços públicos estavam


sendo construídos sob dominação masculina, deixando as mulheres à margem e
gerando o entendimento de que são naturalmente inadequadas, devendo-se
restringir ao papel privado de esposa e mãe.

Nesse processo evolutivo de reconhecimento, e de posição do feminino


inserido no contexto social, familiar e cultural, a personagem se vê aprisionada
numa violência simbólica, como aquela que resiste e luta para ter sua liberdade
aceita, ela reage e foge. A violência simbólica impõe significações que pertencem
à cultura da classe dominante e exerce um duplo arbitrário de violência simbólica –
de um lado, através da seleção de valores e conteúdos, de outro, através da
ocultação da inculcação autoritária do significante Nome-do-Pai. Nessa inscrição
do ser feminino frente ao patriarcado e sua dominação, ela se vê mulher, feminina e
mãe. Ser feminina nesse constructo social, não significa sair com quantos parceiros
desejar, fazer o que quiser sem ser responsável pelas suas atitudes. Significa
também isso, mas, não só isso. O feminino vai para além dessa suposta liberdade
de fazer o que quiser, podendo ser mãe, esposa e filha e gozar com isso. Ter sua
realização nesse campo. Você pode ser tudo e ser nada, o que importa é como você
mulher se sente. A mulher não será o nada, se for tudo o que ela sempre quis. A
natureza dual do feminino precisa ser entendida pelo masculino para que ele
conquiste o coração selvagem
Em contrapartida, os homens comandavam o poder no âmbito público.
Enquanto as mulheres eram responsáveis pelas ocupações privadas, relativas aos
cuidados com a casa e os filhos, os espaços públicos estavam sendo construídos sob
dominação masculina, deixando as mulheres à margem e gerando o entendimento
de que são naturalmente inadequadas, devendo-se restringir ao papel privado de
esposa e mãe .Ou seja, expressões de gênero são direcionadas a partir de um
determinismo social dos conceitos de feminino e masculino, que estabelece um
conjunto de normas a serem seguidas com base no sexo.Uma das manifestações
desse contexto se deu a partir do descobrimento de que o orgasmo feminino não era
necessário para o ato de reprodução, diferente do masculino. Com isso, cria-se uma
desassociação da mulher com o erotismo, distanciando-a de seus desejos sexuais e
definindo sua sexualidade a partir de uma preocupação com a satisfação dos
desejos masculinos e a procriação. De acordo com o autor, a civilização seria
regida por uma moral sexual civilizada, cujas exigências entram em conflito com as
exigências pulsionais. Os sintomas neuróticos eram localizados como uma saída
substitutiva encontrada pela pulsão diante desse conflito (FREUD, 1972)Cabe aqui
salientar que nesse período Freud já destacava um prejuízo especial às mulheres no
que diz respeito às restrições impostas pela civilização, uma vez que aos homens
seria concedido maior liberdade sexual. Lacan desdobra a teoria freudiana ao
aprofundar acerca às dimensões simbólicas e imaginárias do falo. Evidencia a
importância da linguagem, entendida como cadeias significantes, organizadas em
torno de uma falta central na apreensão da sexualidade. O falo funcionaria como
um significante privilegiado que inscreve a falta no inconsciente.Sobre a discussão
freudiana que concede ao falo uma primazia tanto para os homens quanto para as
mulheres e que gerou polêmica no meio analítico, Lacan intervém e propõe o falo
como significante. Não um significante qualquer, mas um significante privilegiado
que indica junção entre sexualidade e linguagem. A consequência de ser o homem
um animal parasitado pela linguagem, um ser falante, é que nada nele será mais da
ordem do instinto. Isso quer dizer que cada sujeito assume seu sexo como
consequência de sua relação como o significante da castração, o falo. Do lado
feminino, estariam aquelas que sabem não possuir o falo, instalando-se um
sentimento de inveja em decorrência da vontade de tê-lo. Como consequência,
aquele identificado enquanto ser masculino se protegeria da falta pela via do
“ter”,uma vez que possuem o suporte imaginário do falo. Enquanto isso, o caminho
percorrido pela feminilidade seria o de “ser” o falo, ou seja, ser o objeto de desejo
do Outro (BESSA, 2012). Em fórmulas da sexuação, Lacan define a posição de
sujeito sexuado a partir da posição do sujeito em relação ao falo e ao modo gozo.
Para o autor, os homens estariam plenamente vinculados ao gozo fálico, enquanto
as mulheres possuiriam acesso também a outro tipo de gozo, considerado para ele
como enigmático. Isso se deveria ao fato de não haver no inconsciente feminino um
significante capaz de contemplar as mulheres, ao contrário dos homens que
estariam exclusivamente submetidos à mediação fálica devido à crença de que
existe um homem todo poderoso que faz exceção à regra da castração - em
referência à mítica freudiana de Totem e Tabu. Uma vez que as mulheres se
percebem como alheias à totalidade fálica, devido à inexistência de uma mítica
feminina que represente a possibilidade de não se submeter à castração, abrem-se
outras possibilidades de gozo que não envolvam o falo. Com esse discurso, o
feminino deixa de ser entendido como falta, conforme defendia Freud, e passa a ser
visto como excesso, devido à ausência de limites simbólicos para definir o que é ser
mulher (BESSA, 2012). Com o enunciado “A mulher não existe”, Lacan determina
que a feminilidade não se fixa completamente enquanto um símbolo, dizendo que
há algo inassimilável no que diz respeito à ordem significante, algo que escapa ao
discurso. Isso significa que não há uma categoria universal que represente a
feminilidade, não existe a mulher, mas infinitas formas de ser uma. Há nesse
momento em sua teoria um deslocamento da primazia do imaginário e do simbólico
para tratar acerca ao real: a mulher estar não toda inscrita na função fálica implica
que haja um gozo a mais, não pré-determinado pelo discurso. Desse modo,
caracteriza-se por um conjunto aberto ao infinito, onde uma mulher poderá
construir diversas soluções.Lacan responde por meio de uma distinção entre o gozo
fálico e o gozo feminino. Essa distinção não se enraíza na anatomia, mas em uma
relação com o Outro, fazendo com que ali onde o gozo fálico permite a um sujeito
saber do que ele goza, quando isso começa e quando isso acaba, do lado do gozo
feminino há uma outra parte de ilimitado que faz com que o sujeito se aventure em
regiões onde ele abandona os constrangimentos do universal. Foi o que Lacan
chamou de um gozo para além do falo.Foi atribuído à psicanálise o papel de
defensora do patriarcalismo e normas de gênero, mas pode-se observar com esse
trabalho que, apesar de inicialmente atrelada aos ideais patriarcais de sua época, os
estudos psicanalíticos sofreram diversas reformulações no que diz respeito à
mulher. À vista disso, demonstra-se a necessidade da teoria psicanalítica se manter
atualizada diante das manifestações socioculturais contemporâneas. Conclui-se,
portanto, que o método psicanalítico pode ser utilizado como artifício para se
desfazer do apego inconsciente ao discurso normativo, que atua enquanto principal
agente de aprisionamento de mulheres na contemporaneidade. Espera-se, assim,
que a psicanálise possa guiá-las em direção à autonomia a partir da possibilidade de
construção de um sentido subjetivo de existência, em detrimento de um sentido
imposto responsável pela subordinação feminina

REFERÊNCIAS
BORDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena
Kühner. 11. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. 160 p.
FREUD, Sigmund. Obras completas - vol. 17: Inibição, sintoma e
angústia, o futuro de uma ilusão e outros textos (1926 - 1929). Tradução de Paulo
César de Souza. Rio de Janeiro: Cia das Letras, 2014.
FREUD, Sigmund. Obras completas - vol 12: Introdução ao narcisismo,
ensaios de metapsicologia e outros textos (1914 - 1916). Tradução de Paulo César
de Souza. Rio de Janeiro: Cia das Letras, 2010.
FREUD, Sigmund. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud,
“A dissolução do complexo de édipo”, Edição Standard Brasileira das vol. XIX,
Rio de Janeiro, Imago, 1976. p. 222.
KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino. 2. ed. Rio de Janeiro:
Imago, 2008.
LACAN, Jacques (1901/1981). Seminário Mais, Ainda Livro 20. 2 ed.Rio
de Janeiro, Jorge Zahar, 1985.
SOLER, Colette. O que Lacan dizia das mulheres. Tradução Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
JUNIOR, Jonas Alves da Silva, RODRIGUES, Liliana, CARDOSO,
Marcélia Amorim. Femininos e educação, Railson Moura, Curitiba, 2021
ESTÉS, Clarissa Pinkolas. Mulheres que correm com os lobos, Tradução
Waldéa Barcellos, 1. ed, Rio de Janeiro, 2018

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