Você está na página 1de 685

Questões em Aquisição da Linguagem

e Psicolinguística
Multimodalidade, Interacionismo e
Patologias da linguagem
vol. II
CONSELHO EDITORIAL

Isabelle Cahino Delgado (UFPB)


Sheila Costa de Farias (UFCG)
José Temístocles Ferreira Júnior (UFRPE)
Neilson Medeiros (IFPB)
Glória Maria Leitão de Souza Melo (UEPB)
Evangelina Maria Brito de Faria (UFPB)
José Ferrari Neto (UFPB)
Rosana Oliveira (UFPB)
Renata Fonseca Lima da Fonte (UNICAP)
Wanilda Alves Cavalcanti (UNICAP)
Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante
Márcio Martins Leitão
Paulo Vinicius Ávila Nóbrega
Gitanna Brito Bezerra
Thalita Maria Lucindo Aureliano
Giorvan Ânderson dos Santos Alves
[Organizadores]

Questões em Aquisição da Linguagem


e Psicolinguística
Multimodalidade, Interacionismo e
Patologias da linguagem
vol. II

Mídia Gráfica e Editora


João Pessoa
2016
Todos os textos são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores.

Editoração Eletrônica
Paulo Aldemir Delfino Lopes
Design de Capa
Paulo Aldemir Delfino Lopes

Questões em aquisição da linguagem e psicolinguística: multimodalidade,


interacionismo e patologias da linguagem.
Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante, Márcio Martins Leitão, Paulo
Vinicius Ávila Nóbrega, Gitanna Brito Bezerra, Thalita Maria Lucindo
Aureliano, Giorvan Ânderson dos Santos Alves (Orgs.). – João Pessoa: Mídia
Gráfica e Editora, 2016.
685p.

ISBN: 978-85-7320-064-5

1. Linguagem. 2. Aquisição. 3. Psicolinguística.


CDU: 811

Mídia Gráfica e Editora Ltda.


Impresso no Brasil – Feito o Depósito Legal.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ............................................................................................................... 13
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NA LINGUAGEM: PASSAGEM DA LÍNGUA
AO DISCURSO...................................................................................................................... 14
Bianca Novaes de Mello
A GESTUALIDADE EM A CASA DO MICKEY: UMA ESTRATÉGIA
INTERATIVA NO DESENHO ANIMADO CONTEMPORÂNEO ...................... 27
Heloísa Ramos Mendes
Celiany Gomes
José Moacir Soares da Costa Filho
A PRESENÇA DA GESTUALIDADE NA AULA DE LEITURA COMO FATOR
INTRINSECO PARA O APRENDIZADO NA EDUCAÇÃO INFANTIL........... 38
Cristiane Marinho da Costa
QUESTÕES IDENTITÁRIAS, AQUISIÇÃO DE LÍNGUAS EM CONTEXTO
DE IMERSÃO E SUAS IMPLICAÇÕES PARA O ENSINO DE LÍNGUAS ...... 54
Irenilza Oliveira
Letícia Telles
AS CONCEPÇÕES DE LINGUAGEM E SUAS IMPLICAÇÕES NA
CONSTRUÇÃO DE SUJEITOS SOCIAIS EM PROCESSO DE AQUISIÇÃO E
APERFEIÇOAMENTO DA LINGUAGEM MEDIANTE PRÁTICAS
INTERATIVAS DE SALA DE AULA DE LÍNGUA MATERNA .......................... 70
Maria Aparecida Calado de Oliveira Dantas
Linduarte Pereira Rodrigues
UMA PROPOSTA DE ADAPTAÇÃO DO CONTINUUM DE KENDON PARA
A AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM .................................................................................. 88
Paulo Vinícius Ávila-Nóbrega
Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante
GESTICULAÇÃO E FLUÊNCIA: COMPONENTES INTERATIVOS NA
MULTIMODALIDADE ................................................................................................... 104
Paula Michely Soares da Silva
Angélica Fabiana Linhares Saldanha
Jéssica Tayrine Gomes de Melo Bezerra
Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante
RECURSOS MULTIMODAIS EM CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS: UM
ESTUDO DE CASO DE UMA CRIANÇA CEGA .................................................... 121
Christiane Gleice Barbosa de Farias Nascimento
Renata Fonseca Lima da Fonte
PROPOSTA DE OBJETO DE APRENDIZAGEM SOBRE CORES COM BASE
NAS CENAS DE ATENÇÃO CONJUNTA ................................................................ 135
Jéssica Tayrine Gomes de Melo Bezerra
Paula Michely Soares da Silva
Angélica Fabiana Linhares Saldanha
GESTOS PANTOMÍMICOS E PRODUÇÃO VOCAL: CONTRIBUIÇÕES PARA
A FLUÊNCIA NA AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM ............................................... 149
Ediclécia Sousa de Melo
Geovanna Dayse Bezerra da Silva
Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante
O ENSINO DA LEITURA DO TEXTO MULTIMODAL NAS SÉRIES INICIAIS
................................................................................................................................................. 163
Alice d’Albuquerque Torreão (UFPB)
A IMPORTÂNCIA DO APONTAR E DAS HOLÓFRASES EM CENAS DE
ATENÇÃO CONJUNTA.................................................................................................. 189
Thalita Maria Lucindo Aureliano
Kátia Araújo de Lima
Valdenice Pereira de Lima
INTERAÇÃO SOCIAL DE UM ADOLESCENTE COM DEL ............................. 200
Liliane Carvalho Félix Cavalcante
Francisco das Chagas de Sousa
Henrique Miguel de Lima e Silva
OS ASPECTOS MULTIMODAIS NO DISCURSO DO SUJEITOAFÁSICO: UM
ESTUDO DE CASO .......................................................................................................... 218
Érika Maria Asevedo Costa
Renata Fonseca Lima da Fonte
GESTICULAÇÃO E FLUÊNCIA: FATORES RELEVANTES NA
CONSTRUÇÃO DOS PRIMEIROS ENUNCIADOS DA CRIANÇA................. 233
Driely Xavier de Holanda
Valmira Cavalcanti Marques
Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante
O OUTRO DA/NA DIALOGIA - A LINGUAGEM DA MÃE DE UMA
CRIANÇA COM AUTISMO ........................................................................................... 244
Juliana Maia Lopes
Marianne Cavalcante
PERSPECTIVAS SOBRE ATENÇÃO CONJUNTA: DA AQUISIÇÃO À
CONSOLIDAÇÃO DA LINGUAGEM......................................................................... 264
José Moacir Soares da Costa Filho
O ENSINO DA LÍNGUA COM CRIANÇAS DE ZERO A TRÊS ANOS: PARA
ENRIQUECER O DEBATE ........................................................................................... 281
Adriana Bragagnolo
Adriana Dickel
CONSIDERAÇÕES SOBRE APRENDIZAGEM DE LÍNGUA INGLESA POR
TRÊS APRENDIZES BRASILEIROS ........................................................................ 296
Janailton Mick Vitor da Silva
Niely Maria Limeira de Souza
INOVAÇÕES LEXICAIS NA FALA DA CRIANÇA: DISCUTINDO O
(IM)POSSÍVEL.................................................................................................................. 315
Camila Rossetti Vieira
A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE NA
AQUISIÇÃO/APRENDIZAGEM DE LE: UM ESTUDO SOBRE CRIANÇAS
BRASILEIRAS APRENDIZES DE INGLÊS ............................................................ 331
Amanda de Oliveira Silva
Alessandra Del Ré
BILINGUISMO E A COMPREENSÃO DO HUMOR: UM ESTUDO DE CASO
................................................................................................................................................. 356
Anna Carolina Saduckis Mroczinski
Alessandra Del Ré
A CRIANÇA BILÍNGUE E SUAS RELAÇÕES COM A AUTO-REFERÊNCIA:
UM ESTUDO DE CASO ................................................................................................. 369
Paula Cristina Bullio
Alessandra Del Ré
AQUISIÇÃO/APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA:
SUBJETIVIDADE E DESDOBRAMENTOS DE IDENTIDADES .................... 394
Patrícia Falasca
Alessandra Del Ré
A FLUÊNCIA EM L2 SOB A LUZ DA HIPÓTESE DO PERÍODO CRÍTICO
................................................................................................................................................. 420
Francisco das Chagas de Sousa
A AQUISIÇÃO DA ESCRITA COMO MOVIMENTO DO SIMBÓLICO ........ 432
Magda Wacemberg Pereira Lima Carvalho
Glória Maria Monteiro de Carvalho
ATRASOS DE FALA: CONTRIBUIÇÕES DO INTERACIONISMO PARA A
AVALIAÇÃO E TRATAMENTO FONOAUDIOLÓGICO ................................... 443
Irani Rodrigues Maldonade
Maria Salete F. Rios
AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM E FALAS DE PACIENTES DEMENCIADOS:
PROCESSOS DE EVOLUÇÃO E INVOLUÇÃO DA LINGUAGEM? ............... 460
Mariana Emendabili
Melissa Catrini
JOGOS DE PALAVRAS NA POESIA INFANTIL DE CECÍLIA MEIRELES:
UMA ABORDAGEM LINGUÍSTICO-ESTRUTURALISTA ............................... 474
Alexandrina Verônica Guedes das Neves
Glória Carvalho
Maria de Fátima Vilar
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO DA CRIANÇA COM A
LÍNGUA ............................................................................................................................... 488
Irani Rodrigues Maldonade
A AQUISIÇÃO DA ORALIDADE NA CRIANÇA COMO UM PASSO
RELEVANTE NO PROCESSO DE AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM ESCRITA:
UMA ABORDAGEM INTERACIONISTA ............................................................... 514
Adauto Alves da Silva
HETEROGENEIDADE E PLURALIDADE: EFEITOS DA CLÍNICA DE
LINGUAGEM EM CASOS DE SUJEITOS COM PARALISIA CEREBRAL .. 525
R. Vasconcellos
HOMEM, LINGUAGEM E CULTURA – O ATO DE AQUISIÇÃO DA
LINGUAGEM ..................................................................................................................... 551
Marlete Sandra Diedrich
ASPECTOS DA FALA EM IDOSOS COM DOENÇA DE ALZHEIMER ........ 561
Giorvan Ânderson dos Santos Alves
Isabelle Cahino Delgado
Ivonaldo Leidson Barbosa Lima
Jully Anne Soares de Lima
Brunna Thaís Luckwu de Lucena
AS INTERFACES DA INTERVENÇÃO FONOAUDIOLÓGICA COM ÊNFASE
NO LETRAMENTO EM SUJEITOS COM SÍNDROME DE DOWN .............. 573
Vanessa Evellin Fernandes Isidro Gomes
Ágata Brendel de Lemos Pessoa
Giorvan Ânderson dos Santos Alves
Isabelle Cahino Delgado
SOBRE A INSTITUCIONALIZAÇÃO DE PESSOAS COM PARALISIA
CEREBRAL: A DIFÍCIL RELAÇÃO SUJEITO-OUTRO-LINGUAGEM ........ 585
Tatiana Lanzarotto Dudas
A CRIANÇA AUTISTA NA ENUNCIAÇÃO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A
CATEGORIA DE PESSOA............................................................................................. 601
José Temístocles Ferreira Júnior
Marianne C. B. Cavalcante
DISLEXIA, ESCOLA E EQUIPE MULTIDISCIPLINAR DE TRATAMENTO
................................................................................................................................................. 615
Diva Helena Frazão de Vasconcelos
RELEVÂNCIA E MARCAÇÃO DE NÚMERO: PROCESSAMENTO NA
INTERFACE GRAMÁTICA-PRAGMÁTICA, DIFICULDADE DE
APRENDIZAGEM E DÉFICIT ESPECÍFICO DA LINGUAGEM DE ORDEM
PRAGMÁTICA................................................................................................................... 633
Jacqueline Rodrigues Longchamps
Letícia Maria Sicuro Corrêa
DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO E DA LINGUAGEM DA
CRIANÇA COM SÍNDROME DE DOWN ................................................................ 655
Márcia Paiva de Oliveira
Liana da Costa Paiva
Graciara Alves dos Santos
Rosilene Moreira Pantoja
MULTIMODALIDADE EM AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM: PRESSUPOSTOS
TEÓRICO-METODOLÓGICOS ................................................................................... 668
Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante
Andressa Toscano Moura de Caldas Barros
Paulo Vinícius Ávila-Nóbrega
Paula Michely Soares da Silva
13

APRESENTAÇÃO

É com enorme prazer que apresentamos a coleção de E-books


denominada Questões em Aquisição da Linguagem e Psicolinguística vol. II
Multimodalidade, Interacionismo e Patologias da linguagem composta por
três volumes, fruto dos trabalhos do IX ENAL – Encontro Nacional sobre
Aquisição de Linguagem e o III EIAL – Encontro internacional sobre
Aquisição da Linguagem, ocorrido em 2013 e do II EIPA – Encontro
Internacional de Psicolinguística ocorrido em João Pessoa- PB em 2013.
Este segundo volume intitulado Questões em Aquisição da
Linguagem e Psicolinguística Multimodalidade, Interacionismo e
Patologias da linguagem v. II traz um conjunto de quarenta e um artigos
com autores de diversas instituições nacionais e estrangeiras. A
diversidade temática dos artigos demonstra a força expressiva das áreas
de Aquisição da Linguagem e Psicolinguística, o que reflete o vigor dos
três encontros simultâneos promovidos pela gestão 2012-2014 do GT de
Psicolinguística da ANPOLL. Esses encontros contaram com o fomento
CAPES; das universidades UFPB, UNICAP, UEPB e do dos Programas de
Pós-graduação PROLING da UFPB e Ciências da Linguagem da UNICAP.
Foram excelentes momentos de trocas de conhecimento e experiências
gratificantes com pesquisadores nacionais e internacionais, bem como
estudantes de pós-graduação e graduação que possibilitaram a produção
desta coleção que apresentamos.

João Pessoa, 21de janeiro de 2016

Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante


Márcio Martins Leitão
Paulo Vinícius Ávila Nóbrega
Gitanna Brito Bezerra
Thalita Maria Lucindo Aureliano
Giorvan Ânderson dos Santos Alves
14

CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NA LINGUAGEM: PASSAGEM DA


LÍNGUA AO DISCURSO

Bianca Novaes de Mello


(Universidade Federal Fluminense)

RESUMO: O objetivo deste trabalho consiste em destacar algumas


contribuições de Benveniste sobre linguagem, comunicação e
subjetividade para o tema mais amplo da aquisição de linguagem. Para
tanto, o trabalho de Agamben também será abordado a fim de
demonstrar que Benveniste traz importantes esclarecimentos para a
noção de infância, momento em que o falante adquire a linguagem e se
constitui como sujeito. Abordaremos “A natureza dos pronomes”
(1976a) de Benveniste, onde se destaca que há palavras que somente
podem ser compreendidas por referência às instâncias do discurso,
permitindo a conversão da linguagem em discurso e assegurando a
comunicação. A fim de destacar que esta conversão só pode efetuar-se
pela referência necessária ao lugar do falante na instância de discurso -
ao “eu”- abordaremos: “Da subjetividade na linguagem” (1976b). A
introdução da posição do falante como fundamental para a
comunicação, garantida pela possibilidade que a linguagem fornece
dispondo de uma série de formas pronominais aptas a serem
apropriadas pelo sujeito no exercício do ato de fala (os dêiticos),
demonstra que o ato da comunicação permite ao falante constituir-se
como sujeito. O status linguístico de “pessoa” determina a subjetividade.
Examinando “La forme et le sens dans le langage” (1974), enfatizaremos
a distinção entre forma e sentido, instauradora da dicotomia entre a
dimensão semiótica e a dimensão semântica da linguagem. Ao
compreender o signo como unidade semiótica que permite significar, e
a frase como unidade semântica que permite comunicar, a comunicação
situa-se como uma propriedade da função semântica da língua,
ultrapassando a significação de um signo linguístico, remetendo à
15

situação do discurso, enfatizando também o aspecto pragmático da


linguagem, bem como a constituição da subjetividade.

PALAVRAS-CHAVE: linguagem; sujeito; discurso; intersubjetividade.

ABSTRACT: The aim of this work is to highlight some Benveniste´s


contributions about language, communication and subjectivity into the
broader topic of language acquisition. In this sense, the work of
Agamben is also used in order to demonstrate that Benveniste brings
important insights to the notion of childhood – a moment at which the
speaker acquires the language and constitute itself as a subject. We
discuss here Benveniste´s "The nature of pronouns" (1976a), which
highlights that there are words that can only be understood by reference
to the instance of discourse, allowing the conversion of language into
speech and ensuring communication. In order to emphasize that this
conversion can only occur due the reference to the place of the speaker
in the instance of discourse – to the " I " - we discuss: "The subjectivity
in language" (1976b). The introduction of the position of the speaker as
fundamental to communication, guaranteed by the possibility that the
language provides, arranging a series of pronoun forms capable of being
appropriated by the person in the course of the speech act (deictic),
shows that the act of communication allows the speaker to constitute
itself as a subject. The linguistic status of "person” determines
subjectivity. Through the examining of "La forme et le sens dans le
langage" (1974), we emphasize the distinction between form and
meaning, founder of the dichotomy between the semiotic dimension and
the semantic dimension of language. Understanding the sign as a
semiotic unit that allows meaning, and the phrase as a semantic unit that
allows inform, communication stands as a property of the semantic
function of language, trespassing the meaning of a linguistic sign,
referring to the situation of discourse, emphasizing also the pragmatic
aspect of language as well as the constitution of subjectivity.
16

KEYWORDS: language, subject, discourse, intersubjectivity.

Este trabalho tem como objetivo apresentar algumas


contribuições da abordagem de Benveniste sobre linguagem,
comunicação e subjetividade para o tema mais amplo da aquisição de
linguagem. Consideramos que Benveniste, ao demonstrar que a
linguagem não se reduz a um mero instrumento de comunicação - como
se esta pudesse existir anteriormente ao sujeito- traz importantes
esclarecimentos para esse delicado momento em que o falante, ao
apropriar-se da língua, transforma-a em discurso, ao mesmo tempo em
que se constitui como sujeito.
Uma das principais teses de Benveniste, que chega até mesmo a
estender a esfera da linguística para a filosofia, diz respeito à
constituição do sujeito na e pela linguagem. Segundo Agamben em
“Infância e história: destruição da experiência e origem da história”
(2005), essa tese de Benveniste coloca para a filosofia a tarefa de
introduzir a linguagem na noção de sujeito transcendental, tal como
formulada por Kant.
Benveniste, desenvolve a crítica que Hamann faz a Kant, segundo
a qual é impossível que a razão pura seja independente da linguagem,
uma vez que a faculdade do pensamento não apenas reside na
linguagem, mas é também o ponto central do mal-entendido da razão
consigo mesma. Se retomarmos a distinção de Saussure (2006),
fundamento mesmo da linguística, entre língua (langue) e fala (parole),
polos constituintes da linguagem (langage), podemos concluir, com
Benveniste, que na filosofia kantiana a razão pura é identificada com a
língua – apenas um polo da linguagem, permanecendo esta últilma
excluída tanto da noção de razão quanto de sujeito transcendental – um
sujeito excluído da experiência mais ampla da linguagem. Baseada na
identidade entre razão e língua (e não linguagem em seu sentido amplo),
o sujeito transcendental é definido de tal forma como se o pronome
pessoal “eu” do aforisma “eu penso” não comportasse um estatuto
linguístico relacionado às instâncias do discurso.
17

Assim, a leitura que Agamben faz de Kant, via Benveniste, vem


demonstrar o primado genealógico da linguagem sobre a razão pura.
Nas palavras de Abamben: “O sujeito transcendental não é outro senão
o “locutor”, e o pensamento moderno erigiu-se sobre esta assunção não
declarada do sujeito da linguagem como fundamento da experiência e
do conhecimento” (Agamben, 2005, p.57).
Se o trabalho do linguista adentra assim no campo da filosofia,
consideramos que também traz importantes questões para o estudo da
aquisição de linguagem – pois se o sujeito se constitui através dela, como
poderia, ao mesmo tempo, adquiri-la em algum momento, como se a ela
preexistisse? Não seria um ato a partir do qual advém o sujeito ao
apropriar-se da língua transformando-a em discurso o que estaria em
cena nesses primeiros momentos da infância em que adquirimos a
linguagem?
Segundo Agamben (2005), a dimensão humana situa-se no hiato
entre língua e discurso ou entre semiótico e semântico, assinalando que
a passagem de uma a outra remete à in-fância (não-falante, em sua raiz
etimológica). Para tanto, o autor baseia-se nas formulações de
Benveniste sobre linguagem e intersubjetividade.
Segundo Benveniste (1976a), ao contrário do que
tradicionalmente fomos levados a pensar, a linguagem não é de forma
alguma um instrumento de comunicação isolado tanto do emissor
quanto do receptor. Para o linguista, pensar a linguagem como um mero
instrumento material utilizado pelo homem para comunicar-se com
outros homens implica dissociar o homem da linguagem e cair na ficção
de um período original no qual um homem possuidor de uma natureza
independente da linguagem a criaria para comunicar-se. Somente a
crença em uma origem mítica do homem permitiria sustentar a tese de
que a linguagem é um instrumento de comunicação.
Ora, o que Benveniste assinala é que jamais encontramos no
mundo esta ficção, pois a única realidade com a qual lidamos é a
realidade do discurso: a de um homem falando com outro homem. Em
suas palavras:
18

Não atingimos nunca o homem separado da linguagem e


não o vemos nunca inventando-a. Não atingimos jamais o
homem reduzido a si mesmo e procurando conceber a
existência do outro. É um homem falando que encontramos
no mundo, um homem falando com outro homem, e a
linguagem ensina a própria definição do homem.
(Benveniste, 1976b, p.285)

Em outras palavras, é na própria linguagem que devemos


procurar a aptidão da fala em garantir a comunicação na atualização da
língua: “Uma vez remetida à fala essa função [comunicativa], é preciso
que esteja habilitada a isso pela língua, da qual é apenas atualização. De
fato, é na linguagem que devemos procurar a condição dessa aptidão”
(Benveniste, 1976b, p.285).
O problema da comunicação intersubjetiva seria resolvido pela
própria linguagem, ao disponibilizar uma série de signos especiais, os
dêiticos ou indicadores, que permitem ao falante deles se apropriar. Nas
palavras do linguista: “O seu papel consiste em fornecer o instrumento
de uma conversão, a que se pode chamar a conversão da linguagem em
discurso” (Benveniste, 1976a, p.280).
Em “A natureza dos pronomes” (1976a), Benveniste destaca que
há pronomes, sobretudo os pessoais eu/tu, que somente podem ser
compreendidos por referência às instâncias do discurso. São estes
indicadores como o pronome “eu” do qual derivam outros dêiticos
(como formas adverbiais – tempo, lugar; como formas pronominais –
pessoa e demonstrativos de objeto) que permitem a conversão da
linguagem em discurso, assegurando, assim, a comunicação. Mas o
motivo pelo qual a linguagem não seria um instrumento de comunicação
é que esta conversão só pode efetuar-se pela referência necessária ao
lugar do falante na instância de discurso, ao “eu”.
Todo esse grupo de expressões somente pode ser compreendido
em referência ao “sujeito que fala”. Por exemplo, os advérbios aqui e
agora: o primeiro apenas delimita a instância espacial (aqui) pela
19

coextensão ou contiguidade com a instância de discurso que contém o


“eu”; assim como agora somente delimita uma instância temporal pela
contemporaneidade da presente instância discursiva remetida ao “eu”.
O mesmo ocorre com as formas pronominais pessoais e demonstrativas.
O pronome pessoal tu, para ser compreendido, precisa referir-se ao
falante, àquele que ocupa o lugar de “eu” na instância discursiva. Os
pronomes demonstrativos, como este, aquele e outros, também só
exercem sua função indicativa em referência à instância de discurso que
indica. Este grupo de expressões é denominado como indicadores ou
dêiticos:

Desses pronomes [pessoais] dependem por sua vez outras


classes de pronomes, que participam do mesmo status. São
os indicadores da dêixis, demonstrativos, advérbios,
adjetivos, que organizam as relações espaciais e temporais
em torno do “sujeito” tomado como ponto de referência:
“isto, aqui, agora” e as suas numerosas correlações “isso,
ontem, no ano passado, amanhã”, etc. Têm em comum o
traço de se definirem somente com relação à instância de
discurso na qual são produzidos, isto é, sob a dependência
do eu que aí se enuncia. (Benveniste, 1976b, p.288)

Segundo Benveniste, diferentemente dos signos linguísticos, estas


formas “pronominais” não remetem a uma realidade fora do discurso,
nem a posições objetivas no espaço e no tempo, pois dependem da
enunciação, ou seja, da presente instância discursiva para poderem
significar algo. Como saberei quando foi “ontem” sem recorrer ao tempo
real no qual esta enunciação é proferida? Como posso entender o que
“este” designa, sem apelar à posição espacial particular que ocupa
aquele que enuncia este pronome demonstrativo?
Em virtude da dependência da instância discursiva, estas
expressões não constituem apenas um tipo particular de signo que
apresenta uma diferença formal quanto a sua estrutura morfológica e
sintática, por não se reduzir a um nome referente a uma noção lexical.
20

Há ainda uma diferença de natureza mais geral, que leva Benveniste


(1976a) a situar a forma pronominal “eu” em um nível ou tipo de
linguagem denominado de pragmático. Este nível pragmático da
linguagem ultrapassa o nível dos signos ao incluir aquele que emprega
os signos, ou seja, o falante.
Essa outra propriedade fundamental do “eu”, assinalada como
pragmática pelo linguista, consiste em sua distinção dos demais signos
linguísticos no que se refere à função virtual de designar objetos gerais
- função que no ato de fala é atualizada em objetos singulares. Por
exemplo, o signo linguístico “mesa” designa um objeto virtual que em
cada ato de fala se atualiza em uma mesa singular. O conceito de mesa
permanece o mesmo em cada uma das mesas singulares. Um signo
linguístico possui uma natureza conceitual, por isso cumpre a função de
designar objetos gerais. Não é isso o que ocorre com o pronome “eu”,
pois não há um objeto geral “eu”; este pronome possui uma referência
própria que somente em cada atualização singular da língua é
desempenhada pelo sujeito que fala. Esta é uma propriedade
fundamental do “eu” que o distingue dos demais signos linguísticos:

Cada instância de emprego de um nome refere-se a uma


noção constante e “objetiva”, apta a permanecer virtual ou
a atualizar-se num objeto singular, e que permanece
sempre idêntica na representação que desperta. No
entanto, as instâncias de emprego de eu não constituem
uma classe de referência, uma vez que não há “objeto”
definível como eu ao qual se possam remeter
identicamente estas instâncias. Cada eu tem a sua
referência própria e corresponde cada vez a um ser único,
proposto como tal. (Benveniste, 1976a, p.278)

Portanto, uma vez que eu não pode se definir em termos de


objetos como um signo nominal, sua definição restringe-se a termos de
“locução”, ou seja, a única “realidade” a qual o eu remete é a “realidade
21

de discurso”: “(...) a forma eu só tem existência linguística no ato de fala


que a profere” (Benveniste, 1976a, p.279).
No entanto, esta introdução da posição do falante como fator
fundamental para a compreensão da função comunicativa da linguagem,
assegurada pela possibilidade que a própria linguagem fornece ao
dispor de uma série de formas pronominais aptas a serem apropriadas
pelo sujeito no exercício do ato de fala, chega até mesmo a ir mais além
da mera introdução da posição do falante. Para Benveniste, o ato da
comunicação permite ao falante constituir-se como sujeito.
Em “Da subjetividade na linguagem” (1976b), Benveniste aborda
a noção de subjetividade “como a capacidade do locutor para se propor
como ‘sujeito’” (Benveniste, 1976b, p.287). Para o linguista, a
subjetividade não é o sentimento que experimentamos de sermos nós
mesmos, mas a unidade psíquica que reúne a totalidade de nossas
experiências, transcendendo-a e garantindo a permanência da
consciência. E o que justamente permite esta apreensão das
experiências nada mais é que “a emergência no ser de uma propriedade
da linguagem” (Benveniste, 1976b, p.286). É o status linguístico da
“pessoa” que determina a subjetividade.
Além disso, assim como não há um falante anterior à linguagem,
também não há um falante isolado do emissor - e a noção de
subjetividade, para Benveniste, derivaria desta dupla impossibilidade. O
sujeito adviria da atualização da língua em discurso, da apropriação que
o falante faz do código da língua, em uma situação intersubjetiva cujo
resultado seria a comunicação. Benveniste conceitua a linguagem como
uma aptidão a exercer a comunicação intersubjetiva. Subjetividade,
comunicação e linguagem se constituem a um só tempo.
Por um lado, a subjetividade depende de propriedades da
linguagem que se efetuam no âmbito do discurso, por outro, só há
comunicação porque há um sujeito que, ao se apropriar da instância
discursiva “eu”, dirige-se a outra pessoa. Nas palavras do linguista:
22

A linguagem só é possível porque cada locutor se apresenta


como sujeito remetendo a ele mesmo como eu no seu
discurso. Por isso, eu propõe outra pessoa, aquela que,
sendo embora exterior a “mim”, torna-se o meu eco – ao
qual digo tu e que me diz tu. A polaridade das pessoas é na
linguagem a condição fundamental, cujo processo de
comunicação, de que partimos, é apenas uma conseqüência
totalmente pragmática. (Benveniste, 1976b, p.287)

Ao assinalar a importância deste processo de apropriação da


linguagem pelo sujeito que fala a alguém, Benveniste avança em relação
ao modelo saussuriano de linguagem. Entre o plano da língua, sistema
de signos regido por regras sociais que se restringem ao seu caráter
universal, distinto do caráter intersubjetivo, e o plano da fala, ato
individual de atualização do código da língua, Benveniste introduz o
plano do discurso: “que é a língua enquanto assumida pelo homem que
fala, e sob a condição de intersubjetividade, única que torna possível a
comunicação linguística” (Benveniste, 1976b, p.293).
O plano do discurso, responsável pela função comunicativa da
linguagem, não se restringe à noção saussuriana de fala, pois além da
atualização individual da língua, as instâncias do discurso abarcam a
posição de um sujeito que se constitui em relação a outro, constituindo,
ao mesmo tempo, a própria possibilidade de a linguagem comunicar.
Este ato de fala concebido deste modo, como plano do discurso,
inaugura a dimensão da enunciação a partir da qual um ato de fala
individual adquire alcance social. Benveniste, para abordar este alcance
social do âmbito do discurso, e inspirado na teoria dos performativos de
Austin, recorre à enunciação subjetiva de alguns verbos como jurar,
prometer, garantir. Tais verbos quando proferidos pela terceira pessoa,
ele, não obtêm esse efeito, porque se reduzem a uma mera descrição.
Dizer “Ele jura” é descrever que uma terceira pessoa, a ser ocupada por
alguém na instância do discurso, jura. Já quando digo “Eu juro”, não
descrevo que estou jurando, pois de fato juro. A enunciação se confunde
23

com o próprio ato, adquirindo, assim, alcance social. Nas palavras do


linguista:

A enunciação je jure é o próprio ato que me compromete,


não a descrição do ato que eu cumpro. Dizendo je promets,
je garantis, prometo e garanto efetivamente. As
consequências (sociais, jurídicas, etc.) do meu juramento,
da minha promessa se desenrolam a partir da instância de
discurso que contém je jure, je promets. A enunciação
identifica-se com o próprio ato. Essa condição, porém, não
se dá no sentido do verbo: é a “subjetividade” do discurso
que a torna possível. (Benveniste, 1976b, p.292)

Da ênfase concedida ao plano do discurso, Benveniste em “La


forme et le sens dans le langage” (1974) explicita o movimento pelo qual
ele foi levado a ultrapassar o modelo saussuriano e abordar a distinção
entre a forma e o sentido na linguagem, instituindo uma dicotomia entre
a dimensão semiótica e a dimensão semântica da linguagem.
É novamente ao se perguntar pela função comunicativa da
linguagem que Benveniste chega ao âmbito do ato de fala pelo qual o
falante coloca em ação a língua. Estabelece, assim, a distinção entre o
signo e a frase. Enquanto o signo linguístico caracteriza-se por significar,
ao adquirir significação por meio da relação de oposições binárias com
outros signos no sistema da língua, a frase se ocupa de comunicar, ou
seja, de efetuar a atualização linguística do pensamento do falante.
Assim, o signo é a unidade semiótica que permite significar, enquanto a
frase é a unidade semântica que permite comunicar. Comunicar torna-
se uma propriedade da função semântica da língua que ultrapassa a
significação de um signo linguístico, remetendo à situação do discurso:

A semiótica caracteriza-se como uma propriedade da


língua, a semântica resulta de uma atividade do locutor que
coloca em ação a língua. O signo semiótico existe em si,
funda a realidade da língua, mas ele não comporta
aplicações particulares; a frase, expressão da semântica, é
24

somente particular. Com o signo, atinge-se a realidade


intrínseca da língua; com a frase, reunimo-nos às coisas
fora da língua; e enquanto o signo tem como parte
constituinte o significado que lhe é inerente, o sentido da
frase implica a referência à situação do discurso e a atitude
do locutor. (Benveniste, 1974, p.225)

Assim, preservando o hiato entre a língua e a fala saussurianas,


Benveniste situa a instância do discurso como um gesto de apropriação
através da qual o falante atualiza a língua em um ato de fala. De acordo
com Agamben (2005), Saussure, em um manuscrito inédito, reconhece
a dramaticidade da questão da passagem da língua à fala, embora seja
Benveniste quem a irá abordar através dessa nova distinção: entre
semiótico e semântico – entre sistema de signos e discurso. Em suas
palavras, trata-se de uma questão fundamental:

Pois o fato de existir uma diferença entre língua e fala, e de


que seja possível passar de uma a outra – que todo homem
falante seja o lugar desta diferença e desta passagem -, não
é algo natural e, por assim dizer, evidente, mas é o
fenômeno central da linguagem humana, do qual somente
agora, graças aliás aos estudos de Benveniste, começamos
a entrever a problematicidade e a importância, e que vem a
ser a tarefa essencial com a qual terá de medir-se toda
futura ciência da linguagem (Agamben, 2005, p.63).

No artigo “Infância e história: ensaio sobre a destruição da


experiência” (2005), Agambem lembra-nos de que a origem da palavra
infância remete à não-falante, a fim de situar a distinção de Benveniste
entre semiótico e semântico como limites transcendentais que definem
a infância e que, ao mesmo tempo, são definidos a partir dela. É
justamente porque o homem não é desde sempre falante, ou seja,
porque possui uma in-fância, que cinde a abstrata língua una, ao
necessitar constituir-se como sujeito, através da enunciação do
pronome “eu”, para poder enfim falar. Assim é a infância que põe a
25

natureza do homem como cindida de modo original, pois introduz a


descontinuidade e a diferença entre língua e discurso.
Novamente, nas palavras do autor:

A dimensão histórico-transcendental, que designamos com


este termo [infância], na realidade situa-se precisamente
no “hiato” entre semiótico e semãntico, entre língua pura e
discurso, e fornece, por assim dizer, a sua razão. É o fato de
que o homem tenha uma infância (ou seja, que para falar
tenha de expropriar-se da infância para constituir-se como
sujeito da linguagem) a romper o “mundo fechado” do
signo e a transformar a pura língua em discurso humano, o
semiótico em semântico (Agamben, 2005, p.67)

A infância seria esse momento mesmo em que o sujeito se


constitui na e pela linguagem através de uma apropriação da língua em
uma instância de discurso. Nas palavras do autor: “Na medida em que
possui uma infância, em que não é sempre já falante, o homem não pode
entrar na língua como sistema de signos sem transformá-la
radicalmente, sem constitui-la como discurso” (Agamben, 2005, p.68)
Deste modo, consideramos que a abordagem deste gesto de
apropriação da língua pelo falante, pelo qual ele mesmo constitui-se
como sujeito, é inseparável do estudo dos processos de aquisição da
linguagem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, G. Infância e história: destruição da experiência e


origem da história. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005.
BENVENISTE, E. A natureza dos pronomes In: Problemas de
Lingüística Geral. São Paulo: Ed. Nacional, 1976a.
______. Da subjetividade na linguagem In: Problemas de Lingüística
Geral. São Paulo: Ed. Nacional, 1976a.
26

______. La forme et le sens dans le langage. In: Problèmes de


linguistique générale, v.2. Paris: Gallimard, 1974.
SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2006.
27

A GESTUALIDADE EM A CASA DO MICKEY: UMA ESTRATÉGIA


INTERATIVA NO DESENHO ANIMADO CONTEMPORÂNEO

Heloísa Ramos Mendes, IFPB


Celiany Gomes, IFPB
José Moacir Soares da Costa Filho, IFPB

RESUMO: O trabalho descrito foi desenvolvido com o objetivo de


investigar como os elementos não verbais, influenciados pelos recursos
inovadores presentes na constituição de um desenho animado
interativo (o norte-americano A casa do Mickey), junto aos aspectos
verbais, auxiliam o estabelecimento da interação proposta pela
animação. Levantaram-se, junto aos episódios selecionados, dados que
possibilitaram o conhecimento da estratégia de interação com o
telespectador infantil. Para tanto, teve-se como base a discussão sobre
gestos feita por Kendon (1982), em que este classifica os gestos como:
emblemáticos, pantomímicos e gesticulação. A discussão presente no
estudo foi realizada a partir de recortes extraídos de dois episódios do
desenho animado A casa do Mickey, em que são observados os
momentos de interação entre o personagem e o telespectador. Tendo
em vista os aspectos observados, entende-se que a utilização de tais
gestos constitui-se como recurso frequente para o estabelecimento da
interação entre desenho animado e telespectador.

PALAVRAS-CHAVE: desenho animado, interação, telespectador, gestos.

ABSTRACT: The work described was developed with the aim of


investigating how the nonverbal elements, influenced by the innovative
resources presented in an interactive cartoon (the American Mickey
Mouse Club House), and the verbal aspects, support the establishment of
the interaction proposed by the animation. Data collected from the
selected episodes provided the analysis of the strategy of interaction
with the child spectator. As theoretical support, this work is based on
28

Kendon’s (1982) considerations about gestures, in which he classifies


the gestures as: emblematic, pantomimes, and gesticulation. The
discussion conducted in this paper was developed with samples
extracted from two episodes of the cartoon Mickey Mouse Club House, in
which the moments of interaction between character and spectator are
observed. Considering the analyzed aspects, it is noticeable that the use
of such gestures constitutes a frequent resource to the establishment of
interaction between cartoon and spectator.

KEY-WORDS: cartoon, interaction, spectator, gestures.

INTRODUÇÃO

Pode-se afirmar que, na atualidade os desenhos animados


interativos estão muito presentes na rotina infantil, visando suprir as
necessidades existentes no relacionamento da criança como forma de
aprendizado e diversão. Levando em consideração a análise dos dados
obtidos a partir da animação A casa do Mickey, despertou-se o interesse
pelo estudo de questões multimodais, tomando por base discussões
teóricas frequentemente utilizadas em pesquisas sobre aquisição de
linguagem presentes principalmente nos estudos feitos por Kendon
(1982). Isso se deve ao fato de a televisão estar cada vez mais presente
nos lares e, para muitos, ser a principal atividade de lazer, chegando a
competir com as brincadeiras infantis (OLIVEIRA, 2005).
O objetivo deste trabalho é, portanto, analisar a possível influência
dos elementos (verbais e não verbais) componentes do desenho
estudado no estabelecimento da interação com o telespectador. E, para
isso foi analisado a utilização dos gestos produzidos em dois episódios:
“As aventuras do Mickey no país das Maravilhas” e “Uma aventura do
Mickey no Mundo das cores”, onde se podem perceber três tipos
gestuais, são eles: gesticulação (emerge ao longo do fluxo da fala e é
usado de maneira quase involuntária.); emblemático (é determinado
29

culturalmente e convencional dentro da sociedade) e pantomímico


(simula ações e tem caráter de narrativa).
As análises apontam que as produções gestuais ganham espaço
relevante dentro do desenho e funcionam como estratégia não verbal
que auxiliam a produção de sentidos.

1 ANIMAÇÃO E GESTUALIDADE

1.1 A CASA DO MICKEY: UM DESENHO CONTEMPORÂNEO

Observa-se que, no cenário atual, o desenho animado A casa do


Mickey possui uma estrutura interativa que “convida” o telespectador a
participar da animação. Esta nova configuração de desenho vem sendo
cada vez mais explorado na contemporaneidade, tendo em vista a
necessidade de oferecer ao público um desenho que seja atrativo,
seduzindo-o e tornando o telespectador infantil parte da animação
(GARCEZ & OLIVEIRA, 2001; SANTOS FILHO, 2008; COSTA FILHO,
2011). Levando-se em consideração que estamos vivendo um mundo
onde as babás cuidam dos filhos dos patrões enquanto eles trabalham,
este formato de desenho animado funciona como uma “babá eletrônica”
(PILLAR, 2001, p.25). Em virtude disto, a animação interativa é capaz de
suprir parte da necessidade que os pais ou alguém da mesma idade da
criança faz, sendo capaz de ensinar e, ao mesmo tempo divertir o
telespectador. Desta forma, transmitindo a cultura ocidental através,
também, de aspectos não verbais, como os gestos, por exemplo. A
compreensão destes se dá devido ao fato de já estão presentes no dia a
dia da sociedade e de que são utilizados de forma quase automática.
O desenho estudado em questão (A casa do Mickey) é de origem
norte-americana e representa uma nova versão da tradicional animação
da Disney do ano de 1968, Mickey Mouse, o qual passou por inúmeras
mudanças, desde a criação de novos personagens até o roteiro da
animação. Este novo formato de desenho animado está associado ao que
Garcez e Oliveira (2001) chamam de indústria da animação, pois na
30

contemporaneidade, as animações buscam cada vez mais interagir com


seus consumidores, isto é, os telespectadores.
A seguir, será feita uma breve discussão sobre a classificação dos
gestos apresentada por Kendon (1982).

1.2 CLASSIFICAÇÃO DOS GESTOS

A utilização dos gestos ao longo do desenho animado pode ser


associada à sistemática interpretativa e ligada aos conceitos culturais,
além da construção do processo de referência do espaço virtual em que
se dá o episódio.
Dentre os gestos executados nos dois episódios, foram
identificados três tipos de gestos segundo a classificação de Kendon
(1982): o gesto emblemático, o gesto pantomímico e a gesticulação. O
primeiro gesto, é aquele determinado culturalmente, é convencional
dentro da sociedade. O segundo, por sua vez, é um gesto que simula
ações e tem caráter de narrativa. Por último, a gesticulação, envolve os
gestos os quais emergem ao longo do fluxo da fala, tendo a função de
garantir sua continuidade.
Devido ao fato de a maioria os gestos serem dirigidos a algum
objeto ou personagem, o protagonista que realiza essa ação, por muitas
vezes, olha para a tela, como se utilizasse o gesto para a criança
telespectadora. O gesto por diversas situações é seguido de perguntas
ou um simples diálogo associado ao contexto da produção gestual. Com
isso, percebe-se que o gesto está diretamente ligado à interação da
criança com o Mickey, fazendo-a se sentir parte integrante do desenho
animado.

2 METODOLOGIA

Para a realização deste artigo utilizou-se como metodologia a


pesquisa qualitativa, através da qual foram selecionados dois episódios
do desenho animado A casa do Mickey – “As aventuras do Mickey no país
31

das Maravilhas”, com duração aproximada de 49min 38seg, e “Uma


aventura do Mickey no mundo das cores”, com duração aproximada de
24min 06seg –, para ilustrar os elementos que são focos na análise: os
gestos emblemáticos, pantomímicos e gesticulação, conforme
classificação fornecida por Kendon (1982).
Para tanto, selecionamos, dentre os episódios observados,
exemplos que ilustram a utilização de gestos durante momentos em que
a animação se constitui de modo a propor a interação com o
telespectador.
Os dados serão apresentados conforme a classificação dos gestos
abordada neste trabalho.

3 DADOS E RESULTADOS

A análise dos resultados que, a seguir, serão apresentados foi


coletada junto aos episódios selecionados ao longo de toda a execução
do projeto. Os episódios foram separados por desenho animado com o
objetivo de organização e compreensão por parte do leitor.

3.1 Gestos emblemáticos

Observando as ocorrências dos gestos emblemáticos nos


episódios “As aventuras do Mickey no país das Maravilhas” e “Uma
aventura do Mickey no Mundo das cores”, foram escolhidos dois
exemplos, sendo os dois primeiros correspondentes ao primeiro
episódio.

Exemplo 1: Apontar com o dedo


O Mickey utiliza este gesto logo no início do episódio quando o
Pato Donald chega a sua casa com o presente de aniversário de
Margarida.
Nos primeiros momentos do episódio, aos 2 minutos e 10
segundos, há alguém batendo na porta e o Mickey pergunta quem o
32

telespectador acha que é, logo depois o Pato Donald entra correndo


segurando um relógio (presente de aniversário da Margarida). O diálogo
entre eles segue até que o Mickey pergunta:

Mickey: Puxa vida, Donald! Acho que a Margarida vai gostar mesmo do
presente dela. E aí, você sabe o que é? (olha para frente e aponta com o
dedo para o relógio)
Pato Donald: É um relógio!
Mickey: Um relógio cuco!
Figura 1 - Gesto de apontar do Mickey para o relógio.

Exemplo 2: Acenar com a mão


A Minnie e o Mickey utilizam esse gesto para se despedirem após
terem encontrado a chave para abrir a porta que dava acesso ao jogo de
críquete da Clarabela.
Na metade do episódio, aos 23 minutos, o Mickey, o Pato Donald e
a Minnie pedem ajuda ao mickey-objetos Toodles para conseguir abrir a
porta. Ao fazê-lo, Minnie deseja boa sorte o Mickey agradece, e ela acena
com a mão dando ‘tchau’.

Minnie: Boa sorte!


Mickey: Obrigado pela ajuda, Minnie.
Minnie: Não há de que!
33

Figura 2 - Minnie e Mickey se despedindo.

Ao analisar os contextos em que ocorrem, os gestos emblemáticos,


produzidos pelo Mickey como apontar com o dedo indicador (exemplo
1), e acenar dando tchau (exemplo 2) cumprem o significado
culturalmente submetido a estes gestos. Devido ao fato de a maioria dos
gestos serem dirigidos a algum objeto ou personagem, o protagonista
que realiza esta ação, por muitas vezes, olha para a tela, como se
utilizasse o gesto para a criança telespectadora. O gesto por diversas
situações é seguido de perguntas ou um simples diálogo associado ao
contexto da produção gestual. Com isso, percebe-se que o gesto está
diretamente ligado à interação da criança com o Mickey, fazendo-a se
sentir parte integrante do desenho animado.

3.2 Gestos pantomímicos

Exemplo 3: Binóculo com as mãos


O Mickey realiza esse gesto em sinal de que está à procura de algo.
Ao tempo de 7 minutos, com o problema das cores surgindo, a segunda
cor do arco-íris para ser encontrada é a laranja. Então, o Mickey pede
ajuda aos “supercoletores de cores” (os telespectadores) para encontrar
algum objeto com a cor laranja. Sendo assim, ele imita um binóculo com
as mãos.
34

Mickey: Muito bem supercoletores de cores, vamos usar os superolhos


coletores de cores e procurar uma coisa laranja! Se virem alguma coisa
laranja, digam: “laranja!”.
Figura 3 - Binóculo do Mickey com as mãos.

Exemplo 4: Tesoura com a mão

O Mickey realiza esse gesto em função de os telespectadores o


ajudar a cortar a fita da caixa da Margaria.
Ao tempo de 13 minutos, o Mickey e seus amigos estão tentando
encontrar algum objeto azul para incluir às cores do arco-íris e evitar
que o lugar onde moram perca toda a cor. Ao encontrar, o Mickey e os
demais personagens pedem ajuda ao mickey-objetos Toodles, onde
desejam algo que corte o laço da caixa de Margarida para, assim, pegar
o laço azul. Após acharem a tesoura, o Mickey pede ajuda aos
telespectadores para cortar a fita da caixa e faz o gesto da tesoura com
as mãos enquanto o Pato Donald está com a tesoura de verdade para
abrir a caixa.

Mickey: Muito bem coletores de cores. Ajudem o Donald a cortar a fita.


Façam uma tesoura com os seus dedos e depois cortem, cortem, cortem!
(faz o movimento da tesoura com a mão).
35

Figura 4 - Tesoura do Mickey com a mão.

Consideravelmente presente nos dois episódios analisados, o


gesto pantomímico, ou pantomima, é um gesto em que, segundo Kendon
(1982), através de movimentos realizados pelo corpo uma ação é
simulada, ou seja, é um tipo de gesto que imita objetos ou animais
através de ações feitas por uma pessoa.
Nos exemplos (3 e 4) acima, pode-se perceber que a ação criada
com tais gestos – binóculo e tesoura – dizem por si só qual mensagem
querem passar, pois, cada um apresenta um significado que está
presente em nosso cotidiano. As mãos em volta dos olhos significam que
se está à procura de algo, assim, o Mickey o faz, e pede ajuda a quem
assiste para encontrar algum objeto, desse modo, simulando um
binóculo. A tesoura é como se fosse o numeral 2 (dois) com os dedos,
mas a ideia de número muda a partir do movimento de abre e fecha na
horizontal.

3.3 Gesticulação

Exemplo 5: Acompanhamento da fala com as mãos


Ao tempo de 2 minutos, o Pato Donald chega à casa do Mickey com
um relógio. O Mickey o cumprimenta e o Pato Donald mostra o relógio
que trouxe, no entanto, o Mickey segue a fala gesticulando e pergunta se
o relógio é um presente para ele.
36

Mickey: Tudo bem, Donald?


Pato Donald: Mickey, olha o que eu trouxe.
Mickey: Oh, um presente pra mim?
Pato Donald: Não, não, não, não, não! É um presente pra Margarida. Hoje
é o aniversário dela.
Figura 5 - Mickey gesticulando ao falar com o telespectador.

Outro gesto comumente encontrado nos episódios de A casa do


Mickey é a gesticulação. Pode-se afirmar que é um gesto quase
imperceptível, pois, está fortemente presente em nosso dia a dia e o
utilizamos sem perceber. É um ato quase que involuntário utilizado com
a função de garantir a continuidade da fala (CAVALCANTE e BRANDÃO,
2012). Na imagem acima (figura 5), retirada do episódio “Aventura do
Mickey no país das Maravilhas”, o Mickey está cumprimentando o Pato
Donald (o qual não aparece na sequência da figura) que chega a sua casa
com um relógio – onde, ao longo da fala o personagem gesticula com as
mãos – e, ao ver o objeto, o Mickey pergunta se é para ele, direcionando,
automaticamente, sua mão contra seu peito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, observou-se a relação entre o desenho animado e


a criança telespectadora no que se refere ao uso da linguagem não
verbal, em especial, os gestos. Estes foram analisados com base nos
estudos feitos por Kendon (1982), onde são utilizados como forma de
aquisição da fala. Fazendo, assim, com que, quem assiste absolva o que
vê e passe a utilizá-lo em sua vida social. Dessa forma, a gestualidade
promove a interação do desenho com a criança telespectadora.
37

Partindo da análise dos dados apresentados, percebeu-se a


presença de três tipos de gestos no desenho animado com
predominância dos gestos emblemáticos. Acredita-se que, tal fato está
associado ao caráter cultural e convencional desta tipologia gestual, pois
estes gestos podem facilitar a compreensão do sentido da animação
pelos telespectadores.
A utilização de tais gestos pode estar ligada à formação da cultura
servindo de ponte para a construção do processo de referência espacial
da criança, pois a partir de gestos utilizados pelos personagens, em
especial pelo protagonista, em diversos contextos, não só os próprios
personagens, mas também objetos presentes na cena são situados no
espaço virtual em que se dá o desenho animado.

REFERÊNCIAS

CAVALCANTE, M. C. B.; BRANDÃO, L. W. P. Gesticulação e influência:


contribuições para a aquisição da linguagem. <http://www.iel.uni
camp.br/revista/index.php/cel/article/view/2580/2006> Acesso em:
19 de out de 2013.
COSTA FILHO, J. M. S. da. “Olá, Pocoyo!”: A constituição da atenção
conjunta infantil com o desenho animado. Dissertação de Mestrado.
Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2011.
GARCEZ, L.; OLIVEIRA, J. Explicando Arte: uma iniciação para entender
e apreciar as Artes Visuais. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
KENDON, A. The Study of Gesture: some remarks on its history.
Recherches sémiotiques/semiotic inquiry, 2 v, p. 45-62, 1982.
PILLAR, A D. Criança e televisão: leituras de imagens. Porto Alegre:
Mediação, 2001.
SANTOS FILHO, A. S. dos. Desenho animado como habitus estético-
televisual. In: 1º Congresso Internacional em Estudos da Criança –
Infâncias Possíveis, Mundos Reais. Braga: Instituto de Estudos da
Criança/Universidade do Minho, 2008.
38

A PRESENÇA DA GESTUALIDADE NA AULA DE LEITURA COMO


FATOR INTRINSECO PARA O APRENDIZADO NA EDUCAÇÃO
INFANTIL

Cristiane Marinho da Costa (UFPB)

RESUMO: Este estudo objetiva analisar a presença da gestualidade


como fator intrínseco e fundamental na aula de leitura com a educação
infantil. Abordaremos em primeiro plano a temática da educação
infantil, expondo a compreensão sobre o conceito de criança que é vista
como um sujeito social que constrói o conhecimento a partir das
interações que estabelecem com as outras pessoas e com o meio em que
vivem. Tomaremos como base os estudos de Ferreiro (2006) e Escher
(2006). Mencionaremos aspectos relacionados à linguagem e a leitura
em que destacaremos a visão interacionista de Bakhtin/Volochinov
(1979-2002) para quem a linguagem é dialógica e a leitura pode ser
vista como um processo dialógico e interacional. Destacamos também
os trabalhos de Schneuwly e Dolz (2004), que têm dedicado especial
atenção ao ensino da linguagem. A seguir, elucidaremos posições
teóricas relacionados à gestualidade, tomando como base os estudos de
McNeill (1985), Kendon (1982), Cavalcante (1994 e 2009) entre outros.
A pesquisa será do tipo bibliográfica. Por meio do trabalho com a
gestualidade na aula de leitura para a educação infantil, evidenciamos,
neste estudo, a reflexão e análise sobre a gestualidade na aula de leitura
como preponderante e inseparável, para uma maior compreensão da
criança com o objeto lido. A linguagem é dinâmica, a leitura
consequentemente também o é, os gestos pois, definem e asseguram
esta dinamicidade na sala de aula. Se tratando da educação infantil,
conforme relatado neste estudo, é primordial a presença da
gestualidade na aula de leitura com as crianças. Por fim, vamos expor
nossa proposta de trabalho com a leitura e a gestualidade na educação
infantil, apontando exemplificações de aulas de leitura em que a
presença do gesto se configura como fundamental no processo de
39

ensino e aprendizagem entre professor e aluno. (Apoio: CAPES – PNPD


– Processo nº 23038.007066/2011-60)

PALAVRAS-CHAVE: Leitura. Gestualidade. Educação infantil.

ABSTRACT: This study aims to analyze the presence of gestures as an


intrinsic and fundamental factor in class reading with children's
education. Cover in the foreground the issue of early childhood
education, exposing the understanding of the concept of child who is
seen as a social subject that builds knowledge from the interactions they
establish with other people and with the environment in which they live.
We will build on the studies of Smith (2006) and Escher (2006). Mention
aspects related to language and reading in which we will highlight the
interactionist view of Bakhtin / Voloshinov (1979-2002) for whom
language is dialogic reading and can be seen as a dialogical and
interactional process. We also highlight the work of Schneuwly and Dolz
(2004), who have devoted special attention to the teaching of language.
The following elucidate related gestures theoretical positions, based on
the studies of McNeill (1985), Kendon (1982), Choi (1994 and 2009)
among others. The search will be the bibliographic type. Through work
with gestures in class reading for early childhood education, evidenced
in this study, reflection and analysis of the gestures in class reading as
prevalent and inseparable, to a greater understanding of the child to
read the object. Language is dynamic, hence the reading is too, because
the gestures, define and provide such dynamics in the classroom. The
case of early childhood education, as reported in this study, is the
presence of primary gestures in class reading with children. Finally, we
present our proposal to work with reading and gestures in early
childhood education, pointing exemplifications of reading classes in
which the presence of the gesture is configured as crucial in the process
of teaching and learning between teacher and student.

KEYWORDS: Reading. Gestures. Childhood education.


40

1. Introdução

É notório que em relação à Educação Infantil, nos últimos anos


houve um avanço significativo no atendimento às crianças de 0 a 6 anos.
Um dos fatores é a realidade da nova organização familiar A LDB, no seu
capítulo V, Da Educação Especial, parágrafo 3 o, determina que: “A oferta
de educação especial, dever constitucional do Estado, tem início na faixa
etária de zero a seis anos, durante a educação infantil”.
O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil é um
documento voltado especificamente para a educação infantil, tem como
referência a criança. Segundo o Referencial Curricular Nacional para
Educação Infantil (1998), alertam para a necessidade dos educadores
estarem mais atentos ao desenvolvimento da linguagem da criança,
como também aos processos de interação social que estabelecem, pois,
neles, conflitos, negociações de sentimentos, ideias e soluções
compartilhadas emergem, constituindo-se como elementos
indispensáveis para o desenvolvimento da linguagem oral e
aprendizagem da criança.
Portanto, a criança deve ser vista como um ser social e cultural,
capaz de interagir por meio da linguagem nas trocas sociais, precisando
aprender com os outros, sejam eles adultos ou não. Não podemos
esquecer também das "Diretrizes Curriculares Nacionais", documento
que apresenta as diretrizes obrigatórias a serem seguidas por todas as
instituições de educação infantil de forma objetiva e clara. Essas
diretrizes definem os fundamentos que nortearão as Propostas
Pedagógicas das Instituições para a Educação Infantil. As Diretrizes
Curriculares Nacionais determinam os objetivos gerais da Educação
Infantil, visto como orientador e incentivados dos projetos educacionais
e pedagógicos, em todos os níveis de atuação da educação infantil,
visando a cobertura para propiciar à formação integral da criança e
atendendo a todos os envolvidos com as mesmas, ou seja, os educadores,
a família e a sociedade.
41

Trabalhar com a educação infantil pressupõe um conhecimento


sobre a realidade deste ensino no Brasil, assim foram traçados
documentos com os objetivos relacionados a este propósito, o ensino na
educação infantil.
Nesta perspectiva, o professor também assume um papel
preponderante e diversificado para se trabalhar com a educação infantil.
Na concepção tradicional a tarefa primaria da educação era o professor
visto como detentor do saber e a criança como receptor passivo. Nos
dias atuais, temos novas concepções sobre o ensino e a aprendizagem
em que o professor é visto como mediador do ensino e o aluno como
participante, pois o ensino e a aprendizagem acontecem como um
processo. Nesse sentido, o exercício da docência não se reduz a uma
mera aplicação de modelos previamente estabelecidos, ao contrário, é
construído a partir das práticas dos sujeitos, historicamente situados. É
importante também estarmos atentos na formação docente para o
século XXI, com as novas perspectivas educacionais e com o avanço da
tecnologia.
Não é desconhecido para nós educadores (ou não deveria ser) que
a criança é um sujeito social e histórico que faz parte de uma
organização familiar e está inserida na sociedade. Educar, nesta
perspectiva, significa, portanto, propiciar situações de aprendizagem de
uma forma integrada. A organização de situações de aprendizagem deve
visualizar o professor como mediador entre as crianças e o
conhecimento para que a aprendizagem ocorra de forma salutar é muito
importante o professor agir como mediador e tomar como ponto de
partida os conhecimentos adquiridos pela criança, em seu ambiente
familiar e no seu convívio social.
Podemos dizer que a criança, no processo de aprendizagem, de
descoberta, de novas experiências, etc, constrói um diálogo com o
mundo, que irá propiciar seu desenvolvimento intelectual e afetivo. A
criança incorpora a linguagem a partir de suas relações com o meio em
que vive. Ela busca manipular a linguagem para se expressar em seu
42

cotidiano. Para se expressar, na fase de aquisição da linguagem, utiliza


muito da fala.
A aprendizagem é um processo, e enquanto tal necessita de tempo
para o aprendizado. Se tratando da educação infantil, o professor não
pode perder de vista que para a criança é tudo muito novo, sua chegada
a escola, a descoberta da figura do professor, de outras crianças tão
próximas e que estão na atenção também daquele professor, assim, este
professor deve estar atento a este mundo novo que a criança está
imersa. Portanto, a educação não pode se apresentar como algo pronto,
acabado e fechado para a criança.
Ao professor cabe o papel de direcionar as crianças neste mundo
de aprendizado da fala, da leitura e da escrita. Na visão de Cagliari
(1999), o bonito da verdadeira educação é ser um caleidoscópio: a
diferença a todo instante é seu charme e beleza; cada momento revela
algo de novo e surpreendente. A educação deve formar pessoas
diferentes, não clones, réplicas intelectuais. Ao lidar com crianças, é
preciso ter em mente que elas são seres individuais e únicos, bem como
que “na educação se propõe, e não se impõe” (Cagliari, 1999. p.111).
Na educação infantil, ao ingressar na escola, desde a creche, a
criança estará rodeada pelo mundo da escrita, da fala e da leitura; Na
alfabetização, a criança terá acesso a este aprendizado, por volta dos 3 e
4 anos inicia o processo de aquisição formal da escrita.
A criança, como todo ser humano, é um sujeito social e histórico e
faz parte de uma organização familiar que está inserida em uma
sociedade, com uma determinada cultura, em um determinado
momento histórico. As crianças possuem uma natureza singular, que as
caracteriza como seres que sentem e pensam o mundo de um jeito muito
próprio.
No processo de construção do conhecimento, as crianças se
utilizam das mais diferentes linguagens e exercem a capacidade que
possuem de terem ideias e hipóteses originais sobre aquilo que buscam
desvendar.
43

Mas, por que estamos falando sobre estes aspectos? Porque


precisamos desta compreensão da criança como um todo, para
visualizarmos em que circunstâncias devemos responder às suas
necessidades. Também é notório que as crianças constroem o
conhecimento a partir das interações que estabelecem com os outros e,
consequentemente, com o meio em que vivem.
É notório que a criança, neste processo de aprendizado, de
descoberta, de novas experiências, etc, constrói um diálogo com o
mundo, que irá proporcionar o seu desenvolvimento intelectual e
afetivo.
Cabe, pois, ao professor, atento e interessado, auxiliar na
construção conjunta das falas das crianças, ouvir atentamente o que a
criança diz para ter certeza de que entendeu o que ela falou, visando
ajudá-la continuamente no processo de desenvolvimento linguístico.

2. Sobre a Linguagem e a Leitura

No estudo ora proposto, refletirmos e analisarmos a gestualidade


na aula de leitura na educação infantil, pretendemos trabalhar com a
visão interacionista, elencando as características inerentes de uma aula
interativa em que, consequentemente, vincula-se a utilização dos
gêneros no processo de ensino e aprendizagem.
Na visão interacionista o espaço escolar tornou-se um lugar
interativo. Nele interagem os sujeitos, professor e aluno, e o
conhecimento circula nas diversas modalidades de gêneros textuais
/discursivos.
Tomando-se a leitura enquanto processo de interação na
construção do sentido do texto é fundamental que o professor perceba
as capacidades do aluno na compreensão desse texto. O aluno poderá
desenvolver sua potencialidade e habilidades nestas aulas, por meio de
metodologias que o levem a participar ativamente da leitura. O
professor, enquanto agente provedor do ensino, deverá contribuir com
44

implementação e novos recursos para a produção de aulas de leitura


mais interativas.
A perspectiva sócio interacionista corrobora para um novo espaço
na escola e, especificamente, na aula de leitura. Um aprendizado em
conjunto, em que a abordagem Tradicional não tem relevância para a
comunidade educacional, tem surgido no interior das práticas dos
professores na aula de leitura como um espaço interativo, um processo
de construção entre o educador e o educando como sujeitos ativos, em
nosso caso, as crianças.
Para Bakhtin (op. cit.) todo gênero tem um conteúdo temático
determinado: seu objeto discursivo e finalidade discursiva; os gêneros
do discurso apresentam três dimensões essenciais e indissociáveis,
entendidas como: tema, que são os conteúdos ideologicamente
conformados que se tornam comunicáveis através do gênero; os
elementos das estruturas comunicativas e semióticas compartilhadas
pelos textos pertencentes ao gênero; e as configurações específicas das
unidades de linguagem, traços da posição enunciativa do locutor e da
forma composicional do gênero.
Tratando-se do estudo sobre os gêneros, nos reportaremos
também a Marcuschi que tem desenvolvido pesquisa e análises nesta
perspectiva dos gêneros. Segundo Marcuschi (2005) os gêneros textuais
já estão profundamente ligados à vida cultural e social, contribuem para
ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do cotidiano. Sendo
assim, apresentam como característica fundamental serem maleáveis e
dinâmicos.

3. Sobre os gestos na Aula de Leitura

A criança, desde muito cedo, tem contato com o mundo da leitura


por meio de seus pais, em casa, no momento da leitura do livro infantil
na hora de dormir, seja observando o pai lendo o jornal, ou quando
percebe que o pai lê as placas sinalizadoras para saber se orientar no
trânsito, ou quando a mãe lê a bula de remédios para saber cumprir as
45

indicações médicas, entre outras situações. Sabemos que, em


contrapartida, também temos crianças que tem pouco ou quase nenhum
contato com estas situações de leitura, mas, de uma forma ou de outra,
a leitura se apresenta para a criança em um determinado momento de
sua vida. Conforme destaca Chartier (1996, p.115): “Para uma criança,
os conhecimentos são em primeiro lugar, construídos dentro da
experiência de mundo no qual ela se move, age e fala com adultos e
outras crianças”.
Dentre estas situações, apresentaremos o uso dos gestos na aula
de leitura como primordial para o aprendizado dos alunos. A
pesquisadora Ferreiro nos indica (2006, p.165): “ [...] Mas, é a presença
da voz o único indicador de um ato de leitura? Obviamente não. É tanto
a postura como a direção do olhar, ou o tipo de exploração que os olhos
realizam”.
A criança reproduz os gestos realizados pelo adulto em relação a
leitura como “ olhar com atenção os desenhos, segura o livro de
determinada maneira e, inclusive, pode chegar a relatar o que vê [...]”.
(op.cit. p.165)
De acordo com os pesquisadores, para a criança, inicialmente, a
leitura não pode ser concebida sem voz. Assim, ela acompanha o gesto
com a voz que escuta, “a exigência de ouvir o que se lê junto com a
interpretação olhando [...]” (FERREIRO, 2006, p.169)
Em outro momento, a leitura da criança se faz independente da
voz, que se diferencia do folhear, é chamada de leitura silenciosa. Para a
autora (op.cit, p.172): “Os atos de leitura silenciosa definem em si
mesmos, e os gestos, a direção do olhar, o tempo e o tipo de exploração,
são índices que mostram e demonstram uma atividade de leitura
silenciosa”.
Sabemos que a linguagem verbal é vista como a principal na
construção do sentido, mas, é também notório o avanço do estudo dos
gestos na significação de textos verbais em situações de sala de aula.
Trata-se de pensar e exercer a gestualidade para, principalmente,
ampliar os significados da leitura; conforme os pesquisadores, percebe-
46

se um paralelo entre as enunciações verbais e os gestos, que servem


para acompanhar o verbal e expressar ideias. Os gestos ilustram a
enunciação verbal e especificam o sentido dos gestos. A linguagem
gestual é essencial para que a criança, carente de um maior repertório
verbal, possa consolidar uma explicação, compreender a leitura, os
sentidos.
De acordo com o estudioso McNeill (1995) no processo de
comunicação deve se levar em conta tanto o aspecto verbal como o não-
verbal, pois formam um todo e assim não pode ser dissociado na
comunicação.
Assim, os gestos fazem parte da construção do sentido do texto na
sala de aula, em especial, trataremos da aula de leitura, analisando o
papel dos gestos como preponderante para o ensino e aprendizagem na
aula de leitura com a educação infantil.
Os estudos sobre os gestos têm sido desenvolvidos de forma mais
profunda pelo cientista McNeill que toma como base os estudos de
Kendon que consideram os gestos como integrante da língua, com
relevância na cognição e na linguagem. O autor indica que o gesto
desempenha um papel na aprendizagem da criança e também pode ser
um indicador de períodos de transição no que diz respeito à aquisição
de novos conceitos, permitindo atenção e um valor pedagógico ao gesto.
O pesquisador McNeill toma como conceituação o termo gestos no
plural, pois assegura que nossos movimentos repercutem ações e não
algo isolado, por isso temos gestos. Para nomear os movimentos que
efetuamos, o pesquisador Kendon (1982) elaborou uma tipologia
denominada de “contínuo de Kendon” que são: a gesticulação; a
pantomima; os emblemas; a(s) língua(s) de sinais. Conforme menciona
Cavalcante1 (2009, p.5):

A gesticulação caracteriza-se como os gestos que


acompanham o fluxo da fala, envolvendo braços,

1Artigo: Rotinas Interativas Mãe-Bebê: Constituindo Gêneros Do Discurso Marianne


Carvalho Bezerra Cavalcante.
47

movimentos de cabeça e pescoço, postura corporal e


pernas, possui marcas da comunidade de fala e marcas do
estilo individual de cada um; a pantomima são gestos que
´simulam´ ações ou personagens executando ações, é a
representação de um ato individual, tem um caráter de
narrativa, pois envolve uma seqüência de micro ações; os
emblemas ou gestos emblemáticos são aqueles
determinados culturalmente (são convencionais) tais
como o uso, em nossa cultura, do gesto que envolve a mão
fechada e polegar levantado significando aprovação; a
língua de sinais enquanto sistema lingüístico próprio de
uma comunidade, no nosso caso, a LIBRAS

Se tratando de gestos tomaremos como parâmetro deste estudo a


proposta de Kendon (2004) que classifica os gestos e apresenta as
seguintes características:
1. Gestos icônicos: tem uma relação formal com o conteúdo semântico
da fala. Exemplo de manifestação destes gestos são com os dedos, as
palmas das mãos, que indicam um momento importante da fala e a
qualidade de objetos como forma, tamanho e a massa; também indica a
posição do falante em determinado lugar.
2. Gestos metafóricos: são reflexos de uma abstração, quando o
conteúdo refere-se a uma ideia abstrata. A diferença entre o gesto
icônico e o metafórico reside no fato que o gesto icônico ser do mundo
real, e o metafórico ser do mundo mental;
3. Gestos de batimento: são gestos que representam percursos curtos
em movimentos rápidos e bifásicos. Estes gestos expressam ênfase em
um momento do discurso. O valor semiótico do gesto de batimento
reside no fato de dar ênfase a um momento do discurso, destacando-o
do discurso antecedente;
4. Gestos dêiticos: são gestos demonstrativos que indicam objetos e
eventos do mundo concreto e fictício. São tipicamente realizados pela
mão, com o dedo indicador esticado, embora possam ser efetuados por
48

qualquer outra parte do corpo (cabeça, nariz, queixo) ou por objetos


(lápis, ponteira, etc.).
Trabalhar com a educação infantil requer do professor uma maior
expressividade em sala, e, especialmente, na aula de leitura, em que a
expressividade, entendida neste estudo como os gestos do professor,
direcionam para a compreensão da leitura pela criança. É incontestável
que o modo como falamos e gesticulamos na aula de leitura corrobora
para a atenção da criança. Portanto, neste estudo analisaremos a
presença desta gestualidade em algumas situações de trabalho com a
leitura com as crianças.

4. A leitura e a gestualidade: um caminho de aprendizado

Proposta de trabalho:
Elucidaremos a seguir algumas propostas de trabalho com a
leitura na educação infantil, visando, refletindo, analisando e
observando a presença intrínseca e fundamental da gestualidade, ora
desenvolvida pela professora, ora pela própria criança, em busca de uma
aproximação com o objeto lido.
Sabemos que a criança nesta fase está ingressando no mundo da
leitura, por meio de sua alfabetização e letramento, em que responder e
compreender a leitura feita pelo professor, não corresponde,
necessariamente, ler o texto, principalmente de forma estrita as letras,
pois nesta fase a leitura da criança é muito mais permeada pela imagem,
os desenhos encontrados no livro, sua identificação com as imagens
lidas, etc.
Apresentaremos algumas situações de leitura a serem
trabalhadas em sala, sempre tendo em vista a presença do gesto como
orientador e fundamental neste processo de aprendizagem pela criança
da leitura.
A – Leitura compartilhada: Os gestos são importantes na interação e
funciona como organização do pensamento.
49

O momento da leitura com as crianças no trabalho em conjunto


propicia uma interação e compartilhar das ideias encontradas no livro e
permite a apropriação de significados em conjunto, numa parceria de
aprendizado. Nesta leitura cada criança aponta, gesticula para o seu
colega o que lhe chamou mais atenção na leitura, direcionando assim o
significado do texto que elas constroem nesta parceria. O gesto de
surpresa, de descoberta, de identificação com a leitura, por meio muitas
vezes dos desenhos, como também por meio do olhar do outro,
representa este papel do professor. Vejamos outra situação de leitura e
os gestos:
B - Leitura oral: gestos do professor – gestos dos alunos. Na concepção
do gesto como linguagem, temos na contação de estórias a gestualidade
como precursora e intima com a leitura, pois direciona a fala da
professora, assim, a gestualidade amplia o significado do texto falado, e
os movimentos da professora na leitura explicam para a criança sobre
aquilo que ela fala.
Fabron (2006) afirma que no contexto de sala de aula, a
expressividade comanda a interação entre professor e aluno, e pode
facilitar a construção do conhecimento, podendo até mesmo garantir a
atenção dos alunos. Sem dúvida, é um momento de prazer e espera pelos
alunos que segue todo um ritual desejado como a hora da leitura, daí
figuram-se os gestos: sentar em círculo, a professora segura o livro,
começa a contar a história em voz alta, utiliza de gestos para expressar
o que está lendo, como a pantomima, e também mostra para as crianças
alguns desenhos sobre o que está lendo. Neste tipo de leitura a
pantomima apresenta-se como fundamental na sala de aula e o
educador deve explorar ao máximo esta gesticulação, em que
representa os personagens lidos e a criança atenciosamente acompanha
o texto. A seguir, trataremos de outra leitura:
C - leitura em conjunto: professor e alunos realizam paulatinamente, em
conjunto, e os gestos acompanham a leitura, ao apontar para a criança
no livro o que está lendo. Este gesto de apontar é definido pelos
estudiosos como um meio comunicativo e não como um gesto aleatório,
50

ou seja, a professora ao apontar para o aluno determinado trecho do


livro (que destaca com o apontar seja um desenho ou outra coisa)
pretende manifestar comunicação com a criança, visando sua
compreensão e leitura daquele objeto apontado.
Percebemos que o gesto, ou seja, a postura da professora em
aproximar-se do aluno e apontar para o texto lido, colabora com a
comunicação e compreensão da criança. Define a leitura como um
momento harmonioso entre a professora a criança e o livro. Assim, por
meio da linguagem corporal, o gesto de apontar, indica a criança o
caminho da leitura, facilitando a leitura como processo de construção do
conhecimento e garantindo a atenção do aluno. Segundo Bakhtin (1995,
p.123): “O livro, isto é, o ato de fala impresso, constitui igualmente um
elemento da comunicação verbal. Ele é objeto de discussões ativas sob a
forma de diálogo e, além disso, é feito para ser apreendido de maneira
ativa”.
D - Leitura curiosa: A criança de 0 a 6 anos é curiosa, investigativa e tem
questionamentos e necessidade de respostas às questões sobre o mundo
que a cerca. Os gestos fazem parte dessa observação, como fixar um
olhar num desenho ou apontar para outro que desconhece ou se
identifica, etc.
De acordo com Oliveira (2001, p.1): “Ler não significa somente
decodificar palavras ou assimilar informações; pode ser também
momento de entusiasmo, de conflito, de transformações, de impulso, de
movimento”. Assim, quando a criança pega o livro e fixa atenciosamente
seu olhar no texto, por meio do gesto do seu olhar, do folhear, de fixar
em determinada página ou figura que, possivelmente, a identifica com
seu mundo, esta leitura curiosa é motivada pelo entusiasmo em
descobrir naquele texto algo que cativa. Seu gesto de segurar o livro com
entusiasmo, com curiosidade é a descoberta do seu mundo com aquele
livro.
51

Considerações Finais

É fundamental para o professor observar, registrar, e refletir


sobre estes aspectos, visando também rever sua pratica e aprender, ou
seja, atuar como um mestre aprendiz. Como nos diz Paulo Freire: “o
professor não é somente aquele que ensina, mas aquele que de repente
aprende”
Por meio da aula de leitura no trabalho com a educação infantil,
evidenciamos, neste estudo, reflexão e análise sobre a gestualidade na
aula de leitura como é preponderante e inseparável, a leitura e os gestos
na leitura para uma maior compreensão da criança com o objeto lido.
Através de cada situação de leitura apresentada em epigrafe,
percebemos que o trabalho do educador se torna eficaz se caminhar
junto com os gestos e para o educador é importante ter essa percepção
em expor a leitura para as crianças.
Este estudo objetiva também contribuir para o aprendizado dos
educadores em visualizar as práticas pedagógicas implementadas em
sua sala que possam ser direcionadas por meio dos gestos, pois,
incontestavelmente, sem a presença dos gestos e esta visão ampla do
seu significado no texto, certamente, a leitura será comprometida.
A linguagem é dinâmica, a leitura consequentemente também o é,
os gestos, pois, definem e asseguram esta dinamicidade na sala de aula.
Se tratando da educação infantil, conforme relatado neste estudo, é
primordial a presença da gestualidade na aula de leitura com as
crianças.

Referências

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil – Gostosuras e bobices. São


Paulo, Scipione, 1997. (Série Pensamento e Ação no Magistério)
ALMEIDA, Maria de Fátima. Linguagem e leitura: movimentos
discursivos do leitor na construção do sentido do texto em sala de
aula de 5 série. Tese de doutorado, UFPE, 2004.
52

BAKHTIN, Mikhail, (VOLOCHINOV). Marxismo e Filosofia da


Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na
ciência da linguagem. 10. Ed. São Paulo: Hucitec, 2002.
BATISTA, Antonio Augusto Gomes. O texto escolar: uma história. Belo
Horizonte: Ceale: Autêntica, 2004.
BRASIL Ministério de Educação e do Desporto. Secretaria de educação
fundamental. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil.
Brasília: MEC/SEF, 1998. Vol. 3.
CAVALCANTE, M. C. B. O gesto de apontar como processo de co-
construção nas interações mãe-criança. Dissertação de Mestrado.
UFPE, 1994.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer.
Petrópolis: Vozes, 1994.
CHARTIER, Anne-Marie. Ler e escrever: entrando no mundo da escrita.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
CORACINI, Maria José R.F. Interação e sala de aula. Calidoscópio. Vol.
3. Unisinos, 2005.
FARACO, Carlos Alberto. Interação e Linguagem: Balanço e
Perspectivas. Calidoscópio. Vol. 3. Unisinos, 2005.
FERREIRO, Emilia. Reflexões sobre a alfabetização. São Paulo: Cortez,
1988.
______. E TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. 4 ed. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1991.
______ e PALACIO, Margarita Gomes. Os processos de leitura e escrita:
novas perspectivas. 3 ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática
educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1990.
GERALDI, João Wanderley. Linguagem e ensino: exercícios de
militância e divulgação. Campinas: Mercado Aberto, 2002.
KENDON, A. (2004). Gesture – Visible action as utterance. Cambridge:
Cambridge University Press.
KOCH, Ingedore Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 5a ed. São
Paulo: Contexto, 2001.
53

MCNEILL, D. (1995) Hand and Mind: What Gestures Reveal about


Thought. Chicago: Univesity of Chicago Press.
MARCUSCHI, Luiz Antônio, Gêneros textuais: configuração,
dinamicidade e circulação. In: Gêneros textuais: reflexão e ensino.
Organização de Acir Mário Karwoski et al. Palmas e União da Vitória,
Paraná: Kaygangue, 2005, p. 17-33.
______. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, A. P. et
al. Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
54

QUESTÕES IDENTITÁRIAS, AQUISIÇÃO DE LÍNGUAS EM CONTEXTO


DE IMERSÃO E SUAS IMPLICAÇÕES PARA O ENSINO DE LÍNGUAS

Irenilza Oliveira (UNEB)1


Letícia Telles (UNEB)2

RESUMO: Este trabalho discute o papel da identidade no processo de


aquisição de língua estrangeira em contexto de imersão. O sujeito deste
estudo (Kate) é de origem belga, tem como língua materna (L1) o
holandês e, quando se iniciou a coleta dos dados, tinha dezoito anos de
idade. Além da sua L1, Kate aprendeu alemão, como segunda língua (L2)
e inglês via instrução formal. O português brasileiro (PB) foi por ela
adquirido por imersão, em contexto natural. A amostra se constitui de
cinco gravações da fala de Kate realizadas por meio de conversação livre
ou semidirigida. A meta foi observar como a experiência intercultural e
as questões identitárias influenciariam no desenvolvimento da
competência comunicativa de Kate. Canagarajah (2009) avalia o papel
do que chama de zonas de segurança na negociação de identidades e na
construção ou não de conhecimento linguístico. Nesse estudo, o autor
observa que, no contexto de instrução formal de uma L2, a enorme
ansiedade que se percebe em sala de aula pode levar o aprendiz a ficar
intimidado com a autoridade e com o poder do professor e a não expor
identidades que são institucionalmente indesejáveis. Dessa forma, o
aprendiz recorre a zonas de segurança, em que pode se realizar social e
culturalmente livre de vigilância. Nesses espaços, o aprendiz utiliza a L2

1 Professora Adjunta da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), doutora em


Linguística (UNICAMP), filiada ao grupo de pesquisa Estudos da Linguagem, Memória e
Desenvolvimento Sustentável (UNEB), com enfoque nos estudos sobre Língua,
Sociedade e Cultura.
2 Professora Assistente da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), doutoranda em

Língua e Cultura (UFBA), filiada ao grupo de pesquisa LINCE (Núcleo de Estudos em


Língua, Cultura e Ensino) da UFBA, com enfoque nos estudos sobre Cultura, Ensino e
Formação de professores de língua estrangeira.
55

geralmente mais eficientemente do que no espaço de sala de aula.


Embora Kate tenha frequentado uma sala de aula de Ensino Médio
durante o período em que esteve no Brasil, percebe-se que foi fora desse
espaço que este sujeito se constituiu social e culturalmente como falante
do PB como L2, fazendo nos propor que este sujeito, no período de
aquisição do PB como L2, recorreu a zonas de segurança naturalmente
criadas pelo convívio social extraclasse.

PALAVRAS-CHAVE: Aquisição. Aculturação. Zonas de segurança.


Identidade.

ABSTRACT: The article discusses the role of identity in the process of


foreign language acquisition in an immersion program. The subject of
this study (Kate) is Belgian, speaks Dutch as her mother tongue (L1) and
was eighteen years old when data collection began. In addition to her
L1, Kate learned German as a second language (L2) and English via
formal instruction. She acquired Brazilian Portuguese (BP) by
immersion in natural context. The sample is constituted of five
recordings of Kate’s speech carried out through free or semidirected
conversation. The goal was to observe how the intercultural experience
and the issues related to identity have influenced Kate’s development of
communicative competence. Canagarajah (2009) assesses the role of
the so-called “safe houses” in the negotiation of identities and in the
construction of linguistic knowledge. In this study, the author notes that,
in the context of L2 formal instruction, the high anxiety that one realizes
in the classroom can take students to be intimidated with the authority
and power of the teacher and not to expose identities that are
institutionally undesirable. In this way, students create safe houses,
where they may be socially and culturally free from vigilance. In those
places, the learner, generally, uses L2 more efficiently than in the
classroom. Although Kate has attended a high school during the period
she was in Brazil, it seems that it was out of the high school that she
developed, socially and culturally, her competence as a PB L2 speaker.
56

This fact leads us to conclude that she resorted to safe houses, naturally
created by extra-curricular social sites, during her process of acquisition
of PB as L2.

KEYWORDS: Language acquisition. Acculturation. Safe houses. Identity.

“[...] a identidade é como o tamanho da criança:


está em trânsito, não pode ser capturada em
gesto, nem em palavras”. (COUTO, 2009, p. 12)

1 Introdução

A língua, como veículo de pensamento do homem, é manifestação


de sua identidade, que por sua vez, é historicamente construída por
meio de uma relação dialógica entre interlocutores, que buscam a
produção de significados para suas vivências. A língua é, pois, o meio
através do qual exercemos a nossa intersubjetividade, pois ela
representa e expressa uma realidade cultural. As experiências de
fronteira, as quais marcam a instância do “entrelugar” (BHABHA, 1996
apud SOUZA; FLEURI, 2003), se constituem espaços híbridos onde se
articulam elementos contraditórios, antagônicos e conflituosos, mas
também de diálogo, o que permite que polaridades tenham seus limites
e fronteiras flexibilizados. É nesse espaço que emerge a possibilidade de
uma vivência intercultural.
Ensinar e aprender línguas sob uma perspectiva intercultural
significa promover a existência desses novos espaços, inter-, entre-, ou
terceiro lugar. Isso não significa, porém, deixar de lado nossa identidade,
adotar uma postura neutra, mas instalar o desejo de um lugar onde a
nossa existência e a do outro interajam movidas por uma mútua
compreensão, para que as composições binárias não representem
fronteiras intransponíveis. Assim, deixamos nosso espaço privilegiado e
construímos esse espaço de interlocução, formado por parte do que
somos e por parte do que queremos conhecer. (MENDES, 2008).
57

Este trabalho traz à reflexão, a experiência de um sujeito quando


da aquisição de uma segunda língua em contexto de imersão, discutindo
o papel da aculturação na formação da sua identidade, nesse
“entrelugar” que emerge a partir do contato intercultural. O sujeito
desta pesquisa, Kate, é do sexo feminino, de origem belga, falante do
holandês como língua materna (L1) e do alemão como segunda língua
(L2), além do inglês via educação formal. Quando chegou ao Brasil, por
meio de um programa de intercâmbio com duração de seis meses, estava
com dezoito anos de idade. Kate hospedou-se com uma família
soteropolitana de classe média alta e, neste período, frequentou uma
escola privada de Ensino Médio.
Durante as entrevistas, foi possível perceber o ótimo
relacionamento entre Kate e seus pais e irmãos brasileiros e a ativa vida
social da qual desfrutava. Neste trabalho, esses dados 3 são revisitados
com o objetivo de se discutir como as questões identitárias promovidas
pela aculturação podem indicar direções para o ensino/aprendizagem
de língua estrangeira nas escolas.

1 A negociação de identidades nas salas de aula de línguas

Dentro da perspectiva antropológica, Mota (2010, p.42) define


cultura como a incorporação de distintos modos de vida, valores e
significados compartilhados por diferentes grupos em determinados
períodos históricos. Quanto ao conceito de identidade, Mota (2010)
ressalta os valores de pertencimento e interação social, e em função
disso, reflete como vivemos uma variedade de identidades
potencialmente contraditórias.
Trazendo essas definições para o contexto de sala de aula de
línguas, Brun (2010, p.77) afirma que:

3 Os dados desse sujeito foram também analisados em Oliveira (2013), que aborda o
fenômeno da aculturação como preponderante no processo de aquisição e discute como
a experiência vivida por Kate pode orientar uma prática de ensino de língua estrangeira
direcionada pela cultura.
58

O aprendiz de língua estrangeira gerencia


permanentemente a diversidade no seu processo de
aprendizagem e, por conseguinte, revisa princípios,
reorganiza seus vínculos socioculturais, reelabora
sentimentos acerca de si mesmo e do mundo. Deste modo,
o contexto de aprendizagem de línguas estrangeiras pode
significar uma verdadeira e inerente (re)construção
identitária.

É preciso considerar ainda que a identidade cultural de um sujeito


bilíngue é uma mescla e a linguagem é o grande agente na criação e
afirmação dessa identidade. Só a partir desse entendimento será
possível compreendermos as manifestações e os efeitos das diferenças
culturais em sala de aula. Alunos e professores não agem o tempo todo
sob convenções interacionais de sua cultura, como se estivessem em
camisas de força. As suas identidades culturais se esbarram,
modificando-se e influenciando-se continuamente, o que torna a escola
contemporânea não o lugar de monoculturalismo ou biculturalismos,
mas de interculturalidades. A forma de interação comportamental, o
volume de voz empregado pelos interagentes nesse contexto, o olhar e
até mesmo a abstração verbal, revelam significados culturais valiosos.
Daí a importância de contemplarmos nas pesquisas, os comportamentos
discursivos. (MAHER, 2007).
Vários estudos voltados para a compreensão de como se dá a
negociação de identidades em salas de aula de línguas, têm sido
realizados. Destacamos aqui, o estudo realizado por Canagarajah
(2009), em que o autor teoriza sobre o que chama de “zonas de
segurança”4 nas salas de aula de línguas, termo que tomaremos de

4
Nesse trabalho, Canagarajah (2009) utiliza a expressão “zonas de segurança”,
conforme a análise teórica de Pratt (1991, p. 40), que analisa situações de contato
cultural presentes em sociedades pós-coloniais e as define como “espaços sociais e
intelectuais, onde grupos podem se constituir em comunidades horizontais,
59

empréstimo para esse trabalho, por entendermos que as zonas de


segurança foram espaços de vivência construídos por Kate, que
propiciaram a aculturação desse sujeito em direção à língua/cultura
brasileira, o que por sua vez possibilitou a criação de novas identidades.
Analisaremos se essas zonas de segurança foram criadas dentro e fora
do ambiente escolar e quais as suas implicações para a aquisição do PB,
em contexto de imersão.
Em sua pesquisa, Canagarajah (2009) compara as atitudes de
sujeitos afrodescendentes norte-americanos que fazem curso de escrita
acadêmica numa universidade no sudoeste dos Estados Unidos com as
atitudes de aprendizes de inglês como língua estrangeira no Sri Lanka,
visando identificar espaços “não-visíveis” da sala de aula, nos quais os
alunos negociam identidades com consequências positivas para o
desenvolvimento da sua aprendizagem. O pesquisador analisou o papel
das “zonas de segurança” na negociação de identidades e na construção
ou não de conhecimento linguístico. Ele tem usado essa expressão para
contextos de sala de aula de inglês como segunda língua, a partir da
compreensão de escola como um espaço de disputa de poder, onde
determinadas identidades são institucionalmente indesejáveis.
Canagarajah (2009, p. 119) pontua que, no contexto acadêmico,
“zonas de segurança” são sinônimo de vida clandestina, porque “são
áreas relativamente livres de vigilância, especialmente aquela exercida
por uma autoridade, possivelmente por se situarem fora da atividade
institucional, por não serem oficiais ou por serem extra-pedagógicas”.
Segundo o autor, são exemplos de zonas de segurança, a troca de
bilhetes entre alunos em sala de aula, a transição entre um professor e
outro quando uma aula termina e outra começa, as interações em
pequenos grupos, seja na sala, na cantina, na biblioteca, nas áreas de
lazer ou no ciberespaço. Essas instâncias permitem que os alunos

homogêneas e soberanas, com alto grau de confiança e compreensão compartilhada dos


eventos ao seu redor e proteção temporária contra os legados da opressão”.
60

adotem “identidades híbridas a partir dos discursos heterogêneos nos


quais são competentes.” (CANAGARAJAH, 2009, p. 122).
O trabalho de Canagarajah vem contribuir para uma gama de
pesquisas sobre identidades em sala de aula de línguas, numa época em
que discutimos a formação de sujeitos críticos, capazes de transitar por
diferentes culturas e diferentes gêneros, e de se posicionar, com
flexibilidade, em relação às questões relativas tanto à sua comunidade
de origem, como àquelas com as quais interage, porque conseguiu
desenvolver uma competência comunicativa exigida pelo mundo
contemporâneo, de discursos fluidos e de grupos sociais mistos. A
questão que emerge dessas discussões é: como o discente negocia as
situações de conflito entre a política monolinguística da escola e a
realidade multicultural que vivencia, em mundo cada vez mais híbrido e
plural?
Um exemplo disso é retratado no estudo realizado por Eva Lam
(2000 apud CANAGARAJAH, 2009), que aborda o conflito vivido por um
aluno de escola chinesa de ensino médio, cujas aulas de inglês
contribuíam para um sentimento de exclusão e marginalização diante
da sua incapacidade de falar como nativo. Em contrapartida, o inglês que
ele usava na internet permitia que ele desenvolvesse um sentimento de
pertença e de conexão com a comunidade global de falantes de inglês,
na medida em que se expressava ao escrever textos biográficos e
narrativos na sua página pessoal na internet, desenvolvendo, assim,
novas identidades, como fã bem informado sobre música pop japonesa,
dentre outras.
Esse aluno conseguiu negociar identidades, fora das paredes da
sala de aula, que o empoderavam. Mas, infelizmente, não conseguiu
negociar identidades favoráveis na sala de aula, provavelmente porque
a escola se utilizava de mecanismos, como meio de reprodução
ideológica e social, que forçam os alunos a se ajustarem às identidades
desejáveis e ao discurso dominante. Esse fato leva Canagarajah (2009)
a questionar se há outras áreas dentro de uma sala de aula que permitam
61

os alunos exercitarem ou negociarem os conflitos de suas


intersubjetividades.

3 O papel da aculturação na construção de estilos de negociação


de identidades utilizados por Kate

Segundo Schumann (1978), a aculturação, que pode ser


compreendida como processo de adaptação a uma nova cultura, irá
influenciar a eficiência na aquisição de uma segunda língua (L2). Para o
autor, a aquisição de uma L2 é apenas um aspecto da aculturação e a
extensão na qual o aprendiz se acultura a determinado grupo, irá
influenciar diretamente a extensão em que ele adquire a respectiva
língua. O modelo de aculturação de Schumann, voltado para a
compreensão da aquisição de uma segunda língua em ambientes
naturais, distingue dois tipos de aculturação que dependem da visão que
o aprendiz tem daquela língua/cultura alvo. Ou seja, aprendizes que
consideram a língua/cultura alvo como referência, desejam inserir-se
completamente no estilo de vida do grupo; o mesmo não ocorre com
aprendizes que não têm esse tipo de referência. Isso não quer dizer,
porém, que a aquisição não aconteça no segundo caso. Isso implica que,
quanto maior for o desejo do aprendiz de se aproximar dos falantes da
língua/cultura-alvo, maior será o grau da qualidade da aquisição da L2.
Ainda de acordo com Schumann (1978), existem dois grupos de
fatores – social e psicológico, que determinam respectivamente a
distância social e psicológica que a aprendiz mantém da língua/cultura
alvo e que influenciam a extensão do seu processo de aculturação. Entre
os fatores sociais que interferem no fenômeno de aculturação estão:
[1]domínio social (os aprendizes de L2 podem ser superiores, inferiores
ou equivalentes em relação à comunidade falante da língua alvo na
esfera política, cultural, técnica ou econômica); [2]padrões de
integração, ou seja, os aprendizes podem assimilar (bilinguismo
subtrativo) quando assumem o estilo de vida e valores da comunidade
da L2, em detrimento de seus próprios valores e estilo de vida, podem
62

preservar seus próprios valores e estilo de vida (bilinguismo aditivo),


ou podem se aculturar, isto é, adotar os valores e estilo de vida da
comunidade da L2, embora mantendo os seus próprios, quando em
contato com a comunidade de sua L1; [3] enclosure (os aprendizes
podem compartilhar as mesmas facilidades sociais da comunidade da L2
- low enclosure, ou podem ter facilidades sociais diferentes, o que os
mantêm mais fechados em si - high enclosure); [4] congruência cultural
(a cultura dos aprendizes pode ser similar ou diferente da cultura da
comunidade da L2); [5] atitude (a comunidade dos aprendizes e a
comunidade da L2 podem ter atitudes positivas ou negativas em relação
umas às outras).
Entre os fatores psicológicos, o autor destaca: [1] o choque
cultural (os aprendizes podem se sentir ansiosos ou desorientados ao
entrar numa nova cultura); [2] o choque linguístico (representa o estado
emocional que o aprendiz experimenta ao falar a L2 e o receio de
parecer cômico; [3] a motivação (os aprendizes podem estar motivados
em relação a L2 devido a vantagens instrumentais ou integrativas,
decorrentes dessa aprendizagem); [4] permeabilidade do ego
(representa os limites do próprio aprendiz – se são rígidos ou flexíveis,
e, consequentemente, o seu grau de inibição.
Vários fatores parecem ter contribuído de forma positiva para que
o processo de aquisição do português brasileiro que Kate vivenciou
fosse tão eficiente e rápido. Destacamos aqui a visão que Kate e o grupo
da língua/cultura alvo têm um do outro, sem nenhuma relação de
superioridade ou inferioridade; a ampla abertura para diferentes
vivências – low enclosure, o que facilitou a promoção do contato
intergrupal; a atitude positiva de Kate em relação ao grupo e vice-versa.
Uma evidência dessa atitude positiva de Kate em relação a
aspectos culturais da comunidade da L2 na qual está inserida pode ser
notada na aceitação e respeito aos diferentes costumes de pessoas do
seu entorno. Quando perguntada sobre como ela analisava a relação
entre seus pais e irmãos brasileiros, comparando-a com a relação que se
63

estabelece entre pais e filhos na sua comunidade de origem, Kate


apresentou a seguinte resposta:

“Mas é um costume diferente talvez, né...” ( 3,24)

A sua atitude demonstra o desenvolvimento de uma postura que


favorece a abertura, o diálogo, o respeito às diferenças. Durante as
entrevistas, Kate deixou evidente que acompanhava sua família
brasileira em compromissos e atividade de lazer e que tinha relações de
amizade fora do contexto familiar. Quando foi lhe perguntado sobre as
atividades que fazia com sua família brasileira e sobre suas atividades
sociais, ela demonstrou participar de uma vida social bem próxima da
vida dos jovens brasileiros de sua idade:

“Ah... talvez nós vamos pra Ilha...” (4,09)


“...às vezes eu saio com amigos.” (3,24)

Pelos seus relatos, pode-se perceber que Kate apresenta uma


atitude positiva em relação à cultura da comunidade da L2; ela convive
com seus familiares e amigos brasileiros de instituições sociais como
escolas, igrejas, clubes, entre outros, o que demonstra um desejo de se
aculturar ao grupo falante da L2.
Além disso, esses relatos indicam que, embora Kate tenha
frequentado uma escola privada de Ensino Médio no Brasil, era no
convívio fora do espaço escolar que se dava a negociação de identidades
e a construção de seu conhecimento linguístico e extralinguístico. Isto
significa que Kate, certamente motivada pelo bom acolhimento que lhe
foi reservado – o que revela uma atitude positiva também do grupo
falante da L2 em relação a ela –, construiu zonas de segurança, livres da
vigilância de professores e tutores, nesses espaços de convívio
alternativos à sala de aula.
Para Canagarajah (2009), as zonas de segurança representam a
possibilidade de introduzir discursos não acadêmicos em contextos
64

acadêmicos, constituindo-se um complemento para a escola e para a sala


de aula. A movimentação entre as zonas de segurança e as zonas
públicas da sala de aula propicia o desenvolvimento de competências
necessárias para o cruzamento de discursos, para a convivência com
diferentes comunidades e suas práticas de letramento, para a
mobilidade entre diferentes gêneros. Portanto, essas instâncias devem
ser consideradas dentro das escolas e, em especial, dentro das salas de
aula de língua, de forma que isso possa contribuir para que o aprendiz
consiga uma funcionalidade social.

Os alunos se exercitam em estratégias comunicativas


multilíngues, como a troca de código e a mudança de estilo,
ao longo das interações nas zonas informais da sala de aula.
Enquanto as atividades formais restringem o discurso ao
que é oficialmente aceito e recomendado pela escola, as
zonas de segurança encorajam o desenvolvimento da
competência nos discursos informais. Dessa forma, os
alunos desenvolvem estratégias seguras de construção das
identidades que almejam para si, sem serem penalizados
pela instituição acadêmica. Essas estratégias são úteis na
construção de letramento acadêmico, pois os discentes
aprendem a posicionar-se criticamente, sem ofender o
público da academia. (CANAGARAJAH, 2009, p. 130).

A utilização dessas estratégias comunicativas, inclusive com


mudança de estilo pode ser observada no processo vivido por Kate nos
momentos em que a aprendiz se utiliza de gírias e expressões típicas da
comunidade da L2.
" ... lá ninguém fala ... falava inglês ( ... ) tinha que falar pra todo mundo
... todos os colegas ... todas as colegas: ‘boa noite galera, vamos comer
água?’ de manhã, da tarde, da noite ... "5 ( 4,24 )

5 Comer água é uma expressão popular da Bahia que significa ingerir muita bebida
alcoólica.
65

A fala de Kate evidencia uma transformação da subjetividade em


uma intersubjetividade, através da relação com o grupo falante de PB,
por meio de vivências autênticas na/com a língua, do diálogo entre
experiências, da construção conjunta de conhecimentos. É nesse aspecto
que reside a característica de um usuário competente da língua, que
deixa de ser aquele que usa a língua de acordo com as normas
acadêmicas e de etiqueta estabelecidas por um grupo social, para ser
aquele que consegue selecionar com precisão e adequação, as formas
que devem ser usadas em determinado contexto social. Essa forma de
competência é precisamente a do falante intercultural que transita entre
várias línguas ou variedades linguísticas.

4 Ensino de Línguas: o que a experiência vivida por Kate sugere?

Nessa perspectiva que assume o uso da língua(gem) como


manifestação de identidade, o ensino de uma língua estrangeira deixa de
ser um espaço de construção de conhecimento sobre a língua para ser o
sítio de criação de novas identidades caracterizado pelo
reconhecimento de um entrelugar, em contextos de convivência
multicultural. Sobre esse aspecto, Brown (1994, p. 22) afirma que
“quando indivíduos aprendem a usar uma segunda língua, eles também
desenvolvem um novo modo de pensar, sentir e agir – uma segunda
identidade”. (tradução nossa)6.
Esses contextos não se limitam aos espaços formais de instrução,
mas se ampliam para as zonas de segurança, constituídas pelos
aprendizes. Nesses espaços, livres de vigilância, negociam-se
significados sobre aspectos socioculturais provenientes de diferentes
culturas.
A experiência vivida por Kate revela a necessidade da tomada de
consciência por parte dos professores de L2 sobre a importância de se

6 “As human beings learn to use a second language, they also develop a new mode of
thinking, feeling, and acting – a second identity. (BROWN, 1994, p.22).
66

criarem diferentes contextos de comunicação e interação em que a L2


não seja um objeto de estudo, mas o instrumento social por meio do qual
a negociação de significado se realizará a partir da partilha de
experiências culturais.
Nesse processo de negociação, Kate construiu novas identidades,
interpretando e incorporando o outro e o seu mundo cultural. Ao mesmo
tempo, ela reconheceu a si mesma, a partir da visão que teve do outro,
do que era diferente dela e do mundo à sua volta. No intenso convívio
nas suas zonas de segurança, Kate teve a oportunidade de construir
conhecimentos sobre o outro e com o outro, transformando a sua
subjetividade em intersubjetividade.
A aculturação pareceu ser o fenômeno relevante nesse processo
de formação de identidades. Esse processo pode ser promovido por
professores de L2 tanto no âmbito escolar quanto nos cursos de idiomas,
ao incentivarem seus alunos a participarem de outros ambientes de
interação fora do limite de sala de aula e apresentarem propostas de
atividades que favoreçam o contato de seus alunos com as mais diversas
comunidades culturais que utilizam a L2 como meio de interação e
expressão de suas crenças e valores.
Nesse contexto, professores de línguas devem se reconhecer como
agentes entre culturas de todos os tipos, promovendo o contato dos
aprendizes com a língua carregada de significado, não se restringindo ao
estudo do uso do vocabulário e de regras gramaticais, que acaba por
promover um uso da língua para a veiculação de ideias completamente
soltas e sem sentido, uma vez que o privilégio do falante intercultural
deve estar acompanhado pelo aumento do senso de responsabilidade
social e individual no uso das palavras e seus significados (KRAMSCH,
1998).
A formação desse falante está condicionada, portanto, a uma
aprendizagem significativa da L2 que, por sua vez, se dá em contextos
autênticos do uso da língua em que o indivíduo produz conhecimento
sobre a língua/cultura atrelado à sua própria vivência e desenvolve
67

atitudes culturais adequadas, guiadas pelo estar e ser no mundo,


próprias de cada indivíduo.
Embora pareça paradoxal, propõe-se aqui que o próprio professor
exerça o papel de motivador na construção de zonas de segurança pelos
alunos e, por conseguinte, na construção de suas novas identidades,
levando esses aprendizes a desenvolverem costumes autônomos
durante o processo de aquisição/aprendizagem de LE. Segundo Couto
(2011):

Identidades são um construto essencial por nos


apresentarem ao mundo e a nós mesmos; nossas
identidades nos posicionam no mundo. No ambiente de
aprendizagem de LE, colocamos (pelos menos) duas
línguas em contato, o que pode acionar um processo de
(re)construção de identidades. (COUTO, 2011, p. 13).

Nesse papel de mediador, o professor será, ao mesmo tempo, um


incentivador dos alunos na criação de suas próprias estratégias de
aprendizagem, que poderão ser utilizadas consciente e explicitamente,
fora do domínio da sala de aula, em interações comunicativas com
diversos sujeitos, em variados contextos e por meio de diferentes
ferramentas. É nesses espaços, que os alunos terão a oportunidade de
deixar emergirem outras identidades também legítimas, mas que não
encontram na sala de aula um ambiente propício à sua manifestação.

Referências

BROWN, H. D. Teaching by Principles: an interactive approach to


language pedagogy. New Jersey: Prentice Hall Regents, 1994.
BRUN, M. (Re) Construção identitária no contexto da aprendizagem de
línguas estrangeiras. In: MOTA, K.; SCHEYERL, D. (Org.). Recortes
interculturais: na sala de aula de línguas estrangeiras. 2. ed. Salvador:
EDUFBA, 2010. p. 75 - 106.
68

CANAGARAJAH, A. S. Identidades Subversivas, zonas pedagógicas de


segurança e aprendizagem crítica. In: Alberto, Brasília, v. 22, n. 81, p.
113 – 134, ago. 2009.
COUTO, L. C. do. O eu e a nova língua: identidades e ensino/
aprendizagem. In: Horizontes de Linguística Aplicada, ano 10, n. 1, p.
133 – 150, jan./jun. 2011.
COUTO, M. Três fantasmas mudos para um orador luso-afônico. In:
VALENTE, André. Língua portuguesa e identidade: marcas culturais.
Rio de Janeiro: Editora Caetés, 2009. p. 11 – 22.
KRAMSCH, C. The privilege of the intercultural speaker. In: BYRAM, M;
FLEMING, M. Language learning in intercultural perspective.
Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1998. p. 16 – 31.
MAHER, T. M. Do casulo ao movimento: a suspensão das certezas na
educação bilíngue e intercultural. In: CAVALCANTI, M.; BORTONI-
RICARDO (Orgs.). Transculturalidade, linguagem e educação.
Campinas, SP: Mercado de Letras, 2007. p. 67 – 94.
MENDES, E. Língua, cultura e formação de professores: por uma
abordagem de ensino intercultural. In: MENDES, E; CASTRO, M. L. S.
(Orgs.). Saberes em português: ensino e formação docente. Campinas,
SP: Pontes, 2008. p. 57 – 77.
MOTA, K. M. S. Incluindo as diferenças, resgatando o coletivo – novas
perspectivas multiculturais no ensino de línguas estrangeiras. In: MOTA,
K.; SCHEYERL, D. (Org.). Recortes interculturais: na sala de aula de
línguas estrangeiras. 2. ed. Salvador: EDUFBA, 2010. p. 37 – 62.
OLIVEIRA, I. O. Aquisição do português brasileiro com língua
estrangeira em contexto de imersão e suas implicações para o ensino de
línguas: estudo de caso. In: Anais do IV Simpósio Mundial de Estudos
de Língua Portuguesa: Língua Portuguesa, ultrapassando fronteiras,
unindo culturas (no prelo). Goiânia: Universidade Federal de Goiás.
PRAT, M. L. Arts of the contact zone. Profession, n. 91, p. 33-40, 1991.
Disponível em: <http://wrinting.colostate.edu/files/classes/6500
/File_EC147617-ADE5-3D9CC89FF0384AECA15B.pdf>. Acesso em 01
jun. 2013.
69

SCHUMANN, J. H. The relationship of pidginization, creolization, and


decreolization to second language acquisition. Language learning, n.
28, p. 367-379, 1978.
SOUZA, M. I.; FLEURI, R. M. Entre limites e limiares de culturas: educação
na perspectiva intercultural. In: FLEURI, R. M. (Org.). Educação
Intercultural: mediações necessárias. Rio de Janeiro: DP & A, 2003. p.
53 – 83.
70

AS CONCEPÇÕES DE LINGUAGEM E SUAS IMPLICAÇÕES NA


CONSTRUÇÃO DE SUJEITOS SOCIAIS EM PROCESSO DE AQUISIÇÃO
E APERFEIÇOAMENTO DA LINGUAGEM MEDIANTE PRÁTICAS
INTERATIVAS DE SALA DE AULA DE LÍNGUA MATERNA

Maria Aparecida Calado de Oliveira Dantas


ap.calado@hotmail.com
PPGFP da Universidade Estadual da Paraíba

Linduarte Pereira Rodrigues


linduarte.rodrigues@bol.com.br
DLA e PPGFP da Universidade Estadual da Paraíba

RESUMO: A linguagem representa os sistemas de signos organizados


que exprimem sentimentos, denotam ideias e servem à comunicação e,
desse modo, intervém no processo de desenvolvimento do homem,
através das relações que ele estabelece com os objetos e com o outro,
evoluindo socialmente e historicamente. Nesse sentido, a linguagem não
pode ser entendida como uma forma natural do comportamento
humano, associada apenas a aspectos biológicos e psicológicos, é preciso
pensar a apropriação da linguagem como resultado da atividade social.
Partindo desse pressuposto, este trabalho tem o objetivo de discutir a
importância da aquisição da linguagem, numa perspectiva sócio-
interacionista, com base nos fundamentos de Vygotsky e
Bakhtin/Voloshinov, que destacam a importância da interação e da
cultura histórico-social para a construção dos sentidos da linguagem
utilizada pelos indivíduos, fazendo-se uma relação com a concepção de
linguagem que tem permeado o trabalho dos professores nas aulas de
língua portuguesa na escola básica, local de formação e informação que
possibilita ao sujeito condições de ampliar seus conhecimentos sobre a
língua(gem), usando-a de forma eficiente nas diferentes situações de
interação. Uma pesquisa de cunho qualitativo, fundamentada em
aportes teóricos que destacam a importância dos estudos da linguagem,
71

enquanto processo de acesso ao pensamento e ao mundo, num meio


social que possibilita o desenvolvimento dos sujeitos através das
relações interacionais, a saber: PCN (BRASIL, 1998), Travaglia (2002),
Marcuschi (2001), Bakhtin/Voloshinov (1994), Geraldi (1997), entre
outros estudiosos que se ocupam dessa discussão, considerada de
salutar pertinência para que se desenvolvam contextos em que os
sujeitos construam de forma eficiente os conhecimentos relativos à
linguagem.

PALAVRAS-CHAVE: Língua. Linguagem. Práticas interativas. Sujeitos


sociais.

ABSTRACT: The language is organized systems of signs that express


feelings, ideas and serve to denote communication and thus intervenes
in the process of development of man, through the relationships he
establishes with the objects and each other, evolving socially and
historically. In this sense, language can not be understood as a natural
form of human behavior, associated only with biological and
psychological aspects, it is necessary to think of language acquisition as
a result of social activity. Based on this assumption, this paper aims to
discuss the importance of language acquisition, social interaction
perspective, on the grounds of Vygotsky and Bakhtin/Voloshinov,
highlighting the importance of interaction and culture for social and
historical construction the sense of the language used by individuals,
making up a relationship with the conception of language that has
permeated the work of teachers in the Portuguese language classes in
elementary school, place of training and information that enables the
subject to conditions to expand their knowledge of the language, using
it efficiently in different situations of interaction. A qualitative research,
based on theoretical contributions that highlight the importance of
language studies, while access to the thought process and the world, in
a social environment that enables the development of individuals
through interactional relations, namely, PCN (BRAZIL, 1998), Travaglia
72

(2002), Marcuschi (2001), Bakhtin/Voloshinov (1994), Geraldi (1997),


among other scholars who study this discussion, considered salutary for
them to develop relevant contexts in which individuals construct so
efficient knowledge related to language.

KEYWORDS: Language. Language. Interactive practices. Social subjects.

INTRODUÇÃO

A linguagem é uma forma de interação, uma vez que por ela o


homem expressa sentimentos, ideias, conceitos, evolui como ser
humano dialógico, ensina e aprende em contato com os outros. Nesse
sentido, o processo de ensino-aprendizagem integra os indivíduos de
uma sociedade, de modo que a interação social intensificada em um
ambiente escolar, de forma construtiva, proporciona o desenvolvimento
de cidadãos construtores e conscientes de seus próprios discursos e,
consequentemente, mentores de suas vozes.
Nessa perspectiva, surgem os estudos empenhados em explicar o
processo de ação e interação humana por meio da linguagem, o que,
segundo Koch (2006, p.8), é “capaz de possibilitar aos membros de uma
sociedade a prática dos mais diversos tipos de atos que vão exigir
reações, levando ao estabelecimento de vínculos e compromissos
anteriormente inexistentes”. Assim, a interação precisa ser entendida
como algo inerente à condição humana e seu estabelecimento se efetiva
nas relações sociais mediadas pela linguagem.
Para Bakhtin/Medvedev (2000), o homem se constitui a partir do
outro e, desse modo, todos os campos da atividade humana, por mais
variados que sejam, estão relacionados às relações sociais que
estabelece por intermédio da linguagem, o que reafirma a sua
constituição de sujeito enquanto membro de um determinado grupo
social. Vygotsky (1998), ao propor uma teoria do conhecimento,
submete a condição de sujeito do homem aos movimentos interacionais.
Vê-se, assim, que os dois teóricos mencionados corroboram com o
73

pensamento de que ao fazer uso da linguagem, do diálogo e da interação,


o sujeito e o outro estão presentes.
Essas abordagens conferem à linguagem um caráter dialógico e
interacional, o que exige dos professores, especificamente professores
de língua materna, uma reflexão sobre as práticas sociais da linguagem
desenvolvidas no interior da escola, concebendo o aluno como um
sujeito interativo, apto e capaz de transitar sob os mais diferentes
discursos (oral e escrito), desenvolvendo competências para atuar nas
mais diferentes situações de efetivo uso da linguagem, visto que “Toda
educação comprometida com o exercício da cidadania precisa criar
condições para que o aluno possa desenvolver sua competência
discursiva” (BRASIL, 1998, p. 23).
Nesse sentido, este artigo tem o objetivo de discutir, à luz da
Sociolinguística Interacional, as práticas interativas nas aulas de língua
materna que valorizam a natureza social e interacional da linguagem,
considerando que não se pode pensar a construção do conhecimento
enquanto processo individual, mas como produto das relações entre os
sujeitos constituídos socialmente e culturalmente e, no caso específico
da sala de aula, o professor se constitui com facilitador na mediação dos
objetivos pretendidos quanto à eficácia dos usos da linguagem enquanto
prática de constituição dos sujeitos.

A LINGUAGEM ENQUANTO MECANISMO DE INTERAÇÃO EM


VYGOTSKY

A linguagem, uma preocupação central nos estudos socio-


interacionistas de Vygotsky, cujo pensamento destaca que o sentido das
coisas é dado ao homem pela linguagem, deixa de ser vista como
produto natural humano para se constituir em processo de uma ação
coletiva dos homens ao longo da história. A esse teórico, interessava
“estudar a linguagem como constituidora do sujeito, procurando enfocar
a relação pensamento-linguagem” (FREITAS, 1994, p. 92).
74

Sobre esse aspecto é importante destacar que a palavra assume


uma função simbólica, considerando as situações de uso em que é
produzida, uma vez que, de acordo com Vygotsky (1998), a palavra fora
do contexto de uso, sem significado, é um som vazio, que não faz parte
da fala humana, daí a importância de se considerar que as atividades
cognitivas básicas do indivíduo ocorrem de acordo com sua história
social; constituem-se no produto do desenvolvimento, o que revela a
importância das relações sociais na constituição dos sujeitos. Desse
modo, para se compreender a fala/discurso de alguém, faz-se necessário
compreender o seu pensamento, considerando que:

O discurso é, essencialmente, de natureza social. Os


participantes em qualquer evento de comunicação
interagem entre si por meio do discurso. É este o
instrumento mediador na construção de significados e é
por meio desse que os indivíduos tornam-se conscientes de
quem são, construindo suas realidades (SANTOS, 2003, p.
163).

Para compreender os diversos mecanismos de funcionamento do


processo discursivo é preciso considerar a manifestação da linguagem,
tendo em vista que o homem comunica-se mesmo que não possa
produzi-la pela fala. Sendo assim, a linguagem assume papel
preponderante no ato interacional, pois é vista, de acordo com Pinheiro
(2009, p. 34), como “um constante processo de interação mediado pelo
diálogo”, ou seja, linguagem e interação fazem parte do mesmo processo
de comunicação humana.
No contexto da sala de aula, o professor precisa estar atento às
relações estabelecidas com o outro, a fim de promover ações que
instaurem o efetivo uso da linguagem, enquanto mecanismo de
interação e materialização do pensamento. Desse modo, o aluno passa a
assumir uma postura de autonomia no processo de ensino e
aprendizagem a partir das interações estabelecidas com o outro e com o
objeto a ser aprendido e apreendido. O professor, igualmente, passa a
75

assumir relevante papel nesse processo a partir da postura que assume


com seus interactantes (alunos), percebendo a importância que a
linguagem ocupa ao viabilizar, a partir dos movimentos de interação
com o meio e com o outro, a aquisição de novos conhecimentos.
Sobre esse assunto, Vygotsky, segundo Freitas (histórico e
produto de um conjunto de relações sociais. Ao indagar a si mesmo
sobre o modo como os fatores sociais podem modelar a mente e
construir o psiquismo, a resposta que apresenta nasce de uma
perspectiva semiológica, na qual o signo tem uma função geradora e
organizadora dos processos psicológicos. O autor considera que a
consciência é estruturada no social, a partir das relações que os sujeitos
estabelecem com outros sujeitos e o meio social em que estão inseridos
por meio de uma atividade sígnica, mediados pela linguagem.
O teórico ressalta que a aprendizagem tem início antes mesmo da
vida escolar, considerando as relações sociais, históricas e culturais
estabelecidas ao longo do nascimento social do homem, seja através da
palavra falada, produzida ou representada. Para Vygotsky (1982), o
sujeito é ativo, ele age sobre o meio. Para ele, não há a “natureza
humana”, a “essência humana”. Somos primeiro sociais e depois nos
individualizamos.
Ao descrever a teoria Vygotskyana, Rego (2002, p. 98),
considerando a condição social e interacional do homem mediada pela
linguagem, o autor destaca que:

Em síntese, nessa abordagem, o sujeito produtor de


conhecimento não é um mero receptáculo que absorve e
contempla o real nem o portador de verdades oriundas de
um plano ideal; pelo contrário, é um sujeito ativo que em
sua relação com o mundo, com seu objeto de estudo,
reconstrói (no seu pensamento) este mundo. O
conhecimento envolve sempre um fazer, um atuar do
homem.
76

Nessa perspectiva, a escola se configura como um local de


formação e informação, sendo fundamental que o aluno tenha condição
de ampliar seus conhecimentos sobre a língua, compreendendo seu
funcionamento e usando-a de forma eficiente. Assim, é importante
refletir sobre as práticas sociais da linguagem, considerando o
desenvolvimento cognitivo dos alunos e as situações de interação social
a que estarão submetidos, uma vez que “as situações didáticas têm como
objetivo levar os alunos a pensar sobre a linguagem para poder
compreendê-la e utilizá-la apropriadamente às situações e aos
propósitos definidos” (BRASIL 1998, p. 17). É importante que seja dada
uma ênfase especial às situações que permitam vivências mais realistas,
possibilitando ao aluno refletir sobre os processos de funcionamento da
linguagem, relacionando-os ao uso efetivo que ele faz da língua e
respaldado em suas concepções de socialização.

A LINGUAGEM E O NASCIMENTO SOCIAL DO HOMEM EM BAKHTIN

Para Bakhtin/Voloshinov (1994), o homem se constitui a partir do


outro, o que destaca o valor dos enunciados nas diferentes formas de
interação que estabelece com o meio, com outros sujeitos ou com outros
enunciados. Nessa perspectiva, é importante destacar que a língua pode
ser vista como um fenômeno social, indissociável do fluxo da
comunicação verbal, e a linguagem, portanto, um mundo em movimento
e em constante transformação, cujos significados se constituem a partir
das formas assumidas pelas mais diferentes situações reais em que se
posicionam os sujeitos social e historicamente localizados. Assim,
“Qualquer que seja o aspecto da expressão-enunciação considerado, ele
será determinado pelas condições reais da enunciação em questão, isto
é, antes de tudo pela situação social imediata” (BAKHTIN/VOLOSHINOV,
1994, p. 112).
Na perspectiva bakhtiniana, o único objeto real e material de que
dispomos para entender o fenômeno da linguagem humana é o exercício
da fala nas interações estabelecidas com o outro, considerando que:
77

Na realidade, não são palavras que pronunciamos ou


escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más,
importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A
palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um
sentido ideológico vivencial. É assim que compreendemos
as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em
nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida
(BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1994, p. 95).

Nesse sentido, não se pode negar a existência da produção de


discursos sem intencionalidade, tendo em vista que os interlocutores se
apresentam sob os mais diferentes espaços ideológicos e, desse modo,
constroem suas relações e se constituem como sujeitos autônomos,
produtores de seus próprios discursos, conforme o contexto social nos
quais estão inseridos, o que torna perceptível a relação entre poder e
domínio sobre sua esfera de pertencimento, considerando o controle da
situação comunicativa que passam a assumir mediante suas práticas
interacionais a partir do uso da linguagem de modo eficaz. De acordo
com Bakhtin/Voloshinov (1994, p. 108), “Os indivíduos não recebem a
língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da
comunicação verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa
corrente é que sua consciência desperta e começa a operar”.
Assim é importante destacar que a linguagem assume contornos
variados, pois ao tempo em que viabiliza o processo de interação verbal
entre diferentes sujeitos de diferentes esferas sociais opera como
instrumento de poder ao possibilitar ao sujeito o controle dos
argumentos numa situação comunicativa.
Sob essa perspectiva, ressalta-se o caráter híbrido e plural da
linguagem em processo, na medida em que o sujeito produz seu
discurso, considerando a intencionalidade da situação comunicativa na
qual está engajado. Assim, mediante a produção desses
discursos/enunciados, de acordo com Orlandi (2000, p. 42):
78

[...] o sentido não existe em si, mas será determinado pelas


posições ideológicas no processo sócio-histórico em que as
palavras são produzidas. As palavras mudam de sentido
segundo as posições daqueles que as empregam. Elas
‘tiram’ seu sentido dessas posições, isto é, em relação às
formações ideológicas nas quais essas posições se
inscrevem.

Corroborando com esse pensamento, Bakhtin/Voloshinov (1994,


p. 130) ressalta que “A palavra é uma espécie de ponte lançada entre
mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra
apoia-se sobre o meu interlocutor”. É a partir dessa “ponte” que os
sujeitos interagem e constroem suas intenções enunciativas, utilizando-
se da linguagem como instrumento de possibilidade para obtenção dos
objetivos pretendidos numa situação comunicativa.
Nessa perspectiva, é relevante destacar uma significação própria
da linguagem em que os interlocutores agem e reagem, demonstrando
suas capacidades de manter o domínio no processo de interação verbal,
manifestadas por meio da seleção de palavras que conferem o real
sentido pretendido, considerando que “o locutor serve-se da
língua/linguagem para suas necessidades enunciativas concretas”, uma
vez que “Para ele, o centro de gravidade da língua não reside na
conformidade à norma da forma utilizada, mas na nova significação que
essa forma adquire no contexto” (BAKTHIN/VOLOSHINOV, 1994, p. 92).
Dentro desse contexto teórico metodológico, é preciso entender a
língua/linguagem como uma entidade social, por meio da qual as
informações são veiculadas e as interações estabelecidas. Desse modo,
os sujeitos se constroem social, cultural e historicamente a partir das
interações com o outro e o contexto social do qual fazem parte. Os
usuários da linguagem são, portanto, sociais porque a língua conserva
traços e marcas que contém forte teor histórico.
79

LINGUAGEM E INTERAÇÃO NAS AULAS DE LÍNGUA MATERNA

A sociolinguística interacional se configura como um estudo que


se preocupa em dialogar com diferentes vertentes teóricas, como a
Linguística, a Sociologia, a Psicologia, entre outras, que tratam das
relações entre a linguagem, a sociedade, a cultura e os processos
cognitivos. Ganha espaço a partir da década de 80, tendo como
representante Gumperz, e se fundamenta sob a égide das relações
interpessoais, possibilitando, assim, o estudo do uso da língua a partir
das manifestações concretas da linguagem realizadas por indivíduos
sócio-históricos e ideologicamente marcados. De acordo com Ribeiro &
Garcez (2002, p.28), encontra-se “ancorada na pesquisa qualitativa
empírica e interpretativa”, apresentando uma metodologia bastante
refinada para a descrição dos fenômenos da interação humana
(BORTONI- RICARDO, 2008).
Nessa perspectiva, os estudos sócio-interacionais buscam
investigar a forma como os sentidos são construídos nos atos de fala a
partir das pistas de contextualização oriundas das atividades nas quais
os participantes estão engajados, razão pela qual na sociolinguística
interacional o contexto é uma forma de práxis interacionalmente
constituída, é conhecimento e situação. Desse modo, Marcuschi (1991)
afirma que o processo interacional torna-se parte da realidade social de
todo indivíduo e que através desse processo ele adquire e partilha
conhecimentos. Infere-se, assim, que são nessas relações que o homem
desenvolve estratégias que possibilitam, além da aquisição de
conhecimento, maior interação dialógica, através do uso da linguagem
não verbal, que auxilia a linguagem verbal, expressando a natureza dos
discursos produzidos, ou seja, “compartilhar os modos de fala faz parte
do processo interativo de um grupo” (CAJAL, 2001, p. 130).
A Sociolinguística aplicada ao ensino reflete as variações no
convívio social, suas alterações e as diferenciações de cada grupo social,
mas de forma objetiva, clara. Nessa perspectiva, a escola se configura
como um local de formação e informação, sendo fundamental que o
80

aluno tenha condição de ampliar seus conhecimentos sobre a língua,


compreendendo seu funcionamento e usando-a de modo adequado.
Assim, é importante refletir sobre as práticas sociais da linguagem,
considerando o desenvolvimento cognitivo dos alunos e as situações de
interação social a que estarão submetidos, uma vez que “as situações
didáticas têm como objetivo levar os alunos a pensar sobre a linguagem
para poder compreendê-la e utilizá-la apropriadamente às situações e
aos propósitos definidos” (BRASIL, 1998, p. 17).
É dentro desse contexto, em um processo interacional, que os
interlocutores trocam e constroem conhecimento, utilizando-se da
linguagem como instrumento de manipulação do real, objetivando, a
partir da situação comunicativa, atender ao objetivo exposto por
Marcuschi (1991, p.8):

[...] a vinculação da ação e interação social faz com que toda


atividade de fala seja ligada à realização local, mas de uma
forma complexa, uma vez que a contextualidade é reflexiva
e o contexto de agora é, em princípio, o emulador do
contexto seguinte.

Logo, percebe-se que todo discurso produzido provoca uma


reação, portanto, no contexto das relações dialógicas espera-se sempre
a instauração de condições necessárias para que os interlocutores
possam reagir e atender as expectativas dos interactantes, viabilizando
a construção de sentidos, considerando o contexto social em que estão
inseridos.
De acordo com Cajal (2001, p.127), a sala de aula se constitui com
uma situação social em que atuam diferentes sujeitos com diferentes
culturas e propósitos, o que reafirma o caráter plural desse espaço, que
“é construída, definida e redefinida a todo momento, revelando e
estabelecendo contornos de uma interação em construção”. Nesse
sentido, não é difícil perceber de que modo os sujeitos se constroem
linguisticamente e socialmente a partir dos turnos de fala instituídos
81

durante as aulas de língua materna, seja na interação aluno-aluno, no


estabelecimento de uma relação eminentemente simétrica, seja na
interação professor-aluno, marcada por uma relação assimétrica. De
acordo com Geraldi (1997, p. 6):

Os sujeitos se constituem como tais à medida que


interagem com os outros, sua consciência e seu
conhecimento de mundo resultam como ‘produto’ deste
mesmo processo. Neste sentido, o sujeito é social já que a
linguagem não é o trabalho de um artesão, mas trabalho
social e histórico seu e dos outros e é para os outros e com
os outros que ela se constitui. As interações não se dão fora
de um contexto social e histórico mais amplo, na verdade,
elas se tornam possíveis enquanto acontecimentos
singulares, no interior e nos limites de uma determinada
formação social, sofrendo as interferências, os controles e
as seleções impostas por esta. Também não são, em relação
a estas condições, inocentes. São produtivas e históricas, e
como tais, acontecendo no interior e nos limites do social,
constroem por sua vez limites novos.

Assim, considerando-se que o ensino de língua portuguesa tem


sido objeto de discussão entre especialistas e outros profissionais
preocupados em atribuir um novo sentido às práticas de sala de aula,
compreende-se a real necessidade de um redirecionamento da prática e
um melhor encaminhamento do fazer docente nas aulas de língua
materna. Nessa perspectiva, é papel do professor primar pela sua
formação no sentido de se atualizar e priorizar o desenvolvimento da
competência discursiva dos usuários da língua, concebendo a linguagem
como uma forma de interação e o texto, um indicador de sentido
completo para essas interações (TRAVAGLIA, 2009). Essa atitude revela
uma ampla dimensão em que o funcionamento discursivo dos elementos
da língua chega a aportar na própria necessidade comunicativa revelada
nos usos sociais da língua.
82

É importante destacar que esse redimensionamento só será


possível a partir de uma compreensão da linguagem enquanto processo
interativo em que os sentidos são construídos a partir das relações
dialógicas estabelecidas com os interlocutores e o meio social no qual os
sujeitos estão inseridos. Sobre essa concepção, Bakhtin/Voloshinov
(1994, p.123) afirma que:

A verdadeira substância da língua não é constituída por um


sistema abstrato de formas linguísticas, nem pela
enunciação monológica isolada, nem pelo ato
psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social
da interação verbal, realizada pela enunciação ou pelas
enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade
fundamental da língua.

Desse modo, é preciso que o professor tenha definida a concepção


de que o homem é um ser sociável e por esta razão precisa estabelecer
relações com os outros e com o meio social no qual está inserido, através
dos usos da linguagem oral ou escrita. Bakhtin/Medvedev (2000)
considera que o homem fora de suas interações sociais não tem
existência alguma, ele necessita estabelecer relações com os outros para
ser reconhecido como um ser histórico e social.
Daí, a importância das práticas de linguagem serem enfatizadas a
partir do estabelecimento de situações que favoreçam aos sujeitos
aprendizes a condição de ampliar seus conhecimentos sobre a língua,
compreendendo seu funcionamento e usando-a de forma eficiente.
Sobre essa questão, Kleiman (1992, p.3) propõe a existência das práticas
de letramento, oriundas da intimidade dos falantes com os usos, funções
e organização da escrita, que irão refletir na oralidade desses sujeitos,
em que seriam aplicadas “as estratégias discursivas do falante para se
referir a objetos e eventos não diretamente acessíveis através dos
sentidos e para organizar a sua fala”.
Ainda sobre esse aspecto, os Parâmetros Curriculares Nacionais
de Língua Portuguesa, Brasil (1998, p.22) destacam que:
83

O objetivo de ensino e, portanto, de aprendizagem é o


conhecimento linguístico e discursivo com o qual o sujeito
opera ao participar das práticas sociais mediadas pela
linguagem. Organizar situações de aprendizado, nessa
perspectiva, supõe planejar situações de interação nas
quais esses conhecimentos sejam construídos e/ou
tematizados; organizar atividades que procurem na sala de
aula situações de outros espaços que não o escolar; [...]
saber que a escola é um espaço de interação social onde
práticas sociais de linguagem acontecem e se
circunstanciam, assumindo características bastante
específicas em função de sua funcionalidade: o ensino.

Desse modo, cabe ao ensino de língua criar condições para formar,


preparar, socializar a cultura e instrumentalizar mecanismos que
viabilizem a execução de atividades democráticas de acesso aos bens
culturais e procedimentos de ação, reflexão e compreensão linguística
de cada sujeito implicado no processo de ensino e aprendizagem. À luz
dessa perspectiva, é pertinente ressaltar que a língua não se esgota na
compreensão de sua estrutura, mas remete à exterioridade, e assim
“Não deve ser tomada como um sistema fechado e imutável, mas como
um processo dinâmico de interação, em que interlocutores atuam
discursivamente sobre o outro” (PARAÍBA, 2006, p. 22).
É imprescindível que seja dada uma ênfase especial ao trabalho
com os gêneros orais, uma vez que são responsáveis por inúmeros
processos de constituição que não aparecem na língua escrita. O
professor de língua materna precisa se ocupar de situações que
permitam ao aluno vivências mais realistas. As práticas sociais
vinculadas à leitura e o acesso às diferentes modalidades linguísticas e
aos usos que se faz delas devem ser experenciados pelos alunos na
escola. Precisa construir para si uma identidade própria, em que alie
teoria e prática, numa constante “ação-reflexão-ação” (BRASIL, 1998)
sobre o objeto a ser aprendido e apreendido.
84

De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL,


1998, p. 22):

Ao professor cabe planejar, implementar e dirigir as


atividades didáticas, com o objetivo de desencadear, apoiar
e orientar o esforço de ação e reflexão do aluno,
procurando garantir aprendizagem efetiva. Cabe também
assumir o papel de informante e de interlocutor
privilegiado, que tematiza aspectos prioritários em função
das necessidades dos alunos e de suas possibilidades de
aprendizagem.

Esse redimensionamento do fazer docente do professor de língua


materna pode promover situações que propiciem aos sujeitos
aprendizes a construção de seus próprios saberes linguísticos,
conhecendo na prática a investigação e teorização sobre os fatos da
língua e da linguagem em movimento, uma vez que “[...] a maneira como
o professor concebe a natureza fundamental da língua altera em muito
como se estrutura o trabalho com a língua/linguagem em termos de
ensino” (TRAVAGLIA, 2009, p. 21). Leite (2011, p. 55) corrobora com
essa ideia ao afirmar que “nenhuma técnica será eficiente, se, entre
aluno e professor, não houver adequado entrosamento linguístico, a
partir da qual a interação entre os interlocutores se realiza”. É preciso
que aluno e professor dominem a mesma concepção de linguagem e
desse modo, os saberes linguísticos se deem de forma harmoniosa.
Esse paradigma supõe que o professor seja preparado para as
mudanças propostas e que as compreenda, crítica e teoricamente.
Entretanto, fazendo-se uma revisão na literatura sobre o
desenvolvimento de projetos de pesquisa calcados na prática de ensino
de língua materna, constata-se que, seja pela ausência do conteúdo na
formação inicial, seja pela qualidade dos cursos de formação continuada
e dos materiais usados para tal fim, ainda não se tem efetivado, em sala
de aula, uma metodologia de ensino na perspectiva discursiva, em que
se fundamenta o trabalho com os gêneros textuais com vistas ao
85

processo interacional da linguagem, e ainda se mantem viva uma


metodologia pautada numa visão estruturalista da língua com primazia
a “construção” de formas fixas, prontas e definidas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando as abordagens sobre o uso da linguagem em


interação no contexto das aulas de língua materna, procuramos discutir
como os sujeitos se constituem e desenvolvem sua competência
linguística e social a partir das práticas interativas desenvolvidas a
partir da relação com o outro. Consideramos que, no espaço da sala de
aula, a interação pode caracterizar-se como um processo de socialização
e aprendizagem dos alunos e que são necessários estímulos diversos
para que essas aprendizagens se efetivem.
A partir das contribuições teóricas de Vygotsky e
Bakhtin/Voloshinov, buscamos compreender as relações e os papeis
sociais construídos, negociados e desempenhados pelos diferentes
sujeitos envolvidos no processo interacional.
Mediante o exposto, pudemos compreender a importância de
ressignificar o espaço da sala de aula com vistas ao desenvolvimento de
ações que viabilizem a interação dos sujeitos envolvidos, o que
pressupõe se utilizar dos pressupostos da Sociolinguística Interacional
de modo que a aula de língua materna seja construída a partir da
socialização, da relação dialógica e da reflexão do professor e alunos
acerca das infinitas possibilidades de usos da linguagem. Nessa
perspectiva, o professor de língua portuguesa se apresenta como
facilitador desse processo, considerando a especificidade da linguagem
enquanto processo interativo e dinâmico, estabelecendo padrões e
modos de fala democráticos, em que os sujeitos envolvidos no ato
interacional possam interagir em sala de aula em iguais condições.
É importante destacar que as reflexões aqui apresentadas não se
esgotam, e que almejamos contribuir para que outras discussões sejam
suscitadas e, principalmente, que os professores de língua materna, que
86

tenham acesso a essa leitura, possam revisitar suas concepções de


linguagem e interação refletidas nas práticas pedagógicas desenvolvidas
e na construção dos sujeitos presentes no contexto das aulas de língua
materna.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN. M. (VOLOSHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. São


Paulo: HUCITEC, 1994.
BAKHTIN. M. (MEDVEDEV). Estética da criação verbal. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. O professor pesquisador:
introdução à pesquisa qualitativa. São Paulo: Parábola editorial, 2008.
BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos
do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília, MEC/SEF 1998.
CAJAL, Irene Baleroni. A interação de sala de aula: como o professor
reage às falas iniciadas pelos alunos? In: Cenas de sala de aula. COX,
Maria Inês Pagliarini; ASSIS-PETERSON, Ana Antônia de. Campinas, SP:
Mercado de Letras, 2001.
FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Vygotsky & Bakhtin: Psicologia e
educação: um intertexto. São Paulo: Ática, 1994.
GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. 4. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.
KLEIMAN, A. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 2. ed.
Campinas, SP: Pontes, 1992.
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. A interação pela linguagem. 10. ed.
São Paulo: Contexto, 2006.
LEITE, Marli Quadro. Interação pela linguagem: o discurso do professor.
Revista Letra Magna. São Paulo, Ano 04, nº 7, 2º semestre de 2007.
Disponível em: http://www.letramagna.com/interacaomarliquadros.
pdf. Acesso em: 05 de agosto de 2013.
MARCUSCHI, L.A. A análise da conversação. 2. ed. São Paulo: Ática,
1991.
87

ORLANDI, Eni P. Análise de discurso. Campinas – SP: Pontes, 2000.


PARAÍBA. Secretaria de educação e cultura. Referenciais curriculares
para o ensino médio da Paraíba: linguagens códigos e suas
tecnologias. João Pessoa: A União, 2006.
PINHEIRO, Tatiana. O filósofo que deu vida à linguagem. Nova escola: a
revista de quem educa. Ano XXIV, nº 224, p. 34, agosto de 2009.
REGO, T. C. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação.
Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
SANTOS, Maria de Lourdes Pinheiro. Mulheres e a construção da leitura
da leitura em um evento de letramento: intertextualidade e identidade
social. In: LOPES, Luís Paulo da Moita (org.). Discurso e identidades.
Campinas – SP: Mercado de Letras, 2003.
TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino
de gramática. 14. ed. São Paulo: Cortez, 2009.
VYGOTSKY, L. S.. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes,
1998.
88

UMA PROPOSTA DE ADAPTAÇÃO DO CONTINUUM DE KENDON


PARA A AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM

Paulo Vinícius Ávila-Nóbrega (UEPB)


Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante (UFPB)

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo apresentar uma proposta de


adaptação do continuum de Kendon (1982) para a área da aquisição de
linguagem. O continuum é um postulado que classifica os tipos de gestos
usados na comunicação entre adultos em gesticulação, emblemas,
pantomimas e língua de sinais, esta última para a comunidade de surdos.
Como a taxionomia em questão é aplicada para a mescla entre o verbal e
não-verbal, o continuum reflete a relação gesto-fala no que tange à
presença-ausência da produção vocal no uso dos gestos. Por exemplo, a fala
apresenta-se obrigatória e constante na produção da gesticulação; a
produção da gesticulação é individual, pois depende da idiossincrasia do
falante. Como os emblemas são gestos culturais, dependendo da região, há
necessidade do uso ou não da fala, neste caso, um uso opcional. A
pantomima representa ações do cotidiano e não há necessidade da
concomitância com a fala. O que nos motivou a pensar uma adaptação
foram os resultados encontrados por Ávila-Nóbrega (2010) e Ávila-
Nóbrega e Cavalcante (2012a; 2012b) a respeito do uso do envelope
multimodal em díades mãe-bebê em contextos de atenção conjunta.
Denomina-se envelope multimodal a emergência concomitante de três
elementos de interação na dialogia da díade: o olhar, os gestos e a produção
vocal. Percebeu-se uma diferenciação quanto ao uso dos gestos
relacionados à fala dirigida ao bebê, ou seja, os emblemas e pantomimas
são usados com a obrigatória presença da fala, uma vez que a criança está
em processo de aquisição e maturidade da linguagem. Tomamos como
premissa a instância de língua como multimodal proposta por David
McNeill (1985; 2002) ao postular que a língua não ocupa apenas o lugar da
fala, mas uma mescla dos gestos e fala relacionados em uma mesma matriz
de produção.
89

PALAVRAS-CHAVE: multimodalidade; gestos; fala; aquisição.

ABSTRACT: The aim of this research is to present a proposal for


adaptation of Kendon’s continuum (1982) to the field of language
acquisition. The continuum is a theory that classifies the types of
gestures used in communication between adults in gesticulation,
emblems, pantomimes and sing language, the last one to the deaf
community. Since the taxonomy mentioned is applied to the blend of
verbal and nonverbal, the continuum reflects the relationship gesture-
speech considering the presence/absence of vocal production during
the use of gestures. For instance, the speech is mandatory and frequent
in the production of gesticulation; the production of gesticulation is
individual because it depends in the speaker’s idiosyncrasy. As the
emblems are cultural gestures, depending on the region, there is the
need of using or not the speech, in this case, an optional use. The
pantomime represents actions of the daily routine and there is no need
of simultaneity with the speech. The motivation for reflecting upon an
adaptation were the results achieved by Ávila-Nóbrega (2010) and
Ávila-Nóbrega e Cavalcante (2012a; 2012b) in terms of the use of the
multimodal envelop in mother-baby dyads in contexts of joint attention.
Multimodal envelop is the simultaneous emergence of three elements of
interaction in the dyad dialogic: the gaze, the gestures, and the vocal
production. It was noticed a difference in terms of the use of gestures
related to the speech directed to the baby, that is, the emblems and
pantomimes are used with mandatory presence of speech, since the
child is along the process of language acquisition and maturation. The
research is based on the premise of language as a multimodal instance,
proposed by David McNeill (1985; 1999; 2002), when he postulates that
language takes not only the place of the speech, but also a blend of
gestures and speech related to a same origin of production.

KEY-WORDS: multimodality; gesture; speak; acquisition.


90

Introdução

A literatura em aquisição de linguagem, no Brasil, tem obtido um


espaço já demarcado e consolidado há alguns anos (por volta de 1970).
Muitas pesquisas sofreram influência de outros países tomando estudos
clássicos na área como seu suporte e outros já ganharam sua identidade
e independência. Hoje temos uma produtividade embasada em nomes
que iniciaram o arcabouço da aquisição em território nacional: Cláudia
de Lemos (PUCSP), Leonor Scliar-Cabral (UFSC), Ester Scarpa
(UNICAMP), Regina Lamprecht (PUCRS), Carmen Matzenauer (PUCRS),
apenas para citar algumas (SCLIAR-CABRAL, 2008).
Um tema tem atraído atenção nos últimos anos por investigadores
da dialogia mãe-bebê tendo demonstrado ser bastante produtivo. A
multimodalidade linguística na dialogia com a criança tem sido
disseminada em âmbitos como a psicologia, fonoaudiologia e pedagogia.
Esses diálogos tiveram início a partir de projetos 1 de Cavalcante quando
se interessou pelos estudos acerca da multimodalidade a partir de
reflexões sobre o panorama do interacionismo.
A partir de projetos como este, o tema “multimodalidade” na
aquisição de linguagem atingiu dois pólos de pesquisas que se
complementam: vai desde os estudos da linguagem típica de crianças
aos estudos sobre questões de linguagem (autismo, cegueira, surdez) e
tem adotado postulados de dois autores principais, pelo menos. David
McNeill (1985) concerne a língua como a matriz relacional de gesto-fala
numa produção concomitante, indissociada e Adam Kendon (1982) que
classifica os gestos em quatro tipos e formula uma relação com a
presença/ausência da fala, denominado por McNeill (1992) como
Kendon´s continuum.
Já no que tange aos estudos de Ávila-Nóbrega (2010)
concernentes à emergência do envelope multimodal na dialogia mãe-

1PALIM: Projeto Aquisição da Linguagem e Multimodalidade (2007-2010); Hologestos


(2010-2012); Contínuo Gesto-fala (2013).
91

bebê, fazendo uso do denominado continuum, o pesquisador percebeu


que os gestos classificados por Kendon não atendiam às necessidades da
interação de díades mãe-bebê, pois são conceitos da comunicação não-
verbal e visam explicar como funciona a relação dos gestos e da fala na
interação de adultos.
Sendo assim, este artigo se propõe a apresentar uma adaptação do
continuum de Kendon para a aquisição de linguagem. Para isso será
necessário um panorama de alguns achados dos estudos sobre os gestos,
com vista a entendermos o espaço teórico de Adam Kendon e em
seguida mostraremos pesquisas em aquisição de linguagem que
adotaram o aspecto da multimodalidade.

Breve histórico dos estudos sobre os gestos: contextualizando os


estudos de Adam Kendon

Nesta seção faremos um breve levantamento sobre a história da


comunicação não-verbal discutidos por Mark Knapp e Judith Hall (1999,
p. 36-39). Este breve panorama nos apresentará o contexto de pesquisas
em que Adam Kendon esteve inserido, o que pode ajudar-nos a entender
melhor os pensamentos à época.
O interesse pela gestualidade emerge posteriormente à Segunda
Guerra Mundial, o que não significa que antes desse período não
houvesse interessados nesses estudos ou a produção de trabalhos a esse
respeito. Por exemplo, a obra Institutio Oratoria, de Quintiliano, é
considerada importante fonte a respeito dos estudos sobre os gestos e
foi escrita no século I.
O foco na comunicação não-verbal nunca foi interesse de uma
única área. Podemos encontrar menções sobre movimentos corporais,
ou até mesmo pesquisas aplicadas em obras como, por exemplo, A
expressão das emoções em homens e animais, de Charles Darwin, datada
de 1872. Além da biologia, outros estudiosos da antropologia,
linguística, filosofia, psiquiatria, psicologia, sociologia, ciência da
92

estética e outras manifestaram seus interesses para compreender os


sentidos que o corpo e seus movimentos podem apresentar.
Durante o início do século XX foram feitas análises isoladas da voz,
da aparência física, da vestimenta e da face. Pouca atenção era dada à
proxêmica, ao meio ambiente e à cinestesia e menos ainda se dava
interesse ao comportamento ocular e ao toque.
Em meados de 1950 houve um aumento significativo no número
desses trabalhos. Antropólogos como Ray. L. Birdwhistell e Edward T.
Hall foram responsáveis por aplicar alguns postulados da linguística aos
fenômenos gestuais atribuindo novos rótulos aos estudos do corpo e do
espaço e por iniciar um programa de investigação para cada área. Freud
e outros terapeutas já haviam se interessado, antes dos anos 50, por
sinais do corpo, das mãos e do rosto, mas a obra Nonverbal
communication: notes on the visual perception of human relations, do
psiquiatra Jurgen Ruesch e do fotógrafo Weldon Kees provavelmente foi
a primeira a usar em seu título a expressão “comunicação não-verbal”.
Essa publicação forneceu elementos teóricos adicionais quanto a
origens, uso e codificação do comportamento corporal e mais uma
extensa documentação visual do papel dos ambientes na comunicação.
Nos anos 1960 houve uma avalanche nos estudos na área e partes
específicas do corpo eram objeto de longos programas de pesquisa. Um
artigo de Paul Ekman e Wallace Friesen sobre origens, uso e codificação
do comportamento não-verbal parece ter sido a peça teórica clássica
desse período. O artigo em questão distinguia cinco áreas de estudo que
abrangem a maior parte da atual pesquisa desses autores: emblemas,
ilustradores, demonstrações de emoção, reguladores e adaptadores.
Na década de 1970 houve uma explosão de vendas de livros que
influenciavam o público americano com conclusões errôneas, segundo
Knapp e Hall (1999, p. 38), a respeito de como fazer uma venda, como
obter um parceiro sexual, perceber fingimento, afirmar superioridade
etc. Os leitores, com essas publicações, ficavam com a impressão de que
a leitura de sinais corporais e faciais era a chave do sucesso em qualquer
encontro humano e que nos tornaríamos totalmente transparentes se os
93

nossos sinais fossem desvendados. No entanto, apesar do modismo


americano desses estudos que se apresentavam no auge, estudiosos de
renome procuraram desenvolver pesquisas confiáveis a respeito do
comportamento corporal, ocular, facial, da pupila com o intuito de fazer
uma espécie de compêndio.
Já por volta de 1980 alguns estudiosos continuaram a
particularizar suas teses, enquanto outros se concentravam na
identificação das maneiras pelas quais uma variedade de signos não-
verbais atua em conjunto a fim de atingir objetivos comuns, como, por
exemplo, levar alguém a fazer algo por você, mostrar afeto, mentir etc.
Tornara-se claro que não poderíamos compreender inteiramente o
papel dos sinais não-verbais na obtenção desses objetivos se não
observássemos o comportamento verbal concomitante a esses sinais e
tentássemos desenvolver teorias sobre como diversos sinais verbais e
não-verbais interagem no processo interativo.
Sendo assim, após anos separando e isolando esses sinais
microscopicamente, os estudiosos gradualmente perceberam que esses
elementos funcionariam em um exercício conjunto. As pesquisas sobre
a comunicação não-verbal seguem sendo modificadas das seguintes
maneiras:
 do estudo das situações não-interativas às interativas;
 do estudo de uma pessoa a ambos os interlocutores;
 do estudo de um único ponto do tempo a mudanças ao longo do
tempo;
 de estudo de comportamentos únicos a estudos
multicomportamentais;
O novo perfil dos estudos sobre os gestos começa a amadurecer e
articular outras discussões, inclusive unificando outros elementos da
interação aos gestos. Nos Estados Unidos encontramos publicações de
alguns autores como David McNeill, quem discute a relação multimodal
da matriz gesto-fala, Charles Goodwin e seus trabalhos sobre gestos e
afasia, Cynthia Butcher e Susan Goldin-Meadow com seus estudos sobre
94

a produção de palavras com movimentos das mãos e Adam Kendon ao


discutir o sistema de funcionamento dos gestos e da fala.
Na Europa temos trabalhos na Suécia de John Laver e Janet Beck,
quem pesquisa a relação de elementos como voz, postura e gestos, na
França podemos encontrar trabalhos de Isabelle Guaïtella e Jacques
Boyer a respeito da relação da voz e dos gestos.
Um forte grupo também tem se fundamentado em estudos
multimodais e multissensoriais levando em consideração a interação
entre adultos, entre adultos e computadores e entre adultos e crianças.
O The MARCS Institute é desenvolvido na Universidade de Sidney e tem
como coordenadores Denis Burnhan, Kate Stevens, Chris Daves, André
van Schaik e Simeon Simoff.

Estudos em multimodalidade no âmbito da aquisição de linguagem

Pesquisas desenvolvidas no Brasil, no que se refere diretamente à


aquisição de linguagem, já foram realizadas também adotando uma
concepção da relação de gesto e fala que emergem na interação com o
bebê, ou com a criança, típica ou com alguma questão de linguagem.
Alguns desses estudos se baseiam na classificação de gestos postulada
por Kendon (1982).
Antes de prosseguirmos, precisamos entender o que
consideramos aqui como multimodalidade. Baseados em David McNeill
(1985) afirmamos que gesto e fala formam uma esfera indissociada. Ou
seja, na mesma matriz de produção da fala, os gestos são produzidos, e
isso de maneira concomitante, o que atribui à língua uma instância de
multimodalidade.
McNeill (2000, p. 1) ainda afirma que se observarmos alguém
falando qualquer língua e sob qualquer circunstância, veremos que
parece haver uma compulsão para mover os braços e mãos
conjuntamente à fala. Além disso, o autor tem colocado o termo “gesto”
no plural, dando um dimensionamento mais amplo, uma vez que não
tratamos de um tipo de movimento apenas.
95

Já Kendon (2000, p. 61-62) afirma que gesto e fala são compostos


juntamente como componentes de um plano singular absoluto, são co-
expressão de um complexo ideacional singular.
Tomando essa assertiva como paradigma partimos para o
levantamento de alguns enfoques no que tange à aquisição de
linguagem. Iniciamos com alguns estudos de Marianne Cavalcante
(2009) ao mostrar as primeiras interações entre mãe e bebê envolvendo
o uso de gêneros do discurso dentro da esfera familiar. A autora mostra
que a criança se insere nos gêneros da esfera familiar desde muito cedo
e faz uso da multimodalidade ao produzir concomitantemente
gestualidade às produções vocais (balbucio, variações prosódicas,
holófrases). Ao falar de multimodalidade a pesquisadora se apropria da
classificação que Kendon atribui à relação gesto-fala e mostra que se
analisarmos os tipos de gestos dentro do continuum 1, percebemos que
a presença obrigatória da fala diminui, a presença de propriedades
linguísticas aumenta e os gestos individuais são substituídos por
aqueles socialmente regulados.
Para Brandão (2010, p. 45) a gesticulação é o primeiro tipo que
aparece no comportamento da criança e é caracterizado pelo
movimento de algumas partes do corpo, como por exemplo, a cabeça, as
mãos e os braços. A pantomima desenvolve-se dentro de contextos
interativos lúdicos. Normalmente aparece na interação mãe-bebê em
suas brincadeiras com objetos. Aparece após a gesticulação,
aproximadamente aos nove meses. O bebê começa a produzi-las sozinho
aproximadamente aos doze meses. O gesto emblemático mais conhecido
é o de apontar. Pode ser também o de dar tchau, mandar beijo, negativa
com o dedo, dentre outros. Aparece durante as interações e com o passar
dos meses vai se tornando indispensável para a criança se comunicar.
Os estudos de Fonte (2011) O toque, enquanto linguagem, aciona
a modalidade tátil no diálogo entre interlocutores, e articulado, com a
visão ou a audição, possibilita a percepção de informações táteis e de
outros recursos como os gestos pela visão ou a fala com sua riqueza
prosódica através da audição.
96

Além da noção de multimodalidade, ou seja, a língua enquanto


instância multimodal, no qual fala e gesto/tocar formam um sistema
integrado e indissociável, trazemos nesse tópico a noção de
intermodalidade, que propõe a integração de mais de um canal sensorial
para a captação das informações do ambiente, já que tais informações
são múltiplas, demandando da percepção e acesso de mais de um
sentido. Como estamos lidando/trabalhando com dados longitudinais
de uma criança com um dos sentidos, a visão ausente, é importante
compreender que outros sentidos são acessados nas diversas cenas de
atenção conjunta, das quais a criança participa.
Os bebês cegos não podem captar as informações visuais, já que a
visão ausente não pode ser integrada aos demais sentidos, garantindo
uma percepção intermodal visual-auditiva ou visual-tátil, como no
desenvolvimento típico infantil. Esses bebês podem usar outros
sentidos, a capacidade perceptiva articulada com mais de um sentido
pode existir, como a percepção intermodal áudio-tátil, por exemplo.
Então, na ausência ou no funcionamento inadequado de alguma
modalidade sensorial, como, por exemplo, a visual, a interação com
pessoas e objetos pode tornar-se efetiva pelo uso de outras modalidades
sensoriais, como a audição e o tato.
Lopes (2011) desenvolve uma pesquisa a partir de um período de
atendimento fonoaudiológico de uma menina autista e afirma que uma
concepção de língua enquanto multimodalidade favorece a inserção da
criança na linguagem. A autora postula que o funcionamento dialógico
discursivo com diferentes interlocutores e dinâmicas interativas
permite compreender o processo de constituição subjetiva e suas
singularidades na criança autista.
A partir de resultados encontrados por Ávila-Nóbrega (2010) no
que concerne à emergência do envelope multimodal em contexto de
atenção conjunta por duas díades mãe-bebê, um desconforto começa a
surgir. Adotando também uma concepção multimodal de língua, nesse
estudo o autor atribui um perfil à interação da díade como sendo a
mescla de três componentes da dialogia: o olhar, os gestos e a produção
97

vocal. Esta é vista como o uso de elementos da modalidade oral como


balbucios, holófrases etc. Para o olhar é usada a classificação de
Tomasello (2003) a respeito dos processos de atenção que o movimento
ocular define: atenção de verificação, atenção de acompanhamento e
atenção direta. Já para os gestos, é usado o continuum de Kendon. Sendo
assim, o envelope multimodal é definido como a mescla concomitante
desses três elementos dialógicos usados por ambos os parceiros na
interação.
No entanto, percebe-se que no período de aquisição de língua do
infante, o continuum não tem funcionado como já tão postulado nos
estudos da comunicação não-verbal. As conclusões de pesquisas
encontradas nas publicações de autores como Adam Kendon têm sido
muito produtivas para a interação entre adultos.
Revendo o que foi dito por Ávila-Nóbrega (2010) e reafirmado por
Ávila-Nóbrega e Cavalcante (2012a; 2012b) sentimos a necessidade de
fazer uma adaptação desse continuum para que possa ser utilizado de
maneira condizente e produtiva nos estudos em aquisição de linguagem,
seja com crianças típicas, ou com crianças com alguma questão de
linguagem. Vejamos isso no item seguinte.

O continuum de Kendon: apresentação

Adam Kendon nasceu em Londres e é uma das autoridades em


pesquisas relacionadas aos gestos. Formou-se em Biologia e Psicologia
Experimental. Suas pesquisas inicialmente focalizaram o sistema de
gestos em Papua Nova Guiné e o sistema da língua de sinais de
aborígenes australianos. Também desenvolveu estudos a respeito dos
processos semióticos do sistema gestual.
Em relação aos tipos de gestos usados em comunicação com
adultos Kendon (1982) distingue quatro principais: gesticulação,
pantomima, emblemas e língua de sinais. A gesticulação é usada no fluxo
de fala sem previsibilidade, ou seja, é um ato individual das mãos; a
pantomima é usada sem o fluxo de fala, são representações de ações
98

cotidianas; os emblemas são gestos usados dentro de um grupo cultural;


já a língua de sinais é uma propriedade da comunidade de surdos.
Para esta classificação o autor produziu um continuum com a
finalidade de mostrar como funciona a relação de gestos com a fala.
Continuum 1 – relacionamento da fala
 Gesticulação: obrigatória presença de fala
 Pantomima: obrigatória ausência de fala
 Emblemas: presença de fala opcional
 Língua de sinais: obrigatória ausência de fala
Neste primeiro modelo, fala/gesto refletem a presença versus
ausência de características semióticas da língua. A fala apresenta-se
obrigatória e constante na produção da gesticulação, que é individual,
pois depende da idiossincrasia do falante. Como os emblemas são gestos
culturais, dependendo da região, há necessidade do uso ou não da fala.
Neste caso, um uso opcional. A pantomima representa ações do
cotidiano e não há necessidade da concomitância com a fala. E por fim, a
língua de sinais, como o próprio nome diz, é a propriedade de uso da
comunidade de surdos. O segundo modelo segue o seguinte processo:
Continuum 2 – relacionamento das propriedades linguísticas
 Gesticulação: ausência de propriedades linguísticas
 Pantomima: ausência de propriedades linguísticas
 Emblemas: presença de algumas propriedades linguísticas
 Língua de sinais: presença de propriedades linguísticas
As propriedades linguísticas podem ser definidas como
significações morfológicas, fonéticas e sintáticas que estão presentes no
momento da execução de algum tipo de gesto em que a presença dessas
propriedades seja obrigatória. Por exemplo, a língua de sinais por si só
possui elementos linguísticos a partir da execução de configuração da
mão nos espaços corporais e temporais.
Continuum 3 – relacionamento com convenções
 Gesticulação: não convencional
 Pantomima: não convencional
99

 Emblemas: parcialmente convencionais


 Língua de sinais: totalmente convencional
Nesse modelo, denomina-se convencional ou não-convencional o
tipo de gesto que está presente ou não em determinada cultura. Neste
caso, é o grupo social que estabelece seu uso. A gesticulação como
característica individual não é determinada pela cultura, assim como a
pantomima que pode variar a depender da etnia. Os emblemas são
parcialmente convencionais, pois um gesto com determinada
configuração manual pode ter sentido diferente na diversidade cultural.
A LIBRAS é totalmente convencional, porque pertence a uma cultura de
falantes e usuários específicos.
Continuum 4 – caráter semiótico
 Gesticulação: global e sintética
 Pantomima: global e analítica
 Emblemas: segmentados e sintéticos
 Língua de sinais: segmental e analítica
Ao fazermos referência à característica global concebemos que a
significação da gesticulação se dá de modo geral, não há especificidade
simbólica. Diferentemente do que acontece com os gestos sintéticos, que
por si só já carregam significado. Abaixo segue o quadro de distribuição
dos contínua.

Língua de
Gesticulação Pantomima Emblemas
Sinais
obrigatória obrigatória presença de fala obrigatória
Continuum 1
presença de fala ausência de fala opcional ausência de fala
presença de
ausência de ausência de presença de
algumas
Continuum 2 propriedades propriedades propriedades
propriedades
linguísticas linguísticas linguísticas
linguísticas
não não parcialmente totalmente
Continuum 3
convencional convencional convencionais convencional
global e global e segmentados e segmentada e
Continuum 4
sintética analítica sintéticos analítica
Continuum de Kendon
100

Então, gestos como dar e pegar, tirar a chupeta da boca do


parceiro, abrir a mão solicitando algo, apontar, etc., serão emblemas nas
nossas cenas interativas. As pantomimas, mencionadas pelo autor como
simulações de ações do cotidiano com ausência obrigatória de fala,
também terão uma adoção ampla para nossos dados, pois a criança e sua
mãe, nas idades verificadas, simulam ações como buzinar, jogar bola, dar
comida, fazer ligação telefônica, usar fantoche na mão com a presença
de fala. Em seguida mostramos um modelo em processo de construção
no que se refere às concepções de gesto-fala na mesma matriz
multimodal para a relação mãe-bebê.
O continuum abaixo está ilustrado com as linhas pontilhadas e
com caixas cinza pelo fato de representar semioticamente o processo
final dessa adaptação. Ou seja, o nosso trabalho apresenta uma proposta
de adaptação em construção:

Língua de
Gesticulação Pantomima Emblemas
sinais
Presença Presença presença
Obrigatória
Continuum 1 obrigatória de obrigatória de obrigatória de
ausência de fala
fala fala fala
Presença de presença de presença de Presença de
Continuum 2 propriedades propriedades propriedades propriedades
linguísticas linguísticas linguísticas linguísticas
parcialmente parcialmente parcialmente Totalmente
Continuum 3
convencional convencional convencionais convencional
Global e Global e segmentados e Segmentada e
Continuum 4
sintética analítica sintéticos analítica
Continuum de Ávila-Nóbrega e Cavalcante

É interessante perceber que, na proposta de adaptação, o termo


“ausência” começa a não ter mais espaço, bem como o termo “opcional”,
já que no processo de aquisição os elementos todos se fazem
constituintes.
A gesticulação é definida nesse continuum como sendo ações
gestuais idiossincráticas concomitantes à fala como, por exemplo,
movimentos dos olhos, das sobrancelhas, dos braços e mãos e
101

movimentos corporais que não se assemelhem às pantomimas e aos


emblemas.
No protótipo 1 do continuum (relação com a fala), a gesticulação
tem a obrigatória presença de fala, seguindo o mesmo modelo de
Kendon. Para os aspectos da aquisição de linguagem, a fala se faz
obrigatória na concomitância da gesticulação, uma vez que a criança
ainda está se inserindo nos processos linguísticos e gestuais. Dessa
forma, no modelo 2, já que a fala se faz obrigatória, as propriedades
linguísticas (semânticas, sintáticas, fonético-fonológicas e morfológicas)
estão presentes.
Para o modelo 3 consideramos os gestos parcialmente
convencionais por fazerem parte da microcultura mãe-bebê. Isso
significa que alguns gestos idiossincráticos podem ser mais acentuados,
enfáticos, ou não, a depender da relação da díade. Neste artigo
deixaremos em aberto a exploração do modelo 4, o que ocorrerá em
trabalhos futuros.

Considerações

Nossa intenção, com este trabalho, foi apresentar uma adaptação


do clássico continuum de Kendon para o nosso espaço de pesquisas em
aquisição de linguagem. Como já apresentado, vários autores se
detiveram a entender o estatuto dos gestos, tanto no que se refere à
comunicação entre adultos, quanto de crianças; tanto no que tange a
crianças sem questão, quanto com patologias de linguagem.
Sendo assim, como o modelo do continuum adaptado está em
construção, apresentamos um esboço do que esperamos ainda ser
explorado e utilizado. Para o momento, é importante levar em
consideração alguns aspectos dessa adaptação como, por exemplo: a
gesticulação é definida pelo uso de gestos idiossincráticos, levantar das
sobrancelhas em sinal de alerta, movimentos específicos da boca em
sinal de alerta, abertura ou diminuição dos olhos em sinal de
reprovação, movimentos da cabeça, etc; as pantomimas são vistas
102

como representações de ações do cotidiano como dar comida, dar


banho, atender ao telefone, colocar para dormir, andar de cavalo de
brinquedo, etc; os emblemas, gestos convencionados por uma cultura,
na relação mãe-bebê são os gestos de dar e pegar, tocar, dar tchau, bater
palmas, apontar, dar beijos, mostrar etc.
Sendo assim, a exploração destas discussões do trabalho em
questão pode auxiliar pesquisas no âmbito da dialogia mãe-bebê no que
tange ao entendimento dos elementos gestuais e orais que emergem em
concomitância.

Referências

ÁVILA-NÓBREGA, Paulo Vinícius. Dialogia mãe-bebê: a emergência do


envelope multimodal em contextos de atenção conjunta. Dissertação de
mestrado. João Pessoa: UFPB, 2010.
ÁVILA-NÓBREGA, Paulo Vinícius; CAVALCANTE, Marianne Carvalho
Bezerra. Aquisição de linguagem em contextos de atenção conjunta:
o envelope multimodal em foco. Revista Signótica. V. 24, N. 2. Jul-dez
2012. P. 469-491.
______. Aquisição de linguagem e dialogia mãe-bebê: o envelope
multimodal em foco em contexto de atenção conjunta. Revista
Investigações. V 25, N2. Jul – 2012. P. 157-183
BRANDÃO, Lavínia Wanderley Pinto. A fala materna dirigida ao bebê
surdo implantado: entre o “ouvinte suposto” e o “aprendiz de ouvinte”.
João Pessoa: UFPB, 2010. (Tese de doutorado)
CAVALCANTE, Marianne Carvalho Bezerra. Rotinas interativas mãe-
bebê: constituindo gêneros do discurso. Investigações. Recife, 2009.
153-170.
FONTE, Renata Fonseca Lima da. O funcionamento da atenção
conjunta na interação mãe-criança cega. João Pessoa: UFPB, 2011.
(Tese de doutorado)
KENDON, Adam. The study of gesture: some observations on its
history. Recherches Semiotique/Semiotic Inquiry 1982, 2 (1) 25-62.
103

______. Language and gesture: unity or duality? In: MCNEILL, D. (ed.)


Language and Gesture. Cambridge University Press. Cambridge, UK.
2000. 47-63.
KNAPP, Mark. L., HALL, Judith. A. Comunicação não-verbal na
interação humana. São Paulo: JSN, 1999.
LOPES, Juliana Costa Maia. Dinâmicas dialógicas singulares: a
multimodalidade na criança com autismo. João Pessoa: UFPB, 2011.
(Tese de doutorado)
MCNEILL, David. So you think gestures are nonverbal? Psychological
Review. Vol 92 (3). 1985. 350-371.
______. Hand and mind: What gestures reveal about thought. Chicago:
University of Chicago Press (1992).
______. Introduction. In: MCNEILL, David (ed.) Language and gesture.
Cambridge University Press. Cambridge, UK. 2000. 1-10.
MCNEILL, David; QUEK, Francis; BRYLL, Robert; DUNCAN, Susan; et al.
Multimodal human discourse: gesture and speech. ACM Transactions
on Computer-Human Interaction, Vol. 9, No. 3, September 2002.
TOMASELLO, Michael. Origens culturais da aquisição do
conhecimento humano. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
SCLIAR-CABRAL, Leonor. Evolução das pesquisas em aquisição da
linguagem oral monolíngue no Brasil. IN: FINGER, I; QUADROS, R. M.
(org.). Teorias de Aquisição de Linguagem. Santa Catarina: Editora da
UFSC, 2008.
104

GESTICULAÇÃO E FLUÊNCIA: COMPONENTES INTERATIVOS NA


MULTIMODALIDADE

Paula Michely Soares da Silva, UFPB


Angélica Fabiana Linhares Saldanha, UFPB
Jéssica Tayrine Gomes de Melo Bezerra, UFPB
Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante, UFPB

RESUMO: Dentre os variados estudos em aquisição da linguagem, uma


das investigações que vem ganhando impulso é a que se propõe
observar o aspecto multimodal da língua; tais trabalhos têm enriquecido
as pesquisas no campo da aquisição da linguagem de forma significativa.
É partindo dessa perspectiva que McNeill (1985) propõe que gesto e fala
encontram-se numa mesma matriz de significação, ou seja, considera-se
os gestos e as produções verbais como componentes da
multimodalidade em aquisição da linguagem. Assim, o presente trabalho
tem por objetivo analisar a presença da gesticulação e da fluência nas
produções verbais entre mãe e bebê. Para tanto, tomamos como aparato
teórico a proposta de McNeill (1985) no que diz respeito à relação entre
gesto e fala. Kendon (1982), por sua vez, desempenha um significativo
papel nos estudos da gestualidade ao classificar os movimentos gestuais
a partir de um contínuo, chamado "contínuo de Kendon". É exatamente
através desse contínuo que o referido autor denomina a gesticulação
como os gestos que acompanham o fluxo da fala, envolvendo braços,
movimentos de cabeça e pescoço, postura corporal e pernas, possui
marcas da comunidade de fala e marcas do estilo individual de cada um.
Tomamos como base para esse trabalho os três tipos de fluência
propostos por Scarpa (1995). O primeiro tipo é a fluência de capacidade,
que é extensa e apresenta pausas. O segundo é aquele em que a fala
fluente apresenta enunciados coerentes. E o terceiro tipo é aquele em
que o falante possui habilidade de dizer algo em um amplo contexto. Já
o quarto tipo é aquele em que o falante desempenha o uso criativo e
imaginativo da linguagem no processo enunciativo. Portanto, buscamos
105

compreender a relação entre a emergência da gesticulação e da fluência


para o processo de aquisição da linguagem, relacionando a tipologia de
gestos que emergem na primeira infância com os fragmentos
enunciativos do bebê. Para este trabalho analisaremos uma díade mãe-
bebê com idade dos 6 aos 24 meses de vida da criança, gravadas em
situação naturalística na casa da díade.

PALAVRAS-CHAVE: aquisição da linguagem, gesticulação, fluência,


multimodalidade.

ABSTRACT: Among the various studies on language acquisition, one of


the searches that is gaining impulse is the one which proposes to
observe the multimodal aspect of the language. These works have
enriched the research in the field of language acquisition in a significant
way. Is from this perspective that McNeill (1985) proposes that gesture
and speech are in the same matrix of meaning, i.e., they are considered
as components of multimodality in language acquisition. Therefore, this
study aims at examining the presence of gestures and fluency in verbal
productions between mother and baby. For this, we base this study in a
classification of gestural movements (KENDON, 1982) such as:
gesticulation as the gestures that accompany the flow of speech,
involving the arms, head and neck movements, body posture and legs,
having marks of speech community and marks of each individual style.
We also take as the basis for this work three types of fluency (SCARPA,
1995). The first type is the fluency of capacity, which is extensive and
presents pauses. The second is the one in which fluent speech presents
consistent statements. The third type is the one in which the speaker has
the ability to say something in a broader context. And the fourth type is
that which the speaker performs the creative and imaginative use of
language in the enunciative process. So, we aimed at understanding the
relationship between the emergence of gesticulation and fluency in the
process of language acquisition, relating the types of gestures that
emerge in early childhood with enunciative fragments of the baby. For
106

this work we analyzed a mother-baby dyad aged 6-24 months of a child's


life, recorded in a natural situation in the house of the dyad.

KEYWORDS: language acquisition, gesticulation, fluency,


multimodality.

INTRODUÇÃO

No processo de aquisição da linguagem muitos autores se


dedicaram a estudar a relação entre gesto e fala ao longo do período que
envolve os três primeiros anos de vida da criança. E nos últimos anos é
crescente o número de pesquisas que buscam entender como se dá o
processo interativo entre mãe-bebê. Este trabalho propõe discutir a
relação entre a gesticulação e fluência enquanto instancias multimodais
nos momentos de interações mãe-bebê.
Tomamos como base a premissa de que gesto e fala estão
agregado a uma mesma matriz de produção e significação (McNeill,
1985). Por isso, podemos afirmar que há muito a dizer em relação aos
gestos e fala enquanto matriz de significação. Dessa forma, entendemos
por fala toda forma de produção discursiva para fins comunicativos na
modalidade oral.
McNeill (2000, p. 1) buscando denominar o termo “gesto”, afirma
que prefere o termo no plural, pois há diversos momentos em que
precisamos diferenciar movimentos frequentes nomeados de gestos.
Para os vários movimentos chamados de gestos, podemos
observar um quadro elaborado por Kendon (1982), bastante conhecido
como o “Continuum de Kendon”. Nesse quadro são encontrados quatros
tipos de gestos que compõem esse contínuo, sendo eles: a gesticulação,
a pantomima, os emblemas, a(s) língua(s) de sinais.
A gesticulação caracteriza-se como os gestos que acompanham o
fluxo da fala envolvendo braços, movimentos de cabeça e pescoço,
postura corporal e pernas. Possui marcas da comunidade de fala e
marcas do estilo individual de cada indivíduo. A pantomima são gestos
107

que “simulam” ações ou personagens executando ações: é a


representação de um ato individual; tem um caráter de narrativa, pois
envolve uma sequência de micro ações. Os emblemas ou gestos
emblemáticos são aqueles determinados culturalmente (são
convencionais) tais como o uso, em nossa cultura, do gesto que envolve
a mão fechada e polegar levantado significando aprovação. A língua de
sinais – LIBRAS- enquanto sistema linguístico próprio de uma
comunidade. Queremos salientar que tomaremos como foco deste
trabalho a gesticulação.
Com relação ao nosso outro objeto de estudos, a fluência,
partilhamos das mesmas ideias de Scarpa (1995) que afirma “a fluência
encontra-se presente em pares adjacentes ritualizados, enunciados
estereotipados, familiares, congelados, muitas vezes em situação
imediata, em expressões que exibem maior estabilidade.” (SCARPA,
1995, p. 7).
Portanto, o objetivo deste trabalho é compreender a relação
emergente entre a gesticulação e a fluência para o processo de interação
mãe-bebê, aprofundando-se no funcionamento multimodal da
linguagem. Para tanto trabalharemos com transcrições de dados via o
software - ELAN. Sendo esses dados qualitativos e longitudinais de uma
díade mãe-bebê com idade dos 6 (seis) aos 24 (vinte e quatro) meses de
vida da criança em situações naturalísticas na casa da própria díade.

A constituição da gesticulação

São crescentes os estudos relacionados à gesticulação dentro não


só da área de aquisição da linguagem, mas também de áreas afins. Desse
modo, partimos da premissa de que gesto e fala formam um conjunto
que não pode ser dissociado, esta perspectiva se baseia no
funcionamento multimodal da língua (McNeill, 1985). Tal premissa
propõe que gesto e fala estão agregados a uma mesma matriz de
produção e significação, ou seja, constituem um único sistema
linguístico.
108

Kendon (2000) situa o estudo dos gestos enquanto atividade


cognitiva. E neste trabalho privilegiaremos uma perspectiva
interacionista. Desse modo, direcionamos nossos estudos a pesquisas
como a de Laver (2000).
Segundo Laver (2000) há uma grande importância do gesto no
processo interativo. O autor afirma ainda que, ao observarmos qualquer
processo comunicativos é necessário entendermos a relação entre a
diferença do que foi desejado pelo infante para o processo
comunicativo-interativo e o que realmente aconteceu durante esse
processo.
Laver (2000) afirma ainda que, embora haja gestos comuns a uma
comunidade falante, estes gestos tornam a variar de pessoa para pessoa,
e de acordo com os fatores intrapessoais que estão presentes em cada
indivíduo e que precisam ser levados em consideração no momento de
interação.
McNeill (2000) buscando denominar o termo “gesto” afirma ser
este um termo que necessariamente precisa de uma explanação, já que
não temos gestos no singular e sim, no plural. E para os vários tipos de
gestos o McNeill (2000) mostra um quadro de gestos bastante
conhecido como o “Continuum de Kendon”.
Kendon (1982) organizou seu contínuo mediante quatro relações
estabelecidas entre gesto e fala. Vejamos o quadro a seguir:
109

Emblemático Língua de
Gesticulação Pantomima
s sinais
Presença Presença
Ausência da Ausência da
obrigatória da opcional da
Contínuo 1 produção produção
produção produção
verbal verbal
verbal verbal
Presença de
Ausência de Ausência de Presença de
algumas
Contínuo 2 propriedades propriedades propriedades
propriedades
linguísticas lingüísticas lingüísticas
lingüísticas
Não Não Parcialmente Totalmente
Contínuo 3
convencional convencional convencional convencional
Global e Global e Segmentada e Segmentada e
Contínuo 4
sintética analítica analítica analítica
Quadro 1. Extraído de McNeill (2000, p.5)

Como podemos observar o contínuo de Kendon (1982) é


composto por quatro tipos de gestos, sendo eles: gesticulação,
emblemas, pantomimas e língua de sinais. Como já mencionamos
anteriormente, para esse trabalho enfocaremos na gesticulação.
Segundo Cavalcante e Brandão (2012) a gesticulação caracteriza-
se como o conjunto de gestos que acompanham o fluxo da fala,
envolvendo braços, movimentos de cabeça e pescoço, postura corporal
e pernas, ou seja, são movimentos que ocorrem simultaneamente à
produção de fala e que possuem marcas da comunidade e do estilo
individual de cada um.
Segundo Cavalcante (2012) a gesticulação depende do fluxo de
fala, esta tem seu uso pontual, visto que no período aquisicional
levantado predominam os balbucios e holófrases. Mas mesmo assim as
produções verbais são acompanhadas da gesticulação, que tal como
propomos neste trabalho faz parte de uma mesma matriz significativa
junto com a fala. Privilegiar restritamente apenas a produção verbal
qualificando-a como a única instância de realização do processo
aquisicional é restringir a compreensão do processo.
110

Dessa forma, há a necessidade de considerar este processo como


sendo um processo multimodal, em que elementos atuam para as
interações linguísticas acontecerem promovendo a passagem da criança
à falante de sua língua.

O componente multimodal “Fluência” no processo da aquisição da


linguagem

Os estudos acerca da fluência têm encontrado dificuldades para


defini-la devido a uma falta de mensuração do seu período. Com isso,
mostraremos um breve levantamento acerca da literatura sobre
fluência no processo aquisicional da linguagem.
Cavalcante e Brandão (2012) apontam a perspectiva de Merlo
(2006) acerca da fluência, onde Merlo constata que o discurso fluente
envolve algumas características tais como: (a) baixa frequência de
hesitações; (b) baixa frequência de reformulações; (c) baixa frequência,
curta duração e uso nativo de pausas silenciosas fluentes; (d) taxa de
elocução (speech rate) confortável; (e) facilidade de emissão; (f)
habilidade gramatical; (g) diminuição da complexidade semântica.
(CAVALCANTE E BRANDÃO 2012).
Como já mencionamos anteriormente não existe um consenso a
respeito da definição de fluência e com isso, alguns autores organizam
sua ‘definição’. Vejamos o que Scarpa (1995) afirma com relação os
trechos de fala fluente:

os já ajeitados, conhecidos, analisados ou, na grande


maioria dos casos, congelados, vêm em bloco. Os
disfluentes são aqueles em construção, instáveis, com
tentativas infrutíferas de segmentação em blocos
prosódicos; supõem passos mais complexos tanto
paradigmática quanto sintagmaticamente na elaboração
do enunciado.” (SCARPA, 1995, p.171)
111

Podemos observar que a fala fluente é entendida como blocos,


estes se apresentam de maneira completa, como a autora menciona
“congelados”. Já a fala com disfluência são aquelas que estão em
construção e que podem apresentar alterações.
Tomamos como base para esse trabalho os quatros tipos de
fluência propostos por Scarpa (1995). O primeiro tipo é a fluência de
capacidade, que é extensa e apresenta pausas. Nesse tipo o falante
fluente fala extensamente sem pensar muito no que dizer, nem mesmo
interrompe seu enunciado para moldar suas palavras em como dizer
algo. Esse tipo de fluência é fácil ser percebida quando observamos um
locutor narrar um jogo, pois sua fala é constante, extensa.
Diferentemente do primeiro tipo, o segundo é aquele em que a fala
fluente apresenta enunciados coerentes. O terceiro tipo é aquele em que
o falante possui habilidade de dizer algo em um amplo contexto. Uma
pessoa com essa habilidade fluente sente-se à vontade em qualquer
contexto enunciativo. Já o quarto tipo é aquele em que o falante
desempenha o uso criativo e imaginativo da linguagem no processo
enunciativo.
Com relação à fluência em um período mais inicial da linguagem
Ramos e Scarpa (2007) salientam que a fluência e os enunciados
cristalizados estão destacados no período em que a criança encontra-se
no discurso materno ou trazem na sua produção holófrases ou
produções holofrásticas.

Análise dos dados

No espaço a seguir, mostraremos alguns fragmentos observando


a ocorrência da gesticulação. Esta, por sua vez já foi mencionada
anteriormente e está presente no contínuo de Kendon (1982) e aparece
relacionada à fala.
O processo de produção dos gestos tem início primeiramente com
o incentivo da mãe à criança. Vale ressaltar que nessa situação, a mãe
deve ser vista como um elemento de extrema importância no processo
112

de interação do bebê com o mundo, isso pode ser considerado como


consequência do uso dos gestos, pois é através dos mesmos que o
infante se comunica com a mãe.

Extrato 1
Contexto: Mãe e criança brincando com um telefone de brinquedo.
Díade: C; idade:10m 23d

Gesticulação materna

Quadro 2.
113

Gesticulação da criança

Quadro 3.

Fala materna

Quadro 4.

Fala da criança

Quadro 5.

Nessa sessão podemos perceber perfeitamente a interação entre


mãe-bebê. A mãe ao brincar com a criança em meio a vários brinquedos
114

pega o telefone que também é de brinquedo e diz “ó, telefone pra tu, fala
aí...” o incentivo da mãe continua e ela diz “Fala Vivi” com esse recorte
podemos ver que nessa situação, a mãe deve ser vista como um
elemento de extrema importância no processo de interação do bebê com
o mundo, isso pode ser considerado como consequência do uso dos
gestos. No caso aqui observado, a mãe incentiva a criança a interagir e
falar ao telefone de brinquedo.
Podemos observar que nessa sessão a criança já com mais idade,
produz a sua maneira uma produção verbal “au?” com sentido de dizer
“alô” tal igual à mãe. Segundos depois a criança produz quase que
perfeitamente o seu modo de dizer “alô” dizendo “aô?”. Mesmo a
produção de fala ou verbal produzida pela criança não se tratar de um
recorte idêntico à fala materna podemos concluir que a uma entrada
dessa criança não só no processo de interação, mas na construção da
aquisição da língua. A criança reproduz o seu “Aô” da maneira que foi
possível demonstrando-nos obter o mesmo sentido comunicativo do
“Alô” produzido pela mãe.

Extrato 2
Contexto: Mãe e criança sentadas em um tapete no quarto. Díade: C;
Idade: 10 m23d

Extrato 6
115

Acima a ilustração pausada de como estava à mãe e a criança em


partes de recortes dessa sessão. A seguir, a partir da observação dos
quadros podemos observar mais nitidamente a presença da
gesticulação e da produção verbal da mãe e do infante. Vejamos:

Gesticulação materna

Quadro 6

Gesticulação da criança

Quadro 7
116

Fala materna

Quadro 8

Fala da criança

Quadro 9

Inicialmente a mãe canta uma cantiga e a criança dança para a


mãe. Posteriormente a mãe sugere um momento de “leitura” como ela
mesma intitula na cena. Esse momento de leitura a mãe encontra-se
sentada no chão e a criança em seu colo. A mãe vai foliando um livrinho
infantil e fazendo perguntas a criança como “Quem é essi?” “I essi aqui?”
a criança interage respondendo a mãe como veremos mais à frente.
Ao observarmos os quadros que compõem a gesticulação e a fala
da criança, podemos verificar que aos 25 minutos e 18 segundos a
criança realiza uma produção verbal de uma frase completa dizendo “é
u xou”. A criança responde à pergunta da mãe, pois a mesma encontra-
se com um livro aberto em suas mãos e perguntando o que é cada
desenho exposto no livro infantil. A criança completamente envolvida
117

no processo interativo não realiza uma produção verbal completa, mas


movimenta a cabeça como um sentido apontar. Como vimos
anteriormente gesticulação Kendon (2000) afirma que os gestos se
apresentam como movimentos com funções diferenciadas como, por
exemplo, gestos ou o uso da gesticulação para representar objetos ou
fazer referência a objetos e pessoas do mundo.
Nesse caso, a criança movimenta a cabeça em direção à imagem
com o intuito de mostrar que a sua produção verbal “é u xou” se refere
ao desenho do sol exposto no livro. Segundo Cavalcante e Brandão
(2012) a gesticulação caracteriza-se como o conjunto de gestos que
acompanham o fluxo da fala, envolvendo braços, movimentos de cabeça
e pescoço, postura corporal e pernas, ou seja, são movimentos que
ocorrem simultaneamente à produção de fala e que possuem marcas da
comunidade e do estilo individual de cada um. Desse modo, podemos
destacar que se encontra evidente o processo de gesticulação nesse
recorte analisado, pois a criança gesticula com movimento de cabeça,
movimento corporal e apresenta uma produção verbal
concomitantemente.
Para finalizar parcialmente essa sessão de análise destacamos
ainda uma das cenas que melhor constitui/demonstra o processo de
interação mãe-bebê envolvendo componentes multimodais e
evidenciando a fluência no processo de aquisição da linguagem infantil.
Essa cena é quando a criança aos 25 minutos e 27 segundos em resposta
à pergunta da mãe diz “Cacu”e simultaneamente gesticula
movimentando seus braços, pescoço e toda postura corporal assim
como a mãe já havia demonstrado anteriormente simulando os
movimentos de um macaco (animal).
Portanto, apresentamos nessa sessão duas análises/recortes e
dados parciais em que podemos demonstrar a ocorrência não só da
gesticulação, mas de como o gesto e a fala estão presentes na fluência,
demonstrando serem elementos multimodais no processo interacional
de aquisição de linguagem.
118

Considerações Parciais

Conforme as discussões apresentadas neste trabalho


consideramos que a gesticulação e fluência simultaneamente formam
componentes multimodais relevantes para o processo de aquisição da
linguagem nas trocas interativas entre mãe-bebê. Confirmando nosso
embasamento teórico de que gesto e fala formam um conjunto
indissociável como propõe McNeill (1985).
Observamos que a gesticulação é um processo interacional
decorrente de trocas não só interativas, mas também comunicativas
assim como propõe Kendon (1982) e Cavalcante (2012). Tomamos
como referencial teórico também, a proposta de Cavalcante e Brandão
(2012) a respeito da gesticulação, em que as autoras classificam a
gesticulação como o conjunto de gestos que acompanham o fluxo da fala.
Dessa forma, há a necessidade de considerar este processo como sendo
um processo multimodal, em que elementos atuam para as interações
linguísticas acontecerem promovendo a passagem da criança à falante
de sua língua. Portanto, salientamos que a fluência pode ser entendida
como um processo dinâmico de construção comunicativa para o infante
no processo de aquisição da linguagem.
Além disso, tratamos da fluência nos baseando em Scarpa (1995)
que afirma que a fluência são trechos já “ajeitados, conhecidos e
analisados” aparecendo em blocos enunciativos de comunicação verbal.
Portanto, buscamos observar a emergência da gesticulação e da
fluência, a fim de melhor compreender como se dá esse processo de
entrada da criança na língua através de elementos multimodais.

REFERÊNCIAS

BRANDÃO, L. W. P. (2010). Interação mãe-bebê surdo implantado:


entre o “ouvinte suposto” e o “aprendiz de ouvinte”. Tese de doutorado.
Programa de Pós-graduação em Linguística. UFPB, João Pessoa, PB.
119

BUTCHER, C.; GOLDIN-MEADOW, S. (2000). Gesture and the transition


from one-to-two-word speech: when hand and mouth come together. In:
D. MCNEILL, (ed.) Language and gesture. Spain: Cambridge University
Press.
CAVALCANTE, M. C. B. (1994). O gesto de apontar como processo de
co-construção nas interações mãe-criança. Dissertação de Mestrado.
UFPE.
______. M. C. B. (2009a). A matriz gesto-fala em aquisição da linguagem:
observando o diálogo em manhês. In: vi congresso internacional da
ABRALIN, 2009, João Pessoa. Anais da ABRALIN40 anos. João Pessoa:
Idéia, v. 1. p. 2425-2434.
______. M. C. B. (2009). Gesto e voz: envelope afetivo de acesso ao
simbólico na matriz relacional mãe-bebê. In: de Oliveira, E. F. L.;
Ferreira, S. S.; Barreto, T. A.. (Org.). As interfaces da clínica com bebês.
1 ed. Recife: Bagaço, v., p. 229-240.
______. M. C. B. (2009). Rotinas interativas mãe-bebê: constituindo
gêneros do discurso. Investigações (Recife), v. 21, p. 153-170.
______. M. C. B. (2010). (orgs.) Aquisição da linguagem em
multimodalidade. 1ed. João Pessoa: Ed. da UFPB, p. 158.
LAVER, J. Unifying principles in the description of voice, posture and
gesture. In: CAVE, C.; GUAITELLA, I. Interations et comportement
multimodaux dans la communication. Paris, L’Harmattan, 2000.
LOCKE, J. L. 1997. Desenvolvimento da capacidade para a linguagem
falada. In: FLETCHER, P. & MACWHINNEY, B. (org.) Compêndio da
linguagem da criança. Porto Alegre: Artes Médicas. 233-252.
MCNEILL, D. So you think gestures are nonverbal?. Psychological
Review. Vol 92(3) 350-371, Jul. 1985.
______. Introduction. In: MCNEILL, D. (ed.) Language and Gesture.
Cambrige University Press, Cambridge.
RAMOS, S.; SCARPA, E. M. (2007). Hesitações e rupturas em Aquisição da
Linguagem: processos reorganizacionais na fala infantil. Estudos
Linguísticos (São Paulo), v. XXXVI, p. 354-360.
120

SCARPA, E. M. (1995). Sobre o sujeito fluente. Cadernos de Estudos


Linguísticos, Campinas, v.29, p.163-184.
121

RECURSOS MULTIMODAIS EM CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS: UM


ESTUDO DE CASO DE UMA CRIANÇA CEGA

Christiane Gleice Barbosa de Farias Nascimento (UNICAP)


Renata Fonseca Lima da Fonte (UNICAP)

RESUMO: Este trabalho está fundamentado na perspectiva de


funcionamento multimodal da linguagem, proposta por Kendon (1982),
Mcneill (2000), Cavalcante (2009), Ávila Nobrega (2010), Fonte (2006,
2009, 2011). O objetivo principal é analisar os recursos multimodais
utilizados em contação de histórias por uma criança cega e os objetivos
específicos são identificar e descrever a fala, a prosódia e os gestos da
criança cega na contação de histórias. Para isso, foi realizado um estudo
observacional no ambiente escolar, no qual a pesquisadora foi dois dias
à escola para coleta de dados. Nesse contexto, a criança foi filmada
contando uma história de sua escolha, no primeiro dia narrou a história
de Branca de Neve e no segundo dia escolheu ouvir e recontar a história
do Patinho Feio. Os dados coletados mostraram que durante a contação
de histórias, a criança utilizou a fala com os parâmetros prosódicos
como: variações de intensidade vocal, cadência de fala lenta e pausas e
em situações específicas como ao representar o caçador na história de
Branca de Neve modificou a qualidade vocal para uma entonação mais
grave e a gesticulação que acompanhou a fala caracterizou-se com o
balançar do corpo e movimentos repetitivos das mãos. Logo, em
situações de contação de histórias a criança cega utilizou
principalmente a fala e a prosódia para produzir sentidos.

PALAVRAS-CHAVES: multimodalidade; narrativa; criança cega.

ABSTRACT: This work isbased on the perspective of functioning


multimodal language proposed by Kendon (1982), MCNEILL (2000),
Cavalcante (2009), Ávila Nobrega (2010), Fonte (2009, 2011). The main
objectiveis to analyze the multimodal resources telling stories by a
122

blind child and all the specific aims are identify and describe the speech,
prosody and gestures of the blind child. For this, it was realized an
observational study in the school environment, in which the researcher
had two days to school collecting data. In this context the child was
videotaped telling a story of your choice, on the first day narrated the
story of Snow White and the second day chose to hear and retell the
story of the Ugly Duckling. The collected data showed during the
storytelling, children used speech with prosodic parameters as
variations in vocal intensity; cadence speaks slowly and pauses in
specific situations as to represent the hunter in the story of Snow White
modified voice quality for a more serious tone gestures with speech was
characterized with the swing of the body and repetitive hand
movements. Thus, in situations of storytelling blind children used
mainly speech and prosody to produce senses.

KEYWORDS: multimodality; narrative; blind child.

INTRODUÇÃO

Para este estudo, consideramos a linguagem em uma perspectiva


multimodal, que concebe gesto e fala como um único sistema de
significação, conforme propõem Kendon (1982), McNeill (1985, 2000),
Cavalcante (2009) e Fonte (2009, 2011), ou seja, gesto e fala estão
integrados. Nesse sentido, a linguagem funciona por meio dos recursos
multimodais.
Segundo McNeill (1985, p. 367), “a ocorrência de gestos ao longo
da fala implica que durante o ato da fala dois tipos de pensamento,
imagístico e sintático, estão sendo coordenados”1. Neste contexto, gesto
e fala forma um único sistema de significação e produção.

1 Thus the occurrence of gestures, along with speech, implies that during the act of
speaking, imagistic and syntactic, are being coordinated.
123

A utilização da linguagem multimodal é um aspecto importante


no âmbito familiar, pois a partir da multimodalidade a criança começa
a fazer uso da língua. Cavalcante (2009) observou em duas díades mãe-
bebê no período de dois a dezoito meses de vida da criança, que o bebê
começa a se engajar em gêneros orais, como o diálogo, o jogo e a
contação de história, através multimodalidade, isto é, associando gestos
às produções vocais. Antes de falar palavras propriamente ditas, o bebê
balbucia e gesticula. Nesses gêneros orais, variações prosódicas
também foram evidenciadas. Logo, a multimodalidade está presente
desde muito cedo nas interações entre mãe e bebê.
Neste estudo, focaremos nosso olhar para o gênero oral contação
de história, considerando uma criança cega. Partindo do seguinte
questionamento: Como uma criança cega faz uso da multimodalidade
ao contar histórias? Diante dessa questão norteadora, temos como
objetivo geral analisar os recursos multimodais utilizados pela criança
cega em contação de histórias e como objetivos específicos identificar e
descrever a fala, a prosódia e os gestos da criança cega na contação de
histórias.
Este artigo iniciará com discussões sobre multimodalidade e
narração, contemplando considerações de Kendon (1982), McNeill
(1985, 2000), Cavalcante (2009), Perroni (1992) e Dohme (2010). Em
seguida, será apresentada a perspectiva da multimodalidade e cegueira
com base nos estudos de Iverson; Goldin-Meadow (1997, 2001) e Fonte
(2006, 2009, 2011) para facilitar a análise dos recursos multimodais
utilizados na contação de histórias realizada pela criança cega.

1. MULTIMODALIDADE E NARRATIVA

Neste tópico, apresentaremos as principais ideais que


caracterizam multimodalidade e narrativa, procurando relacionar o
gênero oral contação de história à multimodalidade.
Dionísio (2011) argumenta que os gêneros textuais orais são
fenômenos multimodais ao justificar que na fala são usados no mínimo
124

dois modos de representação, como por exemplo: palavras e gestos,


palavras e entonações, assim como palavras e sorrisos.
Na perspectiva da multimodalidade, gesto e fala são
indissociáveis, conforme afirma McNeill (1985, p. 209): “gestos e fala
integrados em uma mesma matriz de produção” 2. Considerando esta
citação gestos e falas estão interligados, entrelaçados formando uma
única forma de comunicação.
Kendon (1982) contribuiu para os estudos sobre a
multimodalidade ao propor uma tipologia com base em contínuos.
Dentre os gestos, identifica a gesticulação, a pantomima e os gestos
emblemáticos. McNeill (2000) retoma essas tipologias gestuais, e
observa a presença obrigatória da fala, a ausência de propriedades
linguísticas e de caráter convencional na gesticulação. A pantomima
envolve a mímica que ocorre na ausência da fala, seja para simular
ações ou representar personagens. Já os gestos emblemáticos podem
ocorrer na ausência ou na presença da fala e são construídos
culturalmente. Entre eles, podemos exemplificar o gesto de
cumprimento, o gesto de aprovação, o gesto de negação, entre outros.
Cavalcante (2009) afirma que a gesticulação pode ser
caracterizada pelos movimentos da cabeça, braços, pernas e pescoço,
mostrando marcas individuais de cada falante. Em seu estudo,
constatou que o gesto emblemático foi caracterizado pelo apontar no
gênero contação de histórias. Nessa situação interativa, o bebê iniciava
a interlocução e convidava a mãe e a filmadora a partilhar deste gênero
ao olhar para os interlocutores e ao apontar para o livro.
Para Perroni (1992, p. 19) “narrativa é a recapitulação de
experiências na mesma ordem dos eventos originais”, isto é, recordar
uma sequência verbal dos fatos que efetivamente ocorreram. A criança
ao narrar uma história relata os fatos que ocorreram de forma
estrutural, ou seja, com princípio, meio e fim.

2 Gesture and speech are an integrated system in language production.


125

A voz com suas características prosódicas é considerada um


aspecto multimodal bastante relevante nas narrativas, pois é o veículo
usado para relatar os acontecimentos da história. Em relação à voz
Dohme (2010) destaca alguns elementos importantes que o narrador
deve preocupar-se para clareza da narração como: a dicção, o volume, a
velocidade e a tonalidade da voz.
Para autora, é importante apresentar uma boa dicção para que as
palavras sejam pronunciadas adequadamente, caso contrário, a
mensagem é recebida de forma truncada, porque a não compreensão de
uma palavra pode levar a incompreensão de toda a frase, e não entender
uma frase pode prejudicar o entendimento de toda história. O volume
também necessita ser adequado para uma boa clareza da mensagem,
pois quando a narração é feita em voz muito baixa compromete à sua
compreensão, principalmente quando o narrador mantém certa
distância do ouvinte. Além do volume vocal apropriado, as expressões
faciais do narrador podem contribuir para complementar a
compreensão da história contada. A velocidade está muito ligada à boa
dicção. Quem tiver com a sua dicção em desenvolvimento, precisa
obrigatoriamente falar devagar para ajudar na compreensão da sua
comunicação. Variara velocidade da voz pode auxiliar na interpretação
do texto: falar mais rápido pode passar mais emoção, um sentimento de
urgência, e falar mais devagar é adequado quando se deseja passar um
sentimento de paz, harmonia, serenidade. (DOHME, 2010).
Em relação à tonalidade da voz, pode-se dizer que vozes graves e
agudas envolvem características individuais, pois cada pessoa tem seu
registro vocal próprio, mas podem alcançar tons abaixo ou acima desse
registro (DOHME, 2010). Desta maneira, é importante narrar com vozes
mais graves ou mais agudas para representar diferentes personagens.
Com base nas considerações de Dohme (2010) a prosódia nas
narrativas são instrumentos que contribuem para uma boa narração,
pois através desses recursos utilizados de forma adequada a criança
consegue compreender e recontar produzindo sentido.
126

As gestualidades corporais e faciais são também componentes


importantes nas narrativas de contar e recontar histórias. Dohme
(2010, p. 45) destaca a importância destes recursos multimodais que
deve acompanhar a fala conforme a afirmação:

a expressão corporal deve acompanhar o que está sendo


descrito. Todo corpo fala: a posição do tronco, os braços, as
mãos, os dedos, a postura dos ombros, o balanço da cabeça,
as contrações faciais e a expressão dos olhos. Os gestos
devem estar coerentes com a narração, usados para
reforçá-la. A comunicação do semblante transmite as
emoções do nosso interior através da expressão do rosto.
Tristeza, alegria, surpresa, espanto. A expressão facial
poderá falar mais do que muitas palavras.

A pantomima também é considerada um recurso multimodal


importante na narração de histórias infantis, podendo ser utilizada no
reconto de histórias. Segundo Coelho (1999), a pantomima “ é uma
reprodução da história ao qual as crianças podem utilizar a expressão
corporal como recurso multimodal sem utilizar a voz, isto é, vão
reproduzir trechos do enredo ou expressões do personagem através
dos gestos, expressões faciais, corporais, etc.
Respaldando-nos na perspectiva de funcionamento multimodal
da linguagem, consideramos que a multimodalidade relacionada à
integração da fala, da prosódia, dos gestos e do toque é relevante e
necessária para a criança cega, uma vez que assume papéis importantes
para a produção de sentidos nas narrativas, principalmente no conto e
reconto de histórias.

2. MULTIMODALIDADE E CEGUEIRA

Iniciaremos este tópico abordando a contribuição de alguns


autores ao relacionar cegueira e gestos.
127

É relevante refletir sobre a definição da cegueira, que segundo


Ochaita e Rosa (1995, p. 183) é “um tipo de deficiência sensorial e,
portanto, sua característica mais central é a carência ou
comprometimento de um dos canais sensoriais de aquisição da
informação, neste caso o visual”.
Há poucos trabalhos que relacionam multimodalidade e cegueira,
pois a discussão dessa temática é recente.
Os gestos são destacados como um recurso multimodal para se
expressar. Segundo Goldin-Meadow e Iverson (2001), a gesticulação é
essencial para a fala independente da capacidade visual. Para alcançar
esses resultados, as autoras analisaram crianças e adolescentes cegos
desde o nascimento com idade entre 9 e 18 anos, com o propósito de
observar se as gesticulações realizadas por eles se assemelhavam aos
gestos das crianças que enxergam. Este estudo mostrou que os falantes
cegos gesticularam durante a fala com mesma frequência e com a
mesma variedade de formas gestuais em relação aos falantes videntes.
Nessa perspectiva, os participantes cegos não apresentaram
dificuldades em gesticular, logo ficou comprovada a presença da
multimodalidade medida pela integração entre fala e gesticulação.
Iverson e Goldin-Meadow (1997) realizaram um estudo mais
recente com crianças cegas com o objetivo de observar as comunicações
das crianças cegas desde o nascimento em diferentes situações e extrair
seus gestos significativos. Os resultados mostraram que as mesmas
utilizaram gestos como movimentos do corpo, cabeça, mãos, braços
para se comunicar e produzir sentido.
Fonte (2006) contribuiu aos estudos sobre multimodalidade na
cegueira, em seus estudos com gêmeos cego e vidente, observou as
marcações prosódicas da fala materna que tiveram uma maior
variedade na interação com o filho cego e que os gestos foram mais
diversificados na interação com o filho vidente.
Em estudo mais recente, a autora observou que a mãe faz uso da
pantomima vocal com variações de qualidades vocais ao usar o falseto
ou a voz grave na representação de personagens durante brincadeira
128

com objeto. Em outros contextos, ao simular a cantiga de ninar, a


pantomima vocal também foi realizada pela mãe e pela criança cega
através da marcação prosódica ritmada (FONTE, 2011).
Fonte (2009, p. 96) também afirma que “o uso da fala associada
aos gestos depende do sentido tátil para serem percebidos e
representados”. Com base nas constatações de Fonte (2006,
2009,2011), podemos perceber que gesto, fala e as marcações
prosódicas são considerados recursos multimodais utilizados pela
criança cega como forma de interação.
As considerações dos autores citados respaldarão a análise dos
recursos multimodais realizados pela criança cega nas narrativas de
conto e reconto de história.
A seguir, iremos descrever os procedimentos metodológicos,
incluindo a coleta de dados e os critérios adotados para transcrição dos
dados, para enfim, analisar os recursos multimodais utilizados pela
criança cega nas narrativas de histórias.

3. METODOLOGIA

Com base na perspectiva da multimodalidade, propomos analisar


os recursos multimodais usados pela criança cega na narração de
histórias, em situações de conto e de reconto.
Esse estudo teve dois momentos distintos. No primeiro momento,
a criança cega narrou à história de Branca de Neve. No segundo
momento, após ouvir em áudio a história do Patinho Feio, a criança
recontou essa história, conforme consta com quadro abaixo. Esses dois
momentos foram filmados para melhor descrição dos recursos
multimodais utilizados pela criança cega nas narrativas das histórias.
129

História Contexto Idade da criança


A criança contou a história de
Branca de Neve. Essa história
Branca de Neve 7 anos
foi escolhida pela própria
criança.
A história do Patinho Feio foi
apresentada em áudio para a
O Patinho Feio 7 anos
criança ouvir, e em seguida,
recontar a história.

Para transcrição dos dados utilizamos as notações gráficas


propostas por Marcushi (2001) e Fonte (2011, p. 109) obedecendo a
forma de como a palavra será pronunciada.

Para indicar gesto, movimento e postura corporais ou


(( fala simultâneos do mesmo interlocutor.
(+) Para pausas e silêncio existentes na fala.
Tempo Para pausas que ultrapassam 1.5 segundo, indica-se o
tempo.
Incompreensível Quando não se entende parte da sala ou todo o turno.
LETRAS MAIÚSCULAS Sílaba ou palavra com ênfase.
: Alongamento da vogal Os dois pontos podem ser repetidos, a depender da
duração.
‘ Aspas simples (entonação) Para uma subida leve (como uma vírgula ou ponto e
vírgula)
“ Aspas duplas (entonação) Para uma subida rápida como no ponto de interrogação.

Além da transcrição da fala, foi realizada uma transcrição


prosódica da fala da criança, incluindo a descrição da qualidade vocal,
da intensidade e da velocidade de fala.
Para analisarmos os recursos multimodais na narração de
histórias realizada pela criança cega, trabalharemos com a noção
envelope multimodal proposto por Ávila Nóbrega (2010), descrevendo
os planos verbal e gestual; incluindo os planos prosódico e do tocar,
conforme propõe Fonte (2011).
Para observarmos a multimodalidade, as transcrições das
produções verbais com as marcações prosódicas e dos gestos da criança
130

cega foram inseridas em uma tabela com a discriminação do tempo de


ocorrência.

4. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

Cena 1: A criança cega conta a história de Branca de Neve.

T PLANO DO OLHAR/ PLANO PROSÓDICO/ PLANO GESTUAL


TOCAR PLANOVERBAL
09:40 ((Olhar dirigido para ((ERA UMA VEZ uma
cima enquanto contava menina que morava com ((Mexia-se muito com o
a história)) a corpo, balançando-se))
(voz infantilizada)
madasta.))

09:40 (tom de voz grave) ((realiza gestos manuais


((NÃO minha rainha’)) e balança o corpo))

((Com o lápis na mão


09:43 ((aí ela foi:: ela foi)) realizava movimentos
circulares)).

((Faz movimentos com o


09:44 ((tom de voz mais corpo balançando para
grave) frente e para trás,e com
((FUJA, banca de neve, o lápis na mão, realiza
FUJA movimentos
circulares))

No decorrer da história, ao narrar a criança cega utilizou o tom


grave ao representar o papel do espelho “NÃO, minha rainha” (tempo
9min45s) e ao representar o papel do caçador: “FUJA banca de neve,
FUJA” (tempo 9min47s). Logo, ao representar os personagens, a criança
cega usou a pantomina vocal ao modificar a qualidade vocal, conforme
foi observada no estudo de Fonte (2011a) realizado com mãe e criança
cega.
Na narração oral da história, a criança realizou movimentos
repetidos manuais e com o corpo para frente e para trás, ou seja,
131

gesticulava durante sua produção verbal, comprovando as constatações


de Goldin-Meadow e Iverson (2001) de que a presença da gesticulação
não depende da capacidade visual.
Nesta cena, ao contar a história a criança cega utilizou os recursos
multimodais (produção verbal, variações prosódicas e gesticulação),
que contribuíram para a coerência da narrativa da história contada.
Na análise dos dados, podemos observar que enquanto contava a
história a produção verbal foi acompanhada por movimentos corporais
e manuais, que caracterizaram a gesticulação da criança cega.

Cena 2: Criança cega reconta a história do Patinho Feio.

T PLANO DO PLANO PROSÓDICO/ PLANO GESTUAL


OLHAR/TOCAR PLANO VERBAL
14:12 ((olhar dirigido para ((ERA(+)uma vez (...) ((realiza movimentos
cima ao contar a com as mãos e cabeça.
história))
(intensidade forte)
((TÃO FEIO’ MAIS TÃO ((realiza movimentos
14:15 FEIO’)) com os braços e mãos))

14:18 ((e::letava cansado)) ((Faz movimentos com


os braços e mãos))

14:20 Então chegou (voz


infantilizada)
a::pimavera.

(intensidade forte e voz ((Faz movimentos com a


14:24 infantilizada) cabeça, pescoço,braços e
((OLHE PRO SEU REFEXO mãos.
NA ÁGUA))

Na análise dos dados do reconto da história do Patinho Feio,


observamos que na expressão “ERA UMA VEZ” a criança fazia
movimentos com a cabeça, mãos e pescoço, ou seja, realizava
gesticulações variadas com o corpo, acompanhando o fluxo da fala.
132

Ao recontar a história, no momento em que a criança falou: “TÃO


FEIO, MAIS TÃO FEIO” usou parâmetros prosódicos como a intensidade
vocal forte ao mesmo tempo em que falava fazia movimentos com
braços e mãos.
Mostrou em um momento o alongamento da vogal “e::le”. Na frase
“então chegou a::pimavera” utilizou uma voz infantilizada e ao mesmo
tempo acompanhando a fala realizava movimentos com os braços e
mãos. Já na expressão “OLHE PRO SEU REFEXO NA ÁGUA” usou uma
intensidade vocal forte e a qualidade vocal infantilizada. Essa expressão
verbal ocorreu acompanhada da gesticulação caracterizada por
movimentos da cabeça, pescoço, braços e mãos.
Em dois momentos do reconto da história, foi observado que a
criança cega marcou enfaticamente a narrativa oral ao destacar do seu
contínuo de fala as expressões “TÃO FEIO, MAIS TÃO FEIO” e “OLHE
PRO SEU REFEXO NA ÁGUA”.
De acordo com a análise dos dados, podemos perceber nas
narrações, tanto na situação de conto quanto no reconto da história, os
recursos multimodais, como os parâmetros prosódicos e a gesticulação
que acompanharam a fala. Dessa forma, a prosódia ora assumiu o papel
de enfatizar a produção verbal por meio do alongamento vocal ou da
intensidade forte ora marcou o papel do personagem da história
através de uma qualidade vocal grave. Já a gesticulação possibilitou o
fluxo da narrativa oral.
No conto e no reconto das histórias, ficou constatado que a fala, a
prosódia e as gesticulações surgem como sistemas integrados na
produção de sentidos das narrativas das histórias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisar os recursos multimodais utilizados na narração de


histórias de uma criança cega, nos dois momentos, ou seja, no conto e
no reconto, houve uma semelhança com relação aos gestos e fala, ou
seja, os dois formaram uma única forma de comunicação. Desse modo
133

ampliamos a compreensão de que a prosódia foi privilegiada como


estratégia para a criança narrar as histórias.
Os dados mostraram que a fala com suas marcações prosódicas e
qualidades vocais diversificadas e as gesticulações da criança cega
enquanto narrava as histórias funcionaram como recursos multimodais
de produção de sentidos.
Diante dos resultados, a escola pode exercer um papel importante
ao trabalhar narrativas com crianças cegas mediadas pelo uso de
recursos multimodais. A multimodalidade, constituída pela fala,
prosódia e toque, deve ser inserida em contextos de conto e de reconto
em sala de aula, de forma a contribuir para a percepção de sentidos pela
criança cega.

REFERÊNCIAS

ÁVILA NÓBREGA, P. V. Dialogia mãe-bebê: a emergência do envelope


multimodal em cenas de atenção conjunta. 2010. Dissertação (Mestrado
em Linguística) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa.
CAVALCANTE, M. C. B. Rotinas interativas mãe-bebê: constituindo
gêneros do discurso. Investigações (Recife), v. 21, p. 153-170, 2009.
DIONISIO, A. Gêneros textuais e multimodalidade. In: KARWOSWKI, A;
GAYDECZKA, B; BRITO, K. (Org). Gêneros textuais: reflexões e ensino.
4 ed. São Paulo: Parábola Editoria, 2011, p. 137-152
DOHME, V. A. Técnicas de contar histórias: um guia para desenvolver
as suas habilidades e obter sucesso na apresentação de uma história.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
FONTE, R. Estratégias maternas na interação com gêmeos, cego e
vidente na aquisição da linguagem. 2006. 131f. Dissertação
(Mestrado em Letras) - Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa,
2006.
______. A subjetividade e a constituição do sujeito na relação mãe-filho
cego. In: Eunice de Oliveira; Severina Sílvia Ferreira; Tereza Avellar
Barreto. (Org.). As interfaces da Clínica com Bebês. Recife: Bagaço,
134

2009, p. 171 - 180


______. O funcionamento da atenção conjunta na interação mãe-
criança cega. 2011. 315f. Tese (Doutorado em Linguística) –
Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2011.
IVERSON, J.; GOLDIN-MEADOW, S. What's Communication Got to Do
With It? Gesture in Children Blind From Birth.
DevelopmentalPsychology, v. 33, n. 3 p. 453-467, 1997.Disponível em
http://goldin-meadow-lab.uchicago.edu/PDF/1997/Iverson_GM1997.
pdf. Acesso em: 30 jun. 2013.
______; ______. The resilience of gesture in talk: gesture in blind speakers
and listeners. Developmental Science, v, 4, n. 4, p. 416-422, 2001.
Disponível em http://goldin-meadow-lab.uchicago.edu/PDF/2001/Ive
rson_GM2001.pdf. Acesso em: 30 jun. 2013.
KENDON, A.The study of gesture: someremarks on its history.
Recherchessémiotiques/semioticinquiry 2, 1982, p. 45-62.
MARCUSCHI, L. A. Análise da conversação. 5ª ed. São Paulo: Ática,
2001.
MCNEILL, D. Soyouthinkgestures are nonverbal? Psychological
Review.v. 92(3), 1985, p. 350-371
______. Introduction. In: MCNEILL, D. (ed.). Language and Gesture.
Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p. 199 – 200.
OCHAITA, E.; ROSA, A. Percepção, ação e conhecimento nas crianças
cegas. In: COLL, C. et al (Org.). Desenvolvimento Psicológico e
educação - Necessidades educativas especiais e aprendizagem escolar.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1995, p. 183-197.
PERRONI, M C. Desenvolvimento do discurso narrativo. São Paulo:
Martins Fonte, 1992.
135

PROPOSTA DE OBJETO DE APRENDIZAGEM SOBRE CORES COM


BASE NAS CENAS DE ATENÇÃO CONJUNTA

Jéssica Tayrine Gomes de Melo Bezerra


Paula Michely Soares da Silva
Angélica Fabiana Linhares Saldanha

RESUMO: No presente artigo temos o objetivo de apresentar uma


proposta de produção de um Objeto de Aprendizagem, concebido como
recursos digitais reutilizáveis que auxiliam no processo educativo
(WILEY, 2000), para o ensino das cores com base nas cenas de atenção
conjunta. A atenção conjunta é um processo situado dentro dos estudos
da Aquisição da Linguagem e, segundo Tomasello (2003), o conceito de
atenção conjunta pode ser entendido como sendo um jogo triangular
que põe em cena mãe, bebê e um objeto qualquer. Nosso objetivo é
contribuir para a elaboração e utilização dos recursos digitais em
creches e escolas de nível fundamental. Essa proposta também quer
alcançar um dos objetivos das Diretrizes Curriculares Nacionais para a
educação infantil que afirma que é necessário que as práticas
pedagógicas “Possibilitem a utilização de gravadores, projetores,
computadores, máquinas fotográficas e outros recursos tecnológicos e
midiáticos” (DCNsEI, Art. 9º, XII, 2009). Dessa maneira, o Objeto de
Aprendizagem aqui proposto pode, além de contribuir com a inclusão
na informática das crianças através da utilização de recursos digitais,
também facilitar o processo interacional com base nas cenas de atenção
conjunta. O público alvo terá como faixa etária crianças de 1 a 6 anos de
idade.

PALAVRAS-CHAVE: objeto de aprendizagem; atenção conjunta;


aquisição da linguagem.

ABSTRACT: We aim in this paper to produce a learning object designed


as “any digital resource that can be reused to facilitate learning” (Wiley,
136

2000) for teaching colors based on joint attention. Joint attention is a


process located within the study of language acquisition and Tomasello
(2003) argues the concept of joint attention can be understood as a
triangular game that puts on scene mother, child and any object. We
want to contribute to the development and use of digital resources in
kindergartens and schools for elementary level. This proposal also
wants to achieve one of the objectives of the National Curriculum
Guidelines for Early Childhood Education which states that it is
necessary that the pedagogical practices "allow the use of tape
recorders, projectors, computers, cameras and other technology and
media resources" (DCNsEI , Art 9, XII , 2009). In general, the proposed
learning object can contribute to the inclusion of children in computing
through the use of digital resources and facilitate the interaction process
based on joint attention. The target audience is children 1-6 years of age.

KEYWORDS: learning objetcs; joint attetion; language acquisition.

Introdução

A utilização das tecnologias de informação e comunicação nas


esferas sociais não é novidade. Consequentemente, essa realidade no
âmbito educacional não é diferente. Muitos estudiosos estão
pesquisando e criando novas maneiras de ensinar através de
ferramentas digitais, facilitando a aprendizagem dos alunos e incluindo-
os na era digital. Uma das ferramentas que estão sendo bastante
utilizadas são os Objetos de Aprendizagem (OAs; Learning Objects).
Embora existam dificuldades para dar um conceito específico para
os Objetos de Aprendizagem, alguns autores arriscam definições que são
mais adequadas ao seu objeto de estudo. Por exemplo, Wiley (2002)
define um OA como “Qualquer entidade digital que pode ser reutilizada
como suporte da aprendizagem”. Já Polsani (2003) define um Objeto de
Aprendizagem como uma unidade independente e autoexplicativa de
conteúdo de aprendizagem que é predisposto para reutilização em
137

múltiplos contextos educacionais. Essas duas definições dão conta da


nossa proposta de Objeto de Aprendizagem. Além de uma definição, é
importante salientar que os Objetos de Aprendizagem apresentam três
objetivos principais: possibilitar a aprendizagem, ser reutilizável em
diferentes contextos e ser digital.
Para esse trabalho, apresentaremos a proposta de produção de
um Objeto de Aprendizagem sobre cores, tendo como alvo o público
infantil, de faixa etária entre 1 e 7 anos de idade. Essa proposta também
quer alcançar um dos objetivos das Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação Infantil que sugerem que as práticas pedagógicas
“Possibilitem a utilização de gravadores, projetores, computadores,
máquinas fotográficas e outros recursos tecnológicos e midiáticos”
(DCNsEI, Art. 9º, XII, 2009). Dessa maneira, a estrutura do Objeto de
Aprendizagem aqui apresentado pode facilitar a inclusão digital das
crianças.
Nosso planejamento parte também da proposta de Tomasello
(1995) sobre as cenas de atenção conjunta, que postula a atenção
conjunta como uma capacidade de coordenar a atenção entre um
indivíduo social e um objeto de interesse mútuo. Nesse sentido,
podemos afirmar que nas cenas de atenção conjunta observamos a
coordenação constante do adulto e da criança para um foco/objeto
comum (Tomasello, 1995). Outros pesquisadores do assunto, a exemplo
de Butterworth (1995), definiram as cenas de atenção conjunta a partir
de outros comportamentos como: seguir o olhar do outro ou até mesmo
quando um indivíduo olha na mesma direção para onde alguém está
olhando. Autores como Carpenter, Nagell e Tomasello (1998)
adicionaram a essas definições a ideia de que comportamentos como
seguir o apontar e o olhar do outro, imitar gestos, iniciar interações e
alternar o olhar entre o parceiro e o objeto compartilhado seriam
manifestações da compreensão dos outros como seres intencionais.
Nosso trabalho se subdividirá em três seções: revisão teórica e
postulações das cenas de atenção conjunta, proposta da teoria dos
Objetos de Aprendizagem e a apresentação da estrutura do Objeto de
138

Aprendizagem para ensino e percepção das cores básicas. Sendo assim,


queremos contribuir com a elaboração e a utilização dos recursos
digitais para a aprendizagem em creches e escolas de nível fundamental.

1 AS CENAS DE ATENÇÃO CONJUNTA

A atenção conjunta é um processo situado dentro dos estudos de


aquisição da linguagem. Tomasello (2003) afirma que os momentos de
interação em que há ocorrência deste processo podem ser chamados de
cenas, interação, envolvimento, formato ou episódios de atenção
conjunta. Esse processo é relevante no processo de aquisição da
linguagem a partir do momento em que essas cenas são utilizadas por
mães/díades e crianças durante suas primeiras trocas comunicativas
(CAVALCANTE, 2008).
Bruner (1983), por sua vez, traz o conceito de “joint attention” ou
atenção conjunta como um jogo triangular no qual estão em cena mãe,
bebê e um objeto qualquer.
Tomasello (idem) também trabalha dentro da perspectiva exposta
acima. Entretanto, para o autor, o olhar compartilhado e a atenção
conjunta são episódios que ganham relevância quando as crianças
encontram-se na faixa etária de nove a doze meses, pois muito embora
bebês de cinco meses já sejam capazes de “acompanhar o olhar dos
outros” (TOMASELLO, 2003, p.92), seguindo com os olhos objetos em
movimento, é nesta faixa etária que os bebês começam a manifestar
aptidão para desempenhar tais atividades, já que é nesta fase que o bebê
passa a compreender os outros enquanto agentes intencionais como ele
próprio (TOMASELLO, 2003, p. 94). Segundo Costa Filho (2011) a
compreensão do outro como agente dotado de intencionalidade,
juntamente com a capacidade de compreender os diferentes papéis que
são ocupados por ouvintes e falantes dentro de um formato de atenção
conjunta, tornam-se, assim, determinantes fatores para o
estabelecimento de cenas de atenção conjunta.
139

Alguns estudos mostram a importância do olhar e das cenas de


atenção conjunta presentes nas primeiras interações mãe-bebê. Bruner
(1983), por exemplo, destaca a presença do olhar compartilhado como
uma estratégia utilizada pelo infante quando ainda não possui o domínio
suficiente para elaborar estruturas linguísticas da nossa língua. A
criança tende a utilizar-se do comportamento não verbal para
estabelecer a interação com o adulto ou com o indivíduo que
compartilha o objeto observado. É a partir dessa discussão que
Tomasello (2003) traz o conceito de atenção conjunta como sendo um
jogo triangular que põe em cena mãe, bebê e um objeto qualquer.
O referido autor desenvolve ainda estudos sobre a atenção
conjunta, afirmando que, muito embora o infante seja capaz de
acompanhar o olhar dos interlocutores da interação desde os cinco
meses de vida, os episódios de atenção conjunta tornam-se mais comuns
nas rotinas interativas entre mãe-bebê a partir da chamada “revolução
dos nove meses”. Segundo o autor, é neste período que as crianças
começam a perceber os indivíduos que a cercam, tornando-os como
agentes intencionais iguais a elas mesmas e esse fato ocorre a partir da
emergência da atenção conjunta nos momentos de interações. Dessa
maneira, o referido teórico afirma que as cenas de atenção conjunta são
formadas em situações em que um indivíduo e a criança prestam
atenção simultaneamente a um objeto por um espaço de tempo
considerável.
Akhtar & Gernsbacher (2007) também se voltam para os estudos
sobre atenção conjunta, tratando o termo como momentos em que
criança e adulto têm o mesmo foco de olhar.
As cenas de atenção conjunta aguçaram o interesse para novos
estudos. Um desses estudos foi desenvolvido por Carpenter, Nagell e
Tomasello (1998) e Tomasello (2003) que classificam as cenas em três
tipos de interação de atenção conjunta como os principais. São elas: a
atenção de verificação, a atenção de acompanhamento e a atenção
direta. Esse estudo foi bem mais além de apenas determinar tipologias,
os resultados da pesquisa apresentaram possibilidades de apresentar
140

uma faixa-etária para os tipos de atenção conjunta no momento de


interação.
Dessa forma, o referido autor chama classifica as cenas de atenção
conjunta como: atenção conjunta de verificação aquelas cenas em que a
mãe é a agente propulsora da cena de atenção conjunta, e, a criança, em
interação com a mãe, observa simultaneamente o objeto destacado por
ela. Esse tipo de atenção conjunta pode ser observado entre os nove e os
doze meses de vida do infante.
Na atenção de acompanhamento, entretanto, a criança
acompanha o olhar da mãe para um objeto. Nesse tipo de atenção é
comum a presença de gestos (em especial o gesto de apontar).
Geralmente, a atenção de acompanhamento corresponde à faixa etária
dos onze aos quatorze meses de vida. Já no terceiro tipo de atenção
conjunta, a atenção direta, ocorre uma mudança, onde não mais a mãe é
a agente propulsora para direcionar o olhar ao objeto, e sim a própria
criança, que desperta e busca o olhar da mãe para um objeto no
momento de interação. Esse tipo de atenção conjunta pode ser
observado com uma maior frequência durante o período dos trezes aos
quinze meses de vida da criança.
Com base na teoria apresentada, podemos sintetizar que a
atenção conjunta ocorre quando há uma interação entre um bebê e um
adulto ao observarem um terceiro objeto. Com isso, sugerimos que esse
terceiro objeto pode ser um Objeto de Aprendizagem. Na próxima seção,
discutiremos sobre esses recursos digitais.

2 O que são Objetos de Aprendizagem?

Nesta seção apresentaremos conceitos e características dos


Objetos de Aprendizagem, observando sua origem e as dificuldades em
se unificar um conceito amplo, que dê conta das especificidades desse
recurso educacional.
De acordo com Wiley (2000), o termo Objeto de Aprendizagem
partiu de estudos do grupo de Wayne Hodgins denominado Learning
141

Architetures, API’s and Learning Objetcs (arquiteturas de aprendizagem,


APIs e Objetos de Aprendizagem), em 1994. Esse grupo também parece
ter influenciado um dos conceitos mais difundidos de Objetos de
Aprendizagem, apresentado pelo grupo LTSC LOM1. Segundo LOM
(2000) (apud Wiley, 2003), os Objetos de Aprendizagem são definidos
como qualquer entidade digital ou não digital que pode ser usada,
reutilizada e referenciada durante a aprendizagem suportada pela
tecnologia.
Wiley (2003), ao tentar especificar mais o conceito de Objeto de
Aprendizagem afirma que esse termo deve se referir a recursos que são
digitais, que são reutilizáveis em diferentes contextos de uso e que dão
suporte à educação. Dessa maneira, o autor exclui da lista dos Objetos
de Aprendizagem aquelas entidades que não são digitais.
Já Polsani (2003) afirma que o conceito de Wiley não é tão
objetivo, pois não define o tamanho do objeto. Dessa maneira, afirma
que um OA é “uma unidade independente e autoexplicativa de conteúdo
de aprendizagem que é predisposto para reutilização em múltiplos
contextos educacionais”.
Em relação as características dos OAs, Longmare (2001) afirma
que existem vários argumentos que favorecem a concepção, o
desenvolvimento e o uso dos Objetos de Aprendizagem: a flexibilidade,
facilidade para atualização, pesquisas e gestão de conteúdo, a
customização, a interoperabilidade, a facilitação da aprendizagem
baseada em competência e o maior valor de conteúdo:
 Flexibilidade: Objetos de Aprendizagem que são produzidos para
serem usados em diferentes contextos são reutilizados mais facilmente
do que os objetos que precisam de adaptação a cada novo contexto
educacional.

1Learning Technology Standards Committee Learning Objects Metadates (metadados


para Objetos de Aprendizagem do Comitê de Padrões da Tecnologia na Aprendizagem).
142

 Facilidade para atualização, pesquisas e gestão e conteúdo: é


importante organizar as palavras-chave (tags) dos metadados, que
filtram os tipos de objetos para um determinado objetivo educacional.
 Customização: é importante para adaptar o objeto as necessidades
individuais e organizacionais dos conteúdos, facilitando tempo de uso e
níveis de granularidade.
 Interoperabilidade: as organizações podem configurar as
especificações relativas à concepção, desenvolvimento e apresentação
de Objetos de Aprendizagem com base nas necessidades
organizacionais. Esses objetos podem ser utilizados e reutilizados em
diferentes sistemas operacionais.
 Facilitação da aprendizagem baseada em competência: deve-se
focalizar as competências de aprendizagem, deixando em segundo plano
os modelos de curso.
 Maior valor do conteúdo: a cada reutilização há um aumento no valor
do conteúdo do objeto tanto por haver menos gastos pela criação de
novos designs e menos tempo para desenvolvimento quanto por haver
“possibilidade de vender objetos de conteúdo ou proporcionando-lhes a
parceiros em mais de um contexto”.
Além dos conceitos, alguns autores utilizam metáforas para
explicar o funcionamento e as características dos Objetos de
Aprendizagem. Essas metáforas facilitam o entendimento conceitual
desses recursos digitais.
Hodgins (2000) faz uma comparação dos Objetos de
Aprendizagem com aminoácidos essenciais, aqueles que são
importantes para assimilar nutrientes. O ator explica que os caminhos
que levam a aprendizagem seriam como receitas de comida que
possuem ingredientes portáteis e de favorável mudança individual.
Cada receita de conteúdo de aprendizagem seria capaz de ser capturada,
usada, reutilizada e movida para diversos sistemas, atendendo as
necessidades dos alunos em diferentes locais, contextos sociais e
culturais.
143

Já Wiley (2000) compara os OAs ao jogo infantil LEGO, que é


formado por diversas peças menores que encaixam entre si formando
objetos maiores. As peças menores são independes, mas possuem a
capacidade de se unir a outras peças e assim construir formas maiores;
depois, essa forma maior pode ser desconstruída para formar outro tipo
de forma. Pode-se afirmar que é dessa maneira que funciona a
reutilização dos Objetos de Aprendizagem, podendo ser adaptado a cada
contexto diferente.
A partir dos conceitos e metáforas elucidados, podemos concluir
que os Objetos de Aprendizagem são recursos interessantes para serem
utilizados como suporte a aprendizagem. Os OAs possuem três
características principais: ser reutilizável, ser digital e servir como
suporte para a aprendizagem. Com isso, na seção a seguir
apresentaremos o planejamento e a proposta de estruturação do Objeto
de Aprendizagem que tem o objetivo de facilitar a aprendizagem e a
percepção das cores pelas crianças. Com base na teoria das cenas de
atenção conjunta, o objeto deverá ser utilizado através da interação
entre adulto e bebê em relação ao recurso digital.

3 Estrutura do Objeto de Aprendizagem sobre cores

O Objeto de Aprendizagem proposto tem o objetivo de facilitar a


aprendizagem das cores, tendo como público alvo o nível infantil. Para
isso, partimos de uma teoria que aborda processos interacionais entre
criança, adulto e objeto: Cenas de Atenção Conjunta. A estrutura do OA
é descrita a seguir.
De início, a criança será levada a interagir verbalmente com o
personagem, o coelho Fofo, que em todo momento descreverá as etapas
do OA. Na tela inicial, há o cenário principal e o balão onde aparecerão
as falas escritas do personagem. Existirá o áudio dessas mesmas falas
para que a criança possa ouvir (para aqueles que ainda não sabem ler
ou aqueles que possuem uma aprendizagem baseada em recursos
auditivos). O objetivo dessa animação interativa é a aprendizagem dos
144

nomes das cores através da percepção e interação. A figura 1 apresenta


a tela inicial do Objeto de Aprendizagem.

Figura 1 - Tela inicial do Objeto de Aprendizagem

A animação será dividida em dois níveis. No primeiro, a criança é


levada para clicar e arrastar as frutas de mesma cor para cestos. Assim
que as frutas de mesma cor estiverem reunidas, uma animação será
rodada automaticamente, aparecendo o nome (áudio e escrita) das
frutas de cada cesto. É interessante salientar que o coelho explicará o
passo a passo das ações da animação e também existirá o botão “Ajuda”,
que pode ser utilizado a qualquer momento com o objetivo de explicar
o funcionamento dos dois níveis. A figura 2 apresenta a explicação do
personagem sobre os níveis do OA:
145

Figura 2 - Botões de níveis e ajuda

No segundo nível, a criança é levada a colorir alguns desenhos.


Para isso, existirá uma cartela de cores. Sempre que a criança selecionar
a cor, o nome da cor (áudio e escrita) aparece rapidamente levando a
criança a repetir. Depois, é só clicar na parte que se deseja colorir no
desenho. O desenho também poderá ser escolhido pela criança antes de
começar a colorir. A criança vai utilizar a cor na prática e ainda ter a
percepção visual e perceptiva da cor que escolheu.
Desse modo, podemos dizer que durante a brincadeira com a
animação interativa a criança não interage apenas com o seu amigo, o
coelhinho “Fofo”, mas também com o seu acompanhante e faz com que
este adentre na cena de atenção conjunta de acompanhamento. Nesse
tipo de atenção é comum a presença de gestos (em especial o gesto de
apontar).
Podemos constatar a ocorrência também de cenas de atenção
conjunta do tipo “atenção direta” que, por sua vez, ocorre uma mudança
em que não mais a mãe ou o acompanhante é o agente propulsor para
direcionar o olhar do infante para o objeto, e sim a própria criança, que
desperta e busca o olhar da mãe para o objeto no momento de interação.
No momento em que o personagem chama a criança para separar
as frutas no cesto com a ajuda do acompanhante, a criança tende a olhar
para quem o acompanha fazendo com que haja essa troca de atenção
conjunta entre elas para o objeto de desejo ou, nesse caso, o objeto que
146

“prende” a atenção e interage com a criança. A troca de olhar também


pode ser interpretada como uma certificação de que naquele momento
de interação o acompanhante está realmente atento e interagindo com
o objeto.
Devido ao caráter preliminar da estruturação do Objeto de
Aprendizagem aqui proposto, alguns testes ainda irão ser feitos para
percepção da qualidade da temática com a programação do recurso,
além das revisões do nível de linguagem utilizado, que deve estar de
acordo com a faixa etária (entre 1 e 6 anos). Para isso, precisaremos
reunir uma equipe multidisciplinar composto por professores e
programadores.

Conclusões

O presente artigo buscou apresentar considerações preliminares


de um Objeto de Aprendizagem criado a partir da base da teoria da
atenção conjunta. A atenção conjunta ocorre quando há uma interação
entre adulto, bebê e um objeto. O objeto proposto para alvo de interação
foi o Objeto de Aprendizagem, que, segundo Wiley (2000), é um recurso
digital reutilizável que dá suporte à educação. Nele, a criança poderá
aprender sobre as cores de maneira bastante interativa, através de
recursos visuais e auditivos. Dessa forma, buscamos contribuir para a
elaboração, utilização e compartilhamento de recursos digitais em
creches e escolas de nível infantil.
No artigo, focalizamos o marco teórico das cenas de atenção
conjunta nos processos de aquisição da linguagem e expomos definições
dos Objetos de Aprendizagem, realizando um levantamento dos teóricos
que melhor expressam essas teorias.
Como pesquisa futura, queremos concluir toda programação e
estruturação do Objeto de Aprendizagem através do programa
Macromedia Flash® e testar a usabilidade e aprendizagem do nosso
recurso através da gravação das cenas de atenção conjunta entre adulto
e criança ao interagirem com o objeto. Pretendemos observar também,
147

durante a utilização do Objeto de Aprendizagem observaremos a criança


interagir com o seu acompanhante (mãe, pai, cuidador) e com o
personagem do OA levando em conta as cenas em que ocorre a atenção
conjunta. Com a aplicação do OA, podemos ainda defender a ocorrência
de momentos em que cenas de atenção de acompanhamento acontecem,
onde a criança acompanha o olhar da mãe para um objeto.

Referências Bibliográficas

AKHTAR, N. & GERNSBACHER, M. A. Joint attention and vocabulary


development: a critical look. Language and Linguistic Compass, 2007,
p. 195-207.
BRUNER, J. Childs Talk. Oxford University Press, 1983.
CAVALCANTE, M. C. B. O gesto de apontar como processo de co-
construção na interação mãe-criança. Dissertação de
Mestrado/UFPE. Recife, 1994.
______. Rotinas interativas mãe-bebê: constituindo gêneros do discurso.
Revista Investigações Lingüística e Teoria Literária. N.º Especial em
homenagem a Luiz Antônio Marcuschi. Vol 21, n.º 2, 2008 – Lingüística.
Ed. Da UFPE, Recife – PE.
COSTA FILHO, J. M. S.; CAVALCANTE, M. C. B.. Cenas de Atenção
Conjunta: Uma Análise sobre o Foco do Olhar. In: Abralin 40 anos, Ed.
Idéia: João Pessoa, 2009. v. 1. p. 2096-2102. ISBN: 978-85-7539-446-5.
HODGINS, H. W. The Future of Learning Objects. In: WILEY, D. A. O. The
Instructional use of Learning Objects. utah: Utah State Univesity
Press, 2000 a.
LONGMIRE, W. A Primer On Learning Objects. American Society for
Training & Development. Virginia. USA. 2001.
POLSANI, P. R. Use and Abuse of Reusable Learning Objects. 2003.
Recuperado em maio de 2005, de http://jodi.ecs.soton.
ac.uk/?vol=3&iss=4
PRENSKY, Marc. Digital Natives, Digital Immigrants Part 1. On the
Horizon, Vol. 9 Iss: 5, p. 1-6.
148

TOMASELLO, M. Origens Culturais da Aquisição do Conhecimento


Humano. Tradução: Cláudia Berliner. Martins Fontes: São Paulo, 2003.
WILEY, D. A. Connecting Learning Objects to Instructional Design
Theory - a definition, a methaphor and a taxonomy. In: WILEY, D. A. The
Instructional Use of Learning Objects. Utah: [s.n.], 2000.
______. Learning objects: difficulties and opportunities. Springer -
Openconten. org, 2003 c. Disponível em: <http://www.citeulike
.org/user/wim-x/article/822381?citation_format=apa-good#>. Acesso
em: 02 outubro 2010.
149

GESTOS PANTOMÍMICOS E PRODUÇÃO VOCAL: CONTRIBUIÇÕES


PARA A FLUÊNCIA NA AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM

Ediclécia Sousa de Melo (CNPq/UFPB)


Geovanna Dayse Bezerra da Silva (CNPq/UFPB)
Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante (UFPB/CNPq)

RESUMO: No presente trabalho, nosso objetivo é observar nas situações


interativas os gestos pantomímicos, a relação com a tipologia vocal
proposta por Barros (2011) (balbucio, jargão, holófrases e blocos de
enunciados), e a construção da fluência na fala infantil. Segundo Scarpa
e Ramos (2007) a fluência ocorreria nos trechos de produção verbal já
cristalizados, frequentes a partir dos vinte e quatro meses. Partimos do
conceito de que o funcionamento da língua é multimodal, e que gesto e
fala se encontram integrados numa mesma matriz de produção (McNeill
1985). Quanto à classificação dos gestos e suas relações com a fala,
destacaremos os estudos de Kendon (1982), que organiza um continuo
gestual relacionando os gestos com a produção oral, dentre os quais
podemos destacar os gestos pantomímicos, que são gestos realizados
com o objetivo de simular as ações com a presença não obrigatória da
produção vocal. Os bebês têm em média de zero a trinta e seis meses e
são filmados em situação de natural. Para a produção deste trabalho,
dispomos das transcrições e a análises de dados referentes às sessões
da díade I.

PALAVRAS-CHAVE: Aquisição da linguagem; Gestos pantomímicos;


Multimodalidade; Fluência.

Introdução

Os estudos acerca da aquisição da linguagem vêm ganhando


espaço em diversas pesquisas. Essas investigações possibilitam
trabalhos de pesquisas que envolvem algumas áreas como a linguística,
150

psicologia e fonoaudiologia. Dentre as teorias que se relacionam com a


aquisição da linguagem, ressaltamos a importância do interacionismo,
uma vez que entende que a interação entre adulto e criança é um
elemento importante na aquisição da linguagem.
Desde muito cedo as crianças estão inseridas em meios
comunicativos com os adultos. Na interação entre adulto e criança, a
linguagem é consolidada variadas formas que envolvem a utilização dos
gestos, da fala e do olhar. E é por meio destes aspectos multimodais que
conseguem expressar seus desejos e compreender o que o outro
objetiva mostrar ou dizer no contexto interativo.
No presente trabalho, nosso objetivo observar e analisar os gestos
pantomímicos realizados nos primeiros anos de vida da criança, a
relação com a produção vocal (balbucio, jargão, holófrases e blocos de
enunciados), os contextos em que são produzidos e a construção da
fluência na língua materna pela criança.
No que compreende a multimodalidade, ponto de partida deste
trabalho, McNeill (1985) propõe que gesto e fala são indissociáveis,
funcionando de forma sincrônica, ou seja, no mesmo espaço e tempo,
assim, a linguagem é entendida sob uma perspectiva multimodal.
Quanto a classificação dos gestos e suas relações com a fala,
destacaremos os estudos de Kedon (1982) sobre a utilização dos
aspectos multimodais na comunicação humana.
Kendon (1982) organiza um continuo gestual que relaciona os
gestos com a produção oral. Dentre os quais podemos destacar os gestos
pantomímicos, foco deste trabalho. As pantomimas são gestos
realizados principalmente no âmbito teatral com o objetivo de imitar as
ações humana, de animais e de objetos. Na aquisição da linguagem, esses
gestos são realizados desde cedo pelas crianças, se caracterizado por
não ser um gesto especifico realizado pelos adultos.
O objetivo deste trabalho é observar nas situações interativas as
ocorrências do gesto pantomímicos e sua relação com a tipologia vocal,
para assim, corroborar com a proposta multimodalidade, e além disso,
151

observar quais são as pistas que contribuem para a fluência da criança


na língua materna.
Para análise da relação entre mãe-bebê foram feitas coletas de
dados das díades no Laboratório de Aquisição da Fala e da Escrita
(LAFE). As díades mãe-bebe analisadas para a produção deste relatório
abarca a faixa etária entre 0 à 36 meses.

1. Multimodalidade: a relação entre gestos e produção vocal na


Aquisição da linguagem

Várias são as teorias e discussões a respeito dos estudos em


aquisição da linguagem, no entanto podemos destacar os trabalhos
baseados no funcionamento multimodal da língua (MC NEILL, 1985). Os
estudos em aquisição da linguagem e multimodalidade focalizam os
aspectos pré-linguísticos, dentre eles estão: a prosódia, a atenção
conjunta, o olhar e o gesto de apontar. O conceito de que gesto e fala
formam um conjunto indissociável, e que participam da mesma matriz
de significação, se baseiam na concepção de que o funcionamento da
língua é sempre multimodal (MC NEILL, 1985), ou seja, os enunciados
surgem concomitantemente com diversos gestos e não de forma isolada.
Neste trabalho, visamos observar e analisar os gestos
pantomímicos realizados nos primeiros anos de vida da criança, a
relação com a produção vocal (balbucio, jargão, holófrases e blocos de
enunciados), os contextos em que são produzidos e a construção da
fluência na língua materna pela criança.
Segundo Laver (2000), a relação dos gestos no processo de
interação mãe-bebê é relevante. O teórico (apud. cit) analisa essa
relação gestos e a fala levando em consideração a interação, ou seja,
tendo como foco a relação estabelecida entre adulto e criança.
Argumentando sobre a importância dos gestos no processo de interação
e da compreensão da “diferença entre o que foi idealizado pra a
comunicação e o que realmente acontece” (CAVALCANTE, 2008). Lever
152

(2000) acrescenta que existe variação nos gestos, ainda que sejam
alguns comuns a uma comunidade falante (CAVALCANTE, 2008).
Conceituando o termo gesto, McNeill (2000) assegura ser este um
termo que necessita explanação, uma vez que não temos gesto no
singular, mas gestos. Ele afirma que prefere o termo no plural, pois há
vários momentos em que precisamos distinguir movimentos
consecutivos nomeados de gestos.
Segundo Cavalcante (2008), o autor McNeill (1985) proporciona
um contínuo para vários movimentos titulados de gestos. Esse continuo
foi elaborado por Kendon (1982) que é conhecido como o “contínuo de
Kendon”. Encontra-se inserido nesse contínuo os gestos e a relação com
a produção vocal, dentre eles estão: a gesticulação; a pantomima; os
emblemas; a(s) língua(s) de sinais.
Kendon (1982) organiza seu contínuo a partir de quatro relações
estabelecidas entre gesto e fala:
Gesticulação Pantomima Emblemáticos Língua de sinais

Presença
Contínuo Presença
obrigatória de Ausência de fala Ausência de fala
1 opcional de fala
fala

Presença de
Ausência de Ausência de Presença de
Contínuo algumas
propriedades propriedades propriedades
2 propriedades
lingüísticas lingüísticas lingüísticas
lingüísticas

Extraído de McNeill (2000, p.)

No continuo de Kendon (1982) há a relação entre gesto e fala, o


que corrobora com a premissa de Mc Niell (1985) de que gesto e fala
encontram-se integrados em uma mesma matriz de produção. No
contínuo, gesto pantomímico é classificado por não vir acompanhado da
produção verbal.
Neste sentido, é relevante observar nas situações interativas as
ocorrências do gesto pantomímicos e sua relação com a tipologia vocal,
para assim, corroborar com a proposta multimodalidade, e além disso,
153

observar quais são as pistas que contribuem para a fluência da criança


na língua materna.

2.Fluência e aquisição da linguagem

Os estudos sobre fluência na aquisição da linguagem suscitaram o


interesse de pesquisadores de variadas áreas de conhecimento. O termo
fluência é empregado na fonoaudiologia, psiquiatria, neurologia e no
ensino de língua estrangeira (Merlo,2006, p12). Segundo Scarpa (1995),
quando se buscam na literatura definições sobre fluência, é notável o
desaparecimento dos linguistas, enquanto que para os fonoaudiólogos e
foniatras este conceito sempre foi definido pela sua oposição, ou seja,
pelo o que é disfluente.
Na perspectiva de Merlo (2006), o discurso fluente envolve
algumas características tais como:
(a) baixa frequência de hesitações;
(b) baixa frequência de reformulações;
(c) baixa frequência, curta duração e uso nativo de pausas silenciosas
fluentes;
(d) taxa de elocução (speech rate) confortável;
(e) facilidade de emissão;
(f) habilidade gramatical;
(g) diminuição da complexidade semântica.

De acordo com a proposta de Merlo (2006) tais aspectos


referentes a fluência apontam para um falante que tem conhecimento
sobre a língua materna. A autora (apud.cit) acrescenta que as
hesitações/disfluências estão presentes na fala de todos os falantes, não
existindo falantes que jamais hesitem, ou sejam, que jamais sejam
disfluentes.
As observações de Merlo (2006) são relevantes e referentes a
fluência na fala adulta. Mas em relação as crianças, como observar e
reconhecer o período de fluência já que estão dando os primeiros passos
154

de entrada na língua? Como perceber os aspectos que poderão


contribuir para a construção da fluência na língua materna?
O conceito para a fluência na aquisição da linguagem segundo a
perspectiva de Scarpa (1985) concebe os trechos de fala fluente como:

“os já ajeitados, conhecidos, analisados ou, na grande


maioria dos casos, congelados, vêm em bloco. Os
disfluentes são aqueles em construção, instáveis, com
tentativas infrutíferas de segmentação em blocos
prosódicos; supõem passos mais complexos tanto
paradigmática quanto sintagmaticamente na elaboração
do enunciado.” (SCARPA, 1985, p.171)

Relacionando aos momentos da aquisição, a fluência infantil


ocorreria nos trechos de produção verbal já cristalizados. Por estarem
presentes nas expressões formulaicas e fragmentos cristalizados da fala
infantil, a autora constata sua presença a partir dos dois anos de idade,
quando emergem estas estruturas ao longo da produção de fala. Já a
disfluência estaria presente nas tentativas de conversão do discurso
direto em indireto, nas tentativas de relatos pessoais, em início de tópico
conversacional ou quando a criança tenta responder com expressões
não cristalizadas a perguntas polares (RAMOS; SCARPA, 2007)
É válido ressaltar que as autoras (op. Cit.) destacam a relação da
fluência e os enunciados cristalizados, salientando que este é o período
em que a criança encontra-se sob o domínio do discurso materno ou traz
em sua fala a presença de holófrases, primeiros enunciados de entrada
da criança na língua materna.

3.Tipologia prosódico-vocal: Balbucios, jargões, holófrases, e


blocos de enunciados

A literatura da área tem, ao longo do tempo, elaborado propostas


de estágios de desenvolvimento vocal para explicar a tipologia de
produções emitidas pela criança ao longo do tempo. Assim há autores
155

que tomam como referência os dados de fala infantil, a partir de 12


meses (NICE, 1925; BROWN, 1973) e autores que levam em
consideração os primeiros 12 meses, mas dando a este período o status
de preliminar ou preparatório (STERN, 1924, OLLER, 1980).
Partimos então da proposta de Barros (2012) 1 para dar conta das
produções linguísticas infantis. A autora desenvolve uma proposta de
contínuo vocal que engloba balbucio, jargão, holófrases e blocos de
enunciados. São eles assim definidos:
a) Balbucio - a produção de sílabas que têm, tipicamente, o formato
consoante- vogal, por exemplo [ma, da, ba]; tais sílabas são muitas vezes
repetitivas e têm um certo ritmo (LOCKE, 1997). Aí incluídos também: o
balbucio canônico, (sequências repetidas de consoantes e vogais),
balbucio variado (sequências de consoantes e vogais que não se
repetem, por exemplo [ada, ta, e] , como se vê em OLLER, 1980;
SALKIND, 2002) e balbucio tardio (que se refere ao momento em que a
criança é capaz de produzir diferentes contornos relacionados a
diferentes atos de fala, possuindo material segmental constituído de
palavras parecidas com as do adulto, segundo DORE, 1975).
b) B) Jargão - É quando o contorno entoacional se estende a uma cadeia
de sílabas ou um longo fragmento composto por sílabas ininteligíveis.
Passa de balbucio tardio a jargão quando a entonação é considerada
mais madura e os contornos são preenchidos por sílabas tipicamente da
fase do balbucio (SCARPA, 2009).
c) Holófrase - São os primeiros enunciados da entrada da criança na sua
língua materna (Scarpa, 1999). Na produção da holófrase, temos a
presença de estruturas predicativas nas quais um dos termos é verbal e
o outro buscado no contexto lingüístico mais amplo, através de gestos
corporais (olhar, apontar, por exemplo).
d) Bloco de enunciados – Alternância da produção de holófrases com
enunciados completos. Nesse momento a criança já é capaz de fazer

1 A autora nomeia de estágios, mas preferimos adotar a nomenclatura de tipologia


prosódico-vocal, pois aponta para diferentes funcionamentos prosódico-vocais infantis
ao longo do processo aquisicional.
156

pedidos, perguntas e produzir respostas mais longas com significado


completo, superando os enunciados holofrásticos.
Esta proposta de estágio elaborada por Barros (2012), possibilita
compreender o funcionamento prosódico-vocal ao longo da aquisição
da linguagem, e assim poderemos articular seus usos com sua
contraparte gestual.

4. Metodologia

Com a finalidade de debater e discutir os textos que servem de


base teórica para o presente projeto, foram disponibilizados pela
orientadora dois mestrandos para tal atividade. Além de disso, estamos
sendo orientadas quanto as transcrições, ao uso da folha de transcrição
e as análises.

O corpus

O nosso laboratório (LAFE) conta com oito díades mãe-bebê. O


período analisado das díades compreende a faixa etária que vai de 0
(zero) a 36 (trinta e seis) meses. Os dados são retirados de gravações
feitas por vídeo-cassete na casa da díade (mãe-bebê), com duração
aproximadamente de 15 a 20 minutos cada sessão. Os bebês têm em
média zero a trinta e seis meses e são gravados em situação natural.
Apresentamos estes dados através da tabela a seguir:
157

Criança Situação atual da díade

Idade na
Idade na
Díade Sessões Sexo última Filmagens e transcrições
1ª sessão
sessão
A 12 M 13m 23 d 21m 03 d Concluídas
B 48 M 02m 00d 24m 00 d Concluídas
C 48 F 00m 15d 24m 00 d Concluídas
D 04 F 24m 24d 31m 00 d Concluídas
E 11 M 11m 05 d 20m 28 d Concluídas
F 05 F 24m 11d 29m 11 d Concluída
G 05 M 28m 12d 32m 08 d Concluída
H 02 M 04m24d 30m Concluída

Transcrições dos dados

Neste trabalho buscamos analisar um gesto descrito na tipologia


proposta por Kendon (1985) e a relação com a fluência na fala infantil.
Para tanto, visamos compreender a emergência da pantomima e os
componentes do continuo prosódico-vocal. Contudo, são observadas
gravações audiovisuais com duração de aproximadamente 20 minutos
cada. Após assistirmos, é realizada a transcrição das cenas naturalísticas
entre mãe e bebê, no laboratório da fala e da escrita (LAFE), como
veremos abaixo.

5. Resultados e discussões

1ª Situação comunicativa: O infante está no quarto brincando a


com a mãe. Ambos estão no chão do quarto. Nesta sessão a criança está
com 15 meses.
158

Tempo Mãe Criança

Olhando para caderno que encontra-se


no chão, abre-o e fala: Olhando para o mesmo objeto que a
22 seg
mãe põe as mão.
Vai, escreve aí!

Olhando para objeto. Olhando para objeto Simula escrever


23 seg (pantomima).
I-gô! Aô dedadeda!

Neste fragmento, a mãe interage com a criança e com o objeto


solicitando que a criança escreva no caderno. O infante olha para o
mesmo objeto que a mãe está olhando e interage. Observamos nesta
situação a criança e a mãe estão interagindo não apenas pela fala e pelo
gesto, mas também por meio do olhar de acompanhamento, uma vez que
olham no mesmo momento para um objeto. Em 23 segundos, a mãe
parece mostrar o que deve ser escrito pela criança, e fala: “ I-go”. No
mesmo momento, olhando para o caderno a criança simula a ação de
escrever, e esse ato vem acompanhado do jargão: “ Ao dedadeda!”. De
acordo com Scarpa (2003) este tipo de produção vocal, se caracteriza
por ter uma entonação mais madura e os contornos são preenchidos por
sílabas tipicamente da fase do balbucio. Em toda sessão 5, em que
criança está com 14 e 15 meses, aproximadamente, ele produz muitos
jargões. Logo, observamos mais uma vez que o gesto pantomímico, a
produção vocal (jargão), e o olhar, aspectos multimodais, ocorrem de
forma simultânea e naturalmente na aquisição da linguagem.

2ª Situação comunicativa: Mãe e criança estão sentados no chão


da sala olhando uma revista. A criança está com 24m e 10 d de idade.
159

Tempo Mãe Criança

(00:49) ( A mãe vê a figura de uma


Sentada no chão, observa as figuras
(00:49) formiga na revista e mostra a
apontadas pela mãe.
criança) eita formiga!

(A criança pega a tesoura e bate na


(00:51) formiga)
Tô!

O exemplo anterior traz de forma evidente a produção verbal


aliada ao gesto, pois ao produzir “tô” (fragmento da palavra matou) no
mesmo momento em que bate na revista, a criança simula matar a
formiga, realizando uma pantomima. O enunciado “tô” trata-se de uma
holófrase, ou seja, as primeiras produções verbais da entrada da criança
em sua língua materna.

3ª Situação comunicativa: mãe e criança estão na sala brincando


com objetos que estão no chão da sala. Nesta sessão a criança está com
28 meses e 13 dias.

Tempo Mãe Criança

(Da telefone a criança)


17:04 (Olhando para a mãe)
Meli qé saber se tu qé passiar com ela

(Olha para a criança) (Olhar distante.Com telefone no ouvido)


17:08
Vem ca a mim? Vem cá a mim?

(Senta no colo da mãe com telefone)


17:15
Vem cá a mim é beli?

(Conversa)
17:20
viiixi... INC..é Beli?

17:28 Tá cetu!

(Olha para a criança) (Balança a cabeça)


17:33
ée
160

A criança nesta seção está com 2 anos 6 meses e 13 dias de idade.


Ela interage não apenas com a mãe, mas com um objeto: o telefone. A
mãe, inicialmente, busca interagir com a criança dando o telefone à
criança e simulando uma situação em que atende ao telefone e deve
passar para a criança. O infante pega o telefone e pergunta “ vem cá a
mim? Vem cá a mim?”. Esse gesto é classificado como gesto
pantomímico, ema vez que ocorre uma simulação de ações do cotidiano.
A medida que a criança simula estar realizando uma ligação telefônica,
percebemos que esta ação vem acompanhada da produção vocal.
O infante produz blocos de enunciados, ou seja, sentenças mais
maduras, enunciados mais completos. Nessa seção é perceptível que na
produção vocal da criança ocorre uma alternância entre holófrases, e
blocos de enunciados, e que a criança já faz perguntas e pedidos. O olhar
é um aspecto relevante, ao simular telefonar, a criança fica com o olhar
distante, simulando não apenas com a fala e o gesto, mas associando o
olhar na construção do gesto pantomímico. É importante ressaltar as
pausas que são dadas pela criança, parecendo que, o outro, aquele com
o qual ela está conversando, tenha um tempo de responder suas
perguntas e também possa perguntar, como em 17: 33, em que o infante
balança a cabeça para baixo e parece responder “éé”. È notável a
interação da criança com o “outro” nessa situação comunicativa em que
o gesto pantomímico é privilegiado pela criança.

Considerações finais

Por meio de todas as discussões realizadas, verificamos através


dos conceitos e das análises de dados, o importante papel da
multimodalidade na aquisição da linguagem, uma vez que as produções
enunciativas e os gestos são agentes que influenciam de forma
significativa nesse processo de aquisição.
Percebemos que a presença dos gestos (pantomímicos) propostos
por Kendon no“Continuum”, ocorre em muitos os momentos da
interação entre mãe e bebê, emergindo a partir dos 11 meses de idade,
161

e aumentando a frequência aos 15 meses associados a produção vocal.


A pantomima é produzida tanto pelo bebê quanto pela mãe e,
acreditamos que essa seja uma relação de interação muito importante,
pois através desses movimentos desempenhados pela mãe, o infante
inicia seus primeiros passos na construção do continuo gestual.
Os dados analisados indicam que as pantomimas vêm
acompanhadas de uma produção vocal variada. Os jargões apareceram
com pouca frequência em relação com a realização dos gestos
pantomímicos, e os blocos de enunciados aparecem com uma frequência
bastante significativa. A mãe da criança interage de forma significante
no processo comunicativo, realiza pantomimas e busca manter um
diálogo com a criança no processo de aquisição da linguagem,
convidando-a, muitas vezes a uma interação.
Portanto, consideramos que a relação entre os gestos
pantomímicos e a tipologia prosódica vocal possui grande importância
no processo de aquisição da linguagem e para a constituição da fluência
na fala infantil, uma vez que a medida que as pantomimas são
privilegiadas, os blocos de enunciados estão mais frequentes a fluência
está sendo construída. É válido destacar, a importância dos estudos dos
gestos sob uma perspectiva multimodal, levando em consideração o
olhar, a interação mãe-bêbe, a produção vocal, que são elementos de
grande relevância para o processo de aquisição da linguagem.

Referências bibliográficas

ÁVILA-NÓBREGA, P. V. Dialogia mãe-bebê: a Emergência do Envelope


Multimodal em contextos de Atenção Conjunta. Dissertação, PROLING,
UFPB. Ano de Obtenção: 2010.
ÁVILA-NÓBREGA, P. V.; CAVALCANTE, M. C. B. . O Envelope Multimodal
em Contextos de Atenção Conjunta: uma análise longitudinal. In: VII
Congresso Internacional da Abralin, 2011, Curitiba. Anais do VII
Congresso Internacional da Abralin, 2011.
162

BARROS, A. T. M. C. Fala incial e prosódia: do balbucio aos blocos de


enunciado. Dissertação, PROLING, UFPB. Ano de Obtenção: 2012
CAVALCANTE, M. C. B. O gesto de apontar como processo de co-
construção nas interações mãe-criança. Dissertação de Mestrado.
UFPE, 1994.
INTERNATIONAL CONGRESS OF ISAPL. Porto Alegre, 2007.
CAVALCANTE, M. C. B.; BRANDÃO, L. P. Gesticulação e Fluência:
contribuições para a aquisição da linguagem. Cadernos de Estudos
Linguísticos, volume 54 (1), 2012. (Artigo aceito para publicação).
KENDON, A. The Study of Gesture: someremarks on its history.
Recherches sémiotiques/semiotic inquiry 2: 45-62, 1982.
KENDON, A. Language and Gesture: Unity or Duality? In D. MCNEILL,
(ed.) Language and Gesture, Cambridge University Press: Cambridge,
UK. p. 47-63, 2000.
LOCKE, J.L. A theory of neurolinguistic development. Brain and
Language, 58, 265–326, 1997.
McNEILL, D. So you think gestures are nonverbal?. Psychological
Review. Vol 92(3) 350-371, Jul., 1985.
McNEILL, D. Introduction. In: MCNEILL, D. (ed.) Language and Gesture.
Cambrige University Press, Cambridge, UK, 2000.
RS.; SCARPA, E. M. . Hesitações e rupturas em Aquisição da Linguagem:
processos reorganizacionais na fala infantil. Estudos Linguísticos (São
Paulo), v. XXXVI, p. 354-360, 2007.
SCARPA, E. M. Sobre o sujeito fluente. Cadernos de Estudos
Linguísticos, Campinas, v.29, p.163-184, 1995.
163

O ENSINO DA LEITURA DO TEXTO MULTIMODAL NAS SÉRIES


INICIAIS

Alice d’Albuquerque Torreão (UFPB)

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar como as


atividades de leitura dos textos multimodais do livro didático de
Português do 2º ano do Ensino Fundamental exploram o ensino da
leitura multimodal de maneira que contribuam para o letramento
multimodal. Para isso, selecionamos os textos multimodais verbo-
visuais presentes no livro didático de Português para análise,
observamos as atividades de leitura dos textos selecionados e
analisamos como as atividades de leitura contribuem para desenvolver
as capacidades leitoras específicas para o letramento multimodal. Essa
investigação é caracterizada como uma pesquisa-ação de cunho
descritivo-analítico, adotando uma metodologia de abordagem
qualitativa. Por fim, podemos concluir que essa pesquisa irá contribuir
para a melhoria do ensino, pois incentivará os professores a explorarem
os textos multimodais, desenvolvendo habilidades na leitura desses
textos pelos alunos de maneira mais abrangente e enriquecedora,
possibilitando sua interação em diferentes ambientes sociais ao
utilizarem diferentes linguagens de forma significativa e coerente.

PALAVRAS-CHAVE: Letramento, textos multimodais, ensino


fundamental.

ABSTRACT: This article aims to analyze how the activities of reading


multimodal texts textbook Portuguese 2nd year of elementary school
teaching exploit the multimodal reading way to contribute to the
multimodal literacy. We selected the verbal-visual multimodal texts
present in the textbook Portuguese for analysis, we observed the
activities of reading of selected texts and analyze how reading activities
help to develop specific skills for readers multimodal literacy. Such
164

research is characterized as an action research descriptive-analytical


nature, adopting a methodology of qualitative approach. Finally, we
conclude that this research will contribute to the improvement of
teaching because encourage teachers to explore multimodal texts,
developing skills in reading those texts for students most
comprehensive and enriching way, allowing their interaction in
different social environments to use significantly different languages
and consistently.

KEYWORDS: literacy, multimodal texts, elementary school

Introdução

Nos últimos anos, houve grande abertura para a pluralidade de


usos da linguagem no contexto escolar. A evolução da tecnologia e os
textos contemporâneos e, especialmente, a inserção de imagens em
todas as formas de representação da realidade social, têm influenciado
os modos de leitura e escrita contemporâneos e posto constantemente
novos desafios às teorias de letramento aos educadores e à escola. Com
isso, novos gêneros discursivos surgem e adentram não só nos
ambientes digitais, mas nos impressos, como o livro didático,
convocando, por sua vez, novos letramentos, na medida com que trazem
em sua composição imagens e outras semioses, sugerindo múltiplas
formas de significar.
Como consequência direta desse fenômeno, houve mudança
significativa na configuração dos materiais didáticos. Nesse sentido,
temos observado a presença cada vez mais constante de textos
multimodais nos livros didáticos da Língua Portuguesa. Com base
nessas reflexões, despertou-nos os seguintes questionamentos: o livro
didático de Língua Portuguesa utiliza textos multimodais de maneira
abrangente? Como se inserem no livro didático e que tratamento lhes é
dado nesse principal material de acesso à leitura nas escolas públicas
165

brasileiras? As atividades propostas contribuem para o ensino-


aprendizagem da leitura desses textos?
Refletindo sobre esses questionamentos, procuramos discutir
sobre a formação do leitor crítico, especificamente, do leitor da imagem
(elemento constituinte das formas de representação da realidade da
sociedade atual) encontrada em textos multimodais, especificamente
nos textos discursivos verbo-visuais, a partir da análise das atividades
de leitura trazidas por um livro didático de Língua Portuguesa do 2º ano
do Ensino Fundamental. Nesse recorte, selecionamos um livro, a partir
da escolha das professoras do 2º ano do Ensino Fundamental de uma
escola Municipal de João Pessoa-PB.

1. Letramento na perspectiva da multimodalidade

1.1. Alfabetização na perspectiva do letramento

Ao longo da história, podemos observar que a escola transformou


a escrita de objeto social/cultural, em objeto exclusivamente escolar,
ocultando, muitas vezes, suas funções extraescolares. Contudo, sabemos
que a escrita é um produto cultural e o ato de ler e escrever são
patrimônios culturais que devem ser disponibilizados a todos.
Portanto, a escola precisa preparar-se para ampliar as
possibilidades dos estudantes de terem acesso a diferentes saberes, pois
os conhecimentos construídos e circulantes nos diferentes espaços
sociais constituem-se como direito de todos à formação e ao
desenvolvimento humano.
Segundo Soares (1998, p. 31), alfabetização é “a ação de
alfabetizar, tornar o indivíduo capaz de ler e escrever”, porém nos dias
atuais ser alfabetizado tem se revelado condição insuficiente para
responder adequadamente às demandas contemporâneas. De acordo
com o índice nacional de 16.295.000 analfabetos no país (IBGE, 2003),
consideramos um contingente de indivíduos que, embora formalmente
166

alfabetizados, são incapazes de ler textos longos, de localizar ou


relacionar suas informações.
Soares (1995) analisa que, desde os tempos do Brasil colônia, e até
muito recentemente, o problema que enfrentávamos em relação à
cultura escrita era o analfabetismo, o grande número de pessoas que não
sabiam ler e escrever, portanto a palavra de ordem era alfabetizar.
A alfabetização como um processo de decodificação das letras
passa a ser vista como uma prática social desde a Segunda Guerra
Mundial quando, devido ao contexto de trabalho, emergiu o conceito
analfabetismo funcional, aplicado inicialmente a adultos, nas
campanhas de educação de massa e, posteriormente, a crianças, levando
os pesquisadores a pensarem no significado do letramento para as
pessoas na vida cotidiana. De acordo com Soares (1986), a preocupação
com o Letramento passou a ter grande presença na escola, ainda que
sem o reconhecimento e sem o uso da palavra, traduzido em ações
pedagógicas de reorganização do ensino e da reformulação dos modos
de ensinar.
Portanto, é necessário ir além da aquisição da escrita, fazer uso da
leitura e da escrita no cotidiano, apropriando-se da função social dessas
duas práticas, como nos orienta Soares (2000): “é preciso letrar-se”.
A dicotomia entre a escrita e a fala foi substituída, na década de
80, pela noção de continuum, na qual fala e escrita interagem
frequentemente. Para Street (1995, p.2), a escrita é, antes de tudo,
prática social; por isso ele critica as abordagens que estudam as
atividades de linguagem de maneira isolada e descontextualizada.
Foram essas críticas que provocaram o surgimento de novas
perspectivas, intituladas de Letramento.
Segundo Vieira (2003, p.253), nessa perspectiva, a escrita não é
conhecimento adquirido de modo solitário e individual, pois é produto
de práticas sociais de escrita de determinada cultura. Portanto, no
contexto contemporâneo, não se pode observar as semelhanças e
diferenças entre a fala e a escrita sem considerar seus usos nas práticas
sociais.
167

Embora a alfabetização não seja pré-requisito para o letramento,


ele está relacionado com a aquisição, com o uso e com as funções da
leitura imersas em práticas sociais. Muitos educadores já consideram a
alfabetização como um processo de construção de conhecimentos sobre
um sistema notacional e inserção em práticas sociais de leitura e escrita,
sendo necessário manter o equilíbrio entre esses dois processos
(alfabetização e letramento).
A alfabetização é sempre uma aprendizagem mediante ensino e
compreende o domínio ativo e sistemático das habilidades de ler e
escrever. Quanto ao Letramento, a multiplicidade de significados
atribuídos sugere que é processo multifacetado, seguindo fenômenos de
diferentes tipos. Por sua natureza social, revela as práticas de escrita e
de leitura de determinado grupo social, sendo capaz, ao mesmo tempo,
de mostrar formas emergentes de letramento em dado contexto
sociocultural, como nos diz Vieira (2006), é possível agora falar de
multiletramentos, como o letramento computacional, o visual, o
tecnológico entre outros.
A criança torna-se letrada numa determinada atividade, por meio
de diferentes instrumentos sociais de comunicação, como
computadores, internet, telecomunicações, fax, fotocópias, televisão,
dramas, filmes, teatro e arte. Os textos da vida cotidiana, como os sinais
de trânsito, mapas, horários de transporte coletivo, são fundamentais
para a inserção no mundo.
Um argumento que justifica o uso do termo letramento, ao invés
do tradicional alfabetização, é o fato de, em certas classes sociais, as
crianças serem letradas, no sentido de possuírem estratégias orais
letradas, mesmo antes de serem alfabetizadas.
O letramento surgiu com o aparecimento do termo “literacy”,
sendo, portanto, a ação de ensinar e aprender práticas sociais de leitura
e escrita, como comenta Soares, (1998):

“Ter-se apropriado da escrita é diferente de ter aprendido


a ler e escrever: aprender a ler e escrever significa adquirir
168

uma tecnologia, a de codificar em língua escrita e de


decodificar a língua escrita; apropriar-se da escrita é tornar
a escrita “própria”. (SOARES,1998, p.30)

A tradução de “literacy” por letramento é atribuída a Mary Kato,


em 1986, na obra No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística.
Em 1988, passa a representar um referencial no discurso da educação,
ao ser definido por Leda Verdiani Tfouni em Adultos não alfabetizados:
o avesso do avesso e, em 1998, Magda Soares aponta a distinção entre
alfabetização e letramento.
O desenvolvimento social que acompanhou a expansão dos usos
da escrita, desde o século XVI, contribuiu para o interesse nesse estudo,
assim como as mudanças socioeconômicas nas grandes massas que se
incorporaram às forças de trabalho industrial, o desenvolvimento das
ciências, a padronização e a dominância de uma variante de linguagem,
a emergência da escola, o surgimento das burocracias letradas como
grupo de poder nas cidades, enfim, as mudanças políticas, econômicas,
sociais e cognitivas relacionadas com o uso extensivo da escrita nas
sociedades tecnológicas Kleiman, (2004, p. 16).
Traduzido por Komesu em 2004, o Dicionário de análise do
discurso, de P. Charaudeau e D. Mainguenau, publicado na França em
2002, o termo letramento foi registrado da seguinte maneira:

Recentemente difundido, esse termo é de uso ainda


restrito. Dele podem se distinguir três sentidos principais:
Em primeiro lugar, remete a um conjunto de saberes
elementares, em parte mensuráveis: saber ler, escrever,
contar. (...) Em segundo lugar, o termo designa os usos
sociais da escrita: trata-se de “aprender a ler, a escrever e a
questionar os materiais escritos. A terceira parte é
essencial para a obtenção do êxito”.(...) Parece legítimo
conceber vários tipos de letramento: um “letramento
familiar” (Unesco, 1995), “um letramento religioso” ou,
ainda, “um letramento digital”. (...) Enfim, em um terceiro
169

sentido, o letramento é concebido como uma cultura que se


opõe à cultura da “orality” (Ong, 1982). (...) (KOMESU,
2004, p. 30-31).

Conforme mencionado, a palavra letramento e o conceito que ela


representa entraram recentemente em nosso vocabulário e no nosso
uso, apesar de aparecerem com frequência na biblioteca acadêmica.
Vale salientar que letramentos não são apenas as habilidades de
ler e escrever, nem estão ligados apenas à esfera do ensino, são
fenômenos sociais de escrita e de linguagem. No meio em que convivem
(igreja, família, escola, clube, parquinho), as crianças adquirem língua e
linguagem, mas a escola é o fórum adequado de interação. Segundo
Kleiman (1995, p.25), “a escola é, em quase todas as sociedades, a
principal agência de letramento”.
Soares (1998) lamenta que os textos tenham perdido espaço nas
aulas, principalmente de Língua Portuguesa, e sugere que não devemos
nos esquecer de que, justamente porque a leitura tem pouca presença
na vida diária doa alunos, no contexto brasileiro, cabe à escola dar-lhes
a oportunidade de conhecê-la e dela usufruir, contribuindo para a
construção do discurso crítico do aluno.
Contudo, como Freire (1984, p. 11) afirma que, “a leitura do
mundo precede a leitura da palavra”, ou seja, a aprendizagem inicia-se
antes da escola formal, as professoras precisam ser boas observadoras
e ouvintes para saber o que as crianças trazem para a escola,
possibilitando a efetivação da comunicação e contribuindo para que
estas façam uso do conhecimento em diferentes contextos: casa e escola.
Entretanto, vale salientar que o letramento como construção
social relaciona-se com as circunstâncias históricas, sociais, econômicas
e políticas do país. Observa-se que, no Brasil, os baixos índices obtidos
na avaliação de Língua Portuguesa estão relacionados com todos os
conjuntos de fatores sociais e não apenas com o sistema escolar em si.
Uma grande parcela da população vive em situação de pobreza, sem
170

acesso às tecnologias, mídias e materiais impressos que estimulam o


letramento.
Segundo Jonez Dias e Makin ( 2005):

Literacia como prática social envolve um fenômeno social


e cultural mais que resultado cognitivo. Isto implica
considerar as atitudes, sentimentos, expectativas, valores e
crenças de todos os participantes (crianças, famílias,
professores, gestores e membros da comunidade) que
exercem papel central no processo de literacia. ( JONEZ
DIAS E MAKIN, 2005, p.4):

Dessa forma, o letramento/literacia implica, para os autores


citados acima, o trabalho conjunto entre escola e família em duas
perspectivas: Letramento como prática social e a diversidade e
integração dos sistemas simbólicos.
Portanto, o letramento, como prática semiótica, como uma forma
de dar significado aos textos impressos, ganha força, incluindo também
a variedade de situações em que as crianças se envolvem nas histórias,
no desenho, nas marcas que fazem, criam elaboradas representações
multimodais com diversos materiais, como paus, areia, brinquedos e
objetos de uso doméstico. Não são arbitrários os símbolos, os sinais e
modalidades usadas pela criança, mas refletem estratégias escolhidas
para representar o que acha importante. Vale destacar que a linguagem
é ferramenta para aprender em processos interativos, como propõe
Vygotsky. A criança precisa do suporte e da mediação do adulto, sendo
este coparticipante do processo de letramento.
Na concepção de linguagem como representação sócio-humana e
levando em consideração que a mesma se dá através de signos
linguísticos mediados pelas necessidades semióticas à interação,
observa-se que, de acordo com Dionísio (2011, p. 139), “quando nós
usamos a linguagem, estamos realizando ações individuais e sociais que
são manifestações socioculturais, materializadas em gêneros textuais”.
171

Se os gêneros são utilizados pelos falantes de uma língua a partir


das necessidades comunicativas, significa que, esses construtos textuais
enquanto mediadores do discurso social são caracterizados por vários
aspectos semióticos.
Essa análise sobre os múltiplos modos semióticos que configuram
a interação mediada por gêneros determina o entendimento destes
como processos multimodais em que se torna impossível interpretá-los
focalizando apenas a linguagem escrita, já que a abordagem multimodal
busca compreender a articulação entre os diversos modos semióticos
utilizados em interações sociais.
Portanto, o trabalho com gêneros envolvendo leitura
interpretativa multimodal e produção possibilita ao educando
interpretar diferentes fontes de linguagem por meio da sua integração
multimodal, como também desenvolver naturalmente o prazer pela
leitura, refletindo, dessa forma, no processo de letramento e
alfabetização.
Contudo, ao defendermos uma concepção de alfabetização em
uma perspectiva de letramento, compreendemos, assim como Soares
(1998), que tanto as atividades de reflexão sobre o sistema de escrita
alfabética e suas convenções, quanto as práticas de uso social da leitura
e da escrita devem estar presentes em sala de aula, mesmo antes de a
criança ter aprendido a ler e escrever convencionalmente.
Portanto, a qualidade mais valorizada nos sujeitos letrados é a
capacidade de moverem-se rapidamente entre os diferentes eventos,
compostos pela fala e pela escrita, pelas linguagens visuais e sonoras,
além de todos os recursos tecnológicos, mostrando competência na
produção e na interpretação de diferentes gêneros discursivos.

1.2. Letramento multimodal

Atualmente, as demandas de leitura e escrita têm exigido dos


leitores capacidades cada vez mais avançadas de letramento, por
172

exemplo, atribuir sentidos multimodais, quer sejam impressos ou


digitais.
Dessa forma, o ensino de uma língua em constante movimento não
deve se resumir as formalidades de um texto escrito ou falado, devendo
sim, desenvolver um trabalho que acompanhe a linguagem de um
ambiente interativo, a partir de uma intervenção dinâmica o suficiente
para contemplar todas as necessidades modais dos sujeitos ativos, os
falantes.
Dionísio (2005, p. 160) afirma que, na “sociedade contemporânea,
a prática de letramento da escrita, do signo verbal deve ser incorporada
à prática de letramento da imagem, do signo visual”. Ainda segundo a
autora, a multimodalidade é um traço constitutivo tanto do discurso oral
como do escrito e que a escrita tem apresentado “cada vez mais arranjos
não-padrões” em função do desenvolvimento tecnológico, o que torna
necessário modificações dos leitores em seus modos habituais de ler.
Nesse sentido, é dever da escola propagar o ensino-aprendizagem
através de gêneros textuais, por serem, como afirma o PCN de Língua
Portuguesa (2001, p.26) “criações sociais a partir de intenções
comunicativas”, devendo ser interpretados de forma complexa para a
clareza da intenção da linguagem entre os agentes envolvidos nessa
interação e para que tenham o domínio da situação em toda a sua
pluralidade significativa.
De acordo com Bronckart (1999, p. 103), “a apropriação dos
gêneros é um mecanismo fundamental de socialização, de inserção
prática nas atividades comunicativas humanas”. Portanto, desenvolver
um trabalho explorando as práticas de letramento, por meio de gêneros,
com fins metodologicamente planejados e baseados nesses mecanismos
é trazer a sociedade discursiva para dentro da escola enquanto instância
social e cultural.
Tais gêneros, seja ele ligado por discurso oral ou escrito, contém
em seu produto de interação com funções comunicativas, alguns
recursos como: gestos, expressões, imagens, gráficos, movimentos,
entre outros, que repercutem na abordagem semiótica multimodal que
173

é “a maior integração entre os vários tipos de semiose: signos verbais,


sons, imagens e formas em movimento”.
Entretanto, as imagens ainda são vistas como um meio de
comunicação menos especializado que o verbal. A escola menospreza a
leitura de textos visuais, o que acaba produzindo “iletrados visuais”.
Assim, as multimodalidades não podem passar despercebidas na
utilização e exploração de gêneros em sala de aula e, como tais recursos
multimodais estão presentes nos gêneros, esses se tornam amplamente
semióticos. Hodge e Kress (1998) definem semiótica como:

(...) o estudo geral da semiose, isto é, dos processos de


produção e reprodução, recepção e circulação dos
significados em todas as suas formas, utilizadas por todos
os tipos de agentes de comunicação (...). a semiótica social
focaliza a semiose humana, compreendendo-a como um
fenômeno inerentemente social em suas origens, funções,
contextos e efeitos (...). os significados sociais são
construídos por meio de uma série de formas, textos e
práticas semióticas de todos os períodos da história da
sociedade humana. (HODGE E KRESS, 1998, p. 261).

Portanto, se a proposta de leitura e produção para o ensino, desde


o início da educação básica, for pautada no trabalho com os gêneros e
seus aspectos multimodais, consequentemente a capacidade de criação
e o nível interpretativo desse público serão superiores a quem não teve
contato na escola com os variados recursos que envolvem a linguagem.
Mayer (2001) considera que uma aprendizagem realmente
significativa envolve uma ligação entre dois canais de processamento
cognitivo da informação: o material verbal e o material visual. Assim,
selecionar, organizar e integrar a informação de ambos os canais é a
chave para uma aprendizagem significativa dos textos que aliam a
materialidade visual à escrita.
Vale salientar que o uso de gêneros acontece desde a época da
infância. Nesse período, a criança expõe o que aprende com o meio, com
174

as pessoas com quem convive e com os eventos de letramento dos quais


participa. Marcuschi (2003, pp. 20-21) afirma que:

Se partirmos para o ambiente familiar, podemos indagar:


que uso da leitura e da escrita é feito em casa? Para que se
usa a escrita e a leitura em casa? Não resta dúvida de que
leitura & escrita é uma prática comunicativa interessante e
proveitosa em muitos sentidos. Há o jornal e a revista para
serem lidos. Há cartões e cartas pessoais para serem
escritos. Há cheques para assinar, contas a fazer, recados a
transmitir e listas de compras a organizar, rádio e músicas
a escutar. Há as ocorrências a registrar (os famosos livros
de registro de todos os condomínios). Há historinhas a
contar antes de dormir. As fofocas do dia a pôr em ordem
etc. etc. (MARCUSCHI, 2003, pp. 20-21)

Nessa perspectiva, os gêneros se vinculam a vida cultural e social


do sujeito, participando das atividades comunicativas do dia-a-dia,
sejam essas atividades realizadas através da oralidade, da leitura ou da
escrita.
Além da diversidade de gêneros que fazem parte das atividades
comunicativas das pessoas desde seus primeiros anos de convívio na
sociedade e na família, apresenta-se também a multimodalidade da
escrita. Para a semiótica social, o texto escrito por si é multimodal, ou
seja, também se compõe por mais de um modo de representação. Numa
página, por exemplo, além da linguagem escrita, outras formas de
representação, como a diagramação, o formato e a cor das letras, a
qualidade do papel, entre outros elementos, contribuem e interferem no
sentido do texto.
Assim, o ato de ler não deve centralizar apenas na escrita, já que
esta se constitui como um elemento representacional que coexiste com
a presença de imagens e de diferentes tipos de informação.
Dionísio (2005, p. 188) ressalta que “a força visual do texto escrito
permite que se reconheça o seu gênero mesmo que não tenhamos o
175

domínio da língua em que está escrito”. A autora (idem p. 178) coloca


ainda que:

Ao lermos um texto manuscrito, um texto impresso numa


página de revista, ou na tela de um computador, estamos
envolvidos numa comunicação multimodal.
Conseqüentemente, os gêneros textuais falados e escritos
são também multimodais porque, quando falamos ou
escrevemos um texto, usamos, no mínimo, dois modos de
representação: palavras e gestos, palavras e entonações,
palavras e imagens, palavras e tipografia, palavras e
sorrisos, palavras e animações, etc. ( DIONÍSIO, 2005, p.
178)

Contudo, o sentido de um texto pode ser manifestado por formas


e códigos diversos, podendo aparecer através de imagens, gestos,
produções pictóricas presentes em textos verbais ou não verbais,
estabelecendo a comunicação entre os sujeitos.
Dessa forma, Van Leeuwen (2004) defende que os gêneros da fala
e da escrita são, de fato, multimodais: os gêneros da fala combinam a
linguagem oral e a ação, num conjunto integrado. Os gêneros da escrita
combinam a linguagem escrita, imagens, gráficos, também compondo
um conjunto integrado.
De acordo com Dionísio (2006, p. 131) “imagem e palavra mantém
uma relação cada vez mais próxima, cada vez mais integrada”. O
material escrito está cada vez mais combinado ao material visual. As
imagens para os pequenos fazem parte do sentido que se atribui as
histórias que leem ou que são lidas para eles.
Nos dias atuais, para vivermos numa era de imagens visuais, a
questão da leitura e escrita não pode ser vista de uma forma restrita a
atividades monomodais, pois, no mundo contemporâneo, as pessoas
passam boa parte do tempo assistindo TV, inclusive as crianças, tendo
contato com a mídia impressa que fazem o uso constante de ilustrações
176

e, em meio a isso tudo, há uma grande variedade de gêneros textuais


sendo utilizados, representando diversas formas de letramento.
Portanto, a multimodalidade dos meios linguísticos em que
estamos mergulhados hoje, é assunto que não pode passar despercebido
na instituição escolar em qualquer nível de ensino. É impossível ler
prestando atenção somente na mensagem escrita, pois como já foi dito,
ela é apenas um elemento representacional que coexiste com uma série
de outros.
Contudo, os textos multimodais são carregados de valores
ideológicos, sendo assim, as práticas de letramento devem levar o
sujeito desse letramento a uma postura de discernimento, de
questionamento, de consciência crítica em relação às imagens lidas.
Assim, é preciso que os alunos saibam como funcionam os textos
multimodais, como interagem as imagens e a linguagem verbal num
mesmo texto. Com isso, além de conhecer o funcionamento desses
textos, essa nova maneira de letramento pode torná-los mais
conscientes de suas escolhas.
Por essa razão, a escola precisa estar atenta ao crescente uso dos
textos não-verbais e textos multimodais, buscando proporcionar aos
alunos as condições necessárias para que eles cheguem ao letramento
multimodal.
Com isso, procuramos compreender o papel dos textos
multimodais presentes no livro didático de Língua Portuguesa (LDP) do
2º ano, A escola é nossa: Letramento e Alfabetização, de Márcia Paganini
Cavéquia, da coleção “A escola é nossa”, se suas atividades propostas
contribuem para o ensino- aprendizagem da leitura desses textos.
Consideramos importante levar em consideração o diálogo
existente entre a imagem e palavra escrita, sendo este o nosso foco de
estudo. Para Brait (2009), é traço constitutivo do sujeito e de sua
identidade, a dimensão verbo-visual da linguagem, pois essa dimensão
está presente, em nosso cotidiano, em nossa vida social (seja por meio
da internet, de outdoors, muros, espalhados pela cidade etc.). Isto é, a
177

imagem é uma das formas de linguagem contemporânea de


comunicação.
Nessa perspectiva, acreditamos que não basta ter olho “educado”
para enxergar tudo que há, é preciso desenvolver capacidades
específicas de leitura para os gêneros que aliam a linguagem visual à
verbal.
O livro didático, nas últimas décadas, tem passado por mudanças
por influência de interesses de várias ordens: a avaliação do Programa
Nacional de Avaliação do Livro Didático para o Ensino Fundamental,
questões econômicas e políticas, o público estudante, as editoras, enfim,
a indústria do livro didático, de modo geral, tem sofrido mudanças. Um
dos critérios da avaliação do livro didático, é que a obra apresente uma
seleção de textos que propicie aos alunos o contato com gêneros
diversificados. Além disso, estabelece-se como critério de qualificação
que a obra utilize diferentes linguagens visuais.
Nesse contexto, julgamos necessário observar sobre os critérios
de uso das imagens no material didático em questão, buscando
compreender sua abordagem em atividades de leitura, enfocando o
desenvolvimento de capacidades leitoras, em particular as voltadas à
multimodalidade.

2. Percurso metodológico e análise de dados

Nesse capítulo apresentaremos o percurso metodológico e a


análise dos dados referentes às atividades de leitura dos textos
discursivos verbo-visuais presentes em um livro didático de língua
portuguesa, analisando-as na perspectiva do letramento multimodal.

2.1. Percurso metodológico

Este trabalho tem como objeto de estudo “O ensino da leitura do


texto multimodal nas séries iniciais”. Buscamos realizar uma pesquisa
de análise documental de cunho descritivo-analítico, adotando uma
178

metodologia de abordagem qualitativa que, segundo Moreira (2004),


“tem como foco a visão que os próprios participantes têm sobre um
determinado assunto, não visando a quantidade”.
Inicialmente, selecionamos uma escola pública da cidade de João
Pessoa-PB, e o livro didático (LD) da Língua Portuguesa para análise, o
qual foi escolhido pelas professoras do 2º ano do ensino fundamental.
Este livro foi um dos indicados pelo Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD), 2013 para o triênio 2013 a 2015. Trata-se da obra A
escola é nossa: Letramento e Alfabetização, da coleção “A escola é nossa”,
editada no ano de 2010. Após essa etapa, realizamos um levantamento
quantitativo dos textos presentes no livro, referente apenas às
atividades de leitura. Destes textos, enfocamos apenas os textos verbo-
visuais, analisados com base na classificação de Kress e Van Leeuwen
(2006).
Textos presentes no LD Quantidade Relação imagem-texto
Total 27
Verbo-visuais 23
A imagem não ilustra o texto não remete à
Categoria 1 1
texto imagem
A imagem apenas ilustra
Categoria 2 8
o texto texto remete
A imagem ilustra e indiretamente à
Categoria 3 influencia no 10 imagem
entendimento do texto
A imagem interage com o texto remete
Categoria 4 4
texto diretamente à imagem
Assim, para relacionar as imagens aos textos, foi elaborado o
seguinte esquema de classificação: quando um texto faz menção
explícita a uma imagem dizemos que esse texto remete diretamente à
imagem, portanto esta é necessária para que se depreenda sentido de
um texto (a imagem interage com o texto). Quando um texto não
menciona diretamente uma imagem, mas podemos inferir sua relação
com a mesma, dizemos que o texto remete indiretamente à imagem,
neste caso, ou a imagem possui relação com o texto, mas não lhe
acrescenta nenhuma informação (a imagem apenas ilustra o texto), ou
179

a imagem, além de ilustrar, auxilia no entendimento de um determinado


texto (ilustra e influencia no entendimento do texto). Quando um
texto não menciona nem direciona a leitura de uma imagem, nem
podemos inferir uma relação entre os dois, dizemos que o texto não
remete à imagem; neste último caso, a imagem não possui ligação com
os textos que a cercam (a imagem não ilustra o texto). Os dados dessa
etapa estão representados na tabela a seguir:
Posteriormente, quantificamos de maneira geral, quantos dos
textos verbo-discursivos exploram e quantos não exploram a
imagem/ilustração. Informamos os dados na tabela a seguir:

Textos verbo-visuais Exploram a imagem Não explora a imagem


23 6 (26%) 17 (74%)
Na etapa seguinte, quantificamos as atividades de leitura de todos
os textos verbo-visuais selecionados e analisamos, no geral e por
categoria, quantas destas atividades exploram a leitura das imagens e
quantas não exploram. A tabela a seguir revela os seguintes dados:
Atividades de leitura dos textos verbo-visuais Quantidade
Total 143
Exploram as imagens 16 (11,2%)
Não exploram as imagens 127 (88,8%)

Atividades de leitura dos textos verbo-visuais do LD


Categorias Exploram a imagem Não exploram a imagem
Categoria 1 (A imagem não ilustra) 0 8
Total 8
Categoria 2 (A imagem apenas
2 48
ilustra o texto)
Total 50
Categoria 3 (A imagem ilustra e
influencia no entendimento do 0 58
texto)
Total 58
Categoria 4 (Imagem interage com o
14 13
texto)
Total 27
180

Após essa etapa, quantificamos, por categoria, os textos que


exploram e os que não exploram as imagens a partir de suas atividades,
assim como os que a autora do LD oferece ao professor sugestões de
ações de leitura direcionadas a essa exploração e os que ela não oferece.
A tabela abaixo apresenta esses dados:

Textos em que a Textos em que a


autora oferece autora não oferece
Quantidade sugestões de ações de sugestões de ações de
Categorias Atividades de leitura
de textos leitura direcionadas à leitura direcionadas à
exploração da exploração da
imagem/ilustração imagem/ilustração

Exploram as
0 _ _
Categoria 1 imagens
(A imagem
não ilustra) Não exploram as
1 _ 1
imagens

Categoria 2 Exploram as
2 1 1
(A imagem imagens
apenas
ilustra o Não exploram as
texto) 6 3 3
imagens

Categoria 3
(A imagem Exploram as
0 _ _
ilustra e imagens
influencia
no
entendime Não exploram as
nto do 10 6 4
imagens
texto)

Exploram as
4 3 1
Categoria imagens
4 (Imagem
interage
com o Não exploram as
0 _ _
texto) imagens

Total 23 13 (57%) 10 43%)


181

2.2. Análise de dados

De acordo com os dados apresentados, observamos que, dos 23


textos discursivos verbo-visuais presentes no LD, apenas 6 (26%)
exploram a imagem/ilustração em suas atividades de leitura,
representando 16 atividades. Portanto, das 143 atividades referentes ao
total de textos selecionados, 127 (88,8%) não exploram a
imagem/ilustração.
Vale salientar que em todos os textos selecionados, a autora
oferece ao professor sugestões de ações direcionadas à leitura, que
levam os alunos a refletirem sobre o texto, antes mesmo da leitura
propriamente dita, visando contribuir para uma leitura mais
significativa.
Algumas dessas sugestões são direcionadas a exploração da
imagem/ilustração pelo aluno, à medida que este é levado a observá-la,
relacionando-a ao texto verbal.
No entanto, observamos que as sugestões direcionadas à
exploração da imagem/ilustração se dão independentes dessa
exploração nas atividades de leitura. A história em quadrinhos, “O
pirulito”, de Eva Furnare, além de explorar a imagem/ilustração em suas
atividades, a autora do LD dá sugestões de ações voltadas a essa
exploração; sugere, por exemplo, que o professor proponha aos alunos
a observação dos quadrinhos e questione-os da relação existente entre
eles, chamando também a atenção para a expressão da personagem
(bruxinha), e etc. Veja:
182

Já no texto “Brinquedos”, a autora do LD sugere ao professor que


antes dos alunos iniciarem a leitura do texto, peça-lhes para que
observem as fotografias dos brinquedos retratados, digam quais são, o
que têm em comum e qual a relação que eles imaginam que há entre as
imagens e o texto que vão ler. Nesse caso, não há exploração da imagem
em sua atividade de leitura. Observe:

Analisando por categoria, constatamos que as atividades que mais


exploraram a imagem foram as da categoria 4, justamente a que o texto
e a imagem já possuem uma relação de interação. Nesta categoria, dos
seus 4 textos, 3 (75%), além de explorarem a imagem, ainda oferecem
ao professor sugestões de ações de leitura direcionadas a essa
exploração. Veja o exemplo abaixo:
183

Já nos textos que remetem indiretamente à imagem (a imagem


apenas ilustra ou ilustra e influencia no entendimento), referentes às
categorias 2 e 3, 39% além de não explorarem a imagem em suas
atividades, neles, a autora também não oferece sugestões de ações de
leitura direcionadas a essa exploração, uma porcentagem considerável.
Logo abaixo estão exemplificados dois desses textos.
184

Vale salientar que, da categoria 1, só há um texto em que a imagem


não ilustra, ou seja, o texto não menciona nem direciona a leitura da
imagem, portanto não há relação entre as duas. Observe o texto abaixo,
o qual contempla o gênero bilhete:

Contudo, de acordo com os dados apresentados, observamos que


17 (74%) dos 23 textos não exploram a imagem/ilustra. E desses 17
textos, 8 (47%), além de não explorarem a imagem/ilustração em suas
atividades, a autora não oferece sugestões de ações voltadas a essa
exploração. Isso significa que, em 34,8% dos textos multimodais
analisados, a imagem assume função meramente ilustrativa.

Considerações finais

Com referência à mobilização das capacidades leitoras visuais, a


partir das atividades de leitura, podemos dizer que o material didático
não as efetiva em sua plenitude, embora apontem para um trabalho em
que a linguagem visual seja levada em consideração, conforme
indicaram os dados apresentados.
185

Belmiro (2003) apud Barros e Costa (2012), reflete sobre a


presença das imagens no livro didático, e tendo a educação visual como
parte do processo de formação cultural dos alunos, questiona se o livro
didático “conformado por interesses de diferentes ordens, como o
econômico, o político, além da comunidade que o faz existir, como o
público estudante, as editoras, entre outros, pode consagrar espaço para
a visualidade circundante, mantendo a vivacidade criadora da imagem”.
Baseado nessa reflexão da autora, podemos dizer que os dados
revelaram que, de modo geral, as imagens em textos multimodais
parecem incluídas no projeto gráfico do livro, até por exigência dos
critérios de avaliação do livro didático, porém poderiam ser mais
exploradas nas atividades de leitura propostas, de forma a contribuir
para desenvolver as capacidades leitoras de textos multimodais,
auxiliando, consequentemente, na compreensão do conteúdo.
Nessa perspectiva, observamos que o livro analisado deveria
contribuir com mais eficiência para o desenvolvimento das capacidades
específicas voltadas ao letramento multimodal dos estudantes.
Acreditamos que sejam necessárias atividades de leitura que se
proponham a ir além da leitura do verbal, dando oportunidade para que
os alunos se apropriem de diversas formas de letramento, de modo a
responder às exigências contemporâneas de leitura, posicionando-se de
maneira crítica nas mais variadas situações ou contextos.
Vale salientar, que a autora do livro didático em questão deveria,
a nosso ver, oferecer sugestões para o professor em todos os textos
multimodais verbo-visuais no que se refere à leitura da imagem,
associando-a ao texto verbal. De acordo com Barros e Costa (2012) “a
simples inserção do gênero não garante que o aluno observe a imagem,
associe-a aos conceitos estudados e signifique-a naquele contexto”.
No entanto, se o professor direcionar a leitura destes textos, a
partir da exploração de suas imagens, relacionando-as ao texto escrito,
além de contribuir para o letramento multimodal, possibilitará o
desenvolvimento das capacidades leitoras referentes aos textos verbais
186

escritos, na medida em que articula as linguagens visual e verbal,


formando leitores e produtores de textos competentes.

Referências

BELMIRO, C. A. Uma educação estética nos livros didáticos de português.


In: BARROS, C. G. P. de, COSTA, E. P. M. Os gêneros Multimodais em
livros didáticos: formação para o letramento visual? Bakhtiniana, São
Paulo, 7 (2): 38-56, Jul/Dez. 2012.
BRAIT, B. PCNs, gêneros e ensino de língua: faces discursivas da
textualidade. In: ROJO, R. H. (org.). A prática de linguagem em sala de
aula: praticando os PCN’s. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2000, p.15-
25.
BRASIL. Mistério da Educação e do Desporto. Secretaria da Educação
Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: língua portuguesa,
primeiro e segundo ciclo. Brasília: 1997.
BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos:
por um interacionismo sócio-discursivo. Trad. Anna Rachel Machado,
Pericles Cunha. SP: EDUC, 1999
DIONISIO, A. Gêneros Textuais e Multimodalidade. In: KAROWOSKI, A.
M., GAYDECZKA, B. e BRITO, K. S. (orgs). Gêneros Textuais: Reflexões
e Ensino. 4.ed. São Paulo: Parábola, 2011.
______. Multimodalidade Discursiva na Atividade Oral e Escrita. In:
MARCUSCHI, L. A. e DIONÍSIO, A. P. (horas.). Fala e Escrita. Belo
Horizonte: Autêntica, 2005. p. 177-204.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se
completam. São Paulo: Editora Autores Associados, 6ª edição, 1984.
HODGE, R., KRESS, G. Social Semiotics. London: Polity Press, 1988. In:
ALMEIDA, A. C. M. de. Recursos Multimodais como ferramenta de
interação e ensino da língua materna. Garanhuns – UAG, UFRPE;
IBGE, Censo Demográfico, Mapa do analfabetismo no Brasil, Brasília,
MEC/INEP, 2003.
187

JONES DIAZ, Criss; MAKIN, Laurie. Literacy as social practice. In:


KISHIMOTO, T. M. Alfabetização e letramento/literacia no contexto da
educação infantil: desafios para o ensino, para a pesquisa e para a
formação. Revista Múltiplas Leituras, v. 3, n. 1, p. 18-36, jan/jun. 2010;
KLEIMAN, A. B. (Org). Os significados do letramento: uma nova
perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado de
letras, 1995.
KLEIMAN, A; VIEIRA, J. A. “Novas tecnologias e subjetividades – o
impacto identitário das tecnologias da informação e comunicação
(Internet)”. In: SANTOS, J. M. dos. Letramento Multimodal e o texto em
sala de aula. 2006. 126 f. (Mestrado em Linguística) - Instituto de Letras,
UnB, Brasília.
KRESS, G. e VAN LEEUWEN , T. Reading images: The grammar of
visual design. 2.ed. London: Routledge, 2006.
MARCUSCHI, Luiz. Da Fala para a Escrita: atividades de
retextualização. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2003. 133 pp.
MAYER, R. Multimedia learning. In: BARROS, L. P. de. Capacidades de
leituras de textos multimodais. Cuiabá: EDUFMT, n. 19, 2009. pp. 161-
186.
MOREIRA, D.A. O Método Fenomenológico na Pesquisa. São Paulo:
Pioneira Thomson Learnig, 152p. 2004.
SOARES, M. B. Linguagem e escola: uma perspectiva social. In: SANTOS,
J. M. dos. Letramento Multimodal e o texto em sala de aula. 2006. 126
f. (Mestrado em Linguística) - Instituto de Letras, UnB, Brasília.
SOARES, M. B. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte:
Autêntica, 1998
SOARES, M. B. Língua escrita, sociedade e cultura: relações,
dimensões e perspectivas. In: Revista Brasileira de Educação, n. 10, 1995,
pp. 5 – 16.
STREET, B. V. Social literacies: Critical aproaches to literacy in
development, ethnography and education. In: SANTOS, J. M. dos.
Letramento Multimodal e o texto em sala de aula. 2006. 126 f.
(Mestrado em Linguística) - Instituto de Letras, UnB, Brasília.
188

VAN LEEUWEN, T. Ten reasons why linguistics should pay attention to


visual communication. In: BARROS, L. P. de. Capacidades de leituras
de textos multimodais. Cuiabá: EDUFMT, n. 19, 2009. pp. 161-186.
VIEIRA, J. A. Práticas sociais de letramento e ensino crítico em língua
portuguesa. In: SILVA, D. E. G; VIEIRA, J. A. Práticas de Análise do
Discurso. Brasília: Plano, 2003.
VIEIRA, J. A. Novas perspectivas para o texto: uma visão multissemiótica,
2006. No prelo. In: SANTOS, J. M. dos. Letramento Multimodal e o
texto em sala de aula. 2006. 126 f. (Mestrado em Linguística) - Instituto
de Letras, UnB, Brasília.
189

A IMPORTÂNCIA DO APONTAR E DAS HOLÓFRASES EM CENAS DE


ATENÇÃO CONJUNTA

Thalita Maria Lucindo Aureliano (UFPB/CNPQ/PROLING)


(thalitamaria.a@gmail.com)
Kátia Araújo de Lima (UFPB/CNPQ/PROLING)
(kattyapreta@hotmail.com)
Valdenice Pereira de Lima (UFPB)
(vallima37@hotmail.com)

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo primordial compreender


a relação entre a emergência do apontar e das holófrases para o
processo de aquisição da linguagem, bem como relacionar a tipologia de
apontares que surgem na primeira infância com os fragmentos
enunciativos do bebê. Foi tomado como aparatos teóricos principais:
Tomasello (2003) que afirma haver um período de desenvolvimento
cognitivo intenso das crianças a partir dos nove meses, no qual podemos
supor que o infante começa a se inserir em práticas intersubjetivas
envolvendo o outro como interlocutor em cenas de atenção conjunta e
dessa forma passando a participar de maneira interativa. Utilizamos
Kendon (1982) com seu contínuo estabelecido entre gesto e fala,
Cavalcanti (1994) com a classificação e importância dos tipos de apontar
do infante, e Bruner (1975, 1983) com o estudo da relação entre gesto e
fala, nesse caso, a holófrase. Nesse trabalho foram utilizadas algumas
díades (dupla: mãe-bebê) presentes no corpus do LAFE (Laboratório da
Fala e da Escrita) da UFPB, que contém cerca de nove díades compostas
por crianças que vão de 0 a 36 meses. Os corpora selecionados são de 2
díades mãe-bebê entre 09 e 24 meses: a díade A composta por crianças
entre 11 e 21 meses, do sexo feminino e a díade B compostas de crianças
entre 0 e 24 meses, do sexo masculino. O estudo é longitudinal e focado
em uma análise interpretativa. Ao que concerne à atenção conjunta,
percebe-se que essa ocorre principalmente depois dos 9 meses, por isso
avaliamos infantes posteriores a essa faixa etária. As discussões são em
190

volta da percepção de que o gesto apontar surge juntamente com a


holófrase, sendo esse gesto necessário para o processo de
desenvolvimento da criança.

PALAVRAS- CHAVE: apontar, atenção conjunta, aquisição da


linguagem, holófrase.

a) Introdução

De acordo com Kendon (1982) a investigação sobre gestos dentro


de uma perspectiva linguística pouco se desenvolveu até que os estudos
de Chomsky trouxessem os desaparecidos interesses no estudo da
linguagem gestual. E, sendo uma consequência da análise da língua
enquanto parte de uma ciência mental, hoje são revigorados os estudos
dos gestos por parte daqueles que se interessam pelo estudo da língua.
Assim, se a partir de Chomsky a língua é posta como uma atividade
cognitiva, e, se as expressões gestuais estão intimamente envolvidas em
atos da expressão linguística falada, é necessário observar os gestos
como parte das atividades cognitivas.
Na aquisição da linguagem, autores como Bruner (1975, 1983)
dedicou-se ao estudo da relação entre gesto e fala, mas concebendo-o
como modalidades comunicativas de períodos distintos na aquisição da
linguagem. Assim, o uso do gesto seria característico do chamado
período pré-linguístico da criança e desapareceria em função da
emergência da fala, do sistema linguístico.
Desde o nascimento os bebês ficam expostos a situações de
interações junto com os adultos que os rodeiam. Mesmo sem saber
expressar verbalmente os seus desejos, os bebês interagem com os
cuidadores através de gestos, sendo o mais frequente o gesto de apontar.
Porém, os gestos nem sempre estão sozinhos, esses atos estão
acompanhados com as holófrases. E é sobre essa relação o foco desse
artigo.
191

b) A revolução dos nove meses

Tomasello (2003) chama o desenvolvimento das crianças entre 9


e 12 meses de revolução dos nove meses, pois é nesse momento que
indica como os bebês humanos entendem sobretudo, o mundo social em
que está inserido.
Em um primeiro momento, do nascimento até por volta dos 9
meses de idade, o bebê realiza interações diádicas, face a face, com o
cuidador. A partir dos 9 meses, ele passa a envolver-se em interações
triádicas bebê-cuidador-objeto. Agora, o cuidador e bebê, além de se
engajarem em interações diádicas, passam também a incluir um objeto
em suas interações, compartilhando a atenção com relação a ele.
Nesse processo, o bebê compreende o outro como agente
intencional e tem a capacidade de perceber que os personagens têm
papéis intercambiáveis dentro da interação. Para haver atenção
conjunta e intersubjetividade, é imprescindível que o cuidador e o
infante estejam de fato observando o mesmo objeto durante um
determinado espaço de tempo. Dentro dessas cenas, para Tomasello
(2003) o gesto de apontar de uma criança tem como intuito direcionar
a atenção do outro, promovendo assim interação entre os sujeitos. O
termo atenção conjunta designa todas as habilidades e interações
sociais.

c) A importância do apontar

A literatura em aquisição da linguagem no que se diz respeito à


atividade referencial destaca o gesto de apontar como o mais explícito
comportamento gestual, utilizado pela criança, para fazer referência a
um dado objeto no mundo.
Nos estudos de Cavalcante (1994), o movimento gestual se traduz
como um ato de identificação, a autora revela que esse gesto é utilizado
pela criança para apresentar seu desejo diante de um objeto.
Concebendo esse gesto de apontar como uma forma da criança chamar
192

a atenção do outro, Tomasello (2006) esclarece que o apontar da criança


tem a função de direcionar a atenção do outro, para o objeto da atenção
conjunta, promovendo a interação entre adulto e criança.
Classificação de Cavalcanti (1994) dos tipos de apontar presentes
na aquisição:
Extensão do braço e do dedo indicador em
Apontar convencional
direção ao objeto
Dedo indicador e dedo mediano na posição
Apontar com os dois dedos
semifletida
Indicador, dedo mediano e anelar na
Apontar com três dedos
posição semifletida
Todos os dedos estendidos, com o
Apontar com a mão toda indicador na posição maior de extensão em
direção aos objetos
Dedo indicador encontra-se semifletido em
Apontar semi-extendido
direção ao objeto
Dedo indicador tocando no objeto
Apontar exploratório
apontado
Função do dedo indicador é trocada pelo
Apontar com objetos entre os dedos
objeto que está entre os dedos
Apontar com dois braços para Apenas um dos apontares está direcionado
direção opostas para o objeto

d) O gesto de apontar e a holófrase no processo de Aquisição da


Linguagem

McNeill (1985) propõe que gesto e fala se encontram integrados


numa mesma matriz de produção e significação, afirmando que "a
ocorrência de gestos ao longo da fala implica que durante o ato de fala
dois tipos de pensamento, imagístico e sintático, estão sendo
coordenados". Isto é, são constitutivos de um único sistema linguístico.
Buscando uma definição para gesto, McNeill (2000) assegura ser
este é um termo que necessita explicação, uma vez que não temos gesto
no singular, mas gestos, no plural. O autor utiliza o termo no plural, pois
há diversos momentos em que é necessário diferenciar de outros
193

movimentos nomeados de gestos. Corroborando assim, as informações


utilizadas por Kendon (1982) em seu contínuo.
Kendon (1982) organiza seu contínuo a partir de quatro relações
estabelecidas entre gesto e fala. Esse contínuo pode ser observado na
tabela apresentada a seguir.

Tabela 1: Contínuo de Kendon extraído de McNeill (2000)

Ao analisarmos os tipos de gestos presentes neste contínuo da


esquerda para a direita (Gesticulação – Pantomimas – Emblemáticos -
Língua de Sinais) iremos perceber que a presença obrigatória de fala
diminui, enquanto a presença de propriedades linguísticas aumenta e os
gestos individuais são substituídos por aqueles socialmente regulados.
Entendemos por fala toda forma de produção discursiva com fins
comunicativos na modalidade oral, sem a necessidade de uma
tecnologia além do aparato disponível pelo próprio ser humano.
Caracteriza-se pelo uso da língua na sua forma de sons proferidos e
significativos, bem como aspectos prosódicos e uma série de recursos
expressivos de outra ordem: gestualidade, movimentos corporais,
mímica (MARCUSCHI, 2005).
Há pesquisas que vinculam a ontogênese do apontar à emergência
de alguns termos na língua como ‘dêixis’ e ‘atos de fala’ (Bates, Camaioni
194

& Volterra, 1987). Esta perspectiva concebe a vinculação deste e de


outros gestos, no período de transição para a linguagem, como
precursores dos performativos da língua (declarativos e imperativos).
Tais gestos recebem a seguinte nomenclatura: protodeclarativos: são
caracterizados quando a criança destaca um objeto no mundo para seu
parceiro, e protoimperativos: são caracterizados quando a criança usa o
adulto para obter um dado objeto. A emergência de gestos
protodeclarativos e proto-imperativos é notada quando a criança
começa a entender que suas próprias ações não são a origem de todos
os eventos no mundo.
No que diz respeito às holófrases, os estudos de Scarpa se
destacam. Segundo Scarpa (2009), o termo holófrases designa os
primeiros enunciados da entrada da criança na sua língua materna. Na
produção da holófrase temos a presença de estruturas predicativas nas
quais, um dos termos é verbal e o outro buscado no contexto linguístico
mais amplo, através de gestos corporais (olhar, apontar, por exemplo).
Aliar as holófrases aos primeiros usos gestuais na infância
permite observar a emergência de certos gestos tais como emblemas e
pantomimas. Estes gestos são coincidentes com as primeiras produções
verbais holofrásticas, e num momento mais adiante, o surgimento da
gesticulação – que por se relacionar ao fluxo da fala - vem aparecer por
volta dos 15/18 meses, quando a criança já apresenta maior
encadeamento verbal e sua produção de fala envolve blocos prosódicos
maiores.
Como pode ser observado, o lugar privilegiado da holófrase
possibilita a compreensão do cruzamento dos elementos linguísticos
que permitem visualizar o processo multimodal na aquisição da
linguagem.

e) Metodologia

Para esse artigo analisamos algumas díades (dupla: mãe-bebê)


presentes no corpus do LAFE (Laboratório da Fala e da Escrita) da UFPB,
195

que contém cerca de nove díades compostas por crianças que vão de 0 a
36 meses.
Os dados correspondem a sessões quinzenais gravados em
videocassete, com duração média de vinte minutos cada, e em contexto
o mais naturalístico possível, na casa da díade. No intuito de dar mais
visibilidade ao funcionamento multimodal ao longo da primeira
infância, período que corresponde aos três primeiros anos de vida da
criança, organizamos os dados em grupo, como é apresentada na tabela
a seguir.

Tabela 2: Organização das Díades do LAFE

Grupo 1- Díades B; C; H : Faixa etária 0 a 24 meses


Grupo 2 – Díades A; E; I: Faixa etária 11 a 21 meses
Grupo 3 – Díades D; F; G: Faixa etária 24 a 32 meses
196

No artigo é apresentado um estudo longitudinal focado em uma


análise interpretativa, de 2 díades mãe-bebê entre 09 e 24 meses. A
díade A composta de crianças entre 11 e 21 meses, do sexo feminino e a
díade B composta de crianças entre 0 e 24 meses, do sexo masculino.

f) Discussão dos resultados

Fragmento 1
Díade B, idade 23m e 4d
Contexto: Mãe e criança passeando na praia.

Mãe Bebê

Ou mãi... ôta
1 [calada] Vou sentá... vou me sentá (Bb aponta para a
cadeira)
Tá cansadu.
2 [Bb não fala nada]

Mais uma vez podemos perceber que o gesto de apontar surge


juntamente com a holófrase. A criança chama a atenção da mãe para um
objeto no mundo que é do seu interesse, no fragmento, a cadeira,
ressaltando a perspectiva do uso dos performativos da língua, neste
caso, o bebê faz uso do performativo no turno 1. A mãe por sua vez
corresponde ao gesto da criança, respondendo brevemente no turno 2.
Com isso, vemos que esses performativos devem ser
caracterizados a partir da interação mãe/bebê, pois, segundo Dore
(1973) sua caracterização é determinada a partir da interpretação dada
pelo parceiro adulto ao comportamento gestual deflagrado pela criança.
Desta forma, o “status” do comportamento deflagrado vai depender da
interpretação que o adulto der a ele.
197

Fragmento 2:
Díade A idade de 12 meses
Mãe e bebê sentados no chão.
MÃE BEBÊ
1 Cadê u umbigu de vitória? (aponta para o umbigo da mãe)
2 U meu não, u teu! Aqui, ó!
(aponta para o umbigo do bebê)
(olha e aponta para o próprio umbigo)

3 Cadê u umbigu? Eita! Achô!

Classificando o tipo de atenção conjunta presente nesse episódio,


pode-se notar que se trata de uma atenção de acompanhamento, a qual
se dar mediante o acompanhamento pelo bebê para algo destacado pela
mãe (Tomasello 2003). Voltando-se para esta cena, podemos perceber
que é a mãe que chama a atenção da criança para o objeto da atenção
conjunta, que no caso se trata do próprio umbigo do bebê. Ao despertar
a criança para a interação com a pergunta: “Cadê u umbigu de vitória?, a
mãe, provavelmente tem o propósito de inserir o bebê numa situação
interativa, na qual a criança reconheça seu “eu”, sua subjetividade, a qual
é reforçada com a reposta da mãe: “U meu não, u teu! Aqui, ó!”ao gesto
produzido pelo bebê no turno 2. A partir dessa informação, o bebê
reconhece que o umbigo que ele tem que olhar não é o de sua mãe, mas
o dele próprio. Com isso, a criança passa a ter outro foco de atenção, o
que anteriormente era o umbigo da mãe o objeto observado, logo após
passa a ser o umbigo do bebê.
Sobre os gestos produzido pela criança neste fragmento, no turno
1 e 2, nota-se que se trata, segundo classificação de Cavalcante (1994),
de um apontar convencional, o qual é utilizado pela criança com a
intenção de identificar algo. No exemplo acima, a criança usa esse gesto
para identificar no turno 1 o umbigo da mãe e logo após, no turno 2, a
mesma identifica o seu próprio umbigo, mantendo dessa forma, a
interação com a mãe.
198

g) Considerações finais

Percebemos através dos fragmentos aqui apresentados nesse


artigo, que o intercruzamento entre o aspecto multimodal do olhar, se
faz presente nas manifestações interativas da criança.
Ao que concerne à atenção conjunta, percebe-se que esta ocorre
principalmente depois dos 9 meses do infante. A atenção conjunta é um
dos recursos utilizados pela criança com o intuito de se inserir
socialmente, através de momentos interativos com o cuidador. Para isso
a criança utiliza o olhar como elemento de efetivar a atenção conjunta, a
qual se realiza mediante a interação da tríade: cuidador- bebê-objeto.
Ao que diz respeito a produções holofrásticas, podemos notar que
esses enunciados de apenas uma palavra ajudam a consolidar a
manifestação gestual produzida pela criança, o que nos leva a acreditar
que esses enunciados estão ligados a outros aspectos multimodais,
principalmente os gestos.

h) Referências

BATES E, O’CONNELL B, SHORE C. Language and communication in


infancy. In: Osofsky J, editor. Handbook of infant development. New
York: Wiley; 1987.
BRUNER, J. The ontogenesis of speech acts. In: Journal of child
language. Vol. 2 Nº 1. Cambridge: Cambridge University Press, 1978.
______. Early social interaction and language acquisition. In H. R.
Schaffer (Org.), Studies in mother-infant interaction (pp. 271-289). New
York: Academic Press, 1980.
CAVALCANTE, M. C. B. O gesto de apontar como processo de co-
construção na interação mãe-criança. Dissertação de
Mestrado/UFPE. Recife, 1994.
DORE, J. Holophrases. Speech acts and language universals. Journal of
Child Language ed. 2, 21-40, 1973.
199

KENDON, A. The Study of Gesture: some remarks on its history.


Recherches sémiotiques/semiotic inquiry 2: 45-62, 1982.
MARCUSCHI, L. A. Oralidade e Letramento como práticas sociais. In
MARCUSCHI, L. A e DIONISIO, A. P. (Orgs.) Oralidade e Escrita. Belo
Horizonte, Autentica/MEC/CEEL, 2005.
MCNEILL,D. So you think gestures are nonverbal? Psychological
Review. Vol 92(3) 350-371, Jul., 1985
SCARPA, E. M. O lugar da holófrase nos estudos de aquisição de
linguagem. In: Cadernos de Estudos Linguísticos. Campinas, 51(2): 187-
200, Jul./Dez. 2009.
TOMASELLO, Michael. Atenção conjunta e aprendizagem cultural. In:
Origens Culturais da Aquisição do Conhecimento Humano. Tradução:
Cláudia Berliner. Martins Fontes – São Paulo: 2003.
______. 12- and 18- month- olds point to provide information for
others. Journal of Cognition and Development, P: 173-187. 2006.
200

INTERAÇÃO SOCIAL DE UM ADOLESCENTE COM DEL

Liliane Carvalho Félix Cavalcante


Francisco das Chagas de Sousa
Henrique Miguel de Lima e Silva 1

RESUMO: O presente artigo, identificado como um estudo de caso visa


investigar como se dão as ocorrências interacionais de um DEL
adolescente dento da sua comunidade linguística. Para isso, observamos
o processo de construção mútua do léxico compartilhado até a
compreensão plena do discurso pelos atores envolvidos. Percebemos as
questões de interação pela linguagem tendo como base os pressupostos
teóricos de Bakhtin (1992) e Vygotsky (1998), entendemos a linguagem
como ação conjunta que requer partilha de atenção comungando das
teorias sócio-cognitivistas de Tomasello (1999), e ainda, bebendo da
fonte de Tomasello (2003) admitimos essa linguagem como habilidade
unicamente humana que permite partilhar intenções com outros. Com
essa base, discutimos o corpus coletado e apontamos algumas
implicações das teorias mencionadas. Para subsidiar a materialidade
linguística do estudo, transcrevemos um momento de interação do DEL
com um familiar mediado por uma ligação telefônica de um celular e
observamos o desenvolver das enunciações da díade. Constatamos que
dentro da fala do DEL existem momentos compreensíveis e outros
ininteligíveis, porém esses últimos foram tranquilamente
compreendidos e traduzidos pelo familiar. A partir desse estudo, cremos
que o ente familiar compreende o discurso do DEL com maior eficiência
devido a suas relações dialógicas cotidiana. Discutimos ainda a
constituição de um código específico dentro da comunidade familiar do
DEL onde todos os representantes do nicho ontogenético participam e
contribuem com a composição do léxico, e é esse fator que permite a
ativação do DEL dentro das atividades colaborativas de atenção

1 Alunos do programa de pós-graduação em Linguística - UFPB.


201

conjunta, perspectivação e intencionalidade compartilhada e o torna


membro ativo da família.

PALAVRAS-CHAVE: Interação, DEL, intencionalidade, atenção conjunta.

ABSTRACT: This article identified as a case study aims to investigate the


interactional occurrences of a SLI (Specific Language Impairment)
teenager within his community language. For this, we observe since the
mutual building process of the shared lexicon until the discourse
comprehension process by the involved actors. We perceive the
interaction issues through the language based on Bakhtin’s (1992) and
Vygotsky’ (1998) theoretical assumptions, we understand language as
joint action which requires sharing of attention combined with
Tomasello’s (1999), social cognitive theories and we still founding on
Tomasello (2003), we understand language as uniquely human ability
that lets you to share with other intentions. On this basis, we discuss the
corpus collected and appoint some implications of the mentioned
theories. To support the language study materiality, we transcribed a
moment of interaction with a family of a SLI teenager mediated by a
phone call from a cell and we observed the development of the dyad
expressions. We note that in the SLI speech there are other moments
understandable and unintelligible, but, the last ones were quietly
understood and translated by the family. From this study, we believe
that the family member comprises the SLI speech with a greater
efficiency due to his/her dialogical relationships everyday. We also
discuss the formation of a specific code within the SLI community
familiar where all the ontogenetic niche representatives participate and
contribute to the lexicon composition, and it is this factor that allows the
SLI activation within the collaborative activities of joint attention, and
perspectives and intentionality shared which make him/her a family
active member.

KEYWORDS: Interaction, DEL, intentionality, joint attention.


202

Introdução

O distúrbio específico de linguagem, chamado DEL, é um quadro


patológico que se caracteriza pela presença de alterações linguísticas
(fonológicas, semânticas, sintáticas e narrativas), as quais, pessoas que
portam DEL apresentam dificuldade na aquisição da linguagem e no
desenvolvimento das habilidades linguísticas no decorrer da sua
existência.
Não se sabe ao certo a origem do problema, segundo Esteves
(2013) foram realizados alguns estudos com a utilização de
neuroimagem que parecem apontar para uma influência genética como
causa do distúrbio, devido às diferenças neuroanatômicas e
neurofuncionais, porém estes achados ainda não são conclusivos e
novos testes têm sido desenvolvidos.
Ainda assim, de acordo com Bishop & Snowling (2004), a taxa de
prevalência desse distúrbio gira em torno de 3 a 10% na população em
geral, número que justifica nosso interesse pelo tema e a nossa
contribuição com o estudo.
As pesquisas em torno do assunto têm sido conduzidas por
profissionais como fonodiólogos, psicólogos, linguistas, pediatras,
neurologistas, entre outros com diferentes focos. Assim,
complementando o rol de profissionais interessado no assunto,
invocando as ciências da linguagem observamos a questão da interação
social de um adolescente com DEL nas suas atividades comunicativas.
Os primeiros estudos sobre distúrbio específico de linguagem,
segundo Befi-Lopes (2004), foram realizados pelo Instituto da Criança
Afásica, nos Estados Unidos, na década de 1960, época em que os
estudos da Linguística passaram a fazer parte do arcabouço teórico da
Fonoaudiologia. Nos dias atuais, ainda não existem muitos trabalhos
acerca do assunto, que pode ser considerado novo, uma vez que grande
parte das pesquisas são datada a partir de 2004.
Assim sendo, a relevância do estudo aqui em questão está na
contribuição com o tema, visto a partir de lentes da linguística sócio
203

cognitivista. A expectativa está em conhecer um pouco mais sobre a


aquisição da linguagem a partir da patologia DEL.
Para tanto, este estudo, tem como objetivo revisitar alguns
conceitos de Vygotsky, Bakhtin e Tomasello para entender um pouco
mais a prática sócio-interacionista-cognitivista e os elementos
pertencentes a interação nas atividades comunicativas num processo
mútuo em que os integrantes, ainda que patológicos, alcancem a
plenitude no seu processo de socialização.

Referencial Teórico

O artigo aqui apresentado fixa suas bases teóricas em Bakhtin


(1992), Vygotsky (1998) e outros autores que compartilham das ideias
sócio-interacionaistas desses; e ainda em Tomasello (1999, 2003) e
outros estudiosos que assumem a hipótese sócio-cognitiva da aquisição
da linguagem.

Interação pela Linguagem

A linguagem pode ser considerada como área de convivência do


sujeito histórico e social, é nela e através dela, que os sujeitos se
interagem se compreendem e configuram sua existência. Tal fenômeno
se exibe como princípio do desenvolvimento humano, tendo em vista o
processo de inter-relação entre o meio social e as bases biológicas dos
seres humanos.
Para Vygotsky (1998), essa relação é dialética no sentido que o
meio afeta o indivíduo, provocando mudanças que serão refletidas
novamente no meio, recomeçando o processo através de um ciclo que se
assemelha a uma espiral ascendente. Também para Bakhtin (1992), a
linguagem só poder ser analisada, quando considerada como fenômeno
sócio ideológico e apreendida dialogicamente no fluxo da história.
Nesta ótica, a interação é tida como ação conjunta recíproca entre
dois ou mais participantes que produz mudanças tanto nos sujeitos
204

como no contexto no qual a interação se desenvolve, e ainda, implica na


participação ativa dos sujeitos num processo de intercâmbio, ao qual
aportam diferentes níveis de experiências e conhecimentos.
Desse modo, a evolução dos sujeitos ocorre na troca enunciativa
onde o aspecto mais importante é a modificação do comportamento dos
indivíduos envolvidos, como resultado do contato e da comunicação que
foi estabelecida entre eles.
Para Bakhtin,

“A verdadeira substância da língua não é constituída por


um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela
enunciação monológica isolada, nem pelo ato
psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social
da interação verbal, realizada através da enunciação ou das
enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade
fundamental da língua”. (BAKHTIN, 1992, p. 123).

Ainda para o autor, a categoria básica da concepção de linguagem


é a interação verbal, cuja realidade fundamental é seu caráter dialógico,
de modo que toda enunciação é um diálogo e faz parte de um processo
de comunicação ininterrupto que jamais opera isoladamente; ao
contrário, todo enunciado pressupõe aqueles que o antecederam e todos
os que o sucederão sendo um elo de uma cadeia (BAKHTIN, 1992).
Já para Vygotsky (1998), o homem é um ser eminentemente
social, que se constitui na e pela interação humana, em situações
concretas de vida. Nesse sentido, Rego (1995) diz que as características
de cada indivíduo são construídas através de trocas recíprocas entre
este e o meio, sendo que cada aspecto influi sobre o outro. Neste ínterim,
Vygotsky (1998) acredita que as características individuais e até mesmo
suas atitudes individuais estão impregnadas de trocas com o coletivo, ou
seja, mesmo o que tomamos por mais individual de um ser humano foi
construído a partir de sua relação com o indivíduo.
Assim, sintonizando os autores da teoria sócio-interacionista,
cremos que a linguagem é de fato função da interação ou a interação está
205

a serviço da linguagem, ou mesmo, essas duas instâncias trabalham


juntas para a manutenção e o desenvolvimento da sociedade humana
em todos os seus estágios.

Interação Social e acesso a linguagem

Vygotsky (1998) assinala que a interação social é o espaço de


constituição e desenvolvimento da consciência do ser humano desde
que nasce. Assim, o bebê humano, ao nacer,

“apresenta comportamentos que lhe permite agir, procurar


e estabelecer interações com o seu ambiente, visto que é
programado biologicamente para a busca de interação com
os seus cuidadores, que é o que garante a sua sobrevivência
e desenvolvimento. Afinal, como ele não está com os seus
sentidos plenamente formados, não consegue andar, falar,
não se protege contra o frio e nem é capaz de saciar sua
fome sozinho, precisando que uma outra pessoa satisfaça
suas necessidades”. (CORREIA, 2005, p. 21).

Tomasello (2003), assinala que bebês humanos são “ultra-sociais”


por desenvolverem comportamentos interativos com seus cuidadores já
nos primeiros momentos de vida. A interação inicial do bebê é chamada
de protoconversa o que o autor define como “interações sociais nas
quais o pai e o filho concentram um no outro a atenção – muitas vezes
num face-a-face que inclui olhar, tocar, vocalizar – de uma maneira que
serve para expressar e compartilhar emoções básicas” (TOMASELLO,
2003, p. 81).
Para Coll, Palácios & Marchesi (1995), o recém-nascido nasce pré-
orientado socialmente, em especial, em relação à sua mãe, que interage
com ele desde a gestação. É através da mãe que o recém-nascido recebe
sua primeira influência social, sendo natural que os primeiros sentidos
do bebê sejam para ela.
Assim, os humanos são naturalmente interativos e aptos a
206

desenvolver linguagem, desde seus primeiros momentos de vida


aprimorando essa habilidade no decorrer de sua existência. Tal
habilidade é vital para os humanos e determina seu ingresso na ordem
sociocultural em que se encontram.

Linguagem, atenção conjunta e intencionalidade

Tomasello (2003) afiram que um ser humano só consegue


participar das convenções sociais de onde vive quando compreende que
todos os outros seres são semelhantes a ele, isto é, que todos têm
intenções, sentimentos e objetivos.
Ainda segundo Tomasello (1999), a interação está na origem de
tudo. Os sujeitos, como agentes intencionais, constroem suas
identidades através do outro, projetando-se em contraparte, e desta
forma, experienciam diversos lugares discursivos no trabalho de defesa
e proteção da face.
O desenvolvimento cultural da espécie Homo sapiens, para
Tomasello (1999), está em sua capacidade de assimilar e transformar
padrões culturais por meio da troca de experiências decorrente da
interação social, uma vez que é na interação cotidiana que ocorre a
transmissão de conhecimento. Assim, o centro da cognição humana
seria a interação mediada pela linguagem porque é na linguagem que
está o “existir” e é por meio da linguagem que o homem compreende e
representa o mundo em sua volta (TOMASELLO, 1999).
Tomasello (2003, p.227) considera que “processos sociais e
culturais de um tipo comum a todas as culturas são parte integrante e
essencial das vias ontogenéticas normais de muitas das mais
fundamentais e universais habilidades cognitivas dos humanos,
sobretudo aquelas únicas da espécie”. Considera também a linguagem,
assim como outros elementos culturais, como uma instituição humana
que foi se desenvolvendo historicamente a partir de relações e
atividades sociocomunicativas. O autor nomeia estas relações e
atividades sociocomunicativas como “...várias atividades comunicativas
207

não-linguísticas e de atenção conjunta de que participam crianças em


idade pré-lógica e adultos” (Tomasello, 2003, 132).
Tais atividades comunicativas são estudadas para compreender
as origens da comunicação verbal dos humanos porque o
desenvolvimento da linguagem está associado a ocorrência de cenas de
atenção conjunta corriqueiras, e dentro dessas, as demais formas de
comunicação não-verbal como: apontar, direção do olhar, apontar e
seguir olhar, entre outras. Essas atividades comunicativas ajudam os
iniciantes na linguagem a identificarem objetos e seu referentes
linguísticos.
Já Snow (1989), percebe a atenção conjunta como um evento
potencialmente facilitador da linguagem por favorecer o
estabelecimento de momentos em que uma atividade é compartilhada
mutuamente pela díade em que o adulto e a criança podem dirigir
atenção um do outro e são essas atividades que habilitam os infantes a
tomarem iniciativas nas interações sociais e exprimir suas intenções no
ato comunicativo.
Tomasello (2003) diz ainda que entre os seres vivos, somente os
seres humanos desenvolveram a faculdade de perceber a
intencionalidade, ou mesmo, “... chega a entender o significado
intencional do uso da ferramenta ou prática simbólica...” (TOMASELLO,
2003, p. 6). O autor ressalta também que através da percepção da
intencionalidade podemos perceber o outro como nosso semelhante
direto.
Dessa forma, o homem dentro do seu domínio cognitivo é capaz
de se ver através do outro, de partilhar intenções e desenvolver ações
conjuntas, e são essas ferramentas interativas unidas aos aparatos
linguísticos e cognitivos que vão permitir a organização social em que
nos encontramos e a perspectivação que temos de todas as coisas.
208

Características do DEL

Distúrbio específico de linguagem

O Distúrbio específico de Linguagem – DEL, segundo (SAWASAKI,


2013), se caracteriza como um grupo de alterações de linguagem
heterogêneas que se manifesta no desenvolver da criança. O DEL não
pode ser justificado por deficiência intelectual, sensorial ou motora,
lesões cerebrais evidentes, carência sócio afetiva ou transtornos
psicopatológicos. “O distúrbio compromete uma ou todas as dimensões
linguísticas, o que não significa que outras alterações menos relevantes
não possam acompanhar o quadro, como dificuldade em alguma
habilidade visuomotora, hiperatividade e desatenção, em geral em grau
inferior às alterações de linguagem” (SAWASAKI, 2013, p.19).
Esse distúrbio se manifesta de diferentes formas e se modifica no
decorrer do desenvolvimento da pessoa, podendo exercer
manifestações como: simplificações fonológicas, frequentemente
desviantes, ou seja, simplificações não observadas no processo normal
de aquisição de linguagem; vocabulário restrito, com uso demasiado de
dêiticos, perífrases e gestos representativos; dificuldade em adquirir
novas palavras; estruturação gramatical simplificada e pouco variada;
ordenação de palavras de forma não usual. (SAWASAKI, 2013)
Assim, crianças identificadas com DEL podem apresentar: início
da fala após dois anos de idade, produção imatura ou desviante dos sons
da fala, omissão do tempo passado ou de verbos auxiliares, estruturas
gramaticais simplificadas, vocabulário restrito, deficiente memória de
curto prazo, dificuldades em compreender uma linguagem mais
complexa e falas rápidas.
Segundo Hage e Guerreiro (2004), o distúrbio possibilita ainda
deficiências como: fala ininteligível, dificuldade na aquisição de novas
palavras, ordenação não usual de palavras e dificuldades de
compreensão de sentenças.
Com tudo, o diagnóstico do DEL é dado observado os quesitos
209

apresentados acima, podendo o portador apresentar a totalidade dos


itens como também parte deles. A verdade é que dentro das pesquisas
realizadas a respeito do tema, ainda não se tem material suficiente para
diagnosticar a origem do distúrbio; porém, os pesquisadores levantam
hipóteses como: dificuldade estritamente de memória de trabalho,
déficits de atenção ou de vocabulário, ou mesmo, déficits de
compreensão fonológica e lexicais, entre outros (ESTEVES, 2013).
Assim sendo, qualificando o distúrbio específico de linguagem
resumidamente podemos conclui “que se trata de um distúrbio que afeta
diferentes domínios da linguagem de forma específica, havendo
discrepância entre as habilidades linguísticas e outras habilidades
cognitivas” (ESTEVES, 2013, p. 61).

A interação do DEL na sua comunidade linguística

Após caracterizarmos o distúrbio específico de linguagem,


podemos então introduzir nosso estudo da interação linguística do DEL
aqui em questão. Falamos, em nosso estudo de caso, de um adolescente
de 14 anos com um problema de linguagem identificado como DEL. O
nosso X DEL se enquadra nas características do distúrbio apontadas
Sawasaki (2013) por não possuir problemas auditivos ou lesões
cerebrais e ainda transtornos psicopatológicos e continua no enquadre
por possui grande parte das características citadas item 2.1 que
discriminam o DEL.
O adolescente X é uma pessoa extremamente interativa que se
comunica em todo meio social em que é submetido, porém com algumas
dificuldades devido a limitação do léxico e regressão dos enunciados,
mas se apoia nos dêiticos e nas perífrases e outros artefatos
comunicativos para se fazer entender. É aluno regular da escola
propedêutica, estando quatro anos atrasados dos demais alunos com a
mesma idade, frequentou a catequese da igreja católica recentemente e
recebeu o sacramente inerente ao curso ofertado pela igreja.
Nesse trabalho, procuramos focar a iteração do adolescente
210

dentro da sua comunidade linguística que é a sua família. O menino


possui estrutura familiar completa tendo pai, mãe, irmão, tios, avós e
primos e possui também interação frequente com todos os membros da
família.
No que tange a família, incluindo todos, tem facilidade de
interação com o DEL devido possuírem um acervo de léxico próprio,
desenvolvido através de interpretações das emissões do DEL. Assim, a
família ao se reportar ao DEL prefere fazer uso desse novo vocabulário
a usar as palavras tradicionais. Curioso também é que ao falarem do
DEL, mesmo sem a presença dele, eles também nomeiam termos
conforme o léxico do menino.
Por fim, o adolescente X DEL é membro natural da comunidade
linguística em que vive por exercer interação plena nos termos de
Bakhtin e Vygotsky e ainda, lembrando um pouco de Tomasello, é
participante de cenas de atenção conjunta nas quais ele expressa sem
muitos problemas sua intencionalidade assim como identifica a
intenção do outro.

Descrição metodológica

Para proceder a breve investigação, optamos por um estudo de


caráter qualitativo (MINAYO, 2006). Os resultados obtidos
caracterizam-se por bases essencialmente empíricas, através de dados
obtidos pela observação. Para colher o corpus utilizamos uma filmadora
e registramos os dados através de imagens e áudio. Na sequência,
transcrevemos os dados para forma de texto. Ressaltamos que a coleta
foi realizada uma só vez em um ambiente familiar frequentado pelo X
DEL.

Apresentação e análise do Corpus

Para subsidiar o estudo, recortamos um momento de interação do


X DEL com o seu pai em um diálogo intermediado pelo telefone celular.
211

Na oportunidade, o filho ligou para o pai com intenção de saber se já


estava no fim do trabalho. É importante dizer que essas ligações são
frequentes entre filho e pai e durante um dia de trabalho, o pai do X DEL
chega a receber mais de dez ligações do mesmo.
Na transcrição, P: é o pai e F: é o filho, ou mesmo o adolescente X
DEL.

1. P: Oi Bibi.
2. F: Oi Pa, ta bom?
3. P: Tô, Paipai ta bom, e você?
4. F: Bom, Ta bom pa?
5. P: Ãh?
6. F: Tu ta bom?
7. P: Tô bem X DEL, e você ta bom?
8. F: Tô
9. F: Ta thau
10. F: Ta Pintan Pa?
11. P: Ãh?
12. F: Pintan Pa?
13. P: Não, to saindo já.
14. F: Sain.
15. P: To saindo agorinha.
16. F: Pa, ta sain vovó, é pa?
17. P: Cê que te pega?
18. F: Hâ, que beé papa? (nesse momento, o X DEL se levanta e aponta para a
direção da casa da tia).
19. P: Ah, que ir para casa da Isabela?
20. F: Hâ.
21. P: Da Rafaela?
22. P: É pra ir te buscar lá? (aqui, ele mexe o dedo indicador de um lado para o
outro representando negação).
23. F: É, Não Be, não Pa. Ta bom.
24. F: Vam, fica quiquinho volta pa vovó. (nessa emissão, o X DEL faz gestos de
bater a mão na perna e impulsionar as mãos)
25. P: De lá vem pra casa da vovó.
26. P: Ta bom, papai te busca.
27. F: Thau pa.
28. P: Thau.
212

O diálogo inicia com uma ligação telefônica em que o Pai ao


receber a chamada sabe que é o filho quem liga. Assim, ao atende-lo já
inicia o diálogo com o filho o tratando carinhosamente pelo apelido. Na
sequência, o X DEL responde a saudação e trava um discurso circular
como quem não sabe o que quer falar. Nessa hora, ele insiste em ficar
em um bate papo de está tudo bem, você tá bem ou bom e ter retorno
disso (frase 8). Na frase 7, o Pai já se irrita com a falta de objetividade e
usa um tom mais tosco com o filho chamando ele pelo nome. Então o X
DEL compreende a intenção do Pai e tenta encerrar o diálogo (frase 9).
Mas do nada o X DEL muda de ideia e pergunta pelo trabalho na frase
10, é quando ele descobre que o Pai já encerrou o expediente do dia e
retornará para casa. Nesse momento, o X DEL se lembra que o Pai
precisa buscá-lo na casa da avó e pergunta se ele vai passar na casa da
avó (frase 16). Então o pai, como resposta, pergunta se deve buscá-lo, e
ele diz então que vai visitar sua tia Rafaela. O Pai pergunta se deve buscá-
lo na casa da tia e ele diz com ansiedade que não, porque ele vai a casa
da tia ficar um pouquinho e voltar para a casa da vovó (frase 24). Na
sequência o Pai brandamente diz que busca o filho na casa da avó e eles
se despedem.
Esse breve diálogo, caracterizado como uma cena de atenção
conjunta (TOMASELLO, 2003), apesar de ser um pequeno recorte das
enunciações proferidas pelo adolescente, demonstra a tranquilidade
com que o X DEL interage com seus familiares. Ainda que tenha
deficiências de linguagem, ele se faz entender e entende o que o outro
emite enquanto língua e também outros elementos inerentes a interação
como a intencionalidade no momento da fala (TOMASELLO, 2003). Isso
se confirma no diálogo quando o adolescente tenta encerrar a conversa
ao perceber que o Pai se irritou com sua falta de objetividade.
No que tange a socialização do indivíduo através da interação nos
termos teóricos de Vygotsky (1998), percebemos que o X DEL pactua
das ações sociais no meio em que vive com tranquilidade, um fato que
remete a isso, é a sua participação nas ações interacionais do dia a dia
inclusive quando se trata de interlocução mediada por aparatos de
213

telecomunicações. O adolescente não tem nenhum problema em se


comunicar através do telefone, pelo que percebemos, durante as
ligações, ele insiste na interlocução ainda que se frute, caso seu receptor
não o entenda (esses casos ocorreram em outras observações não
transcritas para este artigo). Geralmente quando o interlocutor do X
DEL, em ligações telefônicas, não o compreende é porque não faz parte
da família.
Dentro das características de DEL apontadas por Sawasaki
(2013), no corpus eleito, o X DEL apresenta:

 Simplificações fonológicas através de:


◦ Regressão - quando chama pai ou papai de pa, saindo de sain,
Rafaela de beé vamos de vam;
◦ Omissão - quando omite preposições, verbos e artigos como em:
16.Pa, ta sain vovó, é pa? E 18. Hâ, que beé papa? 23: É, Não Be, não
Pa. Ta bom. 24: Vam, fica quiquinho volta pa vovó.
 Estruturação gramatical simplificada e pouco variada – quando
pergunta ao pai se está pintando e também quando pergunta se o pai vai
sair do trabalho e ir a casa da avó nas seguintes frases: a) 12. Pintan Pa?;
b) 16. Pa, ta sain vovó, é pa?; c) 18. F: Hâ, que beé papa?; d) 23: É, Não
Be, não Pa. Ta bom; e) 24: Vam, fica quiquinho volta pa vovó.
 Vocabulário restrito – Durante o dialogo, percebemos que ele usa um
rol reduzido de palavras para se expressar e concretização da expressão
é morosa.
 Fala ininteligível – palavras como: pa, beé, be, vam e quiquinho.
 Demasiado de dêiticos – apesar da conversa ser por telefone, o X DEL
se expressa também por com apontamento de indicam lugar e tempo.

Apesar dos problemas de emissão do X DEL, junto a família, ele


consegue se expressar com tranquilidade. Um fator que muito contribui
com isso é a disposição dos familiares em interpretar o que está sendo
dito pelo menino. Cremos que o chamado léxico interno do ambiente do
X DEL é justamente as interpretações que são feitas pelos membros da
214

família que na sequência são remetidas a um repositório de palavras e


utilizadas por esse grupo de falantes nas interações que remetem ao X
DEL.
Com isso, tanto o adolescente quanto a família possuem um apoio
linguístico que auxilia na compreensão da interlocução e das intenções
do X DEL.
Outro fator que contribui com a comunicação do X DEL são as
gesticulações emitidas por ele, esse é mais um elemento que
potencializa as interpretações do que está sendo dito e,
consequentemente, enriquece o arsenal do léxico do ambiente familiar.
Conhecendo essa análise, concordamos com Vygotsky (1998),
quando diz que o homem é um ser eminentemente social, que se
constitui na e pela interação humana, em situações concretas de vida.
Assim, o adolescente aqui em questão faz jus a sua natureza de
socializador e se desenvolve através das interações com seu meio,
contribuindo com o ambiente social com suas individualidades e
incorporando as práticas sociais ao íntimo da sua evolução humana. Um
grande exemplo disso, é o conhecimento que o X DEL tem de estrutura
familiar e sua projeção dentro dessa hierarquia.

Considerações Finais

O estudo que aqui proferimos teve seu foco nas formas de


interação social de um usuário da linguagem portador de uma patologia
denominada de distúrbio específico de linguagem.
Percebemos que a questão patológica influencia na forma de
interação, porém não exclui esse indivíduo da comunidade de falantes
de um determinado ambiente.
O adolescente X DEL, protagonista desse estudo, mostrou que
apesar das dificuldades de interlocução ocasionadas pelo distúrbio
como: simplificações fonológicas, estruturação gramatical simplificada
e pouco variada, vocabulário restrito, fala ininteligível e uso demasiado
de dêiticos; não está impedido de exercer a linguagem e demais
215

elementos intrínsecos a ela como a intencionalidade. Isso ficou


comprovado na cena de atenção conjunta mediada pelo telefone em que
o X DEL conseguiu seu objetivo comunicativo ao ligar para seu pai.
Outro fator interessante, é a atuação da família como
interlocutores direto do X DEL e desenvolvedores do repositório de
léxico específico do adolescente. Isso, apesar de outras implicações que
podem surgir em desvantagem ao DEL, facilita a comunicação e
compreensão de intenções nos discursos com o X DEL e o coloca diante
da sociedade usuária da linguagem.
Para tanto, ao analisar a eficiência da interação do X DEL com sua
família, comprovamos a tese de Bakhtin de que “a interação verbal
constitui assim a realidade fundamental da língua” (BAKHTIN, 1992, p.
123). E ainda,

“...ficou evidente a natureza sócio-interacionsita do ser


humano. A linguagem é ela mesma um trabalho pelo qual,
histórica, social e culturalmente, o homem organiza e dá
forma a suas experiências. Nela se produz, do modo mais
admirável, o processo dialético entre o que resulta da
interação e o que resulta da atividade do sujeito na
constituição dos sistemas lingüísticos, as línguas naturais
do que nos servimos na interação social, condição de
desenvolvimento da linguagem, que o sujeito se apropria
(do) sistema lingüístico, no sentido de que constrói, com os
outros, os objetos lingüísticos que se vai utilizar, na medida
em que se constitui a si próprio como locutor e aos outros
como interlocutores (FRANCHI apud ABAURRE, 1997, p.
82).

Contudo, ainda que breve, o estudo trouxe à tona a natureza


interacional do ser humano e sua organização em torno da linguagem.
Apesar dos problemas que a patologia aqui evocada pode oferecer, os
portadores de DEL estão em pleno exercício da atividade interacional
através da linguagem e outros elementos inerentes a ela, de modo a
216

chama a atenção do público científico para o conhecimento de


patologias da linguagem e convidá-los a integrarem o arsenal de estudos
sobre o assunto; e com isso, possibilitar a construção de condições de
melhorias para atuação deles na sociedade.

Referências

ABAURRE, Maria Bernadete Marques. et al. Cenas de aquisição da


escrita: o sujeito e o trabalho com texto. São Paulo: Campinas,
Associação de Letras do Brasil (ALB); Mercado de Letras, 1997.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação Verbal. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.
BEFI-LOPES, D.M. Avaliação, diagnóstico e aspectos terapêuticos nos
distúrbios específicos de linguagem. In: L.P. Ferreira; D.M. Befi-lopes;
S.C.O. Limongi. Tratado de Fonoaudiologia. 1a edição, São Paulo: Roca,
p. 987-1000, 2004.
BISHOP, D.V.M.; SNOWLING, M.J. Developmental Dyslexia and
Specific Language Impairment: Same or Different? Psychological
Bulletin, 2004; 130 (6), 858-886.
COLL, C.; Palacios, J.; Marchesi, A. Desenvolvimento psicológico e
educação: necessidades educativas especiais e aprendizagem escolar.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. v. 3.
CORREIA, O. B. F. A aplicabilidade de um programa de intervenção
precoce em crianças com possível risco autístico . 2005. 96 f.
(Dissertação de mestrado) - Faculdade de Psicologia: Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
ESTEVES, C. O. O conhecimento fonológico de crianças com Dislexia,
Desvio Fonológico e Distúrbio Específico de Linguagem: uma
análise multirrepresentacional da linguagem. 2013. 131f. (Tese de
doutorado) – Faculdade de linguística, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro.
HAGE, S. R. V.; GUERREIRO, M. M. Distúrbio específico de linguagem:
aspectos linguísticos e neurobiológicos. In: FERREIRA, L. P.; BEFI-
217

LOPES, D. M.; LIMONGI, S. C. O. (Eds.). Tratado de Fonoaudiologia. São


Paulo: Roca, 2004.
MINAYO, Maria Cecília Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa
qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2006.
REGO, Teresa Cristina. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural
da educação. Petrópolis: Vozes, 1995.
SAWASAKI, L. Y. Distúrbio específico de linguagem: desempenho em
testes de memória de trabalho fonológica e de habilidades
auditivas. 2013. 91f. (Dissertação de mestrado) - Faculdade de
Odontologia: Universidade de São Paulo, Bauru.
SNOW, C. E. Understanding social interaction and language acquisition:
sentences are not enough. In: BORNSTEIN, M. H; BRUNER, J. S.
(ed.).Interaction in Human Development. Hillsdale, New Jersey:
Lawrence ErlbaumAssociate Inc., Publishers, 1989.
TOMASELLO, M. The Cultural origins of human cognition. Cambridge:
Harvard University Press, 1999.
______. Origens culturais da aquisição do conhecimento humano.
Trad. Cláudia Berliner. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2003.
VYGOTSKY, L. S. Pensamento e Linguagem. Rio de Janeiro: Martins
Fontes, 1998.
______. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos
psicológicos superiores. Trad. José Cipolla Neto, Luís Silveira Menna
Barreto, Solange Castro Afeche. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
218

OS ASPECTOS MULTIMODAIS NO DISCURSO DO SUJEITOAFÁSICO:


UM ESTUDO DE CASO

Érika Maria Asevedo Costa (UNICAP)1


Renata Fonseca Lima da Fonte (UNICAP)2

RESUMO: À luz da perspectiva da multimodalidade, este trabalho


concebe que a linguagem envolve no mínimo dois modos de
representação, como palavras e gestos ou palavras e entonações, ou
outros recursos multimodais, conforme sugere Dionísio (2005). O
sujeito afásico, participante deste estudo, apresenta uma alteração no
funcionamento da linguagem, proveniente de lesão neurológica, que
dentre outros problemas, faz com que seja interpretado pelo
interlocutor como efeito de sentidos, o que pode resultar em isolamento
social. O estudo tem como objetivo geral analisar os aspectos
multimodais no discurso de um afásico na interação com outros sujeitos
afásicos em grupo de Convivência da Universidade Católica de
Pernambuco. E como objetivo específico identificar e descrever a fala e
os gestos no discurso de um afásico na interação com outros sujeitos
afásicos nesse grupo de Convivência. Para essa análise proposta,
fundamentaremos nos estudos de Goldin-Meadow (1999) e McNeill
(2000) que defendem que gesto e fala formam um sistema integrado e
de Cavalcante (2009) sobre gestos nas rotinas interativas e de Dionísio
(2005, 2011) sobre gêneros textuais e multimodalidade. Os dados foram
coletados a partir de três encontros semanais de 2 horas de duração no
Grupo de Convivência dos Afásicos da Universidade Católica de
Pernambuco. Durante os encontros foram filmadas a interação de oito
sujeitos afásicos participantes do Grupo, dentre eles, um foi selecionado
para este estudo de caso por se destacar no uso de recursos

1Mestranda em Ciências da Linguagem da Universidade Católica de Pernambuco-


UNICAP.
2 Docente do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem da Universidade

Católica de Pernambuco –UNICAP.


219

multimodais. Os resultados permitem notar que o sujeito em estudo


utiliza-se predominantemente de gestos manuais acompanhados em
alguns momentos da fala, tornando-se elementos constitutivos de
sentido. Logo, os aspectos multimodais funcionaram como estratégia
para construir sentido no discurso desse sujeito.

PALAVRAS CHAVES: Multimodalidade; Afasia; Linguagem.

ABSTRACT: In light of the prospect of multimodality, this paper


conceives that language involves at least two modes of representation,
such as words and gestures or words and intonations, and other
multimodal features as suggests Dionísio (2005). The aphasic subject
participating in this study, shows a change in the functioning of
language, from neurological injury, which among other problems, makes
it interpreted by the interlocutor as an effect of senses, which can result
in social isolation. The study’s general objective is to analyze the
multimodal aspects of speech of an aphasic interaction with other
aphasics in a group of acquaintanceship of the Catholic University of
Pernambuco. And as a specific objective to identify and describe the
speech, gestures and gaze in an aphasic speech in interaction with other
aphasic this group of acquaintanceship. To analyze this proposal, we will
base the studies by Goldin-Meadow (1999) and McNeill (2000) who
argue that gesture and speech form an integrated system and Cavalcante
(2009) about the interactive gestures and routines and Dionysus (2005,
2011) about textual genres and multimodality . Data were collected
from three weekly meetings of 2 hours duration in the group of aphasic
at the Catholic University of Pernambuco. During the encounters were
videotaped interaction between eight aphasic participants, among them,
one was selected for this case study is to highlight the use of multimodal
resources. The results allow observing the subject under study using
hand gestures predominantly, accompanied sometimes of speech,
becoming elements constituent of meaningless. Therefore, multimodal
220

aspects are worked as a strategy to construct meaning in discourse of


this subject.

KEYWORDS: Multimodality; Aphasia; Language.

INTRODUÇÃO

Na interação com os outros, sempre estamos utilizando os


aspectos multimodais da comunicação, de forma fácil e natural trocamos
informações. Os nossos sentidos estão excepcionalmente adaptados
para efetuarem estas tarefas, porque a neurofisiologia do homem
permite-nos integrar informações de diferentes modalidades sem
grande esforço (DIONÍSIO, 2005).
Segundo Dionísio (2005), os processos não verbais que
comparecem nas práticas discursivas como os gestos dêiticos, o olhar, a
voz, a risada, o ruído, a prosódia, a mímica facial, os movimentos da
cabeça e das mãos, a postura, a distribuição espacial ou a posição das
pessoas, umas em relação às outras, no desenvolvimento da interação é
o que se chama de multimodalidade do discurso, maximizando as
chances dos sujeitos serem entendidos, ou seja, estabelecerem uma
comunicação efetiva. Não tem como o ser humano, ao falar, não se
apresentar diante destes recursos para dar significação a sua
mensagem.
A adoção de uma abordagem multimodal na interação de um
discurso implica considerar que os processos linguísticos estariam
ligados de forma constitutiva a processos semióticos não verbais, e a
tese de que estes seriam desprovidos de sentido se fossem tomados de
maneira descontextualizada e alheia às práticas comunicacional e de
sociabilidade. Essa abordagem admite que seja possível encontrar nas
práticas discursivas uma dimensão multimodal na construção do
sentido que interagem os elementos não verbais aos verbais
(DIONÍSSIO, 2011; MARCUSCHI, 2011).
221

Segundo McNeill (2000), “gestos” é um termo que necessita de


explanação, uma vez que não temos “gesto” no singular. Ele afirma que
prefere o termo no plural, pois há diversos momentos em que
precisamos distinguir movimentos corriqueiramente nomeados de
gestos. Assim, o autor apresenta um contínuo para vários movimentos
chamados de gestos, elaborados por Kendon (1982) e conhecido com o
“contínuo de Kendon”.
Kendon (1982) destaca que os gestos que formam este “contínuo”
são: a gesticulação; a pantomima; os emblemas e a(s) língua(s) de sinais.
As gesticulações caracterizam-se como os gestos que acompanham o
fluxo da fala, envolvendo braços, movimentos de cabeça e pescoço,
postura corporal e pernas, possui marcas da comunidade e do estilo
individual de cada falante. A pantomima, gestos que simulam ações ou
personagens executando ações, é a representação de um ato individual,
tem um caráter de narrativa, pois envolve uma sequência de micro
ações. Os emblemas ou gestos emblemáticos são aqueles adquiridos
culturalmente (são convencionais) tais como o uso, em nossa cultura, do
gesto que envolve a mão fechada e o polegar levantado com significado
de aprovação; e a língua de sinais, enquanto sistema linguístico próprio
de uma comunidade, no caso, a Libras.
McNeill (1985) e Dionísio (2011) compartilham que gesto e fala
formam um conjunto que não pode dissociar-se numa concepção de
língua multimodal; se encontram integrados numa mesma matriz de
produção e significado. Esta relação entre gestos e fala é também
considerada por Kendon (2000), afirmando que a língua é posta como
uma atividade cognitiva e, se as expressões gestuais estão intimamente
envolvidas em atos de expressão linguística falada, então parece
razoável observar os gestos mais aproximados do campo das atividades
cognitivas no que se refere ao estudo da Língua.
Buscando a teoria de Kendon (1982), que organiza gestos a partir
de quatro relações estabelecidas entre gesto e fala: i. relação com a
produção de fala; ii. relação com as propriedades linguísticas; iii. relação
222

com as convenções e iv. relação com o caráter semiótico. Há muito a se


dizer a respeito da relação gesto e fala enquanto matriz de significação.
Entende-se por fala toda forma de produção discursiva para fins
comunicativos na modalidade oral, sem a necessidade de uma
tecnologia além do aparato disponível pelo próprio ser humano.
Caracteriza-se pelo uso da língua na sua forma de sons articulados e
significativos, bem como aspectos prosódicos e uma série de recursos
expressivos de outra ordem: gestualidade, movimentos corporais e
mímica. A fala em sua caracterização é concebida na sua relação com
recursos de outra ordem (MARCUSCHI, 2005). Ou seja, a fala integra
outras modalidades, caracterizando-se enquanto multimodal.
A afasia se traduz em alterações da linguagem oral e escrita, tanto
em relação à expressão quanto à compreensão, o que não significa que
o afásico não possa interagir linguisticamente na construção da
significação (COUDRY, 2001), uma vez que a linguagem verbal não é a
única modalidade da comunicação que carrega a relevância na
interação.
Diante da problemática exposta, este trabalho tem como objetivo
geral analisar os aspectos multimodais no discurso de um afásico na
interação com outros sujeitos afásicos em grupo de Convivência da
Universidade Católica de Pernambuco. E como objetivo específico
identificar e descrever a fala e os gestos no discurso de um afásico na
interação com outros sujeitos afásicos nesse grupo de Convivência

CARACTERIZANDO O LOCUS, OS PROCEDIMENTOS DE COLETA E


CRITÉRIOS DE TRANSCRIÇÃO DEDADOS

O Grupo de Convivência dos Sujeitos Afásicos da Universidade


Católica de Pernambuco - UNICAP, locado no Mestrado em Ciências da
Linguagem da UNICAP, atua com ênfase na modalidade verbal e não
verbal da linguagem, bem como oferece um lócus para discussões sobre
a inserção do sujeito afásico na sociedade.
223

Os dados aqui apresentados foram coletados a partir de três


encontros com duas horas de duração. Em que foi filmada a interação de
oito sujeitos afásicos componentes do referido grupo, dentre eles, um foi
selecionado para o estudo focal, por se destacar no uso de recursos
multimodais. Os aspectos multimodais (fala com marcações prosódicas
e gestos) foram de acordo com notações gráficas propostas por
Marcuschi (2001) e Fonte (2011). Conforme apresentamos no quadro a
seguir:

LEGENDAS PROSÓDIA DA FALA


‘ (aspas simples) Entonação descendente. Para subida leve (como uma
vírgula ou ponto e vírgula).
Entonação ascendente. Para uma subida rápida como no
“ (aspas duplas) ponto de interrogação.
: Duração. Para indicar a duração da emissão, conforme
especificação no quadro anterior.
(+) Pausa. Para indicar pausas pequenas existentes na fala.
(tempo) Para pausas que ultrapassam 1.5 segundos, indica-se o
tempo.
(( Gesto, movimento e postura corporais ou fala simultâneos
do mesmo interlocutor.
(incompreensível) Dúvidas e suposições

LETRAS Para indicar que a sílaba ou palavra que foi pronunciada


MAIÚSCULAS com maior ênfase.
(...) Trechos cortados
Tempo cronometrado Tempo de ocorrência da produção de linguagem.

T Turno discursivo

ANÁLISE DOS ASPECTOS MULTIMODAIS NO DISCURSO DE UM


SUJEITO AFÁSICO

Ao observar os dados coletados referentes aos componentes do


grupo de convivência dos afásicos, percebe-se que um senhor (cerca de
50 anos) destaca-se pelo uso excessivo de aspectos multimodais no
transcorrer da sua comunicação. É notório que os processos que
224

compõem o significado do discurso de um afásico são formulados pelos


gestos dêiticos e apontamentos que se conjugam com fala (aqui, lá) ou
por gestos elaborados (emblemáticos e pantomímicos) com total
completude de sentido que tornam desnecessário o uso das palavras.
O episódio abaixo, datado do dia 18/04/2013, relata a conversa
referente à reportagem que descreve o fato do Presidente dos Estados
Unidos, Barack Obama e o seu senador Roger Wicker terem recebido
uma “carta” envenenada.

Cena: Conversa referente à reportagem que descreve o fato do Presidente dos Estados Unidos,
Barack Obama e o seu senador Roger Wicker terem recebido uma “carta” envenenada.
Interlocutores: Investigador e Sujeito Afásico

PLANOS MULTIMODAIS

T I GESTUAL VERBAL/PROSÓDICO
Vocês viram que foi noticiado na TV
01 Investigador 14:00:06 uma explosão, uma não, duas,
estava acontecendo algo’’ Onde foi’’
14:01:00 ((põe a mão na
fronte indicando gesto de ((BOMBA’))
02 José
continência-fazendo alusão
ao Estados Unidos))

Vocês viram o que enviaram para


03 Investigador 14:01:15
Obama’’

14:01:30 ((inclinou a
cabeça para o lado,
((Obama (+) pá, pá, pá))
04 José esboçando aspecto de
espanto))

Vocês viram o que mandaram para


05 Investigador 14:01:55
Obama’’

14:02:10 ((apresenta o
número três através dos
dedos das mãos e em
((Hitler-Hi’))
06 José seguida solicita uma folha
de papel e escreve - cá, cá,
cá - mostrando aos demais
sua escrita))
225

Hitler“Eu não sei o que é cá cácá,


“Três’’
14:02:20(deu uma
07 Investigador Vocês viram o que mandaram para
gargalhada)
Obama’’ Uma carta com veneno
dentro’’
14:02:35 ((escreve
novamente no papel - cá, cá,
08 José ((Aqui’ Três’))
cá –em seguida mostra o
papel escrito para todos))
14:03:30 ((eleva a mão ao
09 José rosto indicando indignação ((Poxa’))
por não ser entendido))

Nazista’’
10 Investigador 14:03:50
Três homens Nazista’’

14:04:00 ((balança a
cabeça verticalmente
11 José indicando concordância a ((Sim, Sim, é, é, é’))
indagação do investigador
sobre Nazista))

Então que dizer que esse ataque foi


12 Investigador 14:04:10
Nazista’’

14:04:15 ((Mostra o papel


novamente com a
expressão - cá, cá, cá –
13 José dramatiza a abertura de ((Obama’))
uma carta e uma falta de ar,
elevando a mão ao pescoço
indicando desconforto))

14 Investigador 14:04:25 Eu vi’ é uma carta envenenada...

14:04:35 ((colocou as mãos


no colarinho abriu a camisa
indicando falta de ar
15 José -
decorrente do
envenenamento ocasionado
pela suposta carta))

Exatamente’ se respirasse ele


16 Investigador 14:05:00
morria’
226

Nota-se no discurso do sujeito afásico, que gesto e fala formam um


conjunto que não pode dissociar-se, trazendo a premissa de que gesto e
fala encontram-se integrados de forma indissolúveis na construção
significativa da comunicação (MCNEILL, 1985).
Vale destacar a riqueza de gestos pantomímicos, que em geral veio
acompanhado da fala, conforme ocorreu nos turnos 02 e 13.
Diferentemente do que afirma Kendon (1982) e McNeill (2000) de que
a pantomima envolve uma representação gestual sem a presença da fala.
Os gestos pantomímicos não necessitam da presença da fala, uma vez
que possuem plenitude no estabelecimento da ideia a ser transmitida.
Apenas em um momento específico, a pantomima ocorreu sem a
presença da fala, como podemos observar no turno 15, no momento em
que o sujeito simula a falta de ar decorrente do enforcamento. A
pantomima revela uma sequência gestual com micro ações – colocar as
mãos no colarinho – abre a camisa- indica a falta de ar. Essa sequência
gestual configura-se o gesto pantomímico, que apresenta um caráter de
narrativa, conforme define Kendon (1982). Destaca-se que essa variação
de formato da comunicação, pode ser atribuído ao processo histórico de
aquisição da linguagem associado às características intrínsecas dos
sujeitos, seja decorrente do meio ou de sua carga genética
(CAVALCANTE,2012).
Ressalta-se que também foram identificados gestos
emblemáticos, como o ato de balançar a cabeça verticalmente indicando
concordância a indagação do investigador sobre Nazista ao mesmo
tempo em que afirma verbalmente. Logo, o gesto emblemático veio
acompanhado da produção verbal, o sujeito expressa a mesma ideia ao
integrar o plano gestual ao verbal.
O episódio abaixo, datado do dia 06/06/2013, relata a conversa
referente às notícias da TV que mais chamaram atenção no decorrer da
semana.
227

Cena: Conversa referente às notícias da TV que mais chamaram atenção no decorrer da


semana
PLANOS MULTIMODAIS
T I GESTUAL VERBAL/PROSÓDICO
Inves
01 tigad 14:00:00 Quais as notícias da semana’’
or
14:01:30
((Apontan
do o dedo
02 José ((DILMA, DILMA – oh’’))
polegar
para
baixo))
Inves
03 tigad 14:02:00 O que tem Dilma’’
or
14:02:20
((estica a
mão
palmada
04 José ((Calma, :: calma’))
para
frente,
solicitando
espera))
Inves
05 tigad 14:02:40 Qual foi a cidade que os deputados tiveram aumento’’
or
14:03:00
((pega
uma folha
de papel e
caneta e
inicia a
escrever,
06 José em seguida ((GLOBO/GLOBO/GLOBO/))
mostra sua
escrita aos
demais do
grupo
apontando
para o
papel))
228

Inves
07 tigad 14:03:37 Sky, Globo, Xuxa, Sexo... XUXA
or
14:03:55((
pega uma
folha de
papel e
caneta e
inicia a
escrever,
08 José em seguida ((AQUI, depois ::OH OH))
mostra sua
escrita aos
demais do
grupo
apontando
para o
papel))
Inves
É verdade, a Globo tem 90% da programação relacionado
09 tigad 14:04:00
com sexo. E a Sky também’’
or
14:04:30((
mexendo a
cabeça
verticalme
nte
indicando
concordân
10 José -
cia e os
dedos
polegar e
maior de
todos
indicando
dinheiro))

É relevante a presença dos gestos emblemáticos no discurso do


sujeito afásico analisado, como identificado nos turnos 02, 04, 06 e 10;
por serem determinados culturalmente, convencionados pela
sociedade; normalmente são construídos acompanhados da produção
verbal ou substituindo-a, porém raramente são simultâneos (KENDON,
229

1982). Por exemplo, no momento em que “aponta para o papel” no turno


06.
É interessante enfatizar que os gestos não desaparecem logo após
o aparecimento da fala do afásico, esses elementos multimodais
continuam no decorrer do seu discurso o que corrobora a ideia da forte
ligação entre gesto e fala, um completando o outro em um mesmo
contínuo de significação.
Percebe-se também, que os gestos emblemáticos decorrentes do
discurso do afásico não são necessariamente acompanhados de uma
produção verbal, uma vez que, segundo a classificação por Kendon
(1985), em seu contínuo, não exige produção verbal, tornando esta
opcional.
O episódio abaixo, datado do dia 01/08/2013, relata a conversa
referente à vinda do Papa ao Brasil.

Cena: Conversa referente às notícias da TV que mais chamaram atenção no decorrer da


semana
Interlocutores: Investigador e Sujeito Afásico
PLANOS MULTIMODAIS
T I GESTUAL VERBAL/PROSÓDICO
Investigador
01 14:00:00 O que vocês acharam da visita do papa’’

José
14:00:00 ((Bate palma e
02 ((aqui: AH, AH, :: PADRE PADRE))
em seguida beija a mão))

Investigador
03 14:00:00 Você não gosta do papa’’

José 14:00:00
((movimentando a
cabeça e o dedo indicador
04 ((oh +oh +rapaz+SAFADO)
horizontalmente,
indicando discordância
com a figura do Papa))
Investigador O atual papa não aparenta ser mais
05 14:00:00 simples quando comparado com os
anteriores’’
230

José 14:00:00 (movimentando


a cabeça e o dedo
06 indicador ((oh oh + CONVERSA)
horizontalmente,
indicando discordância))
Investigador
07 14:00:00 Por quê?

José 14::00:00 ((balançando a


08 cabeça, fazendo jeito de ((oh +oh + oh + BICHA))
mulher))

Neste recorte observa que os gestos emblemáticos vêm


acompanhados da linguagem verbal, tal observação corrobora com o
objetivo deste trabalho que o discurso do sujeito afásico utiliza a
multimodalidade no transcorrer da sua comunicação. Não há como
negar a relação de interação entre gesto e fala no formato do discurso
analisado.
Percebe-se no fragmento acima, que o gesto pantomímico no
momento que o sujeito levanta os braços para fazer alusão a trejeitos de
mulher, ocorre em paralelo a outros recursos multimodais ((oh +oh + oh
+ BICHA)), como descrito no turno 08.
O que se observa nos trechos acima é que a utilização de gestos
no discurso de um afásico representa um elemento de relevância para
dar sentido a sua comunicação, indicando que não são meros recursos
ou mecanismo compensatórios, mas sim, de total significação para
contribuir com sua comunicação de que se valem para efetivar o
discurso, conforme sugerem Marcuschi (2008) e Morato (2008), os
processos de significação não verbais são recorrentes e estão integrados
a língua falada
231

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No discurso do afásico em estudo, constatou-se que os elementos


não verbais organizam-se com diferentes formas de significação, assim
como os aspectos multimodais, os gestos, na composição de sua
comunicação ajudam a complementar o sentido lexical, a compensar a
falta de uma palavra ou construção verbal mais ampla em uma
conversação, além de atuar na evocação da palavra–alvo antes mesmo
de sua enunciação, indicando determinado percurso por meio de gestos
dêiticos espaciais, por exemplo, reforçando certas determinações
referenciais por meio de uso dêiticos espaciais.
Pode-se perceber a interação de aspectos multimodais no
discurso do sujeito afásico. Dentre os gestos que se destacam no seu
discurso, observa-se a pantomina ao simular ações ou personagens
executando ações; e os gestos emblemáticos representados por gestos
dêiticos, como o apontar e gestos de afirmação ou negação realizados
com a cabeça ou com o dedo indicador.
Como se pode observar nos dados apresentados, na linguagem de
um sujeito afásico encontram-se diferentes processos multimodais que
participam na construção de sentido do discurso. Evidenciando que o
gesto é frequente na comunicação do sujeito afásico, sendo fundamental
para efetivação de sua comunicação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAVALCANTE, M. C. B. O Gesto e apontar como processo de co-


construção nas interações mãe-criança. Dissertação de Mestrado,
UFPE. 2010.
CAVALCANTE, M. M. Os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2012.
COUDRY, M. I. H. Diário de Narciso: discurso e afasia. 3 ª ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
232

DIONÍSIO, A. P. Gêneros Textuais e Multimodalidade. In.: KARWOSKI, A.


M.; GAYDECZKA, B e BRITO, K.S. Gêneros Textuais Reflexões e Ensino.
4 edição. 2011.
______. Multimodalidade discursiva na atividade oral e escrita. In.:
MARCUSCHI, L. A. e DIONÍSIO, A. P. Fala e escrita. p. 177-204.2005
FONTE, R. O funcionamento da atenção conjunta na interação mãe-
criança cega. 2011. 315f. Tese (Doutorado em Linguística) –
Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2011.
GODDIN- MEADOW, S. and Mc Neill, D. The role of gesture and
mimetic representation in making language the province of speech
in The Descent of Mind (Corballis, Mc. And Lea, S. , eds), pp. 155-172,
Oxford Univerity Press. 1985
KENDON, A. Gesticulation and speech: two aspects of the process of
utterance, in Relationship of the verbal and Nonverbal Communication.
(Key, M. R.,) pp. 2007-228, Mouton. 1982.
MARCHUSCHI, L. A. Análise da conversação. 5ª ed. Editora Ática: São
Paulo, 2001, 94p.
______. Processos de compreensão. In: MARCUSCHI, L. A. Produção
textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola,
2008. p. 227-281.
MCNEILL, D. Introduction. In: ______. (ed.) Language and Gesture.
Cambrige University Press: Cambridge, UK, 2000.
MORATO, E. M.; Tubero, A. L.; Santana, A. P.; Damasceno, B.; Souza, F. F.
Sobre as afasias e os afásicos – subsídios teóricos e práticos
elaborados pelo Centro de Convivência de Afásicos (Universidade
Estadual de Campinas). Campinas: Unicamp, 2002.
______. (In)determinação e subjetividade na linguagem de afásicos: a
inclinação anti-referencialista dos processos enunciativos. Cadernos de
Estudos Linguísticos 41: 55-74, 2001.
233

GESTICULAÇÃO E FLUÊNCIA: FATORES RELEVANTES NA


CONSTRUÇÃO DOS PRIMEIROS ENUNCIADOS DA CRIANÇA.

Driely Xavier de Holanda


drielyxavier@hotmail.com
Valmira Cavalcanti Marques
valmiracmjp@hotmail.com
Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante
marianne.cavalcante@gmail.com

RESUMO: Este trabalho visa compreender a relação entre a


gesticulação, a tipologia prosódica-vocal (balbucio, jargão, holófrase,
blocos de enunciados), e a fluência na aquisição da linguagem com base
na matriz multimodal. Kendon (1982), afirma a partir da organização de
seu contínuo, que a gesticulação ocorre obrigatoriamente com a
produção de fala. McNeill, porém, afirma que gesto e fala, ocorrem
simultaneamente, descontruindo a ideia de Bruner (1975 e 1983),
segundo o qual, o gesto é concebido no período pré-linguístico e
desaparece em função da fala, descrevendo-os como modalidades
comunicativas que ocorrem em períodos diferentes na aquisição da
linguagem. Quanto à gesticulação, é possível percebe-la já nos primeiros
meses de vida da criança. Cavalcante e Brandão atribuem a ela um
importante papel ao afirmar que esta aparece como uma das primeiras
pistas da fluência de forma que favorece a compreensão de língua a
partir de uma proposta multimodal. Referente à metodologia do nosso
trabalho, adotamos a metodologia dedutiva, longitudinal e quantitativa.
O Laboratório de Aquisição da Fala e da Escrita computa sete díades
mãe-bebê contém as sessões realizadas na casa da díade (mãe/bebê)
com duração aproximada de 15 a 20 minutos, cada. Os bebês têm em
média, 0 a 36 meses, e são gravados em situação natural.
Posteriormente, transcrevemos o material. Para isto usamos a
transcrição de fala e a fonética, a fim de estudarmos como o
conhecimento linguístico é adquirido e produzido ao decorrer do tempo
234

pelas díades. Os resultados mostram que a compreensão do processo de


aquisição da linguagem, evidenciam a gesticulação e a fluência como
fatores interligados na construção dos primeiros enunciados da criança.

PALAVRAS-CHAVE: gesticulação, fluência, aquisição, linguagem,


multimodalidade.

1- GESTO E FALA: UMA CONSTRUÇÃO INTERACIONISTA EM


AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM

Desde o nascimento, as crianças são envolvidas nas diversas


situações comunicativas por seus principais interlocutores, os adultos,
que estão a todo o momento atribuindo significados e interpretações as
diversas emissões de vocais, de gestos, olhares e dos variados tipos de
choros. Assim desde cedo é percebido o potencial comunicativo da
criança em qualquer conteúdo expressivo.
Quando falamos da construção significativa dos primeiros
enunciados das crianças é importante ressaltar a influência que a
interação mãe-bebê exerce nessa construção, pois através dela é
possível compreender o funcionamento multimodal da linguagem
partindo da perspectiva de que gesto e fala acontecem simultaneamente
na construção de significados (MecNeill,1985) nesse processo os
aspectos observados são: olhar, gesto, postura corporal, qualidade da
voz e prosódia.
Para compreendermos o gesto utilizamos como base teórica
McNeill (2000), no qual ele explica que esse termo necessita de uma
observação, vista que não temos gesto no singular e sim no plural o
termo gestos designa movimentos consecutivos nomeados gestos. O
termo Hologestos pode ser um exemplo, já que surge especificamente
para o estudo dos primeiros gestos de um bebê produzidos em situação
natural interativa com a mãe. Segundo Cavalcante e Brandão (2012)
afirmam que o autor Mc Neill apresenta um contínuo para vários gestos,
elaborado por Kendon (1982) no qual aparecem os seguintes gestos: a
235

gesticulação, a pantomima, os gestos emblemáticos, a (s) língua (s) de


sinais.

Língua de
Gesticulação Pantomima Emblemáticos
sinais
Presença
Presença
Contínuo 1 obrigatória de Ausência de fala Ausência de fala
opcional de fala
fala
Presença de
Ausência de Ausência de Presença de
algumas
Contínuo 2 propriedades propriedades propriedades
propriedades
linguísticas linguísticas linguísticas
linguísticas
Não Não Parcialmente Totalmente
Contínuo 3
convencional convencional convencional convencional
Global e Global e Segmentada e Segmentada e
Contínuo 4
sintética analítica analítica analítica
Extraído de McNeill (2000, p.)

Buscando compreender como esses gestos influenciam no


processo de aquisição da linguagem, explorando o extralinguístico
(gestos) e focando na gesticulação (plano analisado), este gesto é
caracterizado pelos gestos que acompanham o fluxo da fala, envolvendo
braços, movimentos da cabeça e do pescoço, postura corporal e pernas,
possuem marcas da comunidade de fala e marcas do estilo individual de
cada um. Se observarmos o contínuo de Kendon na coluna referente à
gesticulação podemos perceber que a presença de fala nesta é
obrigatória, porém se analisarmos Contínuo 1 perceberemos que a
ausência é crescente, assim percebemos que quando a criança utiliza-se
do gesto pantomímico existe a ausência de fala, em relação ao uso dos
gestos emblemáticos a presença da fala torna-se opcional e por fim no
uso das línguas de sinais a ausência de fala é inevitável.
A gesticulação é bastante relevante na construção dos primeiros
enunciados, pois assim como afirmam Cavalcante e Brandão (2012) ser
possível mapear a emergência dos gestos na primeira infância,
articulado a produção de fala através das situações interativas entre
mãe e bebê. Assim desconstrói-se a ideia de que o gesto é concebido num
236

período pré-linguístico e que sumiria em função da fala, ou seja, a


criança apresenta a gesticulação já nos primeiros meses de vida e
embora não consiga dominar as formas linguísticas se utiliza dos gestos
para compreender os adultos e fazer com que os adultos a entendam.

2- CONTÍNUO GESTUAL E ATENÇÃO CONJUNTA

Quando falamos de gesticulação no processo de aquisição da


linguagem é impossível dissociarmos dos demais gestos que compõem
o contínuo de Kendon os quais são: PANTOMIMAS, EMBLEMAS E
GESTICULAÇÃO, que na maioria das vezes favorecem a atenção
conjunta, a qual consiste em interações com objetos e pessoas,
resultante do triângulo referencial composto da criança, do adulto e do
objeto.
Vejamos então um fragmento de interação entre mãe e bebê em
que ocorre essa interação:
Fragmento 1: mãe e bebê no quarto, mãe mostra a imagem de um
bebê em um calendário e bebê sai correndo e pedindo.

M.: (Mãe chama bebê dizendo): vea cá, vea cá! Oia vem vê o nene, nené
vem vê o nené Luquinha ô o nené da foto qui tu gosta, Luquia ô o nené,
tá veno tu aqui?

C.: (Bebê está em pé, mexendo numa toalha que está sobre a cadeira.
Bebê diz): Ê (com euforia, desce rápido da cadeira , sai correndo, pra vê
o nené.)

M.: (Mãe perguntando) cadê o nené? É nené!


C.: (Bebê mostra o nené apontando para a imagem) dizendo: keui
M.: (Mãe pergunta) de quem é esse nené?
C.: Nenê, nenê, nenê, (balançando a mão e sai com a imagem)
237

É possível perceber que os gestos que compõem o contínuo de


Kendon estão presentes em todas as situações interacionais entre a mãe
e o bebê. Na situação comunicativa acima podemos observar a presença
da gesticulação, quando “bebê balança as mãos”, nesse caso a
gesticulação ocorre simultaneamente junto com a fala que nesse caso
pode ser caracterizada holófrases como, ”nê, nê”.
Nessa mesma situação podemos observar a presença do gesto de
apontar. Cavalcante (1994) se refere a este como um ato social, o qual
promove a interação por meio da indicação sobre um objeto, nesse caso
o um ser, uma vez que a criança se utiliza desse gesto para reproduzir o
que a mãe faz, sendo esse gesto caracterizado como um gesto
emblemático já esse gesto é culturalmente convencionado a sociedade.
Quanto à atenção conjunta ocorre mediada pela imagem que a mãe
mostra para o bebê. Compreenderemos melhor à atenção conjunta com
a citação a seguir:

(...) “Mas entre nove meses de idade começa a aparecer um


novo comportamento que não são diádicos, como aqueles
primeiros comportamentos, mas triádicos no sentido de
envolvem uma coodenação de suas interações com objetos
e pessoas, resultando num triângulo composto de criança,
adulto e objetou evento ao qual dão atenção.”
(TOMASELLO, 2003)

A gesticulação e os demais gestos que compõem o contínuo


gestual se relacionam também com à atenção conjunta no processo de
construção dos primeiros enunciados da criança. É importante ressaltar
que na atenção conjunta as interações entre mãe-bebê ocorrem de
diversas maneiras num face-a-face que inclui olhar, tocar e vocalizar no
qual é possível expressar emoções básicas o que caracteriza as
“protoconversas” de Trevarther (1979) é justamente o fato dos bebês
interagirem com quem cuidam deles.
238

3- FLUÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DOS PRIMEIROS ENUNCIADOS DA


CRIANÇA

As pesquisas que buscam compreender a fluência no processo de


aquisição da linguagem são ressentes para que possamos compreender
a fluência nesse contexto partiremos da citação abaixo:

“os já ajeitados, conhecidos, analisados ou, na grande


maioria dos casos, congelados, vêm em bloco. Os
disfluentes são aqueles em construção, instáveis, com
tentativas infrutíferas de segmentação em blocos
prosódicos; supõem passos mais complexos tanto
paradigmática quanto sintagmaticamente na elaboração
do enunciado.” (SCARPA, 1985, p.171)

O conceito de fluência geralmente é compreendido através do que


se é oposto, ou seja, pelo que vem a ser disfluente. O sujeito fluente nesse
caso é justamente uma abstração ideal que inexiste, mas que é
necessária pera que se possa investigar a linguagem segundo Cavalcante
e Brandão (2012). Na construção do sujeito fluente algumas
características são atribuídas por Merlo (2006) como: (a) baixa
frequência de hesitações; (b) baixa frequência de reformulações; (c)
baixa frequência, curta duração e uso nativo de pausas silenciosas
fluentes; (d) taxa de elocução (speech rate) confortável; (e) facilidade de
emissão; (f) habilidade gramatical; (g) diminuição da complexidade
semântica.
Assim na aquisição da linguagem a fluência é algo que se
constrói ao longo da vida, porém a fluência infantil se cristaliza em
alguns trechos da fala. Vejamos a citação a seguir.

“Quer dizer, relacionando aos momentos aquisicionais,


haveria fluência infantil nos trechos de fala já cristalizados
na fala infantil. Por estarem presentes nas expressões
formulaicas e fragmentos cristalizados da fala infantil, a
239

autora constata sua presença a partir dos dois anos de


idade na fala infantil, quando emergem estas estruturas ao
longo da produção de fala.” (CAVALCANTE E BRANDÃO,
2012)

Ainda com base no texto de Cavalcante e Brandão(2012) é


importante ressaltar a discussão que as mesmas abordam em relação a
um importante papel da gesticulação no processo de aquisição , no qual
consideram a gesticulação uma das primeiras pistas de fluência na fala
infantil sob uma perspectiva multimodal, ou seja, os gestos nesse
contexto excluem qualquer possibilidades de serem considerados pré-
linguísticos, o que significava o uso primitivo da fala o qual
desapareceria em função dela.

4- O CONTÍNUO GESTUAL NAS INTERAÇÕES MÃE-BEBÊ

Como sabemos o contínuo gestual formulado por Kendon é


formado por três gestos: GESTICULÇÂO, que como já vimos é
caracterizado pelos gestos que acompanham o fluxo da fala, envolvendo
braços, movimentos da cabeça e do pescoço, postura corporal e pernas.
PANTOMIMAS que correspondem a simulações de ações e EMBLEMAS
que estão inteiramente ligados a cultura. Sendo assim veremos a seguir
algumas situações comunicativas nas quais é possível perceber a
presença desses gestos a partir de interações mãe-bebê.

SITUAÇÃO COMUNICATIVA 2: mãe na sala da casa, sentada no chão


junto ao bebê, que está brincando.
Fragmento:2
M.: (Mãe pega um telefone de brinquedo) diz: alô, alô, vamus liga pra
painho, vamus liga pra painhum vem.
C.: (bebê brinca com os brinquedos) (Estica a mão pedindo)
240

M.: (Mãe com o telefone na orelha) diz: alô painho, alô painho Luquinha
tá aqui brincano com a casinha

C.: (bebê tenta pegar o telefone) diz: dê dê (esticando a mãe) êiê êiê
(continua esticando a mão)

No fragmento é possível perceber que a Gesticulação ocorre


quando a criança estica o bracinho, nesse caso a gesticulação ocorre com
a produção de fala “dê, dê” que nesse caso podemos considerar uma
HOLOFRÁSE o fica claro que a gesticulação ocorre e se apresenta
bastante relevante na construção dos primeiros enunciados da criança.

Fragmento:3
M.: (mãe mostrando a gatinha para o bebê) pergunta é a gatinha é?
C.:( Bebê olha pra gatinha) diz: há há há há
M.: (Mãe aponta para o gato) dizendo: sai naninha manda ela sair, mande
C.: (Bebê tenta repetir estirando o braço e balançando o dedo indicador)
dizendo: hem hem hem.
M.:( Mãe aponta o dedo o balançando negativamente) diz: sai naninha!
Sai!, manda ela sair manda!
C.: (Bebê repete tudo que a mãe faz, aponta o dedo e o balança
negativamente em direção a gata)
M.: pergunta: Pode ir imbora!né?
C.:(olhando pro animal)diz: Ênhem Ênhem

Nesse fragmento podemos afirmar que todos os gestos aparecem


já que a criança se utiliza da gesticulação quando balança o braço
tentando repetir o que a mãe faz o que caracteriza também a presença
de gestos pantomímicos, além de aparecer também o gesto de apontar
caracterizado como um gesto emblemático já que é culturalmente
utilizado.
241

Fragmento:4 - Situação comunicativa: Bebê e mãe continuam na sala


da casa, ele está em pé sobre o móvel e ela sentada no chão.
M.: - Mãe diz: vo dá agua pro cavalinho olha..
C.: Bebê observa a mãe pondo a mamadeira próximo ao brinquedo.
M.; (Mãe dá agua ao bebê e intercala pondo a mamadeira próximo ao
brinquedo)
C.: (Bebê toma água ´bate palmas) dizendo: êei êei
M.: (Mãe dá agua ao bebê e intercala pondo a mamadeira próximo ao
brinquedo)
C.: (Bebê encaixa a tampa mamadeira) e diz: êh êh êh, (sorrindo para
mãe) êh êh êh

É possível perceber a articulação de mais um gesto emblemático


já que o ato de bater palmas é culturalmente convencionado, além da
presença da gesticulação considerada por Cavalcante e Brandão (2013)
como uma das primeiras pistas da fluência no processo de aquisição da
linguagem e da produção de fala da criança.

5- ALGUMAS CONSIDERAÇÔES

A fim de compreendermos como a interação mãe bebê influencia


na construção dos primeiros enunciados e de como a gesticulação e
afluência se dão no processo de aquisição. Partimos do pressuposto de
a gesticulação é considerada como uma das primeiras pistas de fluência
Cavalcante e Brandão (2012). Tentamos observar como foco de análise
a gesticulação e a fluência junto a interação mãe/ bebê no processo de
aquisição da linguagem, pois percebemos que a gesticulação se
apresenta já nos primeiros meses de vida.
Observamos que a gesticulação está presente de forma natural nas
situações comunicativas desde os primeiros meses de vida do ser
humano em seu cotidiano e a interação mãe/bebê é de fundamental
importância, pois é através da mãe que a criança vive suas primeiras
relações comunicativa e tem o primeiro contato com a linguagem.
242

Através da realização dos gestos pela mãe dentro das situações


interacionais que o bebê dá os primeiros passos para construção dos
primeiros enunciados.
É interessante destacarmos o importante papel atribuído a
gesticulação por Cavalcante e Brandão, as quais acreditam sendo essa as
primeiras pistas de fluência na infância, já que esse gesto é caracterizado
como gesto que acompanha o fluxo de fala. Podemos perceber que os
primeiros gestos ocorrem desordenadamente, porém através das
interações vividas com a mãe a criança vai construindo gestos cada vez
mais perfeitos e dando indícios da formação do seu contínuo gestual.
Resultados mostram que a gesticulação é bastante importante na
produção dos primeiros enunciados da criança, que e embora não
consiga utilizar-se das formas verbais ainda, nas situações
comunicativas utilizam os gestos de maneira que se faça ser
compreendida pelos adultos e é através deles também que consegue
entender os adultos.

REFERÊNCIAS

BRUNER, J. The ontogenesis of speech acts. In: Journal of child


language. Vol.2 Nº 1. Cambridge: Cambridge University Press,
1975.CAGLIARI, L. C. Prosódia: algumas funções dos supra-seguimentos.
In: Cad. Est. Ling., Campinas, 1992. (23): 137-151, Jul/Dez
CAVALCANTE, M. C. B. O gesto de apontar como processo de co-
construção nas interações mãe-criança. Dissertação de Mestrado.
UFPE, 1994.
______, M. C. B. (orgs.) Aquisição da linguagem em multimodalidade.
1ed. João Pessoa: Ed. da UFPB, 2009d, p. 158 (no prelo).
CAVALCANTE M. C. B, .: BRANDÃO LEAL, A. L.; MEDEIRO, F.; AGUIA, M.
A. M.. Comunicação mãe x bebê: padrões entoacionais e trocas
comunicativas. In. A Linguagem e suas interfaces/ org: Moab Acioli,
Maria de Fátima Vilar de Melo, Maria Lúcia Gurgel da Costa – Recife: Ed.
Dos Organizadores, 2006.
243

KENDON, A. The Study of Gesture: someremarks on its history.


Recherches sémiotiques/semiotic inquiry 2: 45-62, 1982.
SCARPA, E. M. Aquisição da linguagem. In: MUSSALIM, F. & BENTES, A.
C.; Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. Vol. 2. São Paulo:
Cortez, 2001.
TOMASELLO, M.,; Origens culturais da aquisição do conhecimento
humano. Tradução: Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
244

O OUTRO DA/NA DIALOGIA - A LINGUAGEM DA MÃE DE UMA


CRIANÇA COM AUTISMO

Juliana Maia Lopes, UFPB


Marianne Cavalcante, UFPB

RESUMO: O autismo é uma desordem do desenvolvimento que implica


em atrasos e dificuldades na interação social, linguagem e habilidades
sensoriais, motoras, cognitivas e emocionais. Implica em dificuldades
para se relacionar, para se comunicar e no pensamento (GREENSPAN
AND WIEDER, 2006). Segundo esses autores, a criança com autismo
teria dificuldade em três áreas essenciais: a) dificuldade para
estabelecer intimidade e carinho; b) dificuldade na interação; c)
dificuldade com o uso funcional da linguagem. Segundo Tamanaha et al.,
2008, as crianças com autismo não conseguem atribuir sentido às
manifestações mentais que os outros demonstram, nem compreendem
o contexto por não prestar a devida atenção ao que acontece à sua volta,
consequentemente, não conseguem inferir significado a partir das
situações que vivenciam. Embora muito se estude sobre a linguagem do
autista e suas manifestações, pouca ênfase é dada ao outro da interação
– aquele que fala com a criança (MAIA LOPES, 2012). Assim, nosso
objetivo é discutir a importância e posição que assume uma mãe que se
dirige à sua filha autista, que movimentos linguísticos efetua nesta
interação e que lugar linguístico é atribuído a esta criança pela sua mãe.
Trata-se de um estudo de caráter observacional qualitativo e tem como
sujeitos uma menina diagnosticada como autista aos 4 anos de idade,
filha única, e sua mãe, uma comerciante casada residente na cidade de
Aracaju, Sergipe. O Corpus do estudo são 3 filmagens realizadas em
contexto domiciliar, desde os 18 meses aos 4 anos de idade, a primeira
sem o diagnóstico, a segunda quando da suspeita de alteração no
desenvolvimento da criança e a última após o diagnóstico. Foi possível
observar o quanto da conduta materna é facilitadora ou dificultadora
para o surgimento do sujeito da linguagem. A criança que se mostra com
245

as brincadeiras com a mãe na piscina, chegando a imitá-la, começa a


tapar os ouvidos quando uma terceira pessoa entra na interação e a mãe
divide a sua atenção entre as duas. Na fala materna que a chama de
“princesa” e de “mamãe”, a criança percebe um convite para o diálogo,
olha e sorri. Está aberta para a interação. A posição atribuída à criança
pela fala materna é essencial para que esta se coloque na linguagem.

PALAVRAS-CHAVE: autismo, interação, dialogia, linguagem.

INTRODUÇÃO

Em uma revisão da literatura sobre a origem do autismo,


Tamanaha et.al (2008), mostra que, quando primeiro relatado por
Kanner, em 1943, o autismo infantil recebeu o nome de Distúrbio
Autístico do Contato Afetivo e foi marcado pelo isolamento autístico,
comprometimento das relações afetivas, comportamentos repetitivos e
incapacidade no uso da linguagem.
Esta revisão literária aponta que logo em seguida, em 1944,
Asperger descreve um quadro semelhante, com prejuízo na interação
social mas, ao contrário do grupo descrito por Kanner, com capacidade
de fala, embora funcionalmente inadequada.
Assim, o distúrbio autístico aparece, desde o seu primeiro
momento, marcado pelo seu isolamento característico e dificuldades
interacionais.
Em 1943, quando Kanner escreveu um artigo detalhando a
experiência com onze crianças com autismo, restava pouca esperança
no que concerne às aptidões deste grupo. Sempre marcadas pelas
dificuldades, via de regra, as crianças com autismo são as crianças que
não conseguem um desenvolvimento adequado da linguagem oral, que
não conseguem uma interação social adequada e que,
consequentemente, têm um atraso no desenvolvimento global.
Em seu artigo, datado de 1943, Kanner observa e descreve um
grupo de crianças autistas e relata que, de modo geral, os pais referem
246

que a alteração no comportamento e nas relações apresentadas pela


criança ocorre desde tenra idade. Neste estudo, Kanner afirma que elas
são comumente classificadas como crianças retraídas, auto-suficientes e
que não exigiam ou solicitavam a presença do outro, como se bastassem
a si mesmas.
O que vai de encontro ao que é enfocado por Perissinoto (2003),
que afirma que as crianças autistas apresentam, desde tenra idade,
alterações no comportamento social que resultam em dificuldades para
iniciar uma interação social: não dão atenção às pessoas, nem mantêm
contato com outras pessoas, não sorriem, não estabelecem contato
visual. Além disso, têm dificuldades em expressar e reconhecer
sentimentos.
A relação da criança com autismo e o outro mostra-se alterada
desde o nascimento, com relatos de bebês que não demonstram
diferenciar seus pais de outros adultos, bem como de crianças que não
demonstram reação às expressões de angústia, tristeza e/ou raiva das
pessoas à sua volta.
Assumpção et al., 1999, descreve a dificuldade que a criança com
autismo tem para o reconhecimento facial. Em artigo publicado, os
autores mostram que um grupo de 30 crianças com autismo, em
comparação com um grupo de adultos neurotípicos e um grupo de
crianças neurotípicas, teve dificuldade significativa no reconhecimento
das expressões faciais, principalmente o reconhecimento das
expressões de alegria, tristeza e raiva, sendo menor a diferença obtida
entre o grupo de autistas quando em comparação ao grupo de adultos
para o reconhecimento facial da expressão de surpresa. Este estudo,
além de identificar o grupo de crianças com autismo como sendo o que
tem maior dificuldade no reconhecimento das expressões faciais,
também marca o grupo de crianças neurotípicas como sendo o mais
perspicaz no reconhecimento das emoções.
Segundo Assumpção (1999), é via reconhecimento das expressões
faciais que a interação adulto-bebê é iniciada e mantida. Cavalcante
(1994) afirma que é a partir do relacionamento “face a face”, em que há
247

troca de olhares, sorrisos, produções vocais e expressões faciais, que se


inicia o diálogo em aquisição da linguagem. A mãe fala por e para o seu
bebê, fazendo-o sujeito do discurso e atribuindo a ele um lugar de
falante. A autora postula que a fala em “manhês”, fala característica
dirigida ao bebê por um adulto cuidador, é a mantenedora desta
interlocução.

Dentro deste contexto em ‘face a face’, o uso do ‘manhês’


traz à tona aquilo que denomino de ‘fala atribuída’, que
consiste na atribuição de voz ao bebê, quando a mãe fala
“como se fosse o bebê” (CAVALCANTE, 1999). Tal
funcionamento é iniciado muito antes de qualquer intenção
propriamente comunicativa do bebê, no momento em que
o bebê tem o seu lugar de interlocutor marcado na fala
materna - quando esta fala como se fosse o bebê. Aqui a
mãe põe em evidência a própria criança, no papel de
locutor, ao atribuir-lhe “voz”. (CAVALCANTE, 2009)

Assim, ao demonstrar dificuldade em reconhecer as


manifestações de sentimentos dos outros, a criança com autismo terá
maior dificuldade no estabelecimento de relações de diálogo e de trocas
comunicativas desde muito cedo. Se há um rompimento ou um não
estabelecimento deste vínculo mãe-bebê, e não nos referimos aqui a
vínculo afetivo, mas, sim, a vínculo linguístico, interacional,
comunicativo, torna-se extremamente difícil o “fazer sujeito” por parte
desta mãe.
“O autista (…). Mostra falta de empatia ou de habilidade para
apreender o estado mental daquele que o escuta, não conseguindo um
discurso comunicativo” (ASSUMPÇÃO, ET.AL, 1999). Os autores
continuam e afirmam:

“Assim, apesar de não quererem parecer rudes, parecem


não compreender as regras sociais que governam uma
conversação aceitável. Esses pacientes também não
248

utilizam gestos com finalidade comunicativa. Assim,


embora crianças autistas possam ter linguagem
desenvolvida e utilizá-la intencionalmente (do modo como
a utilizam com os objetos), isso não significa que se
comuniquem de acordo com o conceito de comunicação, ou
seja, de modo que quem fala afeta as intenções e crenças
daquele que escuta. Utilizam a linguagem instrumental,
embora não de maneira comunicativa.”

As limitações na interação e na busca pelo outro são evidenciadas


desde cedo, marcando desde o primeiro momento a existência da
criança com autismo. Mesmo quando há linguagem, na grande maioria
das vezes, mostra-se diferenciada do padrão, com entonação
inadequada dentre outras alterações.
Kanner descreveu essas crianças como tendo dificuldades de
relacionamento interpessoal, alterações na linguagem oral pela
ausência ou padrão anormal de fala, grande interesse e habilidade no
manuseio de objetos, comportamentos repetitivos e relutância em
aceitar alterações na rotina diária. Para ele, o distúrbio fundamental
mais surpreendente seria a incapacidade das crianças autistas em
estabelecer relações normais com as pessoas e situações.
O relato minucioso feito por Kanner é ainda hoje usado como
parâmetro para os estudos sobre o autismo. As características gerais do
autismo e, especificamente, as características particulares das 11
crianças autistas descritas por ele, retratam um quadro fiel do autismo.
A literatura, ao descrever o fenômeno do autismo (PERISSINOTO, 2003,
LEBOYER, 2003), em muito se assemelha à descrição feita por Kanner.
Diferentes suposições sobre a causa do autismo têm sido levantadas sem
que, contudo, se chegue a uma afirmação única sobre o assunto. O fator
genético aparece em grande parte dos estudos como possível causa,
assim como alterações cognitivas também.
Estudos mais recentes apontam para um modelo neuroanatômico
como possível causador do autismo – segundo esta linha teórica, a
criança com autismo teria um modelo neuroanatômico excessivamente
249

masculino e isso dificultaria o processo de interação. A base desta teoria


é que os cérebros masculinos e femininos são diferentes – o cérebro
feminino consegue atribuir estados mentais, infere e percebe o que
acontece à volta, enquanto que o cérebro masculino é mais
sistematizante – o que é compatível com o funcionamento cerebral de
um sujeito com autismo, sendo que ao extremo.
Outra abordagem sobre as possíveis causas do autismo seria a de
que há uma falha cognitiva que faz com que o sujeito com autismo não
identifique ou reconheça e compreenda os sentimentos e as intenções
dos outros – o que seria determinante para sua dificuldade interacional.

“A inabilidade dos autistas para estabelecer relações


interpessoais eficazes justifica-se pelas ausências na
detecção da intencionalidade e no compartilhamento de
atenção aos objetos e eventos, com os interlocutores. Essas
falhas ocasionam prejuízos na atribuição e na compreensão
de estados mentais, que nem sempre estão explícitos nas
situações dialógicas.” (TAMANAHA, et.al 2008:297).

Baron-Cohen (1988) atribui as dificuldades resultantes do


comprometimento na comunicação pragmática e na interação social a
um déficit na teoria da mente. Segundo Mainieri et al. (2008), a
dificuldade de linguagem apresentada por crianas com autismo que
falam está relacionada à adequação pragmática da linguagem e não à
sintaxe e à semântica. Ou seja, o uso funcional da lingaugem está
comprometido e não a sua estrutura. Ainda segundo a autora (op.cit.),
uma dificuldade na capacidade de atribuição de estados mentais pode
comprometer o uso funcional da linguagem.
A teoria da mente seria a capacidade de metarrepresentar.
Mainieri (2008) mostra que estudos na área da teoria da mente e
autismo apontam no sentido que o contexto pode ser um facilitador
comunicativo. Ainda que haja dificuldades metarrepresentacionais, as
pistas constituintes de todas as situações de interação facilitariam o
desempenho do sujeito com autismo.
250

Domingues et al. (2008:13) destaca a importância do


relacionamento das crianças com seus pares para o desenvolvimento
social e a respeito dos estados mentais.

“Quando a criança começa a entender que o mundo social é


afetado por regras, experiências passadas e opiniões dos
outros, ela passa também a ser capaz de antecipar a
conduta alheia. Em outras palavras, ela passa a desenvolver
uma teoria da mente e a fazer uso dessa nova habilidade na
sua vida prática (…) A compreensão que temos de nossas
mentes permite que interpretaemos a mente de outros
buscando compreender seus gestos, expressões e
ações(...)”.

Assim, é com o outro e no contexto social que a criança passa a


desenvolver habilidades necessárias para a vida cotidiana.
Aparentemente, esta construção da teoria da mente está comprometida
em crianças com autismo porque, segundo a literatura, as dificuldades
interacionais, o isolamento e o distanciamento em relação ao outro
marcam o quadro autístico desde muito cedo.
Perissinoto (2003) afirma que a síndrome autística engloba uma
série de sintomas que não aparecem ao mesmo tempo, nem com a
mesma intensidade, embora todo autista tenha um comprometimento
nas áreas de interação social e comunicação e apresente
comportamentos, interesses e atividades estereotipadas.
Assim, o autismo é tido como uma síndrome com diversos
comprometimentos de cunho comportamental, o que faria da criança
com autismo uma criança diferente das demais não fisicamente, mas em
sua conduta e comportamento. Espera-se dela um comportamento
“autístico”, ou seja, isolamento social, dificuldade na interação,
movimentos estereotipados e repetitivos, dificuldades em aceitar
mudanças na rotina, linguagem comprometida, ausência de gestos. Um
comportamento muito difícil de se lidar e de se “encaixar” nas rotinas
sociais. Desta forma, nos parece natural que uma família com um filho
251

autista, com todas as implicações mencionadas, se sinta na obrigação de


aceitar um comportamento estranho e diferenciado sem
questionamentos, uma vez que trata-se do “autismo” e suas
características.
Esta aceitação do comportamento diferenciado imposto pelo
diagnóstico merece, a nosso ver, ser revista e discutida uma vez que
relatos científicos e relatos colhidos em consultório ou mesmo em sítios
especializados sobre autismo, nos mostram que há um limite para as
implicações impostas pelo autismo. Um exemplo disso é a criança que
tem dificuldade em usar determinado tipo de roupa. Considerando-se
que é característica do autismo uma desorganização sensorial, de fato
alguns tecidos ou texturas podem ser difíceis para a criança autista,
contudo, isto não justifica a criança andar o tempo inteiro sem roupa,
“porque é autista”.
Várias outras indagações poderiam ser feitas neste contexto, com
o objetivo de ressaltar que de tão limitador que é caracterizado o quadro
autístico, muitas famílias se sentem, de fato, fadadas a simplesmente
aceitar todo e qualquer comportamento da criança autista.
Além de tudo que é escrito na literatura, e sobretudo por conta
desta literatura, há muitas “ideias” que permeiam a cultura sobre o
autismo.
Segundo Cavalcanti e Rocha (2001), diversas metáforas
relacionadas ao autismo fazem parte do imaginário popular e clínico e
interferem na concepção que pais, familiares e profissionais tem sobre
a criança. As crianças autistas são tomadas como “ausentes”, “conchas”,
“buracos negros”, são definidas pela falta de imaginação, de desejo, de
interação e de relação com a vida. Tem-se a sensação de se tratar de uma
criança composta apenas de corpo físico, sem sentimentos.
É de grande impacto a ideia que se tem sobre o autismo e não há
como isso não interferir na vida dos familiares, das pessoas que lidam
com a situação e dos próprios autistas. Se todo rótulo que se dá a uma
criança implica consequências futuras importantes, o rótulo de autista
traz em si uma carga muito forte, um estigma que vai além do conceito
252

da doença, remetendo a uma ideia de um quadro limitado, impondo ao


autista o lugar daquele que não tem o que oferecer e de quem,
consequentemente, não se pode pedir muito, o que dá margem a
diversas implicações na vida destas crianças.
Em nossa concepção, a comunicação é um ato contínuo em termos
de conhecimento. Parte-se de algum lugar - “infant” - para o lugar da fala
- “falante”. Algo precede a fala e isto precisa ser compreendido como
fundamental no processo comunicativo. Sendo que o que precede a fala
já é um ato comunicativo, é interação, é crescimento cognitivo, faz parte
de um processo maior, mais complexo e que compõe a interação, o
dialogismo.
Apesar da palavra “precede” ter sido usada, destacamos que a
linguagem não acontece sem a gestualidade e a gestualidade está
inserida na linguagem, faz parte desta. Assim, embora haja uma
comunicação anterior à fase de oralização do bebê, acreditamos que
essa comunicação via olhar, balbucio, choro, sorriso, entre outros, está
na mesma matriz que a fala. Ou seja, o bebê que reage a estímulos
externos da maneira esperada e está inserido num contexto de
linguagem que irá permitir que se constitua sujeito da linguagem e,
como tal, irá desenvolver a linguagem oral assim como desenvolveu a
gestualidade. Por outro lado, as crianças com autismo apresentam,
desde antes da idade esperada para o desenvolvimento da linguagem
oral, dificuldades interacionais marcantes.
Para que melhor se compreenda esta ideia mais ampla de
linguagem, achamos necessário conceituar e caracterizar, conforme a
perspectiva teórica defendida, comunicação não verbal e sua relação
direta e fundamental no processo interativo.
A comunicação não verbal inclui todas as mensagens não orais
que as pessoas trocam em contextos interativos (HECHT, 1999). É o
comportamento (intencional ou não), o modo de vestir, a postura
corporal, a expressão facial, o tom de voz, a velocidade de fala. Ou seja,
todo artifício utilizado para marcar e reforçar nossa opinião.
Segundo Hecht et al. (1999), a comunicação não verbal é até mais
253

confiável que aquilo que dizemos. Contudo, e ainda segundo o mesmo


autor (op.cit.), não se pode “ler” ou “decifrar” todo e qualquer
comportamento verbal pois este pode ser ambíguo. Há uma tendência a
se pensar que, por ser mais espontânea, a comunicação não verbal é
também mais autêntica e confiável.
Para a interação dialógica, fazemos uso da linguagem oral e de
dois canais igualmente importantes: o canal visual, que é a nossa
postura, nosso modo de vestir, a distância que mantemos da outra
pessoa; e o canal vocal, que inclui nosso tom de voz, o volume, a altura,
a entonação (HECHT, 1999).
Ferreira (2004) em sua tese mostra como são desenvolvidas as
relações de uma criança autista no dia-a-dia em casa, na clínica e na
escola, e questiona se há, desde a fase inicial da vida desta criança, a
troca de papéis na interação, se a esta criança é atribuído o lugar de
falante e/ou de locutor. Em sua análise de dados, a autora mostra que
não há: “alternância sucessiva dos lugares de falante e ouvinte, troca
fundamental para início e desenvolvimento de jogos de linguagem”
(FERREIRA, 2004, p. 148).
Em sua hipótese de estudo, Ferreira (op.cit.) levanta a
possibilidade do interlocutor/outro da interação partir sempre do
pressuposto de que não haverá resposta por parte da criança autista e,
consequentemente, não se consegue estabelecer uma interação efetiva
com esta criança. Tal hipótese corrobora com as metáforas existentes na
sociedade, mencionadas por Cavalcanti e Rocha (2001) e que colocam o
autista no lugar sempre de falta, de ausência, de “incapacidade para”.
Assim, se já se espera que esta criança não fale e não compreenda, como
permitir que isso aconteça? Ou melhor, se nada se espera da criança
autista, então como ela poderá ocupar outro papel além daquele “vazio”
que lhe é atribuído?
Para que se possa olhar além da fala caracterizada como
“ecolálica” e “descontextualizada” (KANNER, 1943; LEBOYER, 2003) e
da linguagem gestual como “inexistente” (LEBOYER, 2003), usaremos a
perspectiva de linguagem que não se limita à emissão oral
254

compreensível como um código perfeito, mas, sim, numa perspectiva


mais ampla - a de linguagem como processo de subjetivação constituída
no e pelo sujeito (DE LEMOS, 2000).
Neste sentido buscamos também incluir a gestualidade como
constitutiva da linguagem, considerando gesto e fala como uma unidade
significativa (McNEILL, 2000; KENDON, 1982).
A seguir, daremos continuidade com a transcrição e análise dos
dados. Usaremos uma tabela e uma transcrição literal da fala materna a
fim de uma apresentação mais fidedigna da realidade.

MÉTODO

O presente estudo toma como caso clínico o da criança que


chamaremos Larissa1, de 06 anos de idade, diagnosticada como autista
aos 04 anos de idade. A criança foi atendida em uma clínica particular
da cidade de Aracaju durante três anos pela fonoaudióloga /
pesquisadora deste estudo.
Esta pesquisa é classificada como qualitativa e teórico-analítica e
tem como corpus as transcrições integrais de filmagens caseiras
realizadas pela mãe da criança em contextos diversos: em casa com os
pais, com uma prima, com colegas; na rua com os pais; na casa do avô
com outras crianças; em um clube com os pais e primos; na praia com os
pais. Também foram analisadas transcrições de sessões terapêuticas
com a fonoaudióloga, com a mãe da criança, com uma terapeuta
ocupacional. As filmagens caseiras foram realizadas desde os 18 meses
da criança até os 6 anos de idade; as filmagens realizadas em consultório
foram realizadas quando a criança tinha entre 4 anos e 6 anos e 10
meses. Para este artigo faremos uso de três transcrições, o primeiro sem
suspeita de diagnóstico, o segundo quando já havia suspeita do
diagnóstico e a última após o diagnóstico e início do tratamento.
Para as transcrições das sessões, faremos uso de um modelo
proposto por Cavalcante (1999), a fim de padronizar as transcrições e,
acreditamos, melhor retratar a interação, dando espaço para a fala e
255

para a ação de cada indivíduo.

TRANSCRIÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS

Recorte 1 – Idade da criança: 1 ano e 9 meses.


Contexto: L. está dançando na sala da sua casa, junto com uma prima
mais velha de cinco anos de idade. A mãe da criança filma a situação. Na
televisão passa um DVD de uma banda de forró eletrônico.

T* Gesto Fala Gesto Fala


(Mãe) (Mãe) (Criança) (Criança)

1 Lári' se'guri As duas criança dançam na sala.


naum e'la' (rodando e dançando). Larissa
imita o que a criança maior faz
(rodopiar)

2 cha'mi e'la
Andressa'
cha'mi e'la'
cha'mi e'la si
naum ela naum
vai

3 Criança maior bate as duas mãos lárissa'

4 Larissa volta para a sala e


começa a dançar imitando a
criança maior.

5 Ah eu naum vou Larissa se aproxima da camera e Humm humm.


filmar mais olha para ela. Sorri e tenta pegar
naum, ela naum a camera com a mão direita
fica nu lugar aberta.
certu'
256

6 Mãe pede Vá pra lá pra ela As duas crianças dançam e


que ficar cum você rodopiam juntas na sala.
Andressa
vá ficar
com
Larissa na
sala
dançando

7 Mãe pede Pari se naum As duas crianças rodopiam


para que ela vai ficá tonta juntas. Larissa rodopia com os
Andressa braços abertos e olhando para o
pare de chão.
rodopiar.

8 Chami ela Larissa para de rodopiar e fica


Andressa andando pela casa e olhando
para o chão, enquanto que
Andressa continua a dançar.

9 Vá para Larissa pega um objeto no


garagem,traga quarto e sai andando pela casa.
ela para
garagem.
Venha, leve.

Neste recorte, apesar de a criança já ter 21 meses, e nesta idade as


crianças já realizem trocas interacionais, vemos que a mãe de Larissa só
se dirige a ela no primeiro turno quando diz: “Lari, segure não ela”. Os
demais enunciados são dirigidos à criança mais velha para direcionar as
ações de L.:

“chame ela, chame ela senão ela não vai” (turno 2);
“ vá pra lá pra ela ficar com você” (turno 6);
“ Pare, senão ela vai ficar tonta” (turno 7);
“ Chame ela, Andressa” (turno 8);
“ vá para a garagem, traga ela para a garagem. Venha, leve” (turno 9).

Em sete enunciados maternos, apenas um é dirigido à criança em


257

análise, embora todos sejam sobre a criança e com o objetivo de moldar,


controlar seu comportamento. Não cabe à criança o lugar de “ouvinte”
do discurso da mãe, a mãe não lhe atribui este lugar ao pedir a outra
criança que faça as coisas para moldar o comportamento de Larissa. Se
a esta criança não é atribuído sequer o lugar de ouvinte, podemos
imaginar que também não será atribuído o lugar de falante. Para a mãe,
é como se a criança não compreendesse o que ela fala, daí ser
desnecessário falar com ela.
É importante ressaltar que neste recorte a criança não tinha
recebido o diagnóstico de autismo, e a mãe, em sua entrevista, afirma
que só percebeu alguma coisa de “diferente” na filha por volta dos dois
anos de idade. Teoricamente, à altura em que esta filmagem foi feita, a
mãe enxergava uma filha sem qualquer comprometimento.
Questionamos que visão é essa que permite a uma criança de 18 meses
não compreender o discurso materno, ou ainda, que justifica uma fala
nunca direcionada à criança.

Recorte 2: Idade da criança: 24 meses. Contexto: Mãe e filha brincam em


uma piscina inflável, na parte externa da casa.
A mãe filma.

T* Gesto Fala Gesto Fala


(mãe) (mãe) (criança) (criança)

1 Criança em pé, pula na


piscininha

2 púla púla púla púla


púla púla púla pulô.

3 Pára de pular e começa a andar hum'hum'


em círculos com as mãos nos
ouvidos
258

4 Tira as mãos dos ouvidos e


começa a pular de forma
desordenada, movimentado os
braços (olhar não direcionado).

5 Ê: oia só qui lindu

6 Volta a colocar as mãos nos


ouvidos, com os polegares na
boca (olhar não direcionado)

7 O:lha qui lindu! Olha


só qui lindu. Olhe
ela.olha só qui
lindo!larissa! Tira
mão do ouvido!

8 Permanece com os dedos nos


ouvidos e sorri (olhar não
direcionado)

9 Tire a mao do A criança permanece com os Ahumm ahumm.


ouvido pra mamai dedos no ouvido. Ma ma ê
!olha só qui linda!

10 Criança tira a mão do ouvido e


começa a pular, balançando os
braços para cima e para baixo de
forma desordenada.

11 Ê: Criança pula e coloca a mão no


ê: ouvido, começa a andar

12 Tira a mão do ouvido

13 Mãe Pula pula pula!


próxima
a criança
bate
palmas.

14 Tapa os ouvidos com as mãos

15 Pessoas falando Criança roda com os dedos no


(mãe fala Tb) ouvido.
259

Neste recorte (sessão 2), fica claro o incômodo que L. sente com
estímulo auditivo. Repetidas vezes ela coloca as mãos nos ouvidos
quando há estímulo sonoro (turnos 1, 4, 6, 7, 9, 12, 13). Estas “pistas”
dadas por Larissa através da sua linguagem corporal, que nos parecem
tão claras não são interpretadas por sua mãe. Ainda que a criança ponha
a mão sobre os ouvidos sempre que há um estímulo auditivo mais forte,
sua mãe não parece perceber que o som pode incomodá-la; ao contrário,
solicita que ela tire as mãos dos ouvidos, fala alto e bate palmas.
Esta manifestação linguística através do corpo (colocar as mãos
sobre os ouvidos) é interpretada pela mãe como sendo “mais uma das
manias que ela tem por causa do autismo” (afirmação da mãe da
criança), apesar de a criança estar ainda sob hipótese diagnóstica. A
solicitação da criança, sua manifestação de inquietação e incômodo não
são acolhidas, e sim tratadas como patológicas. Assim, L. não pode
“dizer” o que sente, porque sua comunicação não é compreendida. Não
é uma criança que mostra que tem intolerância ao barulho ao colocar as
mãos sobre os ouvidos, é o autismo que aparece em primeiro plano,
nomeando tal comportamento de “estereotipia”.
Neste recorte, assim como aconteceu no recorte anterior, não
parece haver intenção de interagir com a criança, mas sim de filmá-la. O
discurso materno, apesar de ser sobre a filha, não parece facilitar sua
inserção na dialogia. É como se falasse sobre alguém sem que esse
alguém estivesse presente.

Recorte 3: Larissa com os brigadeiros. Idade da criança: 04 anos e 3


meses. Contexto: Larissa sentada na sala de sua casa, segurando um
prato de brigadeiros, sua mãe filma.
260

T* Gesto Fala Gesto Fala


(mãe) (mãe) (criança) (criança)

1 Lari:ssa’ mi dê um Criança observa os ah:hum


brigadêro' docinhos. Apoia as duas
mãos fechadas no
queixo.Apos a fala da
mãe, a criança coloca o
dedo indicador no
ouvido.

2 Humm Bom Criança coloca os dedos Aimm aimm


né?humm. dê um pra indicadores no ouvido. ahumm
mamai, dê? Dê um a
mamai Lala, dê um a
mamai. Dê a mamai.
Ô:i.

3 Mãe A criança tira com a mão hum'hum'


estende a Dê a mamai. Olhi a direita o brigadeiro da
mão direita mão di mamai.olhi mão da mãe.
para a olhi.ohh
criança, A criança abaixa a
como uma cabeça e coloca o dedo
forma de no ouvido novamente
pedir o durante o movimento e
brigadeiro a fala da mãe.

4 Mãe Olhi u di mamai, olhi Criança olha para baixo ,


estende a olhi.olhi na mão di para os outros
mão direita mamai brigadeiros
com um Larissa você vai tomá
brigadeiro da mão da sua mãe?
em cima na
frente da
criança

5 Mãe Olha Lala, u A criança estende o


estende a brigadeiro, olha u braço direito com a mão
mão direita brigadeiro aberta para tentar pegar
com um o doce.
brigadeiro
em cima;
movimenta
a mão para
frente e
para trás na
frente da
criança
261

6 Olhi ele. Você quê u A criança pega o


brigadero é? brigadeiro e coloca
dentro do forminha.

7 Eita, Larissa vai comê Criança pega os


todo u brigadero. brigadeiros com os
dedos indicadores e
polegares.

8 Humm qui delicia! Ahumm

9 Mãe Humm. Bom né? É A criança alterna o olhar Ahumm ahumm.


estende bom? entre os brigadeiros e a
mao direita mão da sua mãe
com a
palma para
cima na
frente da
criança

10 bom né?

Neste recorte evidenciamos uma mudança drástica na postura


materna. A mãe de Larissa se dirige à filha durante toda a interação,
falando com ela e permitindo que esta se coloque por gestos, olhares e
sons. No turno 2, vemos que a mãe repete o som feito por Larissa “ah
hum” e transforma em “hum, bom né?”, dando significado ao que é “dito"
pela criança. Evidentemente a mãe fala pela criança, num sentido de fala
atribuída tão característica do manhês num estágio inicial de aquisição
de linguagem (CAVALCANTE, 1999).
A mãe de Larissa também coloca a filha no papel de interlocutora
e de outra da interação quando mostra o brigadeiro para ela, dizendo
“olha o brigadeiro de mamãe”. Nesta fala materna também há a
atribuição de papéis, mãe e filha, colocando Larissa no lugar de filha, de
outro da interação.
Quando a criança tenta pegar o brigadeiro da mão de sua mãe
262

(turno 5), a mãe imediatamente interpreta esta ação, narrando-a e


dando sentido aos gestos de Larissa.
A fala de Larissa “ah: hum” repetida durante toda a interação é
interpretada como algo bom e positivo pelo discurso materno.
Assim, Larissa é posta na dialogia e no lugar do outro da interação
- lugar de falante e de ouvinte, de autor e, consequentemente, de sujeito
da linguagem.
A fala, neste caso específico a fala materna, movimenta o outro da
interação colocando-o em diferentes lugares: o de alguém sobre quem
se fala (recorte 1); o de alguém com um diagnóstico sobre quem se fala
e cujo diagnóstico dá significado aos gestos (recorte 2) e, por fim, o lugar
do outro do discurso, do falante, do sujeito da linguagem.
Vemos no terceiro recorte uma interação mãe-filha, com as
interpretações e falas tão características da fala materna dirigida a um
filho que ainda não fala, mas que já se coloca na interação. A mesma
autora da fala que hora calava uma criança que parecia não estar ali
(recorte 1) é a que puxa Larissa para a interação falando por e com ela
insistentemente, acreditando ser ela um sujeito de linguagem. O que
mudou no discurso materno pode ser evidenciado nos recortes e
transcrições, mas a mudança essencial foi na ideia de sujeito configurada
por essa mãe que passa, gradualmente, a enxergar na sua filha um ser de
vontade, de existência própria e de linguagem.

Referências bibliográficas

ARRUDA, I. F., SILVA, K. N. B. (2004). Caracterização da prática clínica


fonoaudiológica no campo da psicose e autismo infantil. Monografia
de Graduaçao do Curso de Fonoaudiologia. Faculdade Integrada do
Recife.
BALESTRO, J. I.; Souza, A. P. R; RECHIA, I. C. Terapia fonoaudiológica em
três casos do espectro autístico. Revista da Sociedade Brasileira de
Fonoaudiologia. 2009; 14 (1):129-35.
BARON-COHEN, S. Social and pragmatic deficits in autism: cognitive or
263

affective? Journal of Autism and Developmental Disorders, 18: 379-


402 (1988).
FERNANDES, F. D. M. Autismo Infantil: repensando o enfoque
fonoaudiologico. Aspectos funcionais da comunicaçao. Sao Paulo,
Editora Lovise Ltda.; 1996.
MENEZES, C. G. L., JACY, P. Joint Attention ability in children with autistic
spectrum disorders. Pró-fono revista de atualização científica. 2008,
20(4):273-8.
OTTONI, P. John Langshaw Austin e a visao performativa da linguagem.
Delta: Documentaçao de estudos em linguística teorica aplicada. vol.18
n.1 Sao Paulo, 2002.
SILVA, R. A., LOPES-HERRERA, S. A., DE VITTO L. P. M. Disturbio de
linguagem como parte de um transtorno global de desenvolvimento:
descriçao de um processo terapeutico fonoaudiologico. Rev. Soc. Bras.
Fonoaudiologia, 2007;12(4):322-8.
TAMANAHA, A. C., PERISSINOTO, J, CHIARI, B. M. Uma breve revisao
historica sobre a construçao dos conceitos do Autismo Infantil e da
Síndrome de Asperger. Revista da Sociedade Brasileira de
Fonoaudiologia 2008; 13(3): 296:9.
MAINIERI, A. G.; SPERB, T. M. A teoria da mente na vida diaria de
indivíduos autistas. In: Desenvolvimento sociocognitivo: estudos
brasileiros sobre “teoria da mente”. / Tania Mara Sperb e Maria Regina
Maluf (org.). 1ed. Sao Paulo: Vetor,2008.
DOMINGUES, S. F. S; MALUF, M. R. Compreendendo estados mentais:
procedimentos de pesquisa a partir da tarefa original de crença falsa. In:
Desenvolvimento sociocognitivo: estudos brasileiros sobre “teoria da
mente”. / Tania Mara Sperb e Maria Regina Maluf (org.). 1ed. Sao Paulo:
Vetor, 2008.
264

PERSPECTIVAS SOBRE ATENÇÃO CONJUNTA: DA AQUISIÇÃO À


CONSOLIDAÇÃO DA LINGUAGEM

José Moacir Soares da Costa Filho, IFPB

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo discutir algumas


perspectivas acerca da teoria da atenção conjunta. Esta teoria, que desperta
o interesse de diferentes áreas, como, filosofia e antropologia, em
linguística está associada às discussões sobre aquisição da linguagem a
partir da perspectiva da multimodalidade. Bruner (1975, 1983) é um dos
primeiros autores a discorrem sobre atenção conjunta, tomando esta como
um funcionamento presente nas primeiras interações da criança. Esta
perspectiva é aprofundada por Tomasello (2003), que também considera a
atenção conjunta como um processo inserido na rotina infantil e que se
consolida por volta dos nove meses de idade. Já nas considerações de
Butterworth (1995), é destacado o papel do adulto no monitoramento do
olhar da criança de modo a constituir a atenção conjunta. Os três teóricos
mencionados têm em comum a discussão sobre atenção conjunta com
crianças na fase de aquisição da linguagem, diferenciando-se, portanto, da
perspectiva adotada por Diessel (2006), que chama a atenção para a
continuidade do processo de atenção conjunta mesmo após a aquisição da
linguagem. Com base nas discussões citadas, analisamos neste trabalho
dados naturalísticos de atenção conjunta infantil com duas crianças na
faixa-etária de três a quatro anos de idade, numa situação em que estas
crianças assistem com a mãe a um desenho animado. Estes dados foram
coletados através de quatro sessões para cada díade, com duração média
de oito minutos cada, e o desenho animado escolhido foi o Pocoyo, que é um
desenho que propõe uma estrutura interativa entre animação e
telespectadores. Percebemos que o formato da atenção conjunta de fato
não se dilui após a aquisição da linguagem, ao contrário disso, constitui-se
como um funcionamento que serve de base para a consolidação do
processo de aquisição da referência linguística.
265

PALAVRAS-CHAVE: atenção conjunta; aquisição da linguagem; referência


linguística.

ABSTRACT: The aim of this paper is to discuss some perspectives on the


theory of joint attention. This theory, studied by different areas, such as
philosophy and anthropology, is associated in linguistics to the discussions
concerned to language acquisition under multimodality perspective.
Bruner (1975, 1983) is one of the first theoreticians to hash over joint
attention, considering it as a functioning present in child’s first interactions.
This perspective is deepened by Tomasello (2003), who also considers joint
attention as a process inserted in child’s routine and that is consolidated
around child’s ninth month. Butterworth (1995), however, emphasizes the
adult’s role in the monitoring of child’s gaze in order to constitute joint
attention. The three theoreticians mentioned share the discussion about
joint attention considering children during the period of language
acquisition, which differs from the perspective adopted by Diessel (2006),
who highlights the continuation of the process of joint attention even after
language acquisition. Based on the discussions previously mentioned, this
paper presents analysis of naturalistic data of joint attention with two
children (from three to four years old), when they watch a cartoon with
their mothers. This data was collected during four sessions of eight minutes
with each dyad, and the cartoon chosen was Pocoyo, which proposes an
interactive structure between animation and spectators. It was noticed that
the format of joint attention does not disappear after language acquisition;
quite on the contrary, it constitutes a functioning which is the basis for the
consolidation of the acquisition of the linguistic reference.

KEYWORDS: joint attention; language acquisition; linguistic reference.


266

Introdução

Miguens (2006) destaca que o fenômeno da atenção conjunta


desperta o interesse em diferentes áreas, dentre elas, a psicologia
cognitiva e a primatologia. Na área de Linguística, a atenção conjunta é
estudada comumente por teóricos interessados no processo de
aquisição da linguagem, os quais tomam a interação como base para o
desenvolvimento cognitivo. Isto porque a atenção conjunta é, por
definição, um processo interativo no qual mãe e criança se inserem
durante episódios do dia-a-dia.
Desde que surgiram os primeiros estudos sobre a atenção
conjunta em meados da década de 1970, o tema tem sido discutido por
alguns teóricos que se inserem nas diferentes áreas mencionadas
anteriormente.
Neste trabalho, discutimos a atenção conjunta com base em
quatro perspectivas distintas: Bruner (1975; 1983); Tomasello (1995;
2003); Butterworth (1995) e Diessel (2006). Os três primeiros autores
debruçam seus estudos sobre pesquisas com crianças em fase de
aquisição de linguagem, sendo este o grande diferencial em relação ao
último autor mencionado, que discute a ocorrência da atenção conjunta
como processo contínuo na rotina de crianças que já adquiriram
linguagem.
Considerando a diferença entre as perspectivas mencionadas,
propomo-nos neste trabalho a discutir algumas perspectivas acerca da
teoria da atenção conjunta, a partir da observação de dados
naturalísticos de atenção conjunta infantil com duas crianças na faixa-
etária de três a quatro anos de idade, numa situação em que estas
crianças assistem com a mãe a um desenho animado.
A seguir, veremos através de uma breve discussão os principais
pontos defendidos por cada uma das perspectivas mencionadas.
267

1. Atenção conjunta: algumas perspectivas

Um dos primeiros pesquisadores a se dedicar ao estudo da


atenção conjunta é Bruner (1975; 1983). Em seus estudos, o autor
recusa teorias vigentes em outros momentos das discussões sobre
aquisição, como, por exemplo, o gerativismo, e se destaca por considerar
a fase da aquisição de linguagem como um processo que engloba desde
interações afetivas entre mãe e criança até o uso de comportamentos
não-verbais para o estabelecimento das trocas comunicativas.
Desse modo, o autor parte da noção de que desde o momento de
seu nascimento, a criança insere-se em contextos comunicativos com os
sujeitos que a cercam e, através dessas interações primeiras, aprende a
expressar seus desejos bem como compreender os desejos de seus
interlocutores. No entanto, diferentemente do que fazem os adultos, a
criança, não dominando ainda a capacidade de produzir sentenças,
garante seu lugar nas trocas comunicativas através de comportamentos
não verbais, tais quais os gestos e a própria atenção conjunta.
Tomasello (1995; 2003) enxerga a atenção conjunta como um
fenômeno social peculiarmente estruturado, no qual também estão
inseridos fatores culturais. Para ele, a atenção conjunta tem suas origens
no desenvolvimento infantil dentro de um período que ele chama de
“revolução dos nove meses”. Nesse período, conforme considerações do
autor, os bebês começam a se inserir em comportamentos novos que
“parecem indicar certa revolução na maneira como entendem seus
mundos, sobretudo seus mundos sociais” (TOMASELLO, 2003, p. 84)
Essa revolução está atrelada também ao que o autor discute sobre
o entendimento pela criança do outro como agente intencional igual a
ela própria, ou seja, um sujeito dotado de objetivos e que é capaz de fazer
escolhas comportamentais para alcançá-los (TOMASELLO, 2003, p. 94).
Dessa forma, podemos perceber que a atenção conjunta é um
funcionamento de que o bebê lança mão para que seu lugar na interação
seja garantido. A utilização da atenção conjunta não é, entretanto,
unicamente infantil, já que o adulto também utiliza a estratégia de
268

atenção conjunta para estabelecer trocas comunicativas com a criança.


A única diferença, nesse caso, é que o adulto detém a capacidade de
utilizar a linguagem verbal para sustentar a cena de atenção conjunta,
enquanto o infante lança mão de formas de comunicação não verbal,
como, por exemplo, o gesto de apontar. (TOMASELLO, 2011, p. 35)
Nesse sentido, além de confirmar a relação entre a revolução dos
nove meses e o estabelecimento dos episódios atenção conjunta, o autor
sugere ainda a importância que estes episódios exercem durante o
processo de aquisição da linguagem.
Os episódios ou cenas de atenção conjunta são definidos pelo
autor como “interações sociais nas quais a criança e o adulto prestam
conjuntamente atenção a uma terceira coisa, e à atenção um do outro à
terceira coisa, por um período razoável” (TOMASELLO, 2003, p. 135).
De acordo com a definição apresentada acima, percebemos que o
autor aponta para a necessidade de que criança e adulto estejam
mutuamente engajados e reconheçam a atenção que cada um dedica ao
objeto ou situação que serve de foco para o olhar dos dois, ou seja, não
seria suficiente para que houvesse a atenção conjunta apenas o fato de
que adulto e criança estivessem olhando para o mesmo foco. Sem a
percepção da atividade conjunta, entendemos que o “olhar para um
mesmo foco” trata-se apenas de uma situação de olhar compartilhado e
não uma cena de atenção conjunta na concepção adotada por Tomasello
(2003).
Pelo caráter complexo da atenção conjunta, Tomasello (2003)
aponta também que, através de experimentos desenvolvidos por ele e
outros pesquisadores (CARPENTER; NAGELL & TOMASELLO, 1998), há
sutis diferenças no formato da atenção conjunta. Essas diferenças
permitem que o autor apresente uma classificação para os diferentes
formatos de atenção conjunta e, ao que parece, estão relacionadas
principalmente à postura que a criança assume na cena de atenção
conjunta. São três os tipos de atenção conjunta apontados pelo autor.
O primeiro deles, nomeado como atenção de verificação,
estabelece-se em uma atividade conjunta em que o adulto mostra o
269

objeto – tomando este objeto como um “obstáculo social” – ao bebê.


Como faixa-etária em que ocorre, o autor aponta o período de nove a
doze meses da criança.
O segundo tipo de atenção conjunta, por sua vez, tem como
importante constituinte o gesto de apontar, pois, em uma situação em
que o adulto parece estabelecer uma referência social, o bebê se volta,
através do direcionamento dado pelo olhar do adulto ou pela indicação
feita com o dedo, podendo ainda haver a junção entre olhar e apontar,
para o objeto no qual a díade deposita sua atenção. Esse tipo de atenção
conjunta recebe o nome de atenção de acompanhamento. Segundo o
autor, esse formato de atenção conjunta ocorre entre os onze e quatorze
meses.
O terceiro tipo, a atenção direta, também tem em seu formato a
presença do gesto de apontar, que pode ser, conforme enfatiza o autor,
declarativo ou imperativo. A diferença, entretanto, é que neste tipo de
atenção conjunta parece ser mais explícita a entrada do objeto foco da
atenção, fato que se dá através da linguagem referencial utilizada pelo
sujeito que traz o objeto à cena. A atenção direta é situada entre os treze
e quinze meses (TOMASELLO, 2003, p. 89).
Butterworth (1995), por exemplo, define atenção conjunta como
comportamentos em que um sujeito olha e segue o olhar do outro ou
olha na mesma direção em que o outro está olhando. O autor destaca o
papel do adulto dentro da interação ou comportamento de atenção
conjunta quando acrescenta que “o adulto assume a responsabilidade
pela atenção conjunta ao monitorar o olhar do infante e trazer sua
própria atenção ao mesmo foco” 1 (BUTTERWORTH, 1995, p. 30).
Desse modo, o monitoramento do olhar infantil realizado pelo
adulto define o sucesso do engajamento da criança em situações de
atenção conjunta com este adulto. A capacidade de monitoramento do
foco da atenção, entretanto, não está restrita ao adulto, uma vez que o

1 Tradução nossa para “the adult took responsibility for joint attention by monitoring the
infant’s gaze and bringing her own attention to the same focus”.
270

autor enfatiza que também o infante deve ser capaz de exercer tal
monitoramento. Porém, para que a capacidade de estabelecimento de
uma cena de atenção conjunta seja recíproca, a criança precisa
desenvolver rotinas interativas em que sejam vivenciadas experiências
de engajamento visual.
Butterworth (1995) utiliza ainda o que ele chama de três
mecanismos para explicar a atenção conjunta. Apontado como
ecológico, no primeiro mecanismo, o adulto orienta o olhar do bebê para
uma determinada direção. Já no segundo mecanismo, o mecanismo
geométrico, o próprio bebê apresenta a capacidade de localizar o olhar
do adulto e direcionar seu olhar para onde o adulto está olhando. O
terceiro mecanismo, ou mecanismo representacional espacial, é
estabelecido quando o bebê controla a atenção visual conjunta através
de movimentos realizados pelo adulto com a cabeça e os olhos.
Conforme podemos perceber, tanto Tomasello (2003) quanto
Butterworth (1995) subdividem explicações a respeito da atenção
conjunta em três diferentes pontos. Desse modo, vemos a possibilidade
de entrelaçar as duas teorias, conforme apresentamos na tabela 1.
271

Tabela 1
Tipo de Atenção
Mecanismo Contexto
Conjunta
A criança direciona seu olhar através de um movimento
que a permite verificar um dado objeto inserido no
espaço. Não há obrigatoriamente o uso do gesto de
Verificação Ecológico apontar pelo adulto. A orientação espacial em direção
ao objeto foco pode ser realizada unicamente por
linguagem verbal num contexto em que se fala sobre tal
objeto.
A criança projeta seu olhar para um determinado objeto
foco da atenção conjunta ao acompanhar um
comportamento gestual do adulto. Há a presença do
gesto de apontar (segundo a tipologia de Tomasello),
porém, conforme os mecanismos de Butterworth, o
Acompanhamento Geométrico
olhar do adulto é o direcionador da atenção da criança.
Este dado reforça a hipótese de que na ausência do
apontar convencional, apenas o olhar em direção a um
objeto cumpre a função de levar a criança a observar o
foco da atenção conjunta (COSTA FILHO, 2011).
A criança apresenta noção espacial mais madura, de
modo que se torna capaz de controlar o
desenvolvimento da cena de atenção conjunta. Ambos
os sujeitos, adulto e criança, são responsáveis pela troca
Representaci comunicativa caracterizada na cena de atenção
Direta
onal espacial conjunta, que combina linguagem verbal (com
frequente presença de itens linguísticos dêiticos) e
linguagem não verbal, representada por gestos
declarativos e/ou imperativos, além do direcionamento
feito através do olhar.

O ponto em comum entre as teorias até então discutidas é o fato


de os teóricos considerarem o estudo da atenção conjunta com crianças
em fase de aquisição da linguagem. Esta perspectiva distancia-se da
hipótese de Diessel (2006) que, ao criticar a baixa quantidade de
estudos acerca do tema com crianças após a aquisição da linguagem e
afirma que

a atenção conjunta é portanto não apenas importante para


coordenar o foco de atenção de interlocutores em uma
situação discursiva, mas também exerce um importante
272

papel na organização interna do discurso2 (DIESSEL, 2006,


p. 478).

Para o autor, a atenção conjunta exerce um papel importante não


só para a aquisição da linguagem, mas também para a consolidação
desta através da comunicação, do discurso e da gramática. Desse modo,
o autor situa a atenção conjunta no contexto do qual emerge e se
consolida a referência espaço-temporal.
Desse modo, a atenção conjunta é um processo cuja importância
ultrapassa os limites da aquisição da linguagem e influencia a
organização discursiva da criança, ou seja, torna-se responsável pela
linguagem que, durante o primeiro ano de vida, ajudou a criança a
adquirir.
Diessel (2006) destaca, por fim, que a atenção conjunta fornece a
orientação espacial necessária para a aquisição da referência espaço-
temporal, já que é um formato não-verbal dêitico e, portanto,
equivalente, por exemplo, à utilização de elementos verbais como os
demonstrativos. Assim, tanto a utilização de demonstrativos quanto o
estabelecimento da atenção conjunta desempenham a função de
direcionar a atenção, em situações comunicativas, de interlocutores
para um determinado referente.
Desse modo, a atenção conjunta pode ser inserida no processo de
aquisição referencial, que tem início por volta dos vinte e quatro meses
de vida da criança com a dêixis de pessoa, seguida da noção de dêixis
espacial e temporal, cuja emergência e consolidação começam a ocorrer
depois dos trinta meses, podendo se estender até os quarenta e oito
meses de vida da criança (TRIADÓ, 1999, p.685).
Após discutirmos algumas das perspectivas que norteiam os
estudos sobre atenção conjunta, vejamos os procedimentos
metodológicos através dos quais a pesquisa foi realizada.

2 Tradução nossa para: “Joint attention is thus not only important to coordinate the
interlocutors’ attentional focus in the speech situation, it also plays an important role in
the internal organization of discourse”.
273

2. Metodologia

No presente trabalho, trabalhamos com dados naturalísticos


gravados em vídeo em que mãe e criança assistem juntas a um episódio
do desenho animado Pocoyo. Esta animação, de origem espanhola, conta
com um menino de três anos de idade como protagonista, o Pocoyo, e
tem como enredo situações que este personagem vivencia junto a seus
amigos: Elly, Pato e Loula. Tais situações remetem ao cotidiano infantil
e têm ainda a importante presença do narrador, que media a interação
proposta entre criança telespectadora e o personagem principal da
animação. O episódio escolhido para a pesquisa recebe o título de
“Pegadas Misteriosas”. Nele, os personagens enfrentam o mistério de
pegadas deixadas por eles mesmos e tentam desvendar a origem das
mesmas.

Figura 3: Elly (a elefanta); Pocoyo (protagonista); Loula (cadela); e


Pato

Com cada díade foram gravadas quatro sessões, sendo duas com a
presença da mãe, e outras duas apenas com a criança. Esta organização
teve por intuito verificar como a atenção conjunta, processo observado
na pesquisa, constituir-se-ia quando a criança tivesse o interlocutor real
(mãe) e também quando não tivesse este interlocutor, reduzindo a
274

possibilidade de interação apenas ao interlocutor virtual, marcado pelo


narrador do desenho animado. Cada sessão filmada dura em torno de
oito minutos.
A seguir, apresentaremos dados em que foi verificada a ocorrência
da atenção conjunta, visando a analisá-los conforme as perspectivas
discutidas sobre o tema durante este trabalho.

3. Análises de dados

Dos fragmentos destacados, o primeiro corresponde à díade A e o


segundo, à díade B. Vejamos os dados:

Fragmento 1
Díade A – Sessão 3 – Idade da criança: 3;9;28

Enquanto no desenho animado o narrador guia a descoberta do Pocoyo


de que as pegadas misteriosas foram deixadas por ele, Pocoyo (1 minuto e
20 segundos), mãe e criança assistem ao desenho. A mãe está sentada no
sofá, ao lado da cadeira, onde está a criança.

1 Narrador: Humrum! Será que alguém pode ajudar o Pocoyo a


descobrir quem deixou essas pegadas?
2 Criança: (olha para a televisão) Foi ele!
3 Mãe: (olha para a criança) Foi ele? (olha para a televisão)
4 Criança: (olha para a televisão)

O fragmento tem início com o direcionamento de uma pergunta


do narrador aos telespectadores (turno 1). Com um enunciado que
assume uma linguagem referencial, o narrador “convida” o
telespectador a participar do desenho animado e responder quem
deixou as pegadas misteriosas discutidas dentro do desenho animado.
No turno 2, vemos que a criança responde a questão do narrador
“Foi ele!”, estabelecendo a interação real-virtual em que uma cena de
275

atenção conjunta do tipo direta reflete um formato referencial, marcado


não só pelo delinear da atividade conjunta, mas também pela presença,
no enunciado da criança, do dêitico pessoal “ele”, como referência ao
Pocoyo, personagem dono das pegadas misteriosas em questão no
recorte.
A cena de atenção conjunta diádica, envolvendo criança e
narrador, pode ser ilustrada com a figura 2.
Como vemos, a estrutura sob qual a cena de atenção conjunta se
constitui atende ao terceiro mecanismo trazido por Butterworth (1995),
o mecanismo representacional espacial, visto que narrador e
telespectador engajam-se, embora em diferentes esferas – virtual e real,
respectivamente – em um formato de atividade conjunta que tem o olhar
da criança (turno 2) como elemento direcionador do objeto foco da
atenção conjunta. Nesta cena, o objeto é representado pela ação
destacada no espaço, o que nos mostra ainda que o objeto da atenção
conjunta também pode se configurar sob a forma de uma ação
desempenhada representada na cena, não sendo necessariamente um
objeto físico situado no espaço.

Figura 4: Atenção conjunta fragmento 1


276

Fragmento 2
Díade B – Sessão 1 – Idade da criança: 3;9;18

Dentro do desenho (2 minutos e 16 segundos) o narrador pergunta se


alguém pode ajudar o Pocoyo a descobrir de quem são as pegadas
misteriosas (que neste momento pertencem à Loula). A criança está de pé,
em frente à televisão e a mãe está sentada na cama.

1 Narrador: Será que alguém pode ajudar o Pocoyo a descobrir de


quem são essas pegadas?
2 Criança: Foi Loula, Seu Zé! (olha e aponta para Loula, tocando a tela
com o dedo indicador e olha para a mãe)
3 Mãe: Cutuque a televisão não. (olha para a criança)

Neste fragmento, percebemos que a criança interage com o


narrador, a quem chama de “Seu Zé”, tomando-o como seu interlocutor.
O estabelecimento da interação entre a criança e o narrador
provavelmente acontece devido ao “convite” que o narrador faz
verbalmente ao perguntar: “Será que alguém pode ajudar o Pocoyo a
descobrir de quem são essas pegadas?”, no turno 1. Dessa forma, no turno
2, a criança responde ao narrador tanto através de uma produção
verbal: “Foi Loula, Seu Zé!”, quanto através de uma produção gestual
caracterizada pelo apontar com toque e pelo olhar dirigido para o objeto
sobre o qual ela, a criança, e o narrador estão discutindo, ou seja, a
cadela Loula.
Considerando os turnos 1 e 2, é interessante notar que a produção
verbal do narrador poderia fazer com que a criança tomasse o Pocoyo
como seu interlocutor, visto que é a ele que o narrador pede que a
criança ajude a descobrir de quem são as pegadas misteriosas. Porém,
percebemos através do uso do vocativo “Seu Zé”, que a criança toma o
narrador como interlocutor, o que pode estar associado ao fato de que o
narrador é o único no desenho animado que interage verbalmente com
277

o telespectador, já que os demais personagens estabelecem a interação


com os telespectadores apenas através de gesto e olhar.
Notamos que nos turnos 1 e 2 se estabelece um formato de
atenção conjunta de maneira diádica envolvendo um interlocutor real (a
criança) e um virtual (o narrador). Muito embora a criança busque a mãe
através do olhar dirigido ao final do turno 2, a mãe não entra em atenção
conjunta com a criança acerca do objeto foco do olhar infantil. Ao
contrário, a mãe assume o lugar de interlocutor da criança, no turno 3,
mas com o enunciado: “Cutuque a televisão não”, alertando a criança
para que esta não toque a televisão com o dedo (o que a criança fez ao
produzir o apontar com toque).
Devido à configuração da cena de atenção conjunta, percebemos
que a estrutura sob a qual este desenho animado se configura, colocando
o narrador na posição de interlocutor para os telespectadores, permitiu
que, mesmo entre interlocutores situados em lugares diferentes (real e
virtual), houvesse o estabelecimento de uma cena de atenção conjunta.
É necessário, todavia, apontar que não é possível precisar o
direcionamento do olhar do narrador, uma vez que não se pode vê-lo
dentro do cenário da animação, porém, inferimos, através da produção
verbal e da concepção deste como um narrador que constantemente
observa o desenrolar do episódio do desenho animado, que ele
compartilha com a criança do mesmo foco do olhar.
O formato de atenção conjunta que se estabelece entre
interlocutores situados em instâncias diferentes (real e virtual) parece,
portanto, seguir dois princípios: i) apenas por uma inferência guiada
pela produção verbal do narrador é que podemos considerar que este
está prestando atenção ao objeto que se torna foco da atenção conjunta;
e ii) por estar na instância virtual do desenho animado, isto é, em um
lugar do qual não se pode ter conceitos realmente firmados sobre os
interlocutores da instância real, o narrador, ainda que se torne um
interlocutor da criança, só cumpre a noção de mútuo engajamento da
atenção conjunta de uma forma suposta através da produção verbal,
dentro de uma estrutura própria do desenho animado. A estrutura da
278

atenção conjunta descrita no fragmento 2 pode ser visualizada na figura


3.

Figura 5: Atenção conjunta fragmento 2

Seguindo a classificação apresentada por Tomasello (2003) para


os tipos de atenção conjunta, percebemos que esta cena exemplifica uma
atenção direta, isto é, a criança, ao estabelecer a atenção conjunta,
utiliza-se de uma linguagem referencial “Foi Loula, Seu Zé!” (turno 2), em
que o termo “Loula” é um referente, e, em associação, faz uso de um
gesto declarativo de apontar.
Associando a classificação exposta na perspectiva de Tomasello
(2003) aos mecanismos de Butterworth (1995), percebemos que
também o fragmento 2 mostra um episódio de atenção conjunta
proveniente do mecanismo representacional espacial. Dentro deste
mecanismo a criança olha e aponta para o objeto foco da atenção,
reconhecendo a Loula como o personagem que representa as pegadas
misteriosas no espaço acerca do qual a atividade conjunta entre ela
(criança) e narrador se configura.
279

Considerações Finais

Após analisarmos os fragmentos trazidos para este trabalho,


percebemos que a estrutura da atenção conjunta continua presente na
rotina infantil mesmo após a aquisição da linguagem. O processo, no
entanto, modifica-se em termos de uso da linguagem verbal pela criança,
que já faz uso de estruturas linguísticas mais complexas do que as que
costumava usar no período em que suas produções estavam, muitas
vezes, restritas aos enunciados de uma só palavra, as holófrases.
De acordo com os dados, vemos também que de fato a noção de
espaço está atrelada à configuração da atenção conjunta, o que permite
a consolidação da referência linguística, em especial a referência
espacial. Esta consolidação associa-se, no entanto, não somente à
atenção conjunta configurada como tal, mas também – e principalmente
– aos elementos que auxiliam a constituição da atenção conjunta, a
exemplo dos gestos de apontar e também da capacidade de
direcionamento através do olhar, que a criança desenvolve e utiliza para
o cumprimento de uma função semelhante àquela desempenhada pelo
apontar convencional.
Com relação às associações propostas entre a classificação da
atenção conjunta (TOMASELLO, 2003) e os mecanismos utilizados na
atenção conjunta (BUTTERWORTH, 1995), vemos que as cenas de
atenção direta tornam-se explicáveis através da proposta do mecanismo
representacional espacial, visto que as cenas se constituem em volta de
uma representação (nos dois exemplos, as pegadas misteriosamente
deixadas por personagens na animação) no espaço em que a atividade
conjunta se consolida.
Por fim, reiteramos a importância da atenção conjunta não só para
a aquisição, mas também para a consolidação da linguagem. Além disso,
enxergamos a possibilidade de aprofundamento nas discussões acerca
das perspectivas que discutem a atenção conjunta de modo a confrontá-
las, verificando, assim, pontos em comum que podem auxiliar a
explicação do complexo processo da atenção conjunta.
280

Referências

BRUNER, J. Childs Talk: Learning to use language. New York: Norton,


1983.
______. From communication to language: a psychological perspective.
Cognition, 3 v., n. 3, p. 255-287, 1975.
BUTTERWORTH, G. Origins of Mind in Perception and Action. In:
MOORE, C.; DUNHAM, P. J. (Eds.). Joint attention: Its origin and role in
development. Hillsdale, NJ: Lawrence Erlbaum Associates, 1995.
CARPENTER, M.; NAGELL, K.; TOMASELLO, M. Social cognition, joint
attention and communicative competence from 9 to 15 months of age.
In: Monographs of the society for research in child development.
1998
COSTA FILHO, J.M. S. da. “Olá, Pocoyo!”: a constituição da atenção
conjunta infantil com o desenho animado. Dissertação de Mestrado.
Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2011.
DIESSEL, H. Demonstratives, joint attention, and the emergence of
grammar. Cognitive Linguistics, 17 v. p. 463-489, 2006.
TOMASELLO, M. Human culture in evolutionary perspective. In:
GELFAND, M. (Ed.) Advances in Culture and Psychology. Oxford:
Oxford University Press, 2011.
______. Origens Culturais da Aquisição do Conhecimento Humano.
Tradução de Cláudia Berliner. Martins Fontes: São Paulo, 2003.
______. Joint attention as social cognition. In: MOORE, C.; DUNHAM, P. J.
(Eds.). Joint attention: Its origin and role in development. Hillsdale, NJ:
Lawrence Erlbaum Associates, 1995.
TRIADÓ, C. Deixis acquisition in deaf and hearing children. In:
Psycholinguistics on the threshold of the year 2000: proceedings of
the 5th International Congress of the International Society of Applied
Psycholinguistics. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
1999. p. 683-686.
281

O ENSINO DA LÍNGUA COM CRIANÇAS DE ZERO A TRÊS ANOS:


PARA ENRIQUECER O DEBATE

Adriana Bragagnolo - UPF,


Adriana Dickel - UPF

RESUMO: O ensino da língua com crianças de zero a três anos é cercado


por um conjunto de fatores que apontam para a qualidade da interação
verbal e para o alcance da produção cultural disponível em nosso meio.
Partindo desse pressuposto, Bruner, autor eleito para o debate nesse
trabalho, entende que a linguagem é um sistema simbólico
compartilhado culturalmente, que para o sujeito apropriar-se dela, é
preciso usá-la, e que os adultos são vistos como interlocutores das
crianças nesse processo. Ele considera que a atividade mental humana
requer processos individuais, mas é permeada, essencialmente, pelos
aspectos socioculturais. À vista disso, o presente trabalho objetiva
apresentar um estudo a respeito da contribuição do adulto na
aprendizagem da língua, com as crianças pequenas, a fim de levantar
reflexões que nos permitam adensar as pesquisas desse campo. O texto,
incialmente, expõe indicadores do campo teórico, presentes numa
investigação sobre produções acadêmicas, as quais elegem o tema da
aquisição da linguagem com crianças de zero a três anos de idade. De
posse desses indicadores, permitimo-nos, através de estudo
bibliográfico, construir referências que possam cooperar com as
discussões da educação da infância, no que diz respeito aos aspectos da
linguagem verbal. Inferimos assim, que, em espaços escolares, as
professoras, em processo interativo com as crianças, possuem o papel
de construir andaimes para que elas possam elaborar conhecimentos a
respeito da língua. Reiteramos que, ao construir referencias acerca dos
processos pedagógicos, a educação pode congregar diálogos entre
diferentes áreas e estender suas discussões para uma orientação
curricular nesse nível de ensino.
282

PALAVRAS-CHAVE: linguagem, interação verbal, aprendizagem,


crianças de zero a três anos, professoras.

ABSTRACT: The teaching of language with children zero to three years


is surrounded by a number of factors that point to the quality of verbal
interaction and the extent of cultural production available in our middle.
Based on this assumption, Bruner, author elected to the discussion in
this work, understand that language is a culturally shared symbolic
system, which subject to take appropriate of it, you need to use it, and
that adults are seen as interlocutors children this process. He believes
that human mental activity requires individual processes, but is
essentially permeated by socio-cultural aspects. In view of this, this
work presents a study about the contribution of adult learning the
language with young children, to raise thoughts that allow us to thicken
the research of this field. The text initially exposes indicators of the
theoretical field, present an investigation into academic productions,
which elect the topic of language acquisition with children zero to three
years old. Based on these indicators, we allow ourselves, through
literature research, build referrals that can cooperate with discussions
of early childhood education, with regard to aspects of verbal language.
We infer therefore that in school environments, teachers, interactive
process with the children, have the role of building scaffolding so that
they can develop knowledge about the language. We reiterate that, in
constructing referrals about the pedagogical process, education can
gather dialogues between different areas and extend their discussions
to a curricular orientation that level of education.

KEYWORDS: language, verbal interaction, learning, children aged zero


to three years, teachers.
283

Introdução

As crianças pequenas desenvolvem sua linguagem a partir das


experiências que vivenciam no meio cultural e social, em interação com
os outros sujeitos. Quando os sujeitos são adultos ou mais experientes
no uso da língua, podem mostrar caminhos ou até estruturar situações
onde as crianças possam aprendê-la. Partindo desse pressuposto,
objetiva-se com esse trabalho, apresentar um estudo a respeito da
contribuição do adulto na aprendizagem da língua, com as crianças
pequenas, a fim de levantar reflexões que nos permitam adensar as
pesquisas desse campo.
Preocupa-nos algumas práticas presentes nos ambientes
escolares, especialmente de zero a três anos, onde as crianças possuem
interlocutores adultos, professores ou não, que, em muitas situações,
ignoram o fato da necessidade de uma proposta para a educação das
crianças menores. São situações ainda fixas na concepção de que,
naquele espaço, basta “cuidar” e que as crianças aprendem e se
desenvolvem naturalmente. Perdem-se momentos de interação e de
ricas intervenções. Com essa preocupação, inicialmente realizou-se um
estudo a partir do que o meio acadêmico tem produzido acerca desse
tema, especialmente dissertações e teses, em busca de aportes teóricos,
que revelaram diversas abordagens. Com a hipótese de que a interação
verbal entre as crianças e sua professora pode ser uma possibilidade de
andaime no desenvolvimento da linguagem, apresentamos a
contribuição de Jerome Bruner. Esse autor considera que a atividade
mental humana requer processos individuais, mas é permeada,
essencialmente, pelos aspectos socioculturais; que a linguagem é um
sistema simbólico compartilhado culturalmente; que para o sujeito
apropriar-se dessa é preciso usá-la; e que os adultos são vistos como
interlocutores das crianças nesse processo.
O presente trabalho expõe, inicialmente, a relação das crianças
com a linguagem no meio cultural e o que isso implica em seu
desenvolvimento. Num segundo momento, evidencia um processo
284

investigativo que menciona a perspectiva de pesquisa com crianças, um


mapeamento das pesquisas sobre a linguagem verbal com crianças
pequenas e a abordagem teórica dos estudos. Num terceiro e último
momento, os estudos de Bruner nos mostram elementos para
compreender a linguagem infantil e a relação do adulto nesse processo,
especialmente para o foco pedagógico.

1 As crianças, a linguagem e a cultura

Em sua relação com o meio social e cultural, as crianças aprendem


a usar a linguagem mesmo antes de saber falar. Nos primeiros dias da
vida seu comportamento adquire um significado próprio de acordo com
o ambiente em que vive, o que ocorre como produto de um processo
enraizado no elo de uma história individual com uma história social
(BRAGAGNOLO, 2004, p.39). São capazes, desde muito pequenas, de
conhecer aspectos de seu entorno e se comunicar de variadas formas,
incialmente com o choro, com gestos, verbalizando sons, palavras,
produzindo narrativas. Elas se expressam construindo uma relação
comunicativa com o adulto, que as ensina a usar palavras para buscar o
que desejam, para descrever o que veem, ouvem e sentem. Colocam seu
pensamento em ação na medida em que realizam saltos no
desenvolvimento da linguagem e, mesmo ainda sem saber se expressar
por palavras, aprendem regras do sistema linguístico e percebem como
os adultos usam a língua para se comunicar, processo pelo qual esses
interlocutores, mais experientes, passam a significar a fala das crianças.
Justamente, nesse momento, as crianças descobrem algo maior no
contexto, vão desdobrando sentidos da sua cultura e tomando
consciência de que podem manejar os elementos que essa cultura dispõe
para ela.

A aquisição da linguagem parece ser um subproduto (e um


veículo) da transmissão da cultura. Inicialmente as
crianças aprendem a usar a linguagem e seus precursores
285

linguísticos para conseguir o que querem, para poder jogar,


para manter-se conectados com aqueles dos quais
dependem. Atuando assim, encontram os limites que
prevalecem à cultura que os rodeia incorporados nas
restrições dos pais e nas convenções. O mecanismo que
maneja essa estrutura não é a aquisição da linguagem em
si, mas a necessidade de manejar bem as exigências da
cultura. As crianças não começam a usar a linguagem
porque tem uma capacidade de uso da linguagem, mas
porque tem necessidade de conseguir a realização de
coisas que seu uso lhes confere. (BRUNER, 1983).1

É essa necessidade que mobiliza e influencia o desejo de produção


de linguagem, mas acreditamos que a qualidade da intervenção dos
adultos soma-se a isso como um fator importante no desenvolvimento
linguístico. Todas as crianças possuem adultos que as cuidem e com eles
interagem e se comunicam. No entanto, lembramo-nos da diversidade
presente no cotidiano infantil. A exemplo, há aquelas com maior acesso
aos bens culturais e adultos que as educam e compreendem a
importância de oferecer diferentes recursos para seu desenvolvimento.
Em contrapartida, outras crianças demandam maiores oportunidades
culturais e interativas que impulsionem a aquisição da linguagem de
maneira efetiva. Bruner, ao tratar do papel da interação linguística e da
cultura no desenvolvimento da criança, compreende que o acúmulo do
material simbólico construído pela humanidade pode possibilitar a
construção de significados. (1997). Mas, compreende-se que isso
também é condicionado ao sentido que o adulto institui às práticas
sociais de linguagem na vida das crianças.
Em termos de educação da infância, em muitas escolas,
especialmente no contexto de periferia, algumas crianças de três anos
de idade falam raras palavras e sua comunicação é considerada aquém
de um nível desejado. Por que isso ocorre? Em que medida os adultos,

1 Citação traduzida da língua espanhola para a língua portuguesa.


286

responsáveis por sua educação, nas escolas infantis, percebem o


potencial linguístico das crianças e a importância de um trabalho que
consolide a aprendizagem e o uso da língua? Também apontamos, ainda,
algumas situações em que, não raras vezes, crianças de berçário são
colocadas em camas, carrinhos de passeio, ou outros espaços que não
garantem interação verbal, e são submetidas a uma boa e valiosa parte
do tempo, em frente à televisão. O quanto se perde nesse tempo?
Compreendendo que são crianças que precisam se expressar através de
diferentes e ricas situações, o que os adultos promovem? O que
conversam com elas? Como conversam? As ajudam a compreender a
linguagem e realizar ações com essa? E que conhecimentos são
necessários a esse adulto professor para realizar intervenções
qualitativas?
Considerando essas questões e o aumento significativo do número
de crianças na educação infantil, nas últimas décadas, há maior
exigência de consolidar práticas docentes coerentes com essa faixa
etária. Há que se romper com mito de que “quanto menores são as
crianças, menos conhecimentos são necessários a quem as educa”.
Com essas preocupações, debruçamos nosso olhar sobre o ensino
da língua com crianças de zero a três anos nas produções acadêmicas,
mais especificamente nas pesquisas de mestrado e doutorado dos
últimos quinze anos, que nos fornecem inúmeros elementos, dentre os
quais apresentaremos o foco teórico das pesquisas, o que nos permite
dialogar sobre as questões eleitas para esse texto.

2 O debate sobre a linguagem com crianças pequenas

Ao se tratar de ensino e aprendizagem na infância, não podemos


deixar de mencionar a concepção de pesquisa que se evidencia no
campo da educação. Os estudos sobre a linguagem com crianças
pequenas pautam também essa questão que se atravessa nas discussões
que a comunidade científica, no Brasil, tem realizado na última década,
a pesquisa na infância. Segundo, Martins Filho, o interesse por pesquisar
287

com crianças tem crescido substancialmente e pesquisadores buscam


uma compreensão mais abrangente a respeito dessa faixa etária (2011,
p. 82), é preciso conhecer os processos de aprendizagem e de
desenvolvimento infantil de uma forma mais próxima às próprias
crianças. Nessa direção, a sociologia e a antropologia entram em cena
como áreas que impulsionam outra perspectiva de pesquisa, diferente
daquela assumida há décadas atrás. Assim, se possibilita ampliar o olhar
sobre a sociedade atual e indicar a etnografia e seus aportes
metodológicos na pesquisa empírica com crianças. Delalande nos fala de
uma investigação “compartilhada”, com dispositivos que incluem as
crianças como colaboradores (2011, p. 77).
É considerando a interação da criança com os adultos e com a
linguagem disposta em sua cultura, e, a perspectiva de pesquisa com
crianças, que apresentamos, brevemente, um olhar sobre o que a
comunidade acadêmica tem produzido acerca do tema proposto, que
traz, inicialmente, um mapeamento a partir dos estudos e dos temas
eleitos pelos pesquisadores. São ricos e variados os elementos que se
evidenciam nas pesquisas, mas, para o presente trabalho, realizamos um
recorte mais especifico acerca das bases teóricas presentes nas
dissertações e teses. O tema que se apresenta nesse artigo, a aquisição
da linguagem verbal em crianças de zero a três anos de idade, mesmo
com o foco pedagógico, tem aporte em diferentes áreas, em razão de
suas contribuições, especialmente na educação, na psicologia e na
linguística.

2.1 Mapeando os estudos

Para mapear produção sobre o tema da linguagem com crianças


de zero a três anos, foi realizada uma pesquisa documental de resumos
de dissertações e teses, selecionadas pelo banco de Teses da Capes, que
utilizou como descritores: aquisição da linguagem; crianças de zero a
três anos; interação verbal; bebês e desenvolvimento da linguagem;
288

aquisição da linguagem e crianças pequenas; e interação entre adulto e


criança2.
Num primeiro momento, surgiram mais de trinta e cinco
produções, no entanto, algumas tangenciam o debate e fazem a
discussão no campo da linguagem na educação infantil, mas com
crianças maiores de três anos de idade. Assim, mais especificadamente,
chegamos ao número de vinte e quatro produções, que se localizam em
diferentes Universidades e programas de pós-graduação, em três áreas
do conhecimento. O recorte de tempo, de quinze anos, com pesquisas de
1998 ao momento atual3, justifica-se em razão das discussões no campo
da educação infantil estarem mais acirradas após os debates de políticas
públicas, a partir de 1998 e com isso, a incidência de maiores
movimentos nos meios acadêmicos. Abaixo, para ilustrar, apresentamos
o mapa que aponta o corpus da pesquisa no Brasil, nos mostrando os
espaços das diferentes discussões do presente tema.

Mapa 1 - Corpus de pesquisa

2 Na busca, três trabalhos não nos deram acesso ao resumo, pelo Banco de Teses da
Capes, portanto não foram considerados, nesse momento.
3 Não há registro no Banco de Teses da Capes, de pesquisas no ano de 2012,

possivelmente por ainda não terem sido cadastradas.


289

Esse mapa evidencia um coletivo de sujeitos preocupados com a


linguagem da criança e com questões ainda descobertas, tanto em
espaços naturais, no ambiente familiar, como nas escolas de educação
infantil. Ainda surgem muitas perguntas e inquietações sobre o universo
da pequena infância e a forma como as crianças interagem com o
conhecimento e com os interlocutores à sua volta. Na busca pelas
pesquisas, vinte e quatro produções, em dissertações e teses, estão
disponíveis no campo científico, em três áreas, que possuem
especificidades e que ao mesmo tempo revelam categorias comuns:
áreas de educação, psicologia e linguística, como já mencionadas. Desse
total, dezesseis trabalhos emergem de cursos de Mestrado e oito de
cursos de Doutorado.

Área PSICOLOGIA EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA Total


Dissertações 3 8 5 16
Teses 4 2 2 8
Total 7 10 7 24
Quadro 1 – Número de resumos analisados por área

Essas dissertações e teses trazem temas como: aquisição do


comportamento verbal; interação comunicativa entre bebês; interação
linguística adulto/bebê; comunicação entre bebês e educadora;
argumentação do adulto na fala infantil; desenvolvimento da narrativa;
interação linguística e organização do trabalho pedagógico; aquisição da
linguagem e produção de culturas; trabalho pedagógico com a oralidade
e interação dos bebês com a leitura. São temas que transparecem
questões de pesquisa merecedoras de um olhar atento a infância e suas
especificidades, envolvem processos de interação, relação com os
sujeitos mais próximos das crianças, aspectos específicos da linguística
e processos de aprendizagem. A partir desses temas, os estudos
mostram as opções metodológicas, as hipóteses, as teses e as bases
290

teóricas das pesquisas, o que nos interessa e será pormenorizado na


próxima seção.

2.2 Abordagem teórica das pesquisas

Esclarecidos os elementos que nos permitem compreender o


mapa da pesquisa, temos a intenção de reconhecer a perspectiva teórica
que os autores de base trazem na identidade dessa discussão. Do corpus
apresentado, com vinte e quatro pesquisas, dezessete resumos mostram
diferentes abordagens e, em sete, essa informação está ausente. No
quadro 3, apresentamos as abordagens teóricas que os resumos
explicitam.

ABORDAGEM TRABALHOS
Teoria histórico-cultural 3
Perspectiva sócio construtivista 1
Sócio interacionismo 3
Abordagem bakhtiniana 1
Concepção interacionista de linguagem 1
Psicologia histórico-cultural 1
Sociologia da infância 2
Perspectiva discursiva 2
Psicologia cultural 1
Perspectiva universalista e “neodarwinista” 1
Abordagem sócio discursiva 1
Modelo interacionista sócio discursivo 1
Perspectiva sócio pragmática 1
Perspectiva sócio cognitiva 1
Intercionismo linguístico 1
Teoria psicanalítica 1
Quadro 2 – Abordagem teórica

Frente a esse mapeamento, podemos afirmar que os autores de


base utilizados, são variados e dos vinte e quatro resumos, nove não
mencionam quem são seus interlocutores com a pesquisa. Ressaltamos
291

que Vygotsky, Bakhtin e De Lemos, são contemplados em um número


maior de trabalhos. Tantos outros autores são referência com menos
frequência, na maioria das vezes, em uma ou duas pesquisas apenas, tais
como: Wallon, Luria, Leontiev, Elkonin, Piaget, Skiner, Corsaro, Ferreira,
Rogoff, Fernald, Campos-de-Carvalho e Rosseti-Ferreira. Na perspectiva
da formação de professores, Morin, Silva, Carvalho e Zabalza também
fazem parte desse cenário. Além desses, Sarmento, Leitão, Bruner,
Françóis e colaboradores de De Lemos: Lier de Vitto, Castro e Cavalcanti,
são mencionados, ao menos em duas pesquisas.
Esse conjunto de abordagens e autores revela uma rede científica
a qual, desenha a identidade dos estudos que envolvem, especialmente,
a aquisição da linguagem, a educação das crianças e seu
desenvolvimento. As opções teóricas são variadas, mas instituem uma
comunidade que apresenta temas muito próximos. O tema específico da
interação verbal com crianças de zero a três anos e o papel do adulto
nessa relação, com o foco pedagógico, obviamente é mais restrito e
exigente de mais reflexões e respostas. Portanto, propomos um olhar
aos estudos de Jerome Bruner, pouco mencionado nas pesquisas
brasileiras, mas, que em nossa compreensão, pode contribuir
significativamente para esse debate.

3 A interação verbal entre as crianças e sua professora como


possibilidade de andaime no desenvolvimento da linguagem:
contribuições de Jerome Bruner

No mapeamento exposto encontramos diversos interlocutores e


pesquisas que envolvem também, como ato pedagógico, a interação
verbal entre mãe e criança, e entre as próprias crianças, contudo,
optamos em dar ênfase no processo pedagógico que ocorre no ambiente
escolar. Entendemos que a interação verbal entre as crianças e suas
professoras pode ser uma possibilidade de andaime no
desenvolvimento da linguagem e chamamos Jerome Bruner, como autor
central, para fundamentar essa questão. Temos a hipótese de que a
292

forma como as ações e relações do adulto se efetivam na interação da


sala de aula, podem interferir qualitativamente no desenvolvimento da
linguagem.
Para Bruner, a linguagem pode ser considerada um “sistema
simbólico compartilhado culturalmente” (1997), e para o sujeito
apropriar-se dela, é preciso usá-la em variadas situações do cotidiano,
as quais exigem diferentes recursos. Ao utilizar a linguagem, as crianças
acionam conhecimentos que são significados a partir das relações
estabelecidas com outros sujeitos. As crianças, “no uso da linguagem
para seus fins, fazem mais do que dominar um código, estão negociando
procedimentos e significados, ao aprender a fazer o uso, estão
aprendendo os caminhos da cultura, assim, como os caminhos de sua
linguagem”. (BRUNER, 1997). Ao aprender o caminho da sua linguagem,
compartilham sua experiência com o outro, seja com um adulto ou com
outra criança, pois são seres sociais e são facilmente atraídos numa
relação recíproca.

No âmbito do desenvolvimento da linguagem verbal, as


ações interativas das quais a criança participa viabilizam
oportunidades de estabelecimento de formas de relação
com o outro, de experimentações e de uso de recursos para
se comunicar com o parceiro, do exercício de escolhas e de
(re)criação, de ampliação da percepção sobre si e sobre o
outro e a evolução do pensamento. (RAMOS, 2012, p. 91).

Logo, compreendemos que aprender é um processo permeado de


experiências sociais, de reflexões sobre o objeto de aprendizagem e de
intervenções qualitativas. Dessa forma, considerando a aquisição da
linguagem como algo que não é dado, Bruner (1997) afirma que as
crianças requerem muita assistência das pessoas que delas cuidam e que
os adultos são interlocutores nesse processo. Essa assistência implica
em muitas ações, desde o questionamento, a atenção para flagrar uma
narrativa e intervir, até situações mais exigentes, onde a professora
estrutura propostas que provocam o avanço no desenvolvimento da
293

linguagem. Para tanto, primeiramente é necessário construir estratégias


para compreender os significados que as crianças produzem e ajudá-la
a compreender a complexidade da língua.
Se acreditarmos que o conhecimento da linguagem não ocorre de
forma espontânea, a referência e o apoio, conceitos brunerianos, se
tornam importantes nessa discussão. Para Bruner, que pesquisou em
ambiente familiar, a mãe e o mundo adulto fornecem à criança o
crescimento de um sistema de apoio. Através do período de crescimento
da referência, o adulto permanece estável em suas respostas aos
esforços da criança, mudando somente o suficiente para dar conta de
suas crescentes atitudes, promovendo impulsos suavemente (2003). Ela
permanece estável, de modo que a criança pode colocar em teste o que
aprendeu e consolidar suas mudanças.
Reiteramos que o desenvolvimento da linguagem inclui
intervenção das pessoas, que no ambiente escolar lhe é própria essa
função. É nos momentos de aprendizagem cotidiana, que nascem as
relações entre as crianças e quem as educa. Professoras, em processo
interativo com as crianças, possuem o papel de construir andaimes para
que elas possam elaborar conhecimentos a respeito da língua. Esses
sujeitos adultos organizam uma estrutura que envolve a aprendizagem,
o que Bruner chama de “situações de instrução”, e o que podemos
conceber como ensino. Ao produzir andaimes, o adulto oferece suportes
às crianças. Inicialmente ele realiza uma tarefa mostrando o caminho
para elas, depois, as induz para que tentem fazer por elas mesmas,
reduzindo a complexidade do ato e no passo seguinte, planejando outras
situações que podem ser de um nível superior, o que significa que a Zona
de Desenvolvimento Proximal pode ser ampliada. Após esse processo é
que Bruner defende a “instrucción, como tal: la separación de la linguaje
y de acción, la incorporación del conocimiento adquirido a conecimiento
verbalizado. (1989, p. 21).
Com esse processo pressupomos que dependendo da ação e da
relação que adulto estabelece na interação da sala de aula, as crianças
podem ter reais interlocutores que intervém qualitativamente no
294

desenvolvimento da linguagem, criando possibilidades pedagógicas que


proporcionam maior expressividade e produção da linguagem infantil.

4 Considerações finais

Ao aprender a linguagem, as crianças aprendem o que dizer, como


dizer e como fazer coisas com as palavras. Esse processo de
aprendizagem ocorre se houver, de alguma forma, um ensino. E
acreditamos que o ensino da língua com crianças de zero a três anos é
cercado por um conjunto de fatores que apontam para a qualidade da
interação verbal e para o alcance da produção cultural disponível em
nosso meio. Ao nos depararmos com essa hipótese, buscamos as
pesquisas que trataram dessa questão nos últimos quinze anos e
encontramos diversas contribuições para esse tema, as quais estão
locadas nos campos da psicologia, educação e linguística. Interessamo-
nos em destacar, nesse texto, os referenciais teóricos eleitos e revelamos
que diversos autores são tomados como interlocutores das pesquisas,
especialmente Vygotsky, Bakhtin e De Lemos.
Optamos, nesse trabalho, por dialogar com Bruner, autor pouco
mencionado nas pesquisas, mas com significativos estudos. Ele reitera a
importância de um sistema de apoio que estrutura as interações entre
as crianças e o adulto. Compreende também, que o desenvolvimento da
linguagem inclui intervenção das pessoas e que a entrada da linguagem
é uma estrutura altamente interativa. (1983). É com essa base teórica
que apostamos num processo pedagógico mais coerente para a faixa
etária mencionada, possibilitando experiências mais ricas de linguagem.
A ferramenta das crianças, e mais especificamente do bebê, como
menciona Bruner, pode ser o outro ser familiar, que ajuda a desenvolver
a capacidade de interação social e com isso as crianças estão “adaptadas
para entrar no mundo das ações humanas” (1983). Os processos de
interação verbal, seja nos momentos iniciais, no seio familiar, como o
exemplo acima, ou na escola, interagindo com outros sujeitos, as
crianças estão experimentando a língua e tem a oportunidade de
295

interagir verbalmente com os adultos, que, pedagogicamente criam


andaimes no desenvolvimento da linguagem.
Nos espaços formais de educação, as crianças possuem um
interlocutor adulto privilegiado, o professor, que com conhecimentos
específicos de educação infantil, pode conduzir o processo de aquisição
da linguagem de maneira mais eficaz. Com essa interação, na escola, a
criança aprende a linguagem de forma mais efetiva e rápida,
desenvolvendo competências para utiliza-la num contexto cultural que
tem nos exigido maiores ferramentas para seu uso. Dessa forma,
podemos utilizar o conceito de sujeito de aprendizagem e garantir mais
acesso ao meio cultural e aos conhecimentos produzidos socialmente.

Referências

BRAGAGNOLO, Adriana. A aquisição da linguagem escrita na


educação infantil: concepções presentes nos meios acadêmicos. 2004.
Dissertação. (Mestrado em Educação). Universidade de Passo Fundo,
Passo Fundo, 2004.
BRUNER, J; WATSON, R (col.) El habla del niño: cognição e desarrollo
humano. Barcelona: Paidós, 1983.
BRUNER, J. Acción, pensamento y linguaje. Madrid: Alizanza, 1989.
______. Atos de significação. Porto Alegre: Artmed, 1997.
DELALANDE, Julie. As crianças na escola: pesquisa antropológica. In:
MARTINS FILHO, Altino José; PRADO, Patrícia Dias. Das pesquisas com
crianças à complexidade da infância. Campinas SP: Autores
Associados, 2011.
FILHO, Altino José; PRADO, Patrícia Dias. Das pesquisas com crianças
à complexidade da infância. Campinas SP: Autores Associados, 2011.
RAMOS, Tacyana Karla Gomes Ramos. Ampliando recursos expressivos.
In: RAMOS, Tacyana Karla Gomes Ramos; ROSA, Ester Calland de Souza.
Os saberes e as falas de bebês e de suas professoras. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2012.
296

CONSIDERAÇÕES SOBRE APRENDIZAGEM DE LÍNGUA INGLESA


POR TRÊS APRENDIZES BRASILEIROS

Janailton Mick Vitor da Silva, UFCG


Niely Maria Limeira de Souza, UFCG

RESUMO: A aprendizagem de uma Língua Estrangeira (LE) se


desenvolve de forma consciente quando o aprendiz percebe a nova
linguagem tomando forma (YOKOTA, 2005). É impulsionado por vários
tipos de motivação que surgem com o tempo (ELLIS, 1997). Durante este
processo, o aprendiz é influenciado pelo meio social em que vive ou pela
própria língua mãe (YOKOTA, op. cit.; ELLIS, op. cit.; LITTLEWOOD,
2004). Diante do exposto, este trabalho objetiva analisar algumas
experiências de aprendizagem de Língua Inglesa (LI) por três
aprendizes brasileiros, considerando motivações, interesse pela cultura
de povos de LI, influências da Língua Materna (LM), dificuldades,
estratégias de aprendizagem e crenças sobre o processo de
aprendizagem desta língua. Esta pesquisa foi desenvolvida a partir de
um trabalho final da disciplina de Linguística Aplicada ao Ensino de LI
na UFCG. Elaborou-se uma entrevista com 10 questões. Três sujeitos que
frequentaram/frequentam escolas de idiomas foram entrevistados por
e-mail: a) sujeito 1 (S1), que faz um curso básico; b) sujeito 2 (S2), que
está no nível intermediário; e, c) sujeito 3 (S3), que terminou o curso
avançado há um ano e ainda permanece em contato com LI. Os
resultados mostram que: a) cada um dos aprendizes passou por um
processo diferente de aprendizagem de LI, o que reafirma a concepção
de exposição formal da língua, seja em escolas de idiomas (S1, S2, S3),
na escola regular (S1 e S3), ou individualmente/autodidatismo (S3); b)
todos tiveram motivação: instrumental, integrativa e intrínseca e
resultativa; c) cada aprendiz ainda continua motivado a prosseguir seus
estudos na língua alvo; d) A maioria dos entrevistados acredita que a LM
influenciou pouco seus estudos de LI e) a autoavaliação constante é
297

essencial para identificar os pontos que requerem mudanças em cada


etapa do processo.

PALAVRAS-CHAVE: Aprendizagem e aquisição de LE. Motivação.


Influências linguísticas. Dificuldades de aprendizagem. Estratégias de
aprendizagem.

ABSTRACT: Foreign Language (FL) learning takes place consciously


when the learner perceives the new language taking shape (YOKOTA,
2005). He / She is influenced by various types of motivation that arise
over time (ELLIS, 1997). During the learning process, the learner is also
influenced by the social environment in which he lives or by his own
mother tongue (YOKOTA, op. cit., ELLIS, op. cit., LITTLEWOOD, 2004).
Therefore, this paper aims to analyze three Brazilian learners’ English
Language (EL) learning experiences considering motivation, interest in
the English Language people’s culture, influences of the Mother Tongue
(MT), difficulties, learning strategies and beliefs about the process of
learning this language. This research was developed from a final
assignment submitted to the university subject Applied Linguistics to
the Teaching of English, at UFCG. A 10-question interview was prepared.
Three subjects who attended/have attended language schools were
interviewed by email: a) Subject 1 (S1), who is taking a basic course; b)
Subject 2 (S2), who is at the intermediate level; c) Subject 3 (S3), who
finished the advanced course a year ago and still remains in contact with
EL. The results show that: a) each of the learners has passed through a
process of EL learning, which reinforces the concept of formal
exposition to the EL, either at language schools, at the regular school or
through self-study; b) all of them had the following kinds of motivation:
instrumental, integrative, intrinsic and resultative; c) each learner is still
motivated to continue their studies in target language; d) Most of the
subjects believe that the MT influenced their studies in the EL; e)
constant self-evaluation is essential to identify areas that require
changes in each stage of the learning process.
298

KEYWORDS: FL learning and acquisition. Motivation. Linguistic


influences. Learning difficulties. Learning strategies.

1 INTRODUÇÃO

Apreender uma Língua Estrangeira (LE) suscita um envolvimento


com a nova língua guiado por razões intrínsecas ao próprio sujeito ou a
fatores externos. É um processo que pode apresentar alguns obstáculos
e influências do meio social e/ou da língua materna, mas com grande
motivação e fazendo uso de estratégias adequadas, o aprendiz pode
obter bons resultados. A autorreflexão sobre o sucesso, também, pode
ser considerada essencial para a continuidade dos estudos na nova
língua.
Nesta perspectiva, o presente trabalho objetiva analisar algumas
experiências de aprendizagem de Língua Inglesa (LI) por três
aprendizes brasileiros, considerando suas motivações, interesses pela
cultura de povos de LI, influências da Língua Materna (LM), dificuldades,
estratégias de aprendizagem e crenças sobre o processo de
aprendizagem desta língua.
Como suporte teórico, foram utilizados os(as) seguintes
autores(as): Barcelos (1995) e Freitas (2003), abordando a temática de
crenças em aprendizagem de L2; Barkhuizen (2004) e sua breve
colocação a respeito da problemática de diferenciação dos conceitos de
aprendizagem e aquisição de língua; Ellis (1997) e os tipos de motivação
para o estudo de L2; Littlewood (2004) e os fatores que podem
influenciar o aprendizado da língua alvo e a competência linguística; e
as observações de Yokota (2005) sobre o modelo Krashen, e a influência
do meio social na aprendizagem.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Segundo Yokota (op. cit.), adquirir e aprender uma língua


parecem se tratar do mesmo fenômeno, mas diferem em suas origens e
299

finalidades, podendo ocorrer ao mesmo tempo, mas sem relação entre


si. Nesta perspectiva, Krashen, na década de 1970, desenvolveu o
modelo do monitor, composto por 5 hipóteses, das quais a mais
importante é a diferenciação entre aprendizagem e aquisição de LE,
além da hipótese da Gramática Universal, do input, do monitor, e do
filtro afetivo. Assim, para Krashen, “[...] a aquisição é um processo
subconsciente e a aprendizagem, ao contrário, é consciente,
consequência de uma situação formal de aprendizagem ou de um
programa de estudos individualizado.” (YOKOTA, op. cit., p. 16).
Por outro lado, Barkhuizen (2004) afirma que as noções de
aquisição e aprendizagem podem ser utilizadas para descrever o mesmo
fenômeno, e que esta diferenciação tem gerado muitas discussões entre
pesquisadores. Na presente pesquisa, será considerada a distinção entre
os dois termos citados, devido ao contexto de sua realização e o que os
dados revelam: os sujeitos aprenderam/aprendem LI através de ensino
formal.
Para aprender uma língua, é necessário, antes de tudo, ter
motivação, assim definida por Ellis (1997) como “[...] atitudes e estados
afetivos que influenciam o grau de esforço que aprendizes fazem para
aprender L2”.1 Nesta perspectiva, o autor supracitado elenca quatro
tipos de motivação (instrumental, integrativa, intrínseca e resultativa),
que, embora pareçam opostas e distintas, podem se complementar em
determinadas situações de aprendizagem de L2, como podemos
observar nas descrições abaixo:

Aprendizes podem fazer esforços para aprender L2 por


motivos funcionais – passar num exame, obter um melhor
emprego, ou conseguir uma vaga na universidade. [...]
Alguns aprendizes podem escolher aprender determinada
L2 porque estão interessados no povo e na cultura
representados pelo grupo da língua alvo.

1 “[…] attitudes and affective states that influence the degree of effort that learners make

to learn an L2.” (ELLIS, 1997, p. 75, tradução nossa).


300

[...] a motivação envolve o despertar e a permanência da


curiosidade e pode surgir como resultado de fatores
pessoais e como os aprendizes se sentem pessoalmente
envolvidos em atividades de aprendizagem.
[...] motivação é o resultado da aprendizagem. [...]
aprendizes que têm sucesso podem se tornar mais, ou, em
alguns contextos, menos motivados a aprender.2

Outro aspecto que pode contribuir para o interesse na LE são os


mitos e crenças sobre a aprendizagem de LE. De acordo com Barcelos
(1995), uma das crenças recorrentes entre os aprendizes refere-se à
ideia de que as escolas de línguas são o lugar certo para se aprender a
língua alvo. Para Freitas (2003), um dos mitos presentes no discurso de
professores de LE é que falar Inglês, por exemplo, é garantia efetiva de
sucesso profissional.
Durante o processo de aprendizagem de L2, o aprendiz deverá
desenvolver a competência comunicativa, em seus vários aspectos: a
competência linguística, discursiva, pragmática, sociolinguística e
sociocultural (LITTLEWOOD, 2004). Considerando que ao estudarmos
uma língua, principalmente após a infância, em um país onde ela não é
usada para a comunicação, através de exposição formal, como é a
situação apresentada nesta pesquisa, podemos afirmar que, além dos
fatores já mencionados, a metodologia utilizada nas salas de aula ou nos
cursos de línguas também pode contribuir para o sucesso do aprendiz.

2 “Learners may make efforts to learn an L2 for some functional reason – to pass an
examination, to get a better job, or to get a place at university. […]
Some learners may choose to learn a particular L2 because they are interested in the
people and culture represented by the target-language group.
[…] motivation involves the arousal and maintenance of curiosity and can ebb and flow
as a result of such factors as learners’ particular interests and the extent to which they
feel personally involved in learning activities.” (ELLIS, 1997, p. 75, tradução nossa).
“[…] motivation is the result of learning. […] learners who experience success in learning
may become more, or in some contexts, less motivated to learn.” (ELLIS, op. cit., p. 75-
76, tradução nossa, grifo do autor).
301

Por fim, segundo Littlewood (op. cit.), a transferência, a


generalização, a simplificação e a imitação são fenômenos que
usualmente ocorrem durante o processo de aprendizagem de LE,
influenciando positiva e/ou negativamente o desenvolvimento
linguístico dos aprendizes. O primeiro fenômeno diz respeito à
transferência de estruturas linguísticas da LM que são comuns a L2 para
a língua alvo. O segundo ocorre quando se generalizam regras da
própria L2 em qualquer situação, passando a usar regras equivalentes a
apenas um contexto específico em situações totalmente diferentes. A
partir do momento que tais normas são generalizadas, podem ocorrer
erros. De acordo com Littlewood (op. cit.) “[...] o aprendiz
supergeneraliza uma regra de Inglês quando por exemplo, inverte o
sujeito e objeto em sentenças tais como: ‘Tell me what can I do’.”3
A simplificação acontece quando “[...] o falante omite elementos
que são redundantes [...]”4, deixando a linguagem mais simplificada e
objetiva, como em “Sir tea there”5 para indicar que há chá lá, no lugar
para o qual certamente apontou.
Estudos têm mostrado que a imitação é bastante utilizada pelo
aprendiz no processo de aprendizagem, quando, na tentativa de se
comunicar na LE, produz um conjunto de sentenças fixas e prontas
denominadas “formulaic speech” (LITTLEWOOD, op. cit., p. 509). O
referido autor argumenta que alguns aprendizes estão mais dispostos a
esta forma de aprendizagem do que outros.

3 METODOLOGIA

Esta pesquisa surgiu a partir de um trabalho final desenvolvido


para a disciplina de Linguística Aplicada ao Ensino de LI, ofertada no

3 “[...] a learner overgeneralizes an English rule for inverting subject and object in
questions: ‘Tell me what can I do.’.” (LITTLEWOOD, 2004, p. 507, tradução nossa, grifo
do autor).
4 “[...] a speaker omits elements that are redundant [...]”. (Ibid., p. 508, tradução nossa).
5 “Sir... tea there.” (Ibid., p. 508, tradução nossa, grifo do autor).
302

Curso de Licenciatura em Letras/Língua Inglesa na Universidade


Federal de Campina Grande (UFCG), no período 2012.2, como meio
prático de relacionar algumas teorias de aquisição/aprendizagem de L2
com a forma como alguns alunos oriundos de escolas de idiomas
aprenderam LI.
Para a realização desta, foram adotados-se os seguintes
procedimentos:
a) leitura de material teórico sobre a temática supracitada,
considerando os estudos de Barcelos (1995), Barkhuizen (2004), Ellis
(1997), Freitas (2003), Littlewood (2004) e Yokota (2005);
b) elaboração de uma entrevista contendo dez questões sobre
aprendizagem/aquisição de LI (vide APÊNDICE A);
c) coleta do corpus composto pelas entrevistas respondidas e enviadas
via e-mail por três aprendizes de LI, sujeitos estes selecionados
aleatoriamente a partir do nível do curso de língua (básico,
intermediário, avançado) que cada um estudou/estuda em
determinada(s) escola(s) de idiomas. O sujeito 1 (S1) atualmente realiza
o curso básico; o sujeito 2 (S2) está no nível intermediário; e o sujeito 3
(S3) terminou o curso avançado há um ano, mas ainda permanece em
contato com LI;
d) análise dos dados com base na teoria estudada. Nesta etapa, serão
relatadas as respostas dadas pelos entrevistados, preservando-se o
modo original como eles as escreveram.

4 DISCUSSÃO DOS DADOS

Tendo em vista as informações apresentadas anteriormente sobre


o nível de conhecimento de LI dos participantes desta pesquisa, serão
apresentadas a seguir as respostas dos participantes sobre como e
quando começaram a ter contato com essa língua (LI).

S1: Sempre estudei Inglês na escola. Em cursos como o


Yázigi, estudo há três meses.
303

S2: Entre 1988 a 1989 (CCAA) / 1990 a 1992 (UFCG) /


2003 a 2004 (Wizard) / 2011 (Yázigi). No total 25 anos.
S3: Comecei a estudar com 11 anos em 1998 no quinto ano
do ensino fundamental na escola de ensino regular, a seguir
foi um ano e meio em uma escola de ensino de línguas
estrangeiras no período de 2005-2006. A partir de então
continuei meus estudos a sós até retomá-los durante dois
anos no período 2011-2012.

Corroborando com a hipótese elaborada por Krashen, pode-se


afirmar que os entrevistados, ao optarem pelo estudo de LI em escolas
de idiomas e/ou individualmente, estão vivenciando um processo de
aprendizagem formal, e não de aquisição (YOKOTA, 2005).
Com exceção de S2, S1 e S3 afirmaram que iniciaram seus estudos
na escola regular. O fato do segundo sujeito entrevistado não ter
mencionado nenhum estudo na escola regular pode estar relacionado a
uma crença existente entre os alunos que buscam escolas de línguas
(EL). Eles acreditam que nessas escolas o ensino é melhor, o professor é
fluente e tem boa formação profissional. Logo, poderão aprender a
língua alvo de forma fácil e rápida, como mostram alguns resultados da
pesquisa de Barcelos (1995, p. 78):

As expectativas dos alunos em relação a EL são altamente


positivas e sugerem que esse é o lugar ideal para se
aprender línguas no Brasil. Elas fazem referências a quatro
aspectos: eficácia do método e dos professores; rapidez do
ensino, aprendizagem como o recebimento de
conhecimentos transmitidos, e aprendizagem sem esforço.

Indagados sobre o que os motivou a começar a aprender LI, os


entrevistados responderam:

S1: Crescimento pessoal e profissional. Um outro fator


determinante é a realização de eventos esportivos
internacionais no país (Copa do Mundo de Futebol e Jogos
304

Olímpicos). Conseguir me comunicar com estrangeiros fará


toda a diferença em minha carreira.
S2: A vontade de conhecer o mundo.
S3: Motivos educacionais primeiramente. Sendo essencial
uma segunda língua no currículo a escolha, feita por meus
pais, da língua inglesa como opção surgiu da propaganda
de seu uso como importante no currículo profissional.
Minha motivação pessoal veio em seguida, já com um
conhecimento básico da língua que me possibilitou
conhecer e a seguir adentrar mais dentro dos produtos
culturais (músicas e programas televisivos) oferecidos em
especial pela mídia dos Estados Unidos, minha meta veio a
ser então ser capaz de consumir habilmente esses
produtos.

A partir dessas afirmações, pode-se perceber que a semelhança


entre todos os sujeitos é o fato de que, quando iniciaram seus estudos
de LI, estavam motivados. Enquanto S1 e S2 apresentaram motivação
desde o início, para S3 ela “veio em seguida”, com seus estudos, já que,
quando começou a estudar a LI apenas cumpria suas obrigações
escolares, vindo em seguida a escolha desta língua devido a sua
importância para questões profissionais. Por tais depoimentos, pode-se
afirmar que todos os sujeitos acima descritos apresentaram os três tipos
de motivação elencados por Ellis (1997), a saber, motivação
instrumental, integrativa e intrínseca. Além desses três tipos, S3
também foi impulsionado pela motivação resultativa (ELLIS, op. cit.).
Outro aspecto que se pode observar na fala dos sujeitos 1 e 3 é a
motivação instrumental. Ambos acreditam que falar inglês é sinônimo
de maior status no currículo profissional. Esta crença não é apenas de
aprendizes de L2, mas também está presente na voz de professores de
EL, como afirma Freitas (2003, p. 100):

Pode-se perceber um claro consenso entre os professores


de institutos de idiomas no que se refere à ligação do
aprendizado da língua inglesa com o mercado de trabalho.
305

É como se o simples fato de o indivíduo falar Inglês fosse


garantia para seu sucesso profissional; garantia de
melhores empregos e melhores salários.

Na questão seguinte, os sujeitos foram questionados se ainda


continuam motivados para aprender a LI, ao que responderam:

S1: Sim. Sempre que aprendo alguma coisa nova, me sinto


mais próximo do meu objetivo.
S2: Sim, porque ainda quero conhecer o mundo. E também
porque, como trabalho com pesquisa científica tenho que
diariamente ler artigos científicos em inglês.
S3: A motivação mais forte hoje em dia certamente é a
necessidade dela em minha vida acadêmica. Mas o fato de
ser uma língua globalizada, quer dizer, uma língua usada
como ferramenta em diversas situações: no mundo
econômico, tecnológico ou simplesmente como meio de
acesso a informações (ajudando inclusive no estudo de
outras línguas) também é um fator importante que me leva
a querer aperfeiçoar meu conhecimento.

De modo geral, todos os sujeitos se mostram motivados para


prosseguir com seus estudos da língua alvo, seja para alcançar objetivos
imediatos, para realizar trabalhos acadêmicos, seja a longo prazo, para
conhecer outros países, conseguir um novo emprego e ter acesso a
vários tipos de informação.
O interesse por outras culturas também pode influenciar o
processo de aprendizagem da LI, como se pode observar nas respostas
à questão “Você também se interessa pela cultura dos povos de Língua
Inglesa?”:

S1: Acredito que conhecimento nunca é demais. Para um


bom aprendizado de qualquer idioma se faz necessário
entender alguns aspectos de sua cultura. Por exemplo, o
entendimento de que em certos países a população é
306

culturalmente formal e em alguns a informalidade pode ser


aplicada, ou ainda, que em alguns a inclusão de
estrangeirismos em seu idioma não é aceita, facilita e
agiliza o aprendizado.
S2: Sim, mas só a parte da literatura escrita.
S3: Sim, foi uma das minhas motivações primeiras para
aprender a língua. Séries primeiramente, mas músicas
também formaram o primeiro contato com a cultura
americana. Hoje, estou interessada também pela literatura
em especial do século XIX britânica e XX americana.

Os três informantes parecem estabelecer uma relação entre língua


e cultura, principalmente através da literatura (S2 e S3), reconhecendo
que tais aspectos fazem parte do mesmo processo. Por outro lado, para
muitos aprendizes e até professores de LE, estudar língua não é estudar
cultura, pois acreditam que, no processo de aprendizagem, aprende-se
língua e cultura em dois momentos distintos, e não concomitantemente.
Nesta perspectiva, “alguns ainda não conseguem entender que, se
percebemos a língua como uma prática sociocultural, devemos entender
língua e cultura como dois aspectos do mesmo processo.” (FREITAS,
2003, p. 98).
Além disso, pela afirmação de S1, dois aspectos chamam a
atenção: os fatores sociolinguísticos e os socioculturais. É essencial que,
ao estudar o idioma, conheça-se um pouco sobre quando e como utilizar
um registro linguístico, transparecendo mais formalidade ou
informalidade em determinados contextos ou situações interacionais
(LITTLEWOOD, 2004, p. 503).
Um outro aspecto avaliado nos sujeitos foi a possível influência da
LM na aprendizagem de LI. Para os entrevistados:

S1: A língua materna influencia e muito no aprendizado de


uma segunda língua. Tendemos a pronunciar os fonemas
como aprendemos quando crianças, a levar para o inglês
nossas regras gramaticais. Tais práticas acabam por
307

atrapalhar um pouco o aprendizado de uma língua com


tantas inversões e sem a presença de acentuação gráfica.
Por outro lado, a preocupação excessiva com as
desinências e a regência do verbo, característica da língua
portuguesa, não se aplica à língua inglesa.
S2: Não sei responder.
S3: Vagamente, como a estrutura das frases e a formação
das palavras bastante diferentes (poucos cognatos ou
palavras semelhantes) é difícil fazer uma ponte entre a
minha língua materna, o português, e a língua inglesa.
(grifo nosso)

Através dos três depoimentos acima, é difícil estabelecer até que


ponto os sujeitos sofreram influência da LM ao aprender LI. Isso pode
estar relacionado à motivação e a metodologia utilizada por cada um
deles para aprender esta língua.
Apenas S1 percebe que a Língua Portuguesa influencia sua
produção oral e escrita, principalmente com relação ao uso de certas
estruturas linguísticas e na pronúncia dos fonemas. Nesse sentido,
levando em conta os diversos fatores que influenciam a aprendizagem
de LI e os processos linguísticos pelos quais aprendizes passam durante
esse percurso, nota-se que S1 parece utilizar a transferência e a
generalização, que usualmente ocorrem juntas (LITTLEWOOD, op. cit.,
p. 505-508).
S3, diferentemente de S1, não percebe muita influência da LM,
pois considera a estrutura das frases e formação de palavras do
Português muito diferentes da LI.
Quanto à resposta de S2, supõe-se que ele não soube responder a
tal questão provavelmente por não observar atenciosamente seu
processo de aprendizagem, ou porque está tão focado na língua alvo que
qualquer relação com sua língua mãe pode passar totalmente
despercebida.
308

Um outro ponto avaliado nesta pesquisa foram as possíveis


dificuldades que surgiram ao longo do processo de aprendizagem de LI.
Os entrevistados responderam o seguinte:

S1: A principal dificuldade continua sendo a inibição.


Começar a estudar um idioma após os trinta anos, com
gente mais jovem, não é fácil. Apesar de compreender bem
o que é dito e lido, a conversação também tem sido um
problema. Demoro, mais do que gostaria, a estruturar as
sentenças em minha mente, checando se elas fazem sentido
e se estão certas, só então as falo. A falta de ter com quem
praticar também atrapalha. Ninguém em meu círculo de
amizades (pessoais ou profissionais) fala Inglês.
S2: Minha dificuldade sempre foi a fala, pois não gosto
muito de me expor.
S3: Gramática, produção textual e a escrita de certas
palavras. No caso da gramática me perturbavam o uso dos
tempos gramaticais, sobretudo ‘perfect forms’. Produção
textual, a coerência dos meus textos apesar de que essa é
uma dificuldade que trago também na língua materna e a
escrita das palavras principalmente nas que possuem ‘th’,
‘gh’, ‘ght’... (grifo nosso).

Diante do exposto, pode-se perceber que todos os sujeitos


enfrentaram/enfrentam dificuldades ao estudarem LI. Para S1 e S2, o
principal problema está na produção oral devido à sua timidez e à
preocupação excessiva com a produção de sentenças corretas, uma das
características do aprendiz adulto. Além disso, S1 menciona a idade
como algo que lhe tem prejudicado quando precisa participar de um
grupo de alunos de faixa etária bastante inferior à sua. Neste sentido, em
concordância com Yokota (2005), entende-se que o ambiente, ao passo
que pode impulsionar um sujeito a aprender uma língua, deixando-o
confortável para utilizá-la em qualquer circunstância, pode também
inibi-lo, levando-o a não querer nenhuma exposição nem produção oral.
309

De forma geral, as dificuldades persistem para os três aprendizes,


que têm tentado superá-las de formas diferentes:

S1: As dificuldades persistem devido ao fato de ter


começado há pouco tempo. Busco, pela internet, fazer
contato com pessoas que falem inglês, páginas com
conteúdo em língua inglesa, de maneira a manter o inglês
sempre por perto.
S2: Sim. Tento participar das aulas.
S3: Apesar de não serem tão grandes quando no princípio,
sim elas persistem e não tenho feito pouco para diminuí-
las, pelo menos em horas de estudo, mas as táticas são
basicamente ler mais e estudar gramática.

Pelas considerações feitas pelos entrevistados sobre o assunto,


pode-se concluir que cada sujeito sente que precisa fazer alguma coisa
para mudar a situação em que se encontra em seu processo de
aprendizagem. Os três sujeitos tentam superar as dificuldades
encontradas utilizando a internet (S1), participando das aulas mais
ativamente (S2), lendo e estudando gramática mais frequentemente
(S3).
De modo a facilitar a aquisição de novos vocábulos e estruturas
linguísticas, os entrevistados realizam as seguintes atividades:

S1: Chats, jogos eletrônicos, pesquisa em sites específicos


para aprendizagem de inglês. Três a quatro vezes por
semana.
S2: Leitura. Diariamente.
S3: Diariamente leio artigos e textos que podem ou não
fazer parte da minha área acadêmica. Pelo menos uma vez
por semana visito sites de relacionamento nos quais sou
obrigada a me expressar em língua inglesa e
ocasionalmente assisto a programas ou vejo filmes nessa
língua.
310

Nesses excertos, percebe-se que a leitura é a alternativa mais


utilizada pelos aprendizes, seguida de chats, jogos eletrônicos e acesso a
sites na internet por S1 e S3, respectivamente, ilustrando a
multiplicidade de recursos que lançam mão para seu próprio proveito.
Indagados sobre a possibilidade de já terem ido para algum país
falante de LI, quanto tempo permaneceram lá e se a imersão ampliou
seus conhecimentos da língua, eles afirmaram:

S1: Nunca estive fora do país.


S2: Sim, nos Estados Unidos. Já fui seis vezes, mas o máximo
que fiquei foi 16 dias. A experiência em outro país é muito
importante, pois como precisamos nos transportar para
outros lugares, nos alimentar, etc; somos forçados a nos
comunicar e consequentemente aprendemos mais.
S3: Não.

Por tais depoimentos, S2 foi o único sujeito que teve oportunidade


de imersão em um país de LI várias vezes, e também é o mesmo que,
após várias experiências de curto período, ainda apresenta dificuldades
na oralidade. Além disso, segundo ele, a visita aos EUA e, de forma geral,
a outros países, leva qualquer indivíduo a se comunicar forçadamente
em diversas situações, como a se transportar para determinado lugar e
se alimentar, entre outras.
Por fim, a última questão indagou como os sujeitos avaliam seu
conhecimento atual de LI.

S1: Acredito que meu vocabulário é muito bom mas minha


conversação precisa melhorar.
S2: Na leitura e escrita acho que estou bem, apesar de ter
dificuldade com os tempos verbais. No entendimento da
língua estou regular e na fala péssimo.
S3: Oralmente bom, consigo me expressar e compreender
sem dificuldades, manter um diálogo ou fazer uma
exposição sobre o que estou pensando não é difícil. O
mesmo posso dizer das minhas habilidades de
311

compreensão textual. Entretanto ainda considero minha


produção textual e meus conhecimentos gramaticais
fracos.

Segundo os depoimentos acima, os três indivíduos percebem


determinadas particularidades em suas competências linguísticas: a) S1
possui bom léxico de L2; b) S2 é bom em leitura e escrita, regular em
escuta, e péssimo em fala; c) S3 possui boas habilidades na oralidade,
escuta e leitura, mas precisa melhorar a escrita. A consciência dos
pontos que ainda precisam ser melhorados certamente contribuirá para
um maior empenho dos entrevistados com vistas à concretização de
seus objetivos pessoais.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através das breves discussões feitas neste trabalho sobre as


experiências de aprendizagem de LI por três aprendizes brasileiros,
pode-se concluir que:
1. Apesar de cada um dos aprendizes ter passado ou passar por um
processo de aprendizagem de LI, ou seja, por uma exposição formal à
língua em escolas de idiomas (S1, S2, S3), na escola regular (S1 e S3), ou
através de estudos individuais (S3), não se pode afirmar que não houve
algum momento de aquisição de língua ao longo do processo, visto que,
como mencionado anteriormente, é difícil detectar até que ponto o input
foi assimilado em um processo de aquisição ou aprendizagem.
2. Motivações de diversos tipos, como instrumental, integrativa e
intrínseca, e resultativa estimularam os sujeitos para aprender a LI, e
cada aprendiz ainda continua motivado a prosseguir seus estudos na
língua alvo, apesar de todas as dificuldades que tem enfrentado desde o
início.
3. Considerando que todos os entrevistados aprenderam/aprendem a
LI em um país onde ela é uma língua estrangeira, ou seja, não é utilizada
312

para a comunicação na sociedade, pode-se afirmar que a LM


efetivamente influencia a produção oral e escrita dos aprendizes.
4. As discussões também apontam para a importância de se continuar
buscando alternativas para melhorar os conhecimentos e performance
da língua alvo, sendo a autoavaliação constante um ponto essencial para
identificar as mudanças que necessitam ser feitas ao longo do processo
de aprendizagem para se poder avançar.
5. 5. As pesquisas já realizadas sobre aquisição e aprendizagem de
segunda língua e língua estrangeira mostram a subjetividade e a
dificuldade de se afirmar algo sobre esses processos. Por isso, devido às
limitações desta pesquisa, tais como o pequeno número de sujeitos
envolvidos, certas conclusões foram evitadas. Além disso, a realização
de uma entrevista presencial com cada um dos informantes poderia ter
facilitado algumas conclusões sobre as respostas às perguntas do
questionário, evitando, por exemplo, que respostas como “Não sei
responder”, e “Vagamente”, ficassem sem a devida explicação.

REFERÊNCIAS

BARCELOS, A. M. A cultura de aprender língua estrangeira (inglês)


de alunos formandos de letras. 1995. 140 f. Dissertação (Mestrado em
Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 1995.
BARKHUIZEN, G. Social influences on language learning. In: DAVIES, A.;
ELDER, C. The handbook of Applied Linguistics. Oxford: Blackwell
Publishing, 2004. p. 552-575.
ELLIS, R. Second language acquisition. 1. ed. Oxford: Oxford University
Press, 1997. 147 p.
FREITAS, A. C. O ensino da língua inglesa no Brasil: mitos e crenças. In:
FREITAS, A. C.; CASTRO, M. F. F. G. (Org.). Língua e literatura: ensino e
pesquisa. São Paulo: Contexto, 2003. p. 97-108.
313

LITTLEWOOD, W. Second language learning. In: DAVIES, A.; ELDER, C.


The handbook of Applied Linguistics. Oxford: Blackwell Publishing,
2004. p. 501-524.
YOKOTA, R. Aquisição/aprendizagem de línguas estrangeiras – aspectos
teóricos. In: BRANCO, F. C. (Org.). Ensino-aprendizagem de línguas
estrangeiras – Reflexão e prática. São Carlos: Claraluz, 2005. p. 11-21.

APÊNDICE A – Entrevista

UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE


CENTRO DE HUMANIDADES / UNIDADE ACADÊMICA DE LETRAS
LICENCIATURA EM LETRAS / LÍNGUA INGLESA
LINGUÍSTICA APLICADA AO ENSINO DE LÍNGUA INGLESA – 2012.2
DOCENTE: NIELY MARIA LIMEIRA DE SOUZA
DISCENTE: JANAILTON MICK VITOR DA SILVA

ENTREVISTA

ASSUNTO: Aquisição/aprendizagem de Língua Inglesa

Considerando a sua experiência com a Língua Inglesa até o momento, responda as


questões abaixo com o máximo de informações que puder fornecer para o nosso estudo.

1. Há quanto tempo você estuda a Língua Inglesa? Onde começou seus estudos?
____________________________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________________________________

2. O que o/a motivou/motiva a começar a aprendê-la?


____________________________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________________________________

3. Continua motivado (a) a continuar aprendendo esta língua? Por quê?


____________________________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________________________________

4. Você também se interessa pela cultura dos povos de Língua Inglesa?


314

____________________________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________________________________

5. Até que ponto sua língua materna influencia/influenciou na aprendizagem


desta língua?
____________________________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________________________________

6. Quais foram as suas principais dificuldades quando você começou a estudá-la?


Cite algumas delas.
____________________________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________________________________

7. Essas dificuldades ainda persistem? O que faz para diminuir essas


dificuldades?
____________________________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________________________________

8. Que atividades costuma desenvolver para facilitar a aquisição de novos


vocábulos e estruturas linguísticas? Com que frequência realiza essas atividades?
____________________________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________________________________

9. Já esteve em algum país de Língua Inglesa? Em caso afirmativo, quanto tempo


permaneceu lá? Considerando que a imersão no país pode favorecer a
aprendizagem, você acha que essa experiência o (a) ajudou a ampliar seus
conhecimentos na língua inglesa?
____________________________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________________________________

10. Como você avalia o seu conhecimento atual da Língua Inglesa?


____________________________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________________________________
315

INOVAÇÕES LEXICAIS NA FALA DA CRIANÇA: DISCUTINDO O


(IM)POSSÍVEL

Camila Rossetti Vieira (IEL/UNICAMP)

RESUMO: É grande o número de palavras novas na fala da criança, como


“viração” para ato de virar (por exemplo), que, embora não
dicionarizadas, podem ser compreendidas por um falante nativo, já que
suas unidades estão presentes na Língua Portuguesa. No entanto, existe
com frequência uma série de palavras que escapam a esse tipo de
classificação, uma vez que o inovar, nesses casos, revela-se em unidades
inesperadas, causando surpresa ao interlocutor, devido à falta de um
significante que faça sentido (CARVALHO, 2011). É esse o caso, por
exemplo, do dado “espitador”, em que é possível reconhecer a presença
do sufixo –(d)or, mas a base da palavra não é dicionarizada. Levando isso
em consideração, o objetivo desse trabalho foi o de desenvolver uma
reflexão sobre a relação da criança com a língua, a partir de sua fala. Para
tanto colocamos como foco de análise as inovações lexicais, em especial
aquelas que convocam a (re)pensar os caminhos e limites do possível na
aquisição da morfologia lexical da Língua Portuguesa. Nesse sentido,
foram trazidos e analisados dados de R - sujeito cujo corpus está
disponível em Projeto de Aquisição de Linguagem Oral do
CEDAE/IEL/UNICAMP e de outras fontes. Pudemos averiguar como se
constituem os limites da inovação lexical e como a criança, estando em
processo de captura pela língua, por vezes “empurra” esses limites para
uma dimensão que vai além do material e linguisticamente possível
(MILNER, 1995). A conclusão a que chegamos é que esse movimento
inesperado e singular dá lugar ao reconhecimento de um momento em
que “lalangue faz nó com a língua” (FELIPETO, 2008, p. 15-16), em que o
todo é furado pelo não-todo, próprio do equívoco. É nesse momento que
a atividade agramatical da criança ressoa um fenômeno da língua, mas
empurra seus limites e desvia seus caminhos, transvariando (FIGUEIRA,
2010).
316

PALAVRAS-CHAVE: Aquisição de Linguagem, Inovação Lexical, Fala,


Lalangue.

ABSTRACT: A great number of new words in the child's speech such as


"viração", for the act of turning (for example), which, although not in the
dictionaries, can be understood by a native speaker, since their units are
present in Portuguese. However, there is often a series of words which
escape such classification, since the innovation in such cases reveals
unexpected units, surprising the adult due to the lack of a significant that
makes sense (CARVALHO, 2011). This is the case, for example, of
"espitador" in which it is possible to recognize the presence of the suffix
-(d)or, but the word base is not part of the language. Taking this into
consideration, the aim of this study was to develop a reflection about the
relationship of the child with the language, starting with his speech.
Thus, the focus was put into the analysis of lexical innovations,
especially those that invite to (re)consider the ways and limits of the
possible in the acquisition of lexical morphology of the Portuguese
language. In this sense, RA’s data– being RA a boy whose corpus is
available in Oral Language Acquisition Project CEDAE/ IEL/ Unicamp
and other sources – were brought and analyzed. We have been able to
investigate how to represent the boundaries of lexical innovation and
how the child, being in process of capturing the language sometimes
"pushes" these boundaries into a dimension that goes beyond the
material and linguistically possible (MILNER, 1995) . The conclusion we
reached is that this unique and unexpected movement gives way to the
recognition of a moment when “lalangue makes a knot with the
language" (FELIPETO, 2008, p. 15-16), in which the all is crossed by the
not-all, typical of the mistake. That's when the child’s ungrammatical
activity resonates a phenomenon of language, but pushes its limits and
diverts its ways, transvariando (cross-varying) (FIGUEIRA, 2010).

KEYWORDS: Language Acquisition, Lexical Innovation, Speech,


Lalangue.
317

1. INTRODUÇÃO

Como bem se sabe, entendem-se como inovações lexicais, na fala


da criança, todas aquelas palavras formadas por derivação (ex. "viração"
para ato de virar a página), composição (ex. “tira-cainha” para palito de
dente), flexão divergente de gênero (ex. “galinho” para galo), de verbo
(ex. “levi” para levei) e fenômenos fonológicos como reduplicação
silábica (ex. “gogócio” para negócio) e onomatopeias (ex. “piuí” para
trem). Todos esses dados levam a reconhecer uma relação entre língua
e fala, do ponto de vista saussuriano (SAUSSURE, 2006 [1916]), uma vez
que as unidades que surgem na esfera da segunda, já estão presentes em
potencial na primeira. Assim, palavras desse tipo, apesar de não serem
convergentes ao que se espera na fala do adulto, tomado como instância
da língua em funcionamento, deixam-se entender facilmente.
No entanto, existe com frequência, na fala da criança, uma série de
palavras que escapam a esse tipo de classificação, já que o inovar nesses
casos, revela-se em produções inesperadas, causando surpresa ao
interlocutor. É esse o caso, por exemplo, do dado “espitador” para
ventilador, em que é possível reconhecer a presença do sufixo -dor, mas
a base da palavra não é dicionarizada1.
Assim, a partir de um quadro teórico interacionista2,
apresentaremos uma discussão sobre os limites das inovações lexicais e
como a criança, estando em processo de captura pela língua, por vezes
“empurra” esses limites para uma dimensão que vai além do esperado
na fala do outro. Esse movimento inesperado e singular dá lugar ao
reconhecimento de um momento que “lalangue faz nó com a língua”
(FELIPETO, 2008, p. 15-16), em que o todo é furado pelo não todo,
próprio do equívoco.

1 O critério lexicográfico é usado nesse trabalho como determinante da classificação dos

dados como inovações lexicais. Nesse sentido, tomamos como fonte de exclusão o
Dicionário Unesp de Português Contemporâneo (Borba, 2004).
2 Ver o desenvolvimento da proposta interacionista em de Lemos (2006).
318

Para tanto serão trazidos dados de RA (entre os 3 e 4 anos de


idade) - sujeito cujo corpus está disponível em Projeto de Aquisição de
Linguagem Oral no CEDAE/IEL/UNICAMP - e de duas outras fontes:
coleta pessoal e um blog de internet.

2. INOVAÇÕES LEXICAIS NA FALA DA CRIANÇA

Retomando o que já foi dito, entendem-se como inovações lexicais


todas aquelas palavras formadas por derivação (ex. "viração" para ato
de virar a página), composição (ex. “tira-cainha” para palito de dente),
flexão divergente de gênero (ex. “galinho” para galo), de verbo (ex. “levi”
para levei) e fenômenos fonológicos como reduplicação silábica (ex.
“gogócio” para negócio) e onomatopeias (ex. “piuí” para trem) 3. Todos
esses dados levam a reconhecer uma relação entre língua e fala4, do
ponto de vista saussuriano, já que as palavras que surgem na esfera da
segunda, já estão presentes em potencial na primeira e são
perfeitamente reconhecidas, por um falante adulto, como formações da
Língua Portuguesa, ou seja, não causam uma situação de estranhamento
total ou de impossibilidade de interpretação. A título de uma
exemplificação, trazemos o episódio 1, extraído do corpus de RA, no qual,
a forma inesperada produzida pela criança (“brigação” para briga), não
causa nenhuma falta de compreensão no interlocutor (M) que segue o
diálogo. Da mesma forma, um falante adulto que se deparasse com esse
dado seria capaz de reconhecer, por uma série de associações que a
formação sucinta na memória (perseguição, distribuição, obrigação,
punição, afirmação, etc..), que a criança adjungiu o sufixo -ção ao verbo
“brigar” dando origem a uma palavra que designa um nome de ação,
assim “ação de brigar” corresponde a brigação.

3 A maioria dos dados citados advêm do corpus de RA (CEDAE/IEL/UNICAMP). Já, o dado

“tira-cainha” é do diário de J (recolhido por FIGUEIRA, 1996) e o dado “gogócio” é do


corpus de A (CEDAE/IEL/UNICAMP).
4Cf. SAUSSURE, F. (1916). Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2006.
319

Episódio 1
(A criança (R) contava para a mãe (M) e para a irmã (D)
sobre a briga que teve com um colega da escola)
M.: Por que que vocês brigaram Raquel?
RA.: É porquee (alto) / é porque/ eu vou te contá a brigação
M.: hãã! Hãã
D.: Por naaada né, Quel?
M.: deixa ela contar
(G - 3;10.28)

Assim, palavras desse tipo, apesar de não serem convergentes ao


que se espera na fala do adulto, tomado como instância da língua em
funcionamento, são fáceis de serem entendidas e analisadas. Entretanto,
um olhar mais atento sobre esse tipo de dados, por vezes, leva a
reconhecer situações de transbordamento (termo cunhado por Figueira,
2010), nos quais a criação lexical que desponta na fala da criança, ainda
que seja compreensível, foi formada através de um processo que não
condiz com o que é esperado na língua adulto, através do rompimento
de certos limites estabelecidos gramaticalmente. A fim deixar mais claro
esse ponto de vista, observemos o dado (2), abaixo:

Episódio 2
(Diálogo entre pai e filho)
Cr. Pai, você nasceu na Itália, fala italiano. E eu, nasci aonde?
P. Você nasceu aqui, meu filho. Aqui pertinho, inclusive, no
Barra D`or. (se referindo ao hospital que fica na Barra).
Cr. E que língua que eles falam lá, pai?
P. Eles quem, filho?
Cr. Ué, os barradores!5

5 Dado (2) retirado de: LEÃO, M. Criança fala cada coisa... Disponível em:
<http://noticias.r7.com/blogs/mariana-leao/2011/10/24/crianca-fala-cada-coisa/>.
Acesso em: 12 de maio de 2013.
320

O dado (2)6, extraído do blog de uma jornalista, que revela a


formação de algo semelhante a um nome pátrio ou adjetivo gentílico,
pode levar a duas análises distintas. A primeira delas é que a criança
adjungiu o sufixo formador de agentivo -dor à base barra e obteve a
formação “barrador”7. A segunda opção é que a criança, influenciada
pela homofonia entre “Barra d’or” e “barrador”, deslocou o nome
próprio para a posição de agentivo e, após a flexão em plural
“barradores” pôde designar os moradores do lugar. Mas, apesar de
dotada de uma significação, cabe indagar se essa formação estaria
completamente de acordo com as regras8 de formação de palavras da
língua portuguesa. Segundo Cunha (1986, p. 277), o sufixo nominal –
dor/-tor/-sor, derivado do latim –(t)or, -(t)ōris/-(s)or, -(s)ōris, adjunge-
se somente a temas verbais e tem como resultado tanto nomes
agentivos, ou de instrumentos da ação, como adjetivos agentivos. Nesse
ponto já encontramos um problema para a formação da criança que não
se deriva de um verbo, mas sim de um nome barra.
Na segunda linha de análise, o problema de formação parece ser
ainda maior já que, baseando-se num estudo sobre os adjetivos
gentílicos da Língua Portuguesa, não é possível que o plural de um nome
de lugar tenha dado origem a um nome pátrio. Cabe lembrar, nesse
contexto, da palavra “Salvador”, que é tanto o nome da cidade baiana,
quanto o nome usado para designar “aquele que salva”, mas não o
gentílico dos moradores daquela cidade, que são chamados
“salvadorenses” ou “soteropolitanos”.

6 Apesar dos problemas metodológicos que um dado desse tipo de fonte coloca para o
fazer científico, já que muitas vezes, o dado é modificado pelo sujeito que o relata,
optamos por trazer esse episódio, porque a inovação lexical ali presente, mesmo que
floreada pelo adulto, já é capaz de mobilizar a discussão sobre os limites das regras na
análise linguística que aqui pretendemos abordar.
7 Não se pode atribuir a criança uma intenção de criar uma palavra nova. Tal dado revela,

de um ponto de vista interacionista, a criança submetida a ordem própria da língua.


8Entendemos por regra, nesse contexto, um conceito genérico que designa uma

“hipótese a respeito de um mecanismo da língua” (DUBOIS et al., 1983, p. 515). Não


faremos, portanto, uma distinção entre suas diversas acepções nas diferentes vertentes
teóricas.
321

É interessante notar que, no caso do dado (2), a formação oferece


uma resistência a uma análise gramatical cega às singularidades da fala.
O problema ao qual chegamos é o de oferecer um tipo de teoria
linguística que possibilite entender a formação de “barrador”. A
alternativa de análise para esse tipo de dado precisa, portanto se apoiar
em um conceito que traga a fala para dentro da teorização. É nesse
sentido que se faz necessário trazer a analogia saussuriana. Saussure
(2006 [1916], p. 187) define uma forma analógica como sendo uma
forma feita a imagem de outra ou de outras, segundo uma regra
determinada. A analogia pressupõe, portanto, a “consciência e a
compreensão de uma relação que une as formas [modelo e imitação]
entre si” (SAUSSURE, 2006 [1916], p. 191) 9. Além disso, para a formação
de uma palavra nova via analogia, o sujeito falante deverá tomar as
formas em conjunto (não as decompondo em unidades menores) e
colocá-las no mecanismo intitulado quarta proporcional. Assim sendo,
quando a criança forma uma palavra como “barrador”, ela necessita, por
um lado, reconhecer, através da comparação das formas no eixo
associativo, a relação que as une e, por outro, aplicá-las ao mecanismo
da quarta proporcional, como exemplificamos abaixo.

(2’) compra: comprador = barra: x


x= barrador

(2”) salvador:salvadores = barrador:x


x = barrador

O exemplo de quarta proporcional acima mostra que, tendo em


vista o valor dos signos a (compra), b (comprador) e c (barra), o sujeito
obterá o valor da quarta proporcional, o valor do signo x, recorrendo à

9 Não devemos nos esquecer que, assim como mostra o próprio mestre, tratam-se
sempre de graus de consciência diferentes “sendo que o mais elevado ainda se encontra
na inconsciência pura, comparado ao grau de reflexão que acompanha a maioria de
nossos atos” (SAUSSURE apud. NORNMAND, 2009, p. 52).
322

propriedade fundamental das proporções (a igualdade entre as razões),


assim a estará para b, como c estará para x. Entende-se, com isso, que se
existem signos como comprador que, se formam por estar numa relação
associativa com itens como compra, é possível que exista um signo como
“barrador” que se forme por estar numa relação associativa com itens
como compra, comprador, barra. Da mesma forma a homofonia entre
“barrador” e “Barra d’or” poderia ter levado a uma associação com um
signo como Salvador e possibilitado o uso desse signo para designar
“moradores da barra”. De outra ordem são os dados (3) e (4).

Episódio 3
(A criança estava contando uma história para a mãe, ao
mesmo tempo que manipulava brinquedos de bichinhos)
M.: aai que bonitiiinho (começa a rir breve/e)
RA.: ee daííí
M.: ah?
RA.: o meniniinho fooi cortaa oo (bastotiinha) o meniniinho
M.: foi cor/ cortá o quê?
RA.: foi corrtá lãazinha do carneri[?]
M.: [quem] saabe como é que faala corta a lã do carneiro
M.: [tem uma palavraa chama tosqueaar _ viu?]
(G – 4;05.04)

Episódio 4
(Em uma aula de dança, após ter sido posicionada perto do
ventilador para iniciar o passo, a criança reclama)
Cr. Eu sempre tenho que ficar perto do espitador.
Ad. Por que “espitador”?
Cr. Por que parece aspirador.
(CP – 5)10

10Dado recolhido pela autora durante o processo de interação com crianças. O dado foi
anotado logo em seguida que foi ouvido, conservando-se assim suas características.
323

Neles, o que se reconhece é a formação de um signo que, ao mesmo


tempo que traz elementos morfológicos da Língua Portuguesa, dela se
afasta por operar com bases que não pertencem a essa. Ao formar,
portanto, “bastotinha” e “espitador”, as crianças estão criando uma
palavra que, apesar de conter unidades morfológicas da língua, não são
compreendidas por um falante adulto, por apresentar inovações
também na base bastota e espitar, unidades inexistentes em português.
Tal fato se mostra muito bem na surpresa da mãe no dado (3) (“foi cor/
cortá o quê?”) e na interrogação da interlocutora/pesquisadora no dado
(4) (“por que “espitador”?).
Quanto ao processo que a criança utilizou para a formação dessa
palavra, cabe o olhar para o dialogo no dado (4). Não estaria ali a
resposta para essa questão? Ora é justamente por “espitador” parecer
com “aspirador” que essa pode ser formada. A semelhança entre as
formas, ou, de um ponto de vista saussuriano, sua relação em um eixo
associativo deixa transparecer claramente como a criança chegou a essa
palavra. Assim a formação de “espitador” na fala da criança só é possível
porque se parece com “aspirador”.
O último agrupamento de dados, segundo propõe Secco (1994)
e Baia (2008), funcionam como preenchedores de lacunas da fala da
criança que, apesar de não apontarem para uma formação morfológica
conhecida na língua, não fogem do padrão fonotático dessa. Assim,
palavras como “mimeleu”, “mulapeti” e “relotiditi” são reconhecidas por
seu padrão fonotáticos como possivelmente pertencentes à Língua
Portuguesa, mas dificilmente compreendidas pelo interlocutor adulto
que deixa isso explícito em frases como “muligueti nunca ouvi falar” e
“relotidi que isso?”.

Episódio 5
(Criança e adulto estavam em frente a uma lousa e
conversando sobre vampiros e relâmpagos)
RA.: mais eu viii? (MIA) mais eu pensei que era relaampa ?
sabe o que a Camila faz? Ela põe tuudo no oolho
324

M.: quem que é Mila?


RA.: Camiila
M.: ah Camiila
RA.: o manhêê?
RA.: cê escreve Mila na losa pra mim copiá?
M.: o que que é Mila?
RA.: nãao seei ____ num (tom muito meigo) sei escrevê/
então num sei
(passarinho cantando ao longe)
M.: ah?
M.: você sabe escrever RA?
RA.: sei
M.: e você sabe o que é RA
RA.: mimeleu
M.: hmhm
RA.: (MIA) RA começa com memeleeuu
M.: começa com ra ___ noossa que beijão (breve riso) chega/
chega de dar beijo chega __ vamos brincar aqui na sala?
(G - 4;02 ,19)11

Episódio 6
(RA está contando a história de um rato)
M.: qual raato?
RA.: mulapeeti (ri)
RA.: [o raato] muligueeti
M.: muligueeti nunca ouvi [falar]
(G- 4;03.02)

Episódio 7
(Mãe e criança conversam, enquanto brincam de boneca)
M.: conta uma coisa e conta aí como é que foi esse passeio
aí na casa da Bárbara?!
RA.: (MIA) assei uu passei (MIA) éé relottiiih? ?

11Apesar de não ter relevância para o percurso argumentativo que estamos delineando
é imprescindível notar que, no dado 5, a inovação “mimeleu”, se coloca em uma relação
associativa com o “Mila”.
325

M.: uh?
RA.: o passseeeio o passeio (MIA) passeio fooi legaal por
isso que é relotchidi
M.: é o quê?
RA.: o passeio foi/ legaaal
M.: relotidi quê isso?
RA.: relotidi é legal é isso que eu to falando
M.: ce que inventou?
RA.: é!
RA.: que que é relotidi então?
M.: sei lá! Não existe! Essa palavra não existe em português
RA.: portuguêe? Mais _ eu falo portugueeeis?
M.: faala
(G – 4; 06.17)

Segundo escreve Carvalho (2011, p. 125) é nesse tipo de


ocorrência que o investigador se surpreende, não pela falta de um
significante, mas por um significante que faça sentido, o que causa a
quebra de uma expectativa. O que se escuta são manifestações sonoras
que se revestem de sentido em apenas um dos casos e somente pela fala
da própria criança, no dado (7), em que ela diz “relotidi é legal é isso que
eu to falando”. Ainda segundo a autora, podemos apreender desse tipo
de ocorrência a prevalência da metonímia ou a submissão da criança a
uma articulação posicional, ou seja, de uma criança capturada pelas
malhas do funcionamento da língua, cujos mecanismos fundamentais
são a metáfora e a metonímia. É importante notar que tais dados não se
formam de modelos predeterminados, mas de uma brincadeira com os
sons. Brincadeira que joga com os sons da língua e provoca seus efeitos
no estranhamento do outro (... “nunca ouvi falar”) e no deleite da criança
que, por vezes ri e transforma o dado metonimicamente, formando algo
que se aproxima de uma poesia.

(5’) mimeleu > memeleu


(6’) mulapeti > muligueeti
(7’) relottiiih > relotchidi > relotidi
326

A análise formal dos dados (1) a (7) mostrou os vários modos


através dos quais a inovação lexical se apresenta na fala da criança.
Esses vão desde palavras formadas por processos reconhecidos na
Língua Portuguesa (episódio 1 e 2), passando por palavras que
apresentam um morfema da língua, mas não a base (episódios 3 e 4) e
palavras que da língua só guardam a fonotaxe (episódios 5, 6 e 7). Cabe,
nesse momento, indagar o que tais dados revelam da relação da criança
com essa língua. Para tanto, vamos recorrer ao que Milner (1987, 1995)
expõe sobre a atividade gramatical do falante e sobre o conceito de
Lalangue.
Debruçando-se sobre a questão da constituição da linguística
enquanto ciência Milner, em seu livro de 1995, discute o que vai
denominar factum grammaticae. Segundo o autor, a ciência linguística
consiste na atribuição de propriedades às línguas e à fragmentos de
língua e tal fato só é possível pela existência das gramáticas. Assim, a
linguística, como ciência, se apoia no factum grammaticae (MILNER,
1995, p. 54 – 55), ou seja, no fato de que se pode postular gramáticas
para as línguas. Por isso, é verdade que a atividade gramatical existe, ou
seja, que os sujeitos falantes sejam capazes de realizar julgamentos
sobre sua própria língua. Tais julgamentos, como apresenta o autor,
podem ser diferenciáveis de acordo com duas hipóteses que concernem
o fato que nem tudo na língua pode ser dito, separando-se assim o que é
possível do que é impossível. O que supõe que existe um impossível
linguístico, que, por vezes, não coincide com o impossível material.
Assim coloca o autor “Le possible de langue et le possible matériel
peuvent ne pas coincider” (id., p. 57).
Carvalho, observando tais distinções escreve que o possível
material “... é o dado linguístico, o enunciado efetivamente realizado ou
realizável” (CARVALHO, 1995, p. 22). O impossível material, por sua vez,
é aquilo que, embora possível linguisticamente não existe como dado
empírico, mas somente enquanto invenção ficção ou, em última análise,
aparece bastante raramente (FELIPETO, 2008, p. 23 - 24). Disso se pode
327

compreender o materialmente possível, cindido em possível e


impossível linguístico, pelo julgamento do falante, é o que constitui a
língua como todo.
Do possível linguístico assim compreendido só temos o dado (1) e
(2) que, como mostramos, deixam-se explicar facilmente pelos
processos de formação da língua e se inserem dentro dos limites dessa,
quando tomada por um olhar mais amplo como promove a analogia
saussuriana. Os dados (3) a (7), no entanto, beiram o linguisticamente
impossível, o que se atesta pelo efeito sobre o outro que já destacamos.
O que esse efeito evidencia é uma escuta que reconhece algo familiar e
identificável, “mas que, simultaneamente, produz-se como falta ou
excesso, demandando daquele que escuta uma nova significação” (id.,
p.15-16).
Se classificados dessa maneira, localizaremos os dados num
possível material que se divide em possível e impossível linguístico e
apagaremos o que, nas palavras de Felipeto “constitui apenas um
possível material” (2008, p. 24). Ainda segundo a autora, “isto significa
descartar o não repetível, isto é, o singular” (id). Assim, esse
procedimento teórico-metodológico nos faria desconsiderar aquilo de
mais relevante, e porque não dizer mais bonito, que esses dados podem
oferecer: sua singularidade. Faz-se necessário compreender, portanto,
que o caráter de invenção, singularidade e não repetitividade desses
dados os colocam também na posição de algo que empurra os limites da
língua, os quais podem ser chamados de lalíngua. O conceito de lalíngua
vem nesse sentido dar nome a um espaço em que o todo da língua, que
é calculável, é furado pela fala, mostrando o lugar em que a língua tende
ao equívoco. Como escreve Milner:

Lalíngua é, em toda língua, o registro que a fada ao


equívoco. Sabemos como chegar a ele: desestratificando,
confundindo sistematicamente som e sentido, menção e
uso, escrita e representado; impedindo com isso, que um
328

estrato possa servir de apoio para desembaraçar um outro


(MILNER, 1987, p. 21-22).

Devemos acrescentar, por fim, que o caráter singular desses dados


justifica-se, pela singularidade da própria criança em seu percurso de
captura pela língua. Singularidade essa que está relacionada com os
efeitos que a fala do outro provoca na criança.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A título de uma conclusão retomemos dois fragmentos dos dados


que foram apresentamos:

(2’’’) “E que língua que eles falam lá, pai?”.


(7’’’) “Portuguêe? Mais _ eu falo portugueeeis?”.

Nesses fragmentos de fala da criança, retomados dos dados (2) e


(7), é possível reconhecer as seguintes questões: Que língua o outro fala?
Que língua eu falo? E – acrescentamos - Que língua é essa que me
permite criar, mas somente dentro de certos limites?
Da mesma forma que a criança, as perguntas que moveram esse
estudo se referem à relação dessa com a língua, uma relação que a
constitui enquanto sujeito falante. Assim, o objetivo desse trabalho foi o
de desenvolver uma reflexão sobre a relação da criança com a língua, a
partir de sua fala. Para tanto colocamos como foco de análise as
inovações lexicais na fala da criança, em especial, aquelas convocam a
(re)pensar os caminhos e limites do possível material e linguístico
(MILNER, 1995) na aquisição de linguagem.
Pudemos concluir, principalmente, que esses dados revelam uma
criança que está sempre em um jogo de possível e impossível linguístico
e possível material, mostrando no seu processo de captura pela língua,
um momento em que “lalíngua faz nó com a língua” (FILIPETO, 2008,
p.15-16). Nesse momento que a atividade agramatical da criança ressoa
329

um fenômeno da língua, mas empurra seus limites e desvia seus


caminhos, transvariando. Momento também que o caráter imprevisível
do dado se torna indiscutível.

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAIA, M. F. A. Estudo experimental sobre o formato prosódico inicial na


aquisição do português brasileiro. Estudos Lingüísticos (São Paulo), v.
37, p. 24-33, 2008.
BORBA, F. S. Dicionário UNESP do português contemporâneo. São
Paulo: UNESP, 2004.
CARVALHO, G. M. M. de. Levantamento de questões sobre o erro em
aquisição da linguagem. Letras de Hoje, v. 30, n.04, p. 137-143, 1995.
______. Natureza das produções complexas na fala da criança: um impasse
entre o saber e o não saber do investigador. Revista Intercâmbio, v. 24,
p. 118-128, 2011.
CUNHA, Antônio Geraldo. Dicionário etimológico Nova Fronteira da
língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
DE LEMOS, C. T. G. Uma crítica (radical) à noção de desenvolvimento na
aquisição de linguagem. In: Maria Francisca Lier-DeVitto; Lúcia Arantes.
(Org.). Aquisição, Patologias e Clínica da Linguagem. São Paulo:
EDUC, 2006, v. 1, p. 21-32.
DUBOIS, J. Dicionário de Linguística. São Paulo: Cultrix, 1973.
FIGUEIRA, R.A. A Palavra divergente. Previsibilidade e imprevisibilidade
nas inovações lexicais na fala de duas crianças. Trabalhos em
Linguística Aplicada, Campinas, vol. 26, p.49-80, 1995.
______. O erro como dado de eleição nos estudos de aquisição da linguagem.
In PEREIRA DE CASTRO, M. F. C. O Método e o Dado no Estudo da
linguagem. Campinas, Editora da UNICAMP, 1996, p. 55-86
______. O que a investigação sobre o erro na fala da criança deve a Saussure.
Cadernos de Estudos Linguisticos. Campinas, vol. 52, n. 1. p. 115-143,
2010.
330

FELIPETO, C. Rasura e equívoco no processo de escritura em sala de


aula. 01. ed. Londrina: EDUEL-Ed. Universidade Estadual de Londrina,
2008. 168p.
LEÃO, M. Criança fala cada coisa. Disponível em:
<http://noticias.r7.com/blogs/mariana-leao/2011/10/24/crianca-fala
-cada-coisa/>. Acesso em: 12 de maio de 2013.
MELO, C. R ; GOMES, J. Adjetivos pátrios brasileiros. Ao Pé da Letra
(UFPE. Impresso), v. 2, p. 35-40, 2000.
MILNER, J. C. Introduction a une science du langage. Ed. abregee.
Paris: Editions du Seuil, 1995.
______. O amor da língua. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2012.
NORMAND, Claudine; FLORES, Valdir; BARBISAN, Leci Borges (coorg.).
Convite à linguística. São Paulo, SP: Contexto, 2009.
SAUSSURE, F. (1916). Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix,
2006.
SECCO, G. (1994) Criações lexicais em uma criança de 20 meses de
idade. Dissertação de mestrado. Florianópolis: UFSC.
331

A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE NA
AQUISIÇÃO/APRENDIZAGEM DE LE: UM ESTUDO SOBRE CRIANÇAS
BRASILEIRAS APRENDIZES DE INGLÊS

Amanda de Oliveira Silva (FCL/Ar)1


Alessandra Del Ré (FCL/Ar)2

RESUMO: De acordo com Bakhtin e o Círculo (1976, 1997, 2010), os


sujeitos constituem-se na e através da língua(gem), dentro das relações
interpessoais estabelecidas. Partindo-se desse princípio, acreditamos
que a aquisição/aprendizagem de LE traz aos aprendizes um novo
processo de constituição da subjetividade, já que ao lidar com a LE os
aprendizes passam a configurar o mundo e, portanto, as relações sociais,
de forma distinta, tanto em termos linguísticos como culturais. Isso
significa que a LE poderia proporcionar uma reconstituição da
subjetividade que deixa marcas nas formas de agir, marcas estas que
poderiam ser encontradas, então, no discurso dos aprendizes. O objetivo
principal deste artigo é apresentar um recorte de um trabalho em
andamento sobre as produções linguísticas em LE (no caso o inglês) de
crianças que iniciaram o seu contato com essa língua em um ambiente
formal de ensino, uma escola de idiomas. Para tanto, o uso feito da
língua-alvo pelos aprendizes foi considerado em duas categorias
principais: “resposta à professora” e “uso espontâneo”. Pretendemos
através do uso dessas categorias de análise, refletir sobre a relação
estabelecida entre aprendiz e LE. Para que os objetivos sejam
alcançados, uma coleta de dados transversal foi realizada em uma escola
de idiomas, totalizando 13 sessões filmadas ao longo de 4 meses. A
abordagem utilizada para análise dos dados é de cunho qualitativo, ou

1Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Linguística da Faculdade de Ciências e


Letras (FCL/Ar)-Universidade Estadual Paulista (UNESP) - Campus de Araraquara.
Bolsista CNPq e integrante do grupo de pesquisa GEALIN (Grupo de Estudos em
Aquisição de Linguagem).
2 Docente do Departamento de Linguística, da Faculdade de Ciências e Letras,

Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Araraquara.


332

seja, por meio de traços singulares das três crianças estudadas


pretendemos chegar a reflexões a respeito do processo de
aquisição/aprendizagem vivenciado por elas.

PALAVRAS-CHAVE: LE. Aquisição/aprendizagem. Crianças. Subjetividade.

ABSTRACT: According to Bakhtin and the Circle (1976, 1997, 2010), the
beings are constituted by language in their interpersonal relationships.
Based on that, we believe that the acquisition/learning of a foreign
language (FL) provides to the learners a new process of constitution of
their subjectivity. By dealing with the FL, learners start to see the world
and, therefore, their social relationships, in a different way, culturally
and linguistically speaking. This fact means the FL may be the
opportunity for a reconstitution of the subjectivity which may change
the way of acting of the learners and be found in their discourse. The
main objective of this paper is to present a part of a dissertation that is
being developed. In this project we intend to analyse the linguistic
production in a FL (English) by children that started their contact with
this language in a formal context of learning, a private language school.
In order to do so, we considered the way the children use the FL in two
main categories: “answers to the teacher” and “spontaneous use”.
Through these analysis categories, we want to think about the
relationship established between learners and the FL. To achieve our
objectives, we collected some data at a private language school and in
the end of this process we had 13 sessions/classes collected in a four-
month period. We use a qualitative approach of analysis as we intend to
reflect about the singularity of the three learners studied in our project
in order to talk about their process of acquisition/learning of the FL.

KEYWORDS: FL. Acquisition/learning. Children. Subjectivity.


333

1. Introdução

Em um mundo cada vez mais globalizado, as relações


interpessoais redimensionaram-se, permitindo que as pessoas ao redor
do mundo estabeleçam facilmente contato através de meios de
comunicação, como o telefone, o celular e a Internet. Nesse contexto
social no qual pessoas de diferentes países, que falam diferentes línguas,
estabelecem relações pessoais, de trabalho etc., o inglês tornou-se a
língua que mais se difundiu para possibilitar a comunicação entre essas
pessoas de origens distintas. Outras línguas também se destacaram
como o espanhol e o francês e, mais recentemente, o mandarim.
Rajagopalan (2009, p. 25-26), ao abordar o novo milênio, afirma que a
realidade vivenciada nessa era é “[...] marcada de forma acentuada por
novos fenômenos e tendências irreversíveis como a globalização e a
interação entre culturas, com consequências diretas sobre a vida e o
comportamento cotidiano dos povos, inclusive no que diz respeito a
hábitos e costumes linguísticos.”
Devido a essa nova configuração das relações interpessoais, o
interesse pelo ensino-aprendizagem de inglês mostra-se em constante
popularização, já que essa língua é vista como meio pelo qual barreiras
sociais e linguísticas podem ser ultrapassadas, por exemplo: alguém que
se comunica facilmente em inglês é visto como capaz de viajar ao redor
do mundo sem enfrentar grandes dificuldades com relação à
comunicação; no mercado de trabalho, muitas vezes, as pessoas que
falam inglês têm melhores oportunidades de emprego; e o inglês
também é visto como forma de se ter acesso a novos conhecimentos na
medida em que essa língua ajuda na divulgação de notícias
internacionais, de livros e de descobertas científicas.
Com a popularização da língua inglesa, muitos pais matriculam
seus filhos em cursos particulares (ou mesmo escolas regulares que
ofereçam o ensino dessa língua) cada vez mais cedo e, por isso, esse tipo
de ensino encontra-se em constante expansão. Geralmente, esses pais
são levados a essa decisão não somente pelo fato de o inglês ser
334

considerado uma língua que oferece possiblidades futuras no trabalho e


nos estudos, mas, também, porque acreditam que quanto mais cedo uma
pessoa começa a estudar uma LE, melhor será o resultado da
aprendizagem (BREWSTER, ELLIS & GIRARD, 2002; BIALYSTOK, 2001,
ALDERSON, 2006 apud ROCHA, 2007, p. 275). Entretanto, o senso
comum de que a criança, ao iniciar a aquisição/aprendizagem 3 cedo,
leva vantagens sobre o aprendiz que começa a estudar enquanto
adolescente ou adulto está longe de ser um consenso dentro da área de
estudos de língua estrangeira (LE).
A expansão do ensino de LE, seja ele para crianças ou para adultos,
demanda novos estudos na área para que o processo de ensino-
aprendizagem possa ser melhor investigado, já que, como afirma
Marchenkova (2005, p. 7) sobre a área de pesquisa em LE: “[...] it is
widely acknowledged that, while the field had been productive, it has
not yet generated a unified and comprehensive view of how an L2 is
learned, and the multiplicity of theories in SLA gives rise to debate and
controversy.”4 Acreditamos que até agora não se tenha criado ou
descoberto uma teoria única e completa sobre o modo como os alunos
aprendem uma LE, sobretudo se consideramos que esse processo de
aprendizagem é influenciado por fatores pessoais relacionados a cada
aprendiz. Entretanto, acreditamos que avanços possam ser feitos na
área para uma compreensão mais realista, do ponto de vista sócio-
linguístico, dos aspectos ligados à aquisição/aprendizagem de LE.
Este artigo tem como objetivo apresentar um recorte de pesquisa
em andamento, em nível de Mestrado, sobre as produções linguísticas
em LE (inglês) de crianças que iniciam seu contato formal com essa
língua, por volta dos 3 anos de idade, em um ambiente de ensino, no
caso, uma escola de idiomas. Para tanto, o uso feito da LE pelos

3 Trataremos dessa questão adiante.


4 “[...] é fastamente reconhecido que, mesmo a área sendo produtiva, ainda não foi gerada

uma visão unificada e completa sobre como uma L2 é aprendida, e a multiplicidade de


teorias na área de estudos sobre aquisição de segunda língua gera o debate e a
controvérsia”. (tradução nossa)
335

aprendizes foi considerado em duas principais categorias: resposta à


professora e uso espontâneo. Na primeira categoria, a LE aparece no
discurso dos aprendizes sob a forma de resposta a uma pergunta feita
pelo professor, que atua como mediador entre LE e sujeito-criança no
contexto de sala de aula. Já na segunda categoria, ocorre o uso
espontâneo da LE por parte dos aprendizes, fato que, acreditamos,
revela, de forma mais evidente, um sujeito que também se constitui e
emerge na língua-alvo.
Acreditamos que a abordagem adotada aqui, a saber, a reflexão
bakhtiniana e do Círculo (1976, 1997, 2010) a respeito das noções de
língua(gem), subjetividade, gênero etc., contribui significativamente
para as discussões empreendidas na área de estudos em LE. Outros
autores que constituem a base teórica do trabalho são Vygotsky (2007),
com seu olhar sócio-interacionista sobre o desenvolvimento da criança
e o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), e Bruner
(1984), com o conceito de formats. Por último, nossa contribuição se
dará a partir dos resultados de análise do corpus por nós coletado.
Acreditamos que as reflexões bakhtinianas e do Círculo (1976,
1997, 2010) possam ser valiosas para a área de LE, mesmo os autores
nunca tendo se dedicado exclusivamente a esses estudos (DEL RÉ;
HILÁRIO; VIEIRA, 2012).
Nas discussões desses autores, a língua(gem) é considerada como
fenômeno que se constitui socialmente na interação entre os sujeitos.
Portanto, a língua(gem) não é apenas um conjunto de formas
linguísticas, mas, sim, de signos carregados de valores culturais que
relevam no seu uso o recorte de mundo dado por uma determina
sociedade. Outrossim, como postulado por Bakhtin (2010), o despertar
da consciência humana ocorre quando o sujeito entra em contato com
os signos ideológicos através do outro. Consequentemente, ao
adquirir/aprender uma LE, um outro recorte de mundo é apresentado
ao aprendiz que constitui a sua consciência de formas distintas daquelas
já existentes através da língua materna (LM). Se a consciência desperta
no contato com os signos ideológicos, o aprendiz passa por
336

deslocamentos em sua subjetividade ao lidar com a LE, já que ela


apresenta um material linguístico e cultural distinto da LM.
Além de contar com as contribuições dos autores acima citados,
contamos com as contribuições do grupo de estudos GEALin
(UNESP/FCLAr)/NALingua, principalmente das pesquisas de colegas
que trabalham com LE (FALASCA, 2012; BUENO, 2013).
Falasca (2012) aborda a constituição da subjetividade de
aprendizes adultos no contato com uma LE (no caso, o inglês). Para a
autora, a LE possibilita novos deslocamentos identitários, provocando
um embate entre o que já foi constituído pela LM e o novo trazido pela
língua alvo. Para que o aprendiz possa aprender a LE, ele precisa estar
aberto aos deslocamentos atrelados à ela. Durante as análises, a autora
baseou-se em relatos escritos e entrevistas com alunos adultos de inglês
e constatou que os deslocamentos identitários entre a LM e LE aparecem
de forma consistente no discurso dos aprendizes.
Já Bueno (2013) trata do processo de constituição da
subjetividade através da LE em uma criança que iniciou a
aquisição/aprendizagem de espanhol em um colégio bilíngue aos 4 anos
e passou a utilizar a LE em contexto familiar. A autora, também, parte da
hipótese que a LE possibilita deslocamentos identitários e, como base
para as análises, utilizou filmagens da criança citada (F., 5 anos) em
interações com a mãe e com a própria pesquisadora em contexto
familiar. Nessas filmagens, a autora encontrou evidências no discurso da
criança dos deslocamentos e, partindo das análises, defende uma
complementariedade entre os processos de aquisição, aprendizagem e
bilinguismo. Tanto Falasca (2012) quanto Bueno (2013) utilizam-se de
uma perspectiva dialógica-discursiva.
Vale ressaltar que, em concordância com Falasca (2012), não
consideramos os processos de aquisição e aprendizagem como
totalmente distintos e estanques. Por mais que o corpus coletado para o
projeto seja em sala de aula, ou seja, um ambiente formal, no qual,
segundo Krashen (2003), a aprendizagem (processo consciente)
ocorreria, acreditamos que não seja possível delimitar de forma precisa
337

até que ponto temos a aquisição (processo natural e inconsciente) e a


aprendizagem, por essa razão adotamos “aquisição/aprendizagem”
como forma de expressar esse processo, sem diferenciá-las.
Para que os objetivos da pesquisa sejam alcançados, foi realizada
uma coleta de dados em uma escola de idiomas do interior paulista. O
corpus da pesquisa é composto por filmagens em sala de aula de uma
turma de crianças aprendendo inglês como LE. A turma filmada possui
3 alunas, uma com 3 anos de idade e as outras duas com 5 anos. No total,
foram coletadas 13 sessões com cerca de 50 minutos de duração. A
coleta toda durou cerca de 3 meses e foi realizada durante o primeiro
semestre de 2012. Esses dados serão analisados de forma qualitativa.
A escolha dessa turma de alunas ocorreu pelo falo de ela contar
com um número reduzido de alunos. Com menos alunos, a posterior
análise das aulas é facilitada e melhor sucedida. Como já é de senso
comum, em uma sala de aula, por diversos momentos, crianças têm o
hábito de falar ao mesmo tempo e de forma elevada. Esse fato dificulta
muito a transcrição e análise dos dados e, consequentemente, todo o
andamento do projeto. A aluna responsável pelo projeto de mestrado já
teve a experiência durante a graduação de filmar uma sala de aula com
cerca de 8 alunos e avaliou que os dados ficaram bem comprometidos.

2. Vygotsky e Bruner

Dentro da sua perspectiva sócio-interacionista do


desenvolvimento e da aprendizagem da criança, Vygotsky criou o
conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) que influenciou
de maneira expressiva a área da educação. Segundo o autor, a criança
possui um nível de desenvolvimento real que corresponde às atividades
que ela consegue desenvolver sozinha, sem precisar da ajuda de uma
pessoa mais experiente, por exemplo um adulto ou um colega de turma
que se encontra em uma zona de desenvolvimento real mais avançada:
“[...] o nível de desenvolvimento real de uma criança define funções que
já amadureceram, ou seja, os produtos finais do desenvolvimento. Se
338

uma criança pode fazer tal e tal coisa, independentemente, isso significa
que as funções para tal e tal coisa já amadureceram nela.” (VYGOTSKY,
2007, p. 97). Já, quando está em sua ZDP, a criança não consegue realizar
as atividades sozinhas e precisa contar com a ajuda de outra pessoa que
atua como mediador, um facilitador, entre a criança e o novo
conhecimento em questão. Vygotsky (2007, p. 97) afirma que a ZDP é:

[...] a distância entre o nível de desenvolvimento real, que


se costuma determinar através da solução independente de
problemas e o nível de desenvolvimento potencial,
determinado através da solução de problemas sob a
orientação de um adulto ou em colaboração com
companheiros mais capazes.

Segundo Pinter (2011), o conceito de ZDP de Vygotsky está


relacionado ao fato de que o aprendizado e o desenvolvimento
intelectual das crianças ocorrem através do diálogo entre elas e os
mediadores, diálogo esse que é carregado das características do
ambiente social no qual os sujeitos estão inseridos.
Para a área de educação, os efeitos do conceito de ZDP
evidenciaram que a aprendizagem da criança deve sempre estar um
passo à frente de seu desenvolvimento. Vygotsky (2007, p. 103) postula
que “o processo de desenvolvimento progride de forma mais lenta e
atrás do processo de aprendizagem”, já que, se dentro do ambiente
escolar, os conhecimentos ensinados aos alunos se baseassem somente
no que eles são capazes de fazer, não haveria desenvolvimento. Os
alunos precisam ser desafiados com novas atividades que podem
parecer difíceis de serem solucionadas, mas que, com a ajuda de
companheiros mais capacitados (dentro da ZDP) e com uma boa
mediação do professor, podem chegar à solução. O desafio, então, deve
fazer parte da aprendizagem escolar para que os aprendizes sejam
estimulados a sempre avançar em seu processo de desenvolvimento
intelectual. Vale ressaltar que as atividades passadas aos alunos não
podem ser tão complexas que sejam impossíveis de serem solucionadas.
339

Tal fato geraria decepção e falta de motivação por parte dos alunos,
provocando efeitos negativos na aprendizagem. Cabe ao professor
investigar e analisar os seus alunos para que as atividades
desenvolvidas sejam adequadas para o nível de desenvolvimento no
qual elas se encontram. Vygotsky (2007, p. 103) postula que:

[...] aprendizado não é desenvolvimento; entretanto, o


aprendizado adequadamente organizado resulta em
desenvolvimento mental e põe em movimento vários
processos de desenvolvimento que, de outra forma, seriam
impossíveis de acontecer. Assim, o aprendizado é um
aspecto necessário e universal do processo de
desenvolvimento das funções psicológicas culturalmente
organizadas e especificamente humanas.

Dentro da sala de aula de LE, o professor precisa estar consciente


de sua importante função como mediador entre os aprendizes e a LE,
envolvida em seu mundo ideológico, e ter cuidado ao planejar as aulas
para que a língua-alvo seja apresentada aos alunos de forma estimulante
e desafiadora, mas não tão desafiadora que possa gerar o efeito
contrário, o de desestímulo. Como veremos mais adiante no capítulo, as
crianças, foco deste trabalho, não têm a mesma atenção do que os
aprendizes adultos. Quando elas se deparam com atividades que
parecem complicadas demais, elas facilmente passam a prestar atenção
em outras coisas e perdem o foco na LE. De acordo com Carvalho (2005,
p. 26): “teachers must be careful not to expect their children to produce
language they are not able to.”5
Partindo do conceito de ZDP, Bruner, um dos pioneiros do estudo
sobre a interação entre a criança e o adulto, em parceria com Wood e
Ross (1976) criou o conceito de scaffolding. Para os autores, esse
conceito se refere ao tipo de ajuda dada pelo parceiro mais experiente

5 Os professores devem ser cuidadosos para não esperar que as crianças produzam uma

linguagem para a qual elas ainda não estão preparados.


340

às crianças durante a resolução de um problema, ou seja, enquanto elas


se encontram na ZDP. Durante essa ajuda, o professor, no caso do
ambiente de sala de aula, deve passar as estratégias corretas para que
as atividades sejam solucionadas, simplificando, muitas vezes, algo mais
complexo em atividades menores que estão ao alcance do conhecimento
dos alunos. Além disso, durante o scaffolding o professor deve atrair o
interesse dos alunos para a atividade, aproximando-a do mundo deles,
fato que proporciona uma identificação entre aluno e o assunto
estudado. Não podemos esquecer que o professor também deve
encorajar e ajudar os alunos caso dificuldades sejam encontradas
durante a realização das atividades.
Outro conceito importante de Bruner (1984) é o de formats.
Segundo o autor, a comunicação interpessoal é regrada pelas relações
sociais existentes entre os sujeitos participantes e, através dessas
relações, o uso da linguagem adquire um padrão estável. Para que a
criança entre na linguagem, ela precisa adentrar os formats, que ao
proporcionarem uma estabilidade para as trocas comunicativas
viabilizam a comunicação verbal:

Let me define what I mean by a format. In order for the


young child to enter into language, he must enter into social
relationships of a kind that contextualize language in
dialogue. A format is a simplified example of that class of
relationships. It is a rule-bound microcosm in which the
adult and child do things to and with each other. […]
Eventually they permit adult and child to do things with
each other by the use of language as an adjunct to non-
verbal means.6 (BRUNER, 1984, p. 76)

6 Deixe-me definir o que eu quero dizer por formato. Para que as crianças pequenas
entrem na linguagem, elas precisam adentrar relações sociais de um tipo que
contextualize a linguagem no diálogo. Um formato é um exemplo simplificado dessa
classe de relações. É um microcosmo regido por regras no qual o adulto e a criança fazem
coisas para e com o outro. Eventualmente, os formatos permitem que o adulto e a criança
façam coisas um com o outro por meio da linguagem como auxiliar a meios não-verbais.
341

Os formats incorporam à linguagem rotinas que permitem a


criança adentrar a corrente da comunicação verbal devido a uma certa
previsibilidade das sequências enunciativas. Entretanto, os formats não
introduzem apenas a rotina, o familiar, eles introduzem, também, algo
que é sempre novo e individual, peculiar a cada contexto enunciativo
que permite que o sujeito coloque a sua individualidade em jogo. Vale
ressaltar que, segundo Bueno (2003, p. 73): “[...] a noção de gênero vem,
pois ao encontro do conceito de formats desenvolvido por Bruner”.
Esse conceito de format também pode ser importante se
pensarmos no âmbito da sala de aula de LE. Dentro desse format, o
professor tem o papel de mediador e de condutor das rotinas, mas isso
não significa que as crianças não devam participar ativamente das
atividades em sala, pelo contrário: através do scaffolding do professor,
as crianças devem, assim como Richard no jogo e esconde-esconde,
participar cada vez mais como agentes da própria aprendizagem, na
medida em que se desenvolvem mais na LE. Ao abordar a importância
das rotinas em sala de aula, Cameron (2001, p. 9) postula que:

The context and the familiarity of the event provide an


opportunity for pupils to predict meaning and intention,
but the routine also offers a way to add variation and
novelty that can involve more complex language […].
Routines then can provide opportunities for meaningful
language development; they allow the child to actively
make sense of new language from familiar experiences and
provide a space for language growth. Routines will open up
many possibilities for developing language skills.7

7 O contexto e a familiaridade do evento fornecem a oportunidade para as crianças


preverem o significado e a intenção, mas a rotina também oferece um caminho para
adicionar a variação e a novidade que podem envolver uma linguagem mais complexa
[...]. As rotinas podem, então, fornecer oportunidades para o desenvolvimento de
linguagem significativa; elas permitem a criança a ativamente construir o significado da
nova linguagem a partir de experiências familiares e dão espaço pra o desenvolvimento
dela. As rotinas irão tornar acessíveis muitas possibilidades para desenvolver
habilidades na linguagem.
342

3. As reflexões bakhtinianas e do Círculo

Abordaremos aqui algumas reflexões teóricas que são a base para


a nossa concepção de língua(gem) e sujeito. Bakhtin/Volochinov (2010)
afirma que “o domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos:
são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra,
encontra-se também o ideológico. Tudo o que é ideológico possui um
valor semiótico.” (2010, p. 32-33, grifo do autor). Portanto, a palavra,
como exemplo de signo ideológico, é por natureza ideológica, já que
reflete uma outra realidade fora de sua condição física. Cada reflexo da
realidade lançado pela palavra é determinado pelo contexto enunciativo
em que se dá a comunicação entre as pessoas:

A palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A


realidade toda da palavra é absorvida por sua função de
signo. A palavra não comporta nada que não esteja ligado a
essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A
palavra é o modo mais puro e sensível de relação social.”
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2010, p. 36)

Ao ser o “modo mais puro e sensível de relação social”


(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2010, p. 36), a palavra, e consequentemente,
a língua(gem), revela uma de suas características: a palavra é um
fenômeno de base social, ou seja, ela nasce e se desenvolve nas relações
entre os sujeitos. A própria consciência humana começa a se constituir
através da palavra enquanto signo ideológico. Portanto, a consciência de
cada um dos seres humanos tem o seu despertar no contato com a
alteridade e só pode ser compreendida em uma análise de fundo
sociológico e não individual.
Passemos, agora, a discorrer sobre o sujeito: como o despertar da
consciência se dá na interação social através da língua(gem), a palavra
se mostra como o material para o desenvolvimento cognitivo.
343

Bakhtin/Volochinov (2010, p. 37) assevera que: “[...] a consciência não


poderia se desenvolver se não dispusesse de um material flexível,
veiculável pelo corpo. E a palavra constitui exatamente esse tipo de
material. A palavra é, por assim dizer, utilizável como signo interior.”
Assim, ao estudarmos o fenômeno da aquisição da LM ou a
aquisição/aprendizagem de LE, o sujeito precisa ser compreendido
como essencialmente constituído em suas relações sociais, pelas quais
há o “start da consciência” e ele entra em contato com o mundo e com os
outros sujeitos. A constituição do sujeito se dá juntamente com a
aquisição da LM e perdura durante toda a vida, dependendo das relações
estabelecidas pelo sujeito com o outro. Consequentemente, o sujeito não
é acabado, ele está sempre em um constante processo de constituição de
sua subjetividade:

Está na incompletude a energia geradora da busca da


completude eternamente inconclusa. E como incompletude
e inconclusão andam juntas, as mediações sígnicas, ou as
linguagens construídas neste trabalho contínuo de
constituição não podem ser compreendidas como sistema
fechado e acabado de signos para sempre disponíveis,
prontos e reconhecíveis. (GERALDI, 2010, p. 126)

Ao analisarmos que o sujeito se constitui nas relações com o outro


através da língua(gem), podemos abordar mais uma característica desse
sujeito social: o dialogismo. Quando um sujeito se posiciona
discursivamente, ou seja, enuncia, ele, inevitavelmente, se utiliza da
imensidão dos discursos outros com quais ele já manteve contato. O
discurso alheio, consequentemente, faz parte do discurso do eu, pois
este seleciona partes desse discurso, concordando com ele ou o
refutando. O eu sempre assume, então, uma atitude responsivo-ativa
com relação ao discurso do outro e, além de ser uma resposta aos
discursos outros, gera respostas, criando o elo infinito da comunicação
verbal. O sujeito e a língua(gem) são, portanto, essencialmente
dialógicos:
344

A apreensão do mundo é sempre situada historicamente,


porque o sujeito vai constituindo-se discursivamente,
apreendendo as vozes sociais que constituem a realidade
em que está imerso, e, ao mesmo tempo, suas inter-
relações dialógicas. Como a realidade é heterogênea, o
sujeito não absorve apenas uma voz social, mas várias, que
estão em relações diversas entre si. Portanto, o sujeito é
constitutivamente dialógico. Seu mundo interior é
constituído de diferentes vozes em relações de
concordância ou discordância. Além disso, como está
sempre em relação com o outro, o mundo exterior não está
nunca acabado. (FIORIN, 2008, p. 55)

O fato de o eu constituir o próprio discurso com o discurso do


outro não significa que esse sujeito não tenha opção de escolha dentro
do universo ideológico-linguístico e, portanto, não seja responsável pelo
próprio discurso. Ao contrário, o sujeito nunca é assujeitado, pois
participa ativamente na corrente da comunicação verbal. Além disso, a
ideia de sujeito não assujeitado se liga à de individualidade que
discutiremos no decorrer desta seção. Bueno (2012, p. 59) corrobora o
fato de o sujeito ser responsável pelo próprio discurso:

[...] o sujeito aqui compreendido, ainda que influenciado


por coerções sociais historicamente determinadas e pela
comunidade linguística a que pertence, ele não é levado a
tomar decisões apenas pelo agir do(s) outro(s) ou por
influência do ambiente em que vive; não é assujeitado. O
sujeito, ao enunciar, participa ativamente na construção de
significados, de sentidos.

Por fim, a última característica que relacionaremos ao sujeito é o


fato de ele, além de ser social, ser individual, único, insubstituível. A um
primeiro olhar, tal afirmação pode parecer contraditória, já que
afirmamos que o sujeito constitui-se socialmente nas relações
345

interpessoais estabelecidas. Porém, o sujeito, que tem seu discurso


constituído dialogicamente, possui uma maneira única de enunciar, de
posicionar-se. A própria forma com a qual ele organiza o seu enunciado
é individual. Nenhum outro sujeito pode lançar mão de um mesmo
enunciado, em um mesmo contexto discursivo e com participantes
iguais. Cada situação de comunicação é única e cada enunciado é único,
fatos que evidenciam a faceta individual do sujeito:

A oração, enquanto unidade da língua, assim como a


palavra, não tem autor, não é de ninguém (como a palavra),
sendo somente quando funciona como enunciado completo
que se torna expressão individualizada da instância
locutora, numa situação concretada comunicação verbal.
(BAKHTIN, 1997, p. 307-308)

4. O corpus do trabalho e as categorias de análise

Como já afirmamos, para coletar o corpus da pesquisa, filmamos


três crianças aprendizes de inglês como LE em uma escola particular de
idiomas. Com relação à idade dos sujeitos envolvidos, as idades iniciais
e finais das alunas foram: 5;6 – 5; 9 (J.), 5;2 – 5;5 (G.) e 3;6 – 3;9 (F.).
Pudemos, então, observar, as alunas de aproximadamente 3 a 5 anos de
idade. As filmagens começaram cerca de 3 a 4 semanas após o início do
semestre letivo e, até o final do semestre, foram coletas 13 sessões com
cerca de 50 minutos de aula, em um período de tempo de 4 meses
(semestre letivo).
Com relação às categorias de análise, elaborá-las é sempre um
desafio dentro da área de Aquisição, em especial, por não se ter a priori
uma metodologia determinada. Dessa forma, embora sua elaboração
esteja baseada nos objetivos do trabalho, é apenas após o início das
primeiras análises e reflexões sobre as filmagens realizadas na sala de
aula de LE, que podemos começar a estabelecê-las. Isso significa que é
apenas ao final das análises que elas estarão totalmente definidas.
Assim, essas categorias iniciais foram desenvolvidas considerando-se o
346

uso feito da LE pelas crianças. Ao refletirmos sobre esse uso, podemos


estabelecer como esses aprendizes trazem a língua-alvo para o seu
discurso e evidenciam a sua individualidade de sujeitos que agem
ativamente sobre o próprio processo constituído na interação social
através da língua(gem).
Foram criadas, primeiramente, duas categorias principais: 1)
resposta à professora e 2) uso espontâneo da LE. A partir destas duas
categorias amplas, criamos subcategorias, que foram definidas da
seguinte forma:

Resposta à professora Uso espontâneo da LE


Com retomada do enunciado Palavras aparecem na sequência
anterior e sem modificação discursiva
Com retomada e modificação do Palavras não aparecem na
enunciado anterior sequência discursiva
Sem retomada do enunciado
anterior

É importante ressaltar que todas as categorias e subcategorias


acima citadas têm como referência o uso da LE, o inglês, no discurso das
crianças, pois o objetivo é verificar como essas crianças lançam mão da
língua-alvo nos seus enunciados. Será que elas apenas a utilizam por
“imposição” da professora quando ela requer uma resposta ou uma
repetição? Será que elas a utilizam de forma espontânea em seu
discurso?
Acreditamos que o uso espontâneo da LE evidencia que essa
língua foi significativa para as crianças, e elas, então, a ressignificam em
seus próprios enunciados. Para nós, essa atitude responsivo-ativa com
relação ao discurso da professora, que atua como a mediadora, a “ponte”
entre criança e LE, evidencia a identificação existente entre aprendiz e
língua adquirida/aprendida. Como Pinter (2011, p. 32) argumenta:
“Learning a new language may involve negotiating new identities and it
is bound up with who we are, who we would like to become, how we feel
347

about ourselves and how we form social relationships.” 8 O falar em LE


significa, para o presente trabalho, a pré-disposição das crianças com
relação à língua alvo e um querer aproximar-se dela e ser sujeito nesse
mundo de descobertas linguísticas.
A primeira grande categoria, resposta à professora, refere-se aos
enunciados das crianças que surgem em situações nas quais a
professora demanda algo delas. Esses enunciados foram classificados
em três diferentes subcategorias que analisam características
peculiares de cada tipo de enunciado.
Na primeira subcategoria, com retomada do enunciado anterior e
sem modificação, encontramos enunciados idênticos, na forma, à fala da
professora. Na maioria das aulas, a professora pede que as crianças
repitam o vocabulário que utilizaram como forma de verificar a
pronúncia e, de certa forma, reforçar a memorização. Sempre que as
crianças esquecem alguma palavra aprendida, a professora a fornece e
pede que os aprendizes a repitam algumas vezes, fato este que
caracteriza a crença da professora na repetição como forma de
aprendizagem – não entraremos no mérito dessa questão, já que ela não
é o foco de nossa investigação.
Na subcategoria com retomada e modificação do enunciado
anterior, os aprendizes respondem à professora, utilizando de certa
forma o enunciado dela, porém com modificações próprias. Os
enunciados da professora, que são tomados como referência nessa
subcategoria, geralmente estão muito próximos ao enunciado-reposta
da criança em determinada sequência enunciativa.
Na última subcategoria, sem retomada do enunciado anterior, a
criança responde à professora, porém, desta vez, de forma totalmente
diferenciada do discurso do adulto, do enunciado anterior da
professora. Como já afirmamos anteriormente, o sujeito aqui
considerado constitui-se socialmente através do uso da língua(gem) e,

8 Aprender uma nova língua pode envolver negociar novas identidades e é ligada a quem

nós somos, quem nós gostaríamos de nos tornar, como nos sentimos sobre nós mesmos
e em como formamos nossas relações sociais.
348

na aquisição/aprendizagem de LE, ocorre o mesmo. As crianças ao


retomarem o discurso da professora para responder às questões
colocadas podem revelar sua identificação com o que foi dito. Porém, ao
aproximar-se do outro, condição comunicativa necessária à espécie
humana, também gera as amostras de individualidade, pois o sujeito, ao
enunciar, também se coloca como único no mundo discurso social:
“apenas no enunciado a língua comum se encarna numa forma
individual.” (BAKHTIN, 1997, p. 283)
A segunda grande categoria revela, como já afirmamos, o que há
de mais “individual” na fala das crianças com relação ao uso da LE. Na
primeira subcategoria, palavras aparecem na sequência discursiva, as
crianças utilizam as palavras em LE de forma espontânea, porém, as
mesmas palavras já haviam sido utilizadas anteriormente, na mesma
sequência discursiva pela professora. Na segunda subcategoria,
palavras não aparecem na sequência discursiva, não há nenhuma
referência, no discurso da professora – pelo menos não durante as
filmagens que realizamos – das palavras utilizadas pelas crianças em
determina sequência.
Na próxima seção, exemplificaremos com fragmentos das aulas por nós
filmadas cada uma das categorias e subcategorias.

5. Análises iniciais

Nesta seção, analisaremos um fragmento de cada uma das duas


principais categorias de análise expostas anteriormente. As reflexões
aqui feitas têm como referência as primeiras sete sessões coletadas no
corpus.

Subcategoria: Com retomada e modificação do enunciado anterior

Nesta segunda subcategoria, as aprendizes lançam mão da LE em


resposta à professora, só que, modificando a forma linguística dos
enunciados anteriores.
349

Na sequência discursiva abaixo, a professora (*TEA nos


fragmentos) usa figuras de objetos ou animais: a cada vez, a ela separa
duas dessas figuras e pergunta de qual a aluna gosta.

Fragmento 1
(1) *TEA: agora a teacher vai fazer assim
(2) *TEA: ó
(3) *TEA: do you like yellow ballon or red ballon?
(4) *TEA: I like red ballon
(5) *TEA: fala I like yellow ballon
(6) *G: I like yellow ballon
(7) *TEA: very good
(8) *TEA: do you like look
(9) *TEA: do you like big spider or small spider?
(10) *G: do you like small spider
(11) *TEA: yes I like small spider
(12) *TEA: u: big spider u
(13) *TEA: too big
(14) *TEA: ok
(15) *TEA: let me see
(16) *TEA: look do you like red train or yellow plane?
(17) *G: yellow plane
(18) *TEA: I like
(19) *G: yellow plane
(20) *TEA: yes very good
(21) *TEA: I like red train
(22) *TEA: very good
(23) *TEA: look do you like yellow rabbit or green turtle?
(24) *G: green turtle
(25) *TEA: I like
(26) *G: I like green turtle
(27) *TEA: very good I like green turtle too
350

Neste fragmento, apenas a aluna G. participa, pois as outras duas


alunas haviam faltado. No início do jogo, a instrutora tentar fazer o
scaffolding nos turnos 3, 4 e 5, nos quais ela passa um exemplo sobre si
mesma para que a aluna fale em seguida sobre ela (“do you like yellow
ballon or red ballon?”; “I like red ballon”; “fala # I like yellow ballon). A
aluna durante essa atividade encontra-se em sua ZPD, pois é a primeira
vez que esse jogo é introduzido na sala de aula.
O importante nesse momento de scaffolding é observar que o
contexto extra-linguístico vem para auxiliar na compreensão da aluna
sobre o que ela deve fazer no jogo: ao mostrar as duas figuras e falar de
si mesma, a professora, ao dizer “I like red train”, aponta para si mesma
e depois coloca a mão sobre a figura do trem vermelho. A partir desse
contexto, a aluna pode compreender que ela deve escolher somente uma
das figuras no momento da resposta. Como François (2006, p. 188)
assevera: “[...] se a criança compreende o que lhe dizem é porque as
palavras nunca são utilizadas em um vazio absoluto. O autor ainda
afirma que muito da significação também está ligada às manifestações
corporais (FRANÇOIS, 2006).
Nos turnos 5 (TEA: “fala # I like yellow ballon”) e 6 (G.: “I like
yellow ballon”), a aluna G. retoma o enunciado da professora, porém o
modifica, limitando a parte em língua inglesa. Mais adiante, nos
enunciados 9 (TEA: “do you like big spider or small spider?) e 10 (G.: “do
you like small spider”), podemos notar que a aluna não compreendeu a
forma linguística da afirmação, e por isso, retoma a forma da
interrogativa (“do you like”). Aqui, é possível afirmar que o scaffolding
da professora não foi tão efetivo com relação à forma linguística do
enunciado que ela espera ouvir de G. Porém, a aluna compreendeu o que
deveria ser feito no jogo: escolher uma das imagens. Somente no turno
26, a aluna produz a forma do enunciado esperada ao dizer: “I like green
turtle”. No decorrer dessa sequência enunciativa (parte não transcrita
aqui), G. volta a produzir a estrutura da interrogativa na língua inglesa
(“do you like...”) ao respostar à professora, fato que faz com que a
instrutora retorne ao scaffolding iniciar.
351

Devemos ressaltar que neste fragmento fica clara a interação


existente entre professora e aluna para a produção do significado, que é
socialmente construído, utilizando a LM e a LE. Bakhtin/Volochinov
(2010, p. 126) assevera que: “A enunciação enquanto tal é um puro
produto da interação social, quer se trate de um ato de fala determinado
pela situação imediata ou pelo contexto mais amplo que constitui o
conjunto das condições de vida de uma determinada comunidade
linguística.” As duas participantes, então, constituem juntas a
compreensão do jogo em seus determinados papéis discursivo: a
professora enquanto orientadora e a aprendiz, participante menos
experiente em sua ZDP.

Categoria: Uso espontâneo

Subcategoria: Palavras aparecem na sequência discursiva

Fragmento 2
As alunas estão no chão pintando um desenho quando G. ergue e mostra
a sua pintura para a professora.

(1) *TEA: finish?


(2) *TEA: uau
(3) *TEA: very beautiful
(4) *TEA: very very beautiful
%act: a professora faz sinal de positivo para a aluna que mostrou o
desenho.
(5) *TEA: congratulations
%act: professora fala com a aluna F. e faz sinal de encerrado com as
mãos.
(6) *TEA: finish F.?
(7) *TEA: finish?
(8) *TEA: yes?
%act: a aluna F. não esboça reação.
352

(9) *TEA: ó falta a doll


(10) *TEA: a doll vai deixar ela sem pintar tadinha
(11) *TEA: oh no cookie
(12) *TEA: watch out cookie
(13) *TEA: se a teacher topeçar vocês vão falar watch out pra mim?
(14) *TEA: antes de eu tropeçar
(15) *TEA: fala watch out teacher:
(16) *TEA: pra eu não cair né
(17) *TEA: ok? tem que avisar antes
Aluna levanta e entrega o desenho para a professora.
(18) *J.: prontinho finishes
(19) *TEA: finish?

No fragmento 10, as alunas estão desenvolvendo uma atividade de


pintura e, enquanto isso, a professora utiliza o verbo “finish” para
confirmar e verificar se elas já terminaram a atividade. No turno 1, a
instrutora dirige-se à aluna G. para confirmar se a criança havia
terminado a pintura após a aluna mostrar a folha do desenho feita. Já
nos turnos 6 e 7, a professora fala com a aluna F. para verificar se ela
também havia terminado ou não. Entretanto, ela permaneceu calada e
não respondeu à pergunta colocada. Enquanto isso, a aluna J. continuou
pintando o seu desenho e, ao terminá-lo, vai até a professora, entrega a
folha para ela e diz: “prontinho finishes” ( turno 18). A aluna, então, traz
para o seu discurso o uso do verbo “finish” para indicar o término da
atividade. Aqui, ela usa os enunciados da professora como base e
compreende o significado deles pelo fato de eles estarem
contextualizados nessa situação enunciativa (por exemplo: ao terminar,
a aluna G. mostrou a sua folha e a professora disse “finish?” e, também,
pelo gesto com as mãos feito por ela ao perguntar a mesma questão para
a aluna F.). Em nenhum momento das aulas observadas o verbo “finish”
foi explicitamente ensinado para as alunas, porém pelo fato de a
professora o utilizar dentro da sala de aulas em situações significativas,
353

a aluna J. pôde entender o significado desse verbo e apropriar-se dele


em seu discurso via format.
Esse é um exemplo de como o sujeito/aprendiz, no caso a aluna J.,
constitui o seu discurso através do discurso do outro, a professora de
LE, evidenciando a característica dialógica da língua(gem) nesse
contexto de aquisição/aprendizagem de LE: “[...] o enunciado [...] reflete
o processo verbal, os enunciados dos outros e, sobretudo, os elos
anteriores (às vezes os próximos, mas também os distantes, nas áreas
da comunicação cultural.” (BAKHTIN, 1997, p. 319)
O uso do verbo “finish” em seu enunciado evidencia a condutiva
discursiva da aluna J. com relação à LE, uma conduta de apropriação e
proximidade. O uso do verbo “finish” encaixa-se na categoria uso
espontâneo: palavras aparecem na sequência discursiva. Acreditamos
que o uso espontâneo da LE por parte das crianças é o mais revelador
de sua individualidade, pois, nesses usos elas mostram uma certa
autonomia na construção do discurso em LE.

6. Considerações finais

Considerando o processo de aquisição/aprendizagem no qual


essas crianças se inserem, acreditamos que cada uma das delas
encontra-se em um momento diferente e individual de constituição na
LE. Cada aluna deve ser observada em sua individualidade e, essa
postura, revela que a aluna J. é a que mais se apropria da LE, mesclando
enunciados com o uso do inglês e de sua LM. Ela é responsável pela
maior parte dos exemplos de uso espontâneo da língua-alvo, fato que
revela uma conduta discursiva favorável à LE. As outras duas alunas, G.
e F., silenciam-se muito mais em relação à LE e, geralmente, utilizam-na
a partir de uma pergunta da professora. Entretanto, G. passa a fazer uso
espontâneo do inglês a partir da quinta sessão analisada, mas em
número bem menor do que a aluna J.
As categorias, por nós estabelecidas, resultantes da análise dos
dados revelam o uso da LE por parte das crianças e seus modos de
354

entrada na língua-alvo. Pretendemos, com o avanço nas reflexões a


respeito do nosso corpus, analisar o desenvolvimento das alunas na LE
e se as tendências observadas, como o silenciamento por parte da aluna
F. e a tendência ao uso espontâneo de J., continuarão da mesma forma
ou não.

7. Referências

BAKHTIN, M; VOLOCHINOV, V.N. Marxismo e filosofia da linguagem.


São Paulo: Huitec, 2010.
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação
verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
______. Discurso na vida e discurso na arte. (1926). Trad. Inédita de
Cristóvão Tezza do artigo “Discourse in Life and Discourse in Art.”,
publicado como apêndice in: Voloshinov, V.N. Freudianism: a marxist
critique. New York: Academic Press, 1976.
BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro,
2005.
BRUNER, J. Contexts and formats. In: MOSCATO, M.; PIERAUT-LE
BONNIEC, G. Le
langage: construction et actualisation. Rouen: Publications de la
Universite de Rouen, 1984. Disponivel em: http://books.google.
com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=8WNNoDaZ5IUC&oi=fnd&pg=PA69&
dq=contexts+and+formats&ots=lGZifgbMAZ&sig=Nrrroox7P5ycJkxiOj
dCSIc7PtU#v=onepage&q=contexts%20and%20formats&f=false
BUENO, R. G. Aquisição e/ou aprendizagem: a constituição da
subjetividade e identidade de uma criança falante de português
brasileiro e espanhol. 2013. Dissertação (Mestrado em Linguística e
Língua Portuguesa) – Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara,
Universidade Estadual Paulista, Campus de Araraquara.
CARVALHO, R. C. M. de. A teacher’s discourse in EFL classes for very
young learners: investigating mood choices and register. 2005. 87 p.
355

Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Santa


Catarina.
DEL RÉ, A.; HILARIO, R. N.; VIEIRA, A.J. Subjetividade, individualidade
e singularidade na criança: um sujeito que se constitui socialmente.
Bakhtiniana, Rev. Estud. Discurso, São Paulo, v. 7, n. 2, 2012.
FALASCA, P. Aquisição/Aprendizagem de LE: subjetividade e
desdobramento de identitários. 2012. Dissertação (Mestrado em
Linguística e Língua Portuguesa) – Faculdade de Ciências e Letras de
Araraquara, Universidade Estadual Paulista, Campus de Araraquara.
FRANÇOIS, F. O que indica a linguagem da criança: algumas
considerações sobre a linguagem. In : DEL RÉ, A. (Org.). Aquisição da
linguagem: uma abordagem psicolinguística. São Paulo: Contexto, 2006
GERALDI, J.W. Ancoragens: estudos bakhtinianos. São Carlos: Pedro &
João Editores, 2010.
KRACAUER, S. Constructions. In: _____. The mass ornament: Weimar
essays. London: Harvard University Press, 1963.
KRASHEN, S.D. Explorations in language acquisition and use.
Portsmouth: Heinemann, 2003.
MARCHENKOVA, L. A. Interpreting dialogue: Bakhtin’s theory and
second language learning. 2005. 153 f. Tese (Doutorado em Filosofia) –
The Ohio State University, Ohio.
PINTER, A. Theories of Child Development. In: ______. Children Learning
Second Languages. New York: Palgrave Macmillan, 2011.
RAJAGOPALAN, K. Linguagem e identidade. In: ______. Por uma
linguística crítica: linguagem, identidade e a questão ética. São Paulo:
Parábola, 2009.
ROCHA, C. H. O ensino de línguas para crianças: refletindo sobre
princípios e práticas. In: ROCHA, C. H.; BASSO, E. A. (Org.). Ensinar e
aprender língua estrangeira nas diferentes idades: reflexões para
professores e formadores. São Carlos: Claraluz, 2008.
VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
356

BILINGUISMO E A COMPREENSÃO DO HUMOR: UM ESTUDO DE


CASO

Anna Carolina Saduckis Mroczinski (Unesp/FCLAr)


Alessandra Del Ré (Unesp/FCLAr)

RESUMO: O ponto de partida para este trabalho é o estudo de caso da


criança L. (8 anos), bilíngue (português e alemão), filmada em situações
de interação com a mãe, em alemão, e com uma criança de mesma idade,
em português. Os vídeos que compõem o corpus foram transcritos de
acordo com as normas da ferramenta CHAT, do programa CLAN,
concebidas para o projeto CHILDES (MACWHINNEY, 2000). Nosso
objetivo é observar se a criança bilíngue compreende o humor
produzido nas duas línguas e quais os mecanismos linguageiros que a
conduzem a tal compreensão. Partindo de estudos sobre o humor na
linguagem da criança (Aimard, 1988; Del Ré, 2010, 2011, no prelo) e de
uma abordagem dialógico-discursiva (Bakhtin, 1988,1997,1999),
analisamos episódios dessas situações interativas, levando em
consideração o fato de que o sujeito se constitui enquanto tal, na e por
meio da linguagem, na relação/interação sócio-verbal que ele estabelece
com o outro e com os outros discursos. Acreditamos, em concordância
com os trabalhos de Falasca (2012) e Bueno (2012), que a
aprendizagem/aquisição de uma língua é responsável pelo afloramento
de uma nova identidade do sujeito que está imerso nesse processo.
Segundo Bakhtin (1997), a língua(gem) não pode ser separada de seu
conteúdo ideológico, pois são essas marcas discursivo-ideológicas que
definirão o gênero desse discurso. Assim, consideramos que o humor,
conduta linguageira que pode integrar diferentes gêneros, em diferentes
situações de comunicação, tem suas especificidades culturais, o que
muitas vezes dificulta sua compreensão. Os primeiros resultados
parecem apontar, até o momento, para uma diferença de na
compreensão nas duas línguas. Em alemão, ela tem se mostrado mais
receptiva, reagindo de forma expansiva e provocando situações que
357

desencaderiam enunciados humorísticos. No português do Brasil, L.


aparenta estar menos desconstraída e mais focada nas atividades que
realiza no decorrer da filmagem, o que restringiria esse tipo de
interação. Em uma análise preliminar, pudemos verificar que as
interações com a mãe, em alemão, são mais lúdicas, menos focalizadas
nas ações cotianas e, permitindo, assim, talvez a instauração de um
ambiente mais descontraído e propício à produção humorística.

PALAVRAS-CHAVE: Bilinguismo, humor, aquisição da linguagem,


dialogismo.

ABSTRACT: The starting point for this work is the case study of L. (8 years),
a bilingual child (Portuguese and German) filmed in situations of
interaction with the mother, in German, and with another child of the same
age in Portuguese. Videos that make up the corpus were transcribed
according to the norms of CHAT tool, from CLAN program, designed for the
CHILDES project (MACWHINNEY, 2000). Our purpose is to verify if the
child understands the humor produced in both languages and what
language mechanisms lead to such understanding. From the studies on
humour in the child's language (Aimard, 1988; Del Ré, 2003, 2010, 2011)
and a dialogical-discursive approach (Bakhtin, 1988,1997,1999), we
analyze episodes of interactive situations, taking into account the fact that
the subject is constituted as such in and through language, in the
relationship / social-verbal interaction they have with the other and with
other discourses. We believe, in agreement with works of Falasca (2012)
and Bueno (2013), that the learning / acquisition of a language is
responsible for the outcrop of a different identity of the individual who is
immersed in this process. According to Bakhtin (1997), the language
cannot be separated from its ideological content, because the discursive-
ideological traces define the genre of the discourse. Thus, we believe that
humor - language conduct that can integrate different genres in different
communicative situations- has its cultural specificities, which often hinders
its understanding. The first results seem to indicate, to date, a difference of
358

understanding in both languages. In German, the child has been more


responsive, reacting expansively and provoking situations that would
initiate humorous utterances. In BP (Brazilian Portuguese), L. appears to be
less relaxed and more focused on the activities carried out during the shoot,
which would restrict this type of interaction. In a preliminary analysis, we
observed that interactions with the mother, in German, are more playful,
less focused on daily actions and, thus perhaps allowing the introduction of
a more relaxed environment, which is propitious to humorous production.

KEYWORDS: Bilingualism, humor, language acquisition, dialogism.

QUADRO TEÓRICO E HIPÓTESES

O presente trabalho traz os resultados iniciais de um estudo de


caso, ainda em andamento, de uma criança bilíngue, português e alemão,
L., de 8 anos (idade do início das gravações) - nascida na Alemanha e que
veio para o Brasil com 1 ano e 6 meses de idade, cujo objetivo é analisar
os mecanismos linguageiros que a levam a compreender o humor em
ambas as línguas. Para tanto, o corpus está sendo obtido a partir de
filmagens de L. em situações cotidianas nas quais a criança interage com
a mãe, em alemão, e com uma outra criança, uma amiga, monolíngue,
brasileira, em português.
A abordagem teórica adotada neste trabalho é a dialógico-
discursiva, baseada nos estudos de Bakhtin e do Círculo (1988, 1997 e
1999). A partir dela, pretende-se analisar as situações interacionais
desse sujeito sustentando a ideia de que ele se constitui como tal na e
pela linguagem, a partir da relação sócio-verbal que estabelece com o
outro1 e com outros discursos. O humor, por sua vez, é considerado uma
conduta linguageira que pode integrar diferentes gêneros, e assim

1Vale ressaltar que, para Bakhtin, o outro do qual ele trata não é individual, mas sim
aquele que tem valor social, ideológico e que, em última instância, representaria a
coletividade.
359

sendo, pode ocorrer em diferentes interações e compreende questões


culturais, que, por vezes, podem interferir em sua compreensão.
Desta forma, a teoria de Bakhtin - para a qual a linguagem é social
e ideológica, e as práticas sociais interferem na relação de sentido que
as pessoas fazem das coisas - parece ir ao encontro das necessidades que
o corpus em questão apresentará, já que se pretende levar em conta os
contextos que envolvem as interações, bem como os sujeitos e as
relações verbais e não-verbais que são produzidas e que se estabelecem
nas diferentes situações. Segundo Bakhtin (1997), a língua(gem) não
pode ser separada de seu conteúdo ideológico, pois são essas marcas
discursivo-ideológicas que definirão o gênero desse discurso.
No que se refere ao bilinguismo, fenômeno linguístico complexo e
muito discutido, cabe colocarmos que entendemos o bilíngue como um
sujeito que adquire duas línguas simultaneamente, antes dos três anos
de idade (Houwer, 1990) – assim como Bullio (2012), não nos interessa
aqui seu grau de competência nelas. Além disso, Grosjean (2010) nos
coloca três estágios diferentes da criança bilíngue:

1º estágio: a criança reconhece as duas línguas, mas produz em apenas


uma delas dependendo da situação enunciativa na qual se encontra;
2º estágio: ocorre um maior número de “code-switching”, ocorrendo a
mistura das línguas; e
3º estágio: a criança produz conscientemente em ambas as línguas.

No caso de L., acreditamos que ela esteja no segundo estágio, pois


ainda que tenha 8 anos, pelo PB ser a língua dominante, ela acaba
realizando muitos code-switchings nas filmagens em alemão, língua
com a qual tem um menor contato. Além disso, ainda com base em
Grosjean (2010), o bilíngue tende a se adaptar de acordo com a situação:
quando interage com um falante de uma das línguas, é monolíngue; mas
quando o falante entende as duas línguas, pode acabar realizando as
trocas ao misturá-las. Isso também explicaria o fato de L. usar apenas o
PB nas gravações com a outra criança de mesma idade que é
360

monolíngue, mas utilizar o code-switching nas gravações com a mãe,


que é falante de ambas as línguas.
A partir desse panorama e pensando sobre a questão do humor na
linguagem da criança (Aimard, 1988; Del Ré, 2010, 2011, no prelo) que
pretendemos observar em nosso estudo, procuramos analisar alguns
episódios dessas situações interativas. É importante ressaltar que, para
fins deste trabalho, não entraremos na discussão a respeito das
possíveis distinções que poderiam separar o humor daquilo que lhe é
aparentado como o cômico, a ironia etc. Por essa razão, eles aparecerão
aqui como pertencendo a um gênero, ao humorístico, que se manifesta,
junto ao enunciado verbal, por meio de um riso ou de um sorriso.
Acreditamos, em concordância com os trabalhos de Falasca
(2012) e Bueno (2012), que o processo de aquisição/aprendizagem seja
uma espécie de continuum, não havendo uma separação clara entre eles
– ao contrário do que propôs Krashen (2003), por exemplo, para o qual
trata-se de processos diferentes (a aquisição se dá em forma de imersão,
em ambiente natural e informal, enquanto a aprendizagem acontece em
espaços delimitados (como por exemplo, em escolas), num contexto
formal e, na maioria das vezes, artificial).
Sobretudo quando nos deparamos com casos como o de L., aqui
estudado, a identificação de uma “linha” que separe esses dois processos
parece ter ainda menos validade: L. teve como primeira língua o alemão,
sendo monolíngue até um ano e meio de idade, mas, ao vir morar no
Brasil, precisou aprender o português; L., no entanto, nunca teve ensino
formal de alemão, na verdade, essa criança só foi alfabetizada em
português, mas consegue ler e se comunicar fluentemente na sua língua
materna, ainda que o sotaque “brasileiro” se faça presente. Dessa forma,
antes dos três anos de idade, L. transitava entre o português e o alemão
com grande facilidade. Contudo, sendo o acesso ao português muito
maior do que ao alemão (que só é falado diariamente em casa, por
exigência da mãe), L. passou a “fincar suas raízes” nessa outra língua,
que se tornou dominante em relação ao alemão.
361

Dessa forma, parece-nos extremamente enriquecedor para os


estudos em aquisição trazer os mecanismos de compreensão do humor
dentro do contexto dessa criança, diversificado do ponto de vista
linguístico, social e cultural.

METODOLOGIA

Como dissemos, para esta pesquisa, contamos com um corpus que


está sendo coletado a partir das gravações da criança L., 8 anos., de
origem alemã, mas que vive no Brasil desde 1 ano e 6 meses de idade. L.
é filha de mãe alemã, falante de PB e de pai brasileiro. Vale dizer que a
mãe, de origem alemã, se esforça para que L. não perca o contato diário
com a língua, ainda que esteja em outro país. As gravações, com duração
aproximada de 60 minutos, têm sido realizadas em ambiente familiar,
em situações cotidianas, como brincadeiras, leituras e trabalhos
escolares.
Nas interações em português, L. interage com uma criança da
mesma idade. Já naquelas em alemão, a interação ocorre com a mãe,
também de origem alemã. Desta forma, buscamos dados longitudinais,
que serão coletados no prazo de 1 ano. O intuito é captar interações
espontâneas a partir de uma realidade naturalística, não-controlável,
nas quais esperamos que apareçam os enunciados que desencadeiam as
situações humorísticas.
É importante ressaltar que a escolha por um estudo qualitativo
justifica-se na medida em que nos interessa analisar o que é da ordem
do singular, do não repetível, de forma a aproximar os da descoberta
descritiva e indutiva, sem focar na generalização dos mesmos.
Os dados estão sendo transcritos a partir da ferramenta CHAT, do
programa CLAN, o que possibilita a análise dos dados de forma mais
sistemática, de acordo com o projeto CHILDES - CHILD LANGUAGE
DATA EXCHANGE SYSTEM - ou em português, Sistema de Troca de
Dados da Linguagem da Criança. (MACWHINNEY, 2000). Esse sistema,
que tem como objetivo facilitar o trabalho dos pesquisadores, possibilita
362

o alinhamento da imagem e do áudio junto à transcrição, além de agilizar


a busca pela ocorrência de elementos linguísticos específicos.

PRIMEIROS DADOS

Dentre os dados coletados até este momento da pesquisa,


selecionamos um em português e outro em alemão para que nos
servissem de ponto de partida para a discussão que faremos aqui:

Trechos de uma gravação em PB:

Situação: Brincadeira com bonecos entre L. e outra criança


1* L.: Finge que ela não tinha marido e aí era solteira, mas ela
morreu antes de achar um.
2* Criança: Nossa! [Reação de surpresa]
3* L.: Que destino cruel, né? [sorriso com tom irônico] Me ajuda a
colocar isso?

Fragmentos de dois momentos de uma gravação em alemão, que


são, respectivamente, seguidos pela sua tradução em português:

Situação 1: Produção de bonecos com rolhas entre L. e sua mãe

[Apresentação para a câmera]


1* L.: Und hallo! Hier sind wir da. Jetzt sind die, denke ich, fast
fertig. Guck mal, zeigen wir mal ein gutes Modell…dieses vielleicht
mal, guck mal, toll geworden.
2* Mãe: Musst du richtig in die Camera halten.
[Zomba de sua própria situação]
7* L.: Und was machen wir bloss mit ihren Haaren?
8* Mãe: Hast du dir schon was überlegt?
9*L.: Ne, hab´ich noch nicht, deswegen sitzen wir hier und
reden mal ein bisschen.
363

[Code Switching]
10* Mãe: Ah, wie wär´s mit buntem Papier?
11* L.: Buntem Papier? Super Idee, aber...Mama...glaubst du ist das
nicht so “fraco”? Also zu…leicht, weisst du? So..das kann abgeschnitten,
so..abreisen…Vorsichtig!

Tradução nossa para o PB:

[Apresentação para a câmera]


1* L: E olá! Estamos de volta. Agora eles estão quase prontos, acho.
Olha, vamos mostrar um bom modelo...talvez esse aqui, olha, ficou legal.
2* Mãe: Você precisa mostrar direito para a câmera

[Zomba de sua própria situação]


7* L.: E então o que fazemos com os cabelos?
8*Mãe: Você já pensou sobre isso?
9* L.:Não, ainda não pensei, por isso que estamos sentadas aqui
conversando [tom zombador]

[Code Switching]
10* Mãe: Ah, como ficaria com papel colorido?
11* L.: Papel colorido? Ótima ideia, mas....mãe... você não acha que
isso é muito “fraco”? Digo, muito...fraco, sabe? A ponto de cortar,
rasgar...cuidado!

Situação 2: Continuação da produção dos bonecos com rolha.


Agora L. e sua mãe cortam papel crepom para fazer os cabelos dos
bonecos.

1* Mãe- Aber willst du eine Seite vor, wenn du sagst “ih, das klebt”,
wenn du sagst du willst sie ein Dutt hat, dann könnte man eine Seite kurz
machen, wo die Haare so bis hier gehen und die andere Seite lang, und
kann man zusammen wickeln zu dem Dutt .
364

2* L- Ja.
3* Mãe- Dann klebe ich das nämlich hier.
4* L- Ja, ja, ja, versteh´ ich.
5* Mãe- Hast du da auch Kleber darauf getan?
6* L- Ja!
7* Mãe- So...super! Sieht zwar noch so aus wie eine Nonne oder
wie ein Scheich, ein arabischer Scheich aber in Kürze [risos]
8* L- [risos]

Tradução nossa para o PB:

1* Mãe: Mas você quer um lado para frente, se você disser “ih, está
grudando”, se você disser que você quer que ela tenha um (…), então eu
poderia fazer um lado curto, onde o cabelo viria até aqui, e o outro lado
comprido, e daí dá pra amarrar o cabelo junto ao (...) .
2* L: Sim .
3* Mãe: Então eu vou colar aqui .
4* L.: Sim, sim, sim, entendi .
5* Mãe: Você também pos cola aqui?
6* L.: Sim!
7* Mãe: Sim, então…..ótimo! Parece até com uma freira ou um
sheik, um sheik árabe, mas resumindo [risos]
8* L.: [risos]

PRIMEIROS RESULTADOS

Os primeiros resultados parecem apontar, até o momento, para


uma diferença na compreensão nas duas línguas. Em alemão, ela tem se
mostrado mais receptiva, reagindo de forma expansiva e provocando
situações que desencadeariam enunciados humorísticos.
Em PB, L. aparenta estar menos descontraída e mais focada nas
atividades que realiza no decorrer da filmagem, o que restringiria esse
tipo de interação. Em uma análise preliminar, pudemos verificar que as
365

interações com a mãe, em alemão, são mais lúdicas, menos focadas nas
ações cotidianas e, permitindo, assim, talvez a instauração de um
ambiente mais descontraído e propício à produção humorística. Além
disso, a presença do português, que hoje seria a língua dominante de L.,
aparece nas interações em alemão, como observado na situação 1.
Na interação em português, especificamente, estamos analisando
a presença de uma possível produção de humor negro de L., já que a
outra criança se mostra chocada com a “tragédia” representada pelos
bonecos, a de que um “destino cruel” teria acometido a vida deles mas L.
parece se mostrar indiferente – seu tom irônico nos dá essa impressão,
ainda que tente aparentar estar chocada tanto quanto a outra criança.
Segundo Freud (1905, p.262), este tipo de humor retira da “atenção
consciente o conteúdo ideacional que porta o afeto doloroso, tal como
faz com a repressão e, assim, domina o automatismo da defesa.”.
Já na situação 2 em alemão, a comparação que a mãe faz do cabelo
dos bonecos com o véu de uma freira ou o turbante de um sheik árabe
gera riso, que é compartilhado por L. Assim, o que demonstraria que L.,
ao rir da comparação que tinha a intenção de fazer rir, compreende esse
jogo dentro da língua, ainda que essa não seja, no momento, sua língua
alvo.
Ainda nas interações em alemão, é interessante ressaltar a
presença do code-switching, termo este que nós entendemos como a
alternância que L. faz usando o português para reiterar o seu projeto de
dizer. O uso dele se justifica na língua alemã, já que L. a utiliza em
interações específicas, como em conversas induzidas por sua mãe, ou
pelo telefone, com os avós que moram na Alemanha. Além disso, ao
alternar o alemão com o PB, não haverá prejuízo de compreensão para
a interlocutora de L., no caso sua mãe, que é falante de PB. Já na interação
em PB, L. não realiza o code-switching durante as gravações que temos.
Nossa hipótese é a de que esse fenômeno não ocorreria já que a outra
criança que interage com L. não é falante de PB e, portanto, não
compreenderia seu enunicado, mas também, pelo PB ser sua língua
dominante, é menos provável que ela recorra a esse recurso.
366

Nestas situações apresentadas, L. encontra-se em um ambiente


natural, descontraído, onde faz interações em PB e em alemão de forma
espontânea. O foco está no caráter dialógico-interacional de uma língua,
e não em aprendizado de regras. Além disso, como o “input” da língua
alemã é bem inferior se comparado ao PB, como já mencionado, a
própria aquisição da gramática da língua alemã se mostra aquém do
esperado para idade de L., pois percebemos “erros” gramaticais que não
seriam esperados por uma criança monolíngue do alemão de mesma
idade.
Outros elementos também mostraram-se relevantes na
observação desses episódios e poderiam nos ajudar a entender as
nuances que envolvem o processo de compreensão de situações irônico-
humorísticas por crianças bilíngues – e também monolíngues: trata-se
de componentes que vão sendo instaurados na relação dialógica com o
outro, o conhecimento de mundo partilhado, a conivência (Salazar-
Orvig, 2003), os movimentos discursivos, as marcas de divertimento, a
entonação, a atenção conjunta dirigida a um mesmo objeto (Tomasello
et al, 2005, Bruner, 2004, 2007), a descontinuidade que causa uma
ruptura no diálogo, o projeto de dizer que se traduz em uma
intencionalidade por parte do locutor, enfim, ingredientes que parecem
estar por trás da compreensão das produções humorísticas enunciadas
(Del Ré et al, no prelo) e que serão explorados em trabalhos futuros.

Referências

AIMARD, P. Les bébés de l’humour. Liège/Bruxelas:Pierre Mardaga,


1988.
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento:
o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 4.ed. São
Paulo: Hucitec, 1999.
______. Estética da criação verbal. São Paulo: Hucitec, 1997.
______. (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel
Lahud e Yara Frateschi Vieira. 4.ed. São Paulo: Hucitec, 1988.
367

BUENO, R.G. Aquisição e/ou aprendizagem: a constituição da


subjetividade e identidade de uma criança falante de português
brasileiro e de espanhol. Dissertação de Mestrado. Unesp, 2013.
BRUNER, J. Le développement de l’enfant: savoir faire, savoir dire.
Paris: PUF, 2004.
______. Como as crianças aprendem a falar. Trad. Joana Chaves. Lisboa:
Horizontes Pedagógicos, 2007.
CHILD LANGUAGE DATA EXCHANGE SYSTEM [CHILDES]. Disponível
em: http://childes.psy.cmu.edu. Acesso em: 16 dez. 2013.
DEL RÉ, A. A criança e a magia da linguagem: um estudo sobre o
discurso humorístico. 1. ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011.
DEL RÉ, A.; MORGENSTERN, A. To laugh or not to laugh: that is the
question Les premières manifestations de l’humour chez l’enfant In:
IADA 2009 - Polyphony and Intertextuality in Dialogue. Barcelona:
University of Münster, v.2. p. 41 – 54, 2010.
DEL RÉ, A.; MORGENSTERN, A; DODANE, C.; QUIMELLO, H. Diversão
partilhada, humor e ironia. In. DEL RÉ, De Paula, Mendonça (orgs).
Explorando o discurso da criança. São Paulo, Contexto, no prelo.
BULLIO, P. C. Questões de subjetividade em uma criança bilíngue. In:
DEL RÉ, A. ROMERO, M. (orgs.) Na língua do outro: estudos
interdisciplinares em aquisição de linguagens. São Paulo: Cultura
Acadêmica, 2012. P. 159-176.
FALASCA, P. Aquisição/aprendizagem de LE: subjetividade e
deslocamentos identitários. Dissertação de Mestrado. Unesp, 2012.
FREUD, S. Os chistes e sua relação com o inconsciente. Rio de Janeiro:
Imago, 1905.
GROSJEAN, F. Bilingual: life and reality. Harvard: HUP, 2010.
HOUWER, A. The acquisition of two languages from birth: a case
study. Cambridge University Press, 2000.
KRASHEN, S.D. Principles and Practice in Second Language
Acquisition. Oxford: Pergamon Press, 1982.
368

MACWHINNEY, B. Transcription format and programs. 3rd ed.


Mahwah: Lawrence Erlbaum Associates, 2000a. (The CHILDES project:
tools for analyzing talk, 1)
______. The Database. 3rd. Mahwah: Lawrence Erlbaum Associates,
2000b. (The CHILDES project: tools for analyzing talk, 2)
SALAZAR-ORVIG, A. Eléments pour l’analyse de la connivence dans le
dialogue. In M. BONDI, M.; STATI, S. Dialogue Analysis 2000, Selected
papers from the 10th IADA Anniversary conference, Bologna
2000.Tübingen: Niemeyer, 2003, p. 339 – 350.
TOMASELLO, M. et al. Understanding and sharing intentions: The origins
of cultural cognition. In: Brain and Behavioral Sciences, 28, p. 675-
691, 2005.
369

A CRIANÇA BILÍNGUE E SUAS RELAÇÕES COM A AUTO-


REFERÊNCIA: UM ESTUDO DE CASO

Paula Cristina Bullio


Alessandra Del Ré

RESUMO: Partindo de uma abordagem dialógica para um estudo na área


de aquisição da linguagem, que considera que a criança adquire e entra
na linguagem por meio dos diferentes gêneros (Bakhtin, 1988, François,
1994), este trabalho tratará de questões de referência pessoal/auto-
referência, em uma criança bilíngue, em suas duas línguas (maternas), o
Francês e o Português. Para o desenvolvimento desse tema que envolve
o estudo de expressões referenciais em crianças, partiremos dos
trabalhos propostos por Salazar Orvig et al. (2003, 2010) e para abordar
a relação entre a aquisição de pronomes pessoais e auto-referência,
consideraremos os estudos de Morgenstern (2006). No Português do
Brasil (PB), os verbos podem ser usados sem os pronomes pessoais, pois
as desinências fazem referência à pessoa. A questão que nos colocamos
é: A aquisição de elementos de auto-referência e de referência ao
interlocutor acontecem da mesma maneira quando a criança está
adquirindo duas línguas ao mesmo tempo? Além disso, o propósito é
destacar como os interlocutores fazem uso destes recursos. As seções
gravadas em vídeo cobriram o período de enunciados de duas palavras
até a sintaxe adulta. Os enunciados foram analisados de acordo com a
presença dos pronomes pessoais em Português e em Francês, nomes
próprios e sujeito nulo. Desinências verbais, que variam em Português
de acordo com o tempo verbal e a pessoa, também foram analisadas –
para este artigo, trazemos os dados das duas primeiras sessões, nas
quais a criança está com 2,5 anos de idade. Os resultados desta análise
contrastam com os de Morgenstern (2006) e questionam trabalhos
anteriores (Del Ré, 2010) que mostravam que uma criança monolíngue
utiliza com mais frequência o pronome pessoal quando fala do passado.
A discussão tratará desta aparente contradição e explorará a
370

especificidade do bilinguismo em relação às questões de referência,


levando em consideração também o code-switching.

PALAVRAS-CHAVE: Bilinguismo; Referência; Code-Switching.

ABSTRACT: Our research is based on a dialogical approach of language


acquisition considering that a child acquires and enters in the language
through different genres (Bakhtin, 1988, François, 1994). Thus, this
work will focus on questions of personal reference / self-reference in
her two first languages of a bilingual child (French and Portuguese). In
order to develop this topic, which involves the study of referential
expressions in children, we will have as our basis the research proposed
by Salazar Orvig et al. (2003, 2010) and for the relation between
personal pronouns acquisition and self-reference, we will use
Morgenstern’s studies (2006). In Portuguese from Brazil (PB), the verbs
can be used without the personal pronouns as the verbal endings make
the reference to the person. The question we stake is: The acquisition of
elements of self-reference and reference to the interlocutor happens in
the same way when a child is learning two languages at once? Moreover,
the purpose is to highlight how the interlocutors make use of these
resources. The sections were recorded in video and covered the period
of two-word utterances until the adult’s syntax. The utterances were
analyzed if there were personal pronouns (in Portuguese and in
French), proper nouns and null subjects. Verbal endings, which vary in
Portuguese depending on the verb tense and person, were also analysed
– in this article, we analysed the first two sections, when the child was
2.5 years old. The results of this analysis contrast with the results from
Morgenstern’s (2006) and Del Ré’s (2010) whose research showed that
a monolingual child uses more the personal pronoun when they talk in
the past. The discussion will be about this apparent contradiction and
will explore the bilingualism specificity in relation to questions of
reference expressions considering the code-switching as well.
371

KEYWORDS: Bilingualism; Reference; Code-Switching.

Este trabalho se insere em uma pesquisa mais ampla, que está


sendo desenvolvida no Brasil pelos grupos GEALin (FCLAr) /NALíngua
(CNPq) em parceria com a França, em especial, no que se refere,
respectivamente, ao desenvolvimento de uma abordagem dialógico-
discursiva para os estudos de aquisição da linguagem e no que diz
respeito à ampliação dos estudos sobre aquisição da referência, tema
base do projeto DIAREF (http://www.univ-paris3.fr/anr-diaref-
37421.kjsp) coordenado pela Profa. Dra. Anne Salazar-Orvig (Universitè
Sorbonne Nouvelle Paris 3).
Considerando essa parceria e os trabalhos realizados
anteriormente por nosso grupo, nosso olhar volta-se aos dados de fala
de uma criança bilíngue, Mar. (português-francês, 2;5-3;2) e para as
questões de referência enquanto marca da constituição de sua
subjetividade. Trata-se, portanto, de contribuir para se desvendar –
ainda que uma pequena parte – o mundo linguageiro da criança bilíngue.
Partindo de uma concepção dialógica e de que a constituição do
sujeito acontece na interação com o outro e com outros discursos,
pretendemos, também, em um segundo momento, analisar qual o papel
da linguagem dirigida à criança e tecer algumas considerações sobre a
influência (ou não) desta fala na constituição da identidade destas
crianças. Por essa razão, analisaremos as questões linguísticas de
primeira e segunda pessoas. O que colocamos como questão inicial e
motivadora para o nosso trabalho é: será que a criança bilíngue adquire
os aspectos sociais, culturais e ideológicos nas duas línguas?
Considerando a linha teórica que adotamos, acreditamos que sim. Então,
o que nos interessa de maneira mais objetiva é saber de que modo esta
aquisição ocorre e como/se as expressões referenciais exercem alguma
influência neste processo.
Em relação às questões de referência, os estudos de Salazar et al
(2004, 2005 e 2006) mostram, a partir de uma perspectiva igualmente
dialógica, que as crianças são sensíveis ao contexto discursivo, não
372

entendendo que o uso dos pronomes, por exemplo, seja aleatório, mas
parte do processo de aquisição. Dessa maneira, nosso maior interesse é
contribuir com o desenvolvimento desse tema trazendo um novo olhar
para os dados da criança bilíngue. Para tanto, fizemos usos de categorias
criadas juntamente com a professora Anne Salazar, para que
pudéssemos unir os aspectos linguístico e discursivo (tanto para o
locutor como para o interlocutor) com um olhar mais detalhado para os
enunciados e a situação de enunciação. E com relação à aquisição dos
pronomes pessoais e auto-referência, consideramos os estudos de
Morgenstern (2006).
A partir da análise dos dados de Mar. (2,5 a 3,2 anos), que
compõem o corpus mais amplo e do qual realizamos um recorte para
este trabalho, criamos 36 categorias 1 (dentre elas o pronome pessoal e
as marcações verbais) para que fosse possível investigar não só como a
criança realiza a referência a ela e ao outro, mas também como o outro
faz referência à criança e a si próprio; bem como os momentos
discursivos em que estas marcas são utilizadas.
Trata-se, portanto, de considerar a impossibilidade de dissociação
entre o linguístico e o cognitivo (Bruner, 1975), o papel do input, do
diálogo (Bakhtin, 1988), do outro, da socialização linguageira (Ochs,
Schieffelin, 1999), para que a criança possa aos poucos construir uma
gramática coerente (Tomasello, 1992). Assim, queremos estabelecer
relações entre as formas utilizadas por esta criança para referirem-se a
si próprias e o processo de constituição de suas subjetividades que
ocorre no diálogo com o outro (Del Ré, Hilário, Viera, 2012).
Falar em expressões referenciais significa tratar de “gramática” e,
no nosso caso, essa gramática é pensada a partir de uma perspectiva
dialógica. Ou seja, concebemos que a linguagem se constrói na interação
social e que o processo de aquisição da linguagem ocorra por meio dos

1Neste artigo, analisamos apenas as categorias de primeira e segunda pessoa utilizadas


pelo locutor e interlocutor, bem como os tempos verbais e a ocorrência (ou não) do
Code-Switching. Entretanto, na tese de doutorado em andamento, as 36 categorias são
distribuídas em grupos maiores: forma, discurso, interlocutor e situação discursiva.
373

gêneros. Isto significa que é por meio da interação, quando a criança


começa a falar em estruturas pré-definidas, que as estruturas e o léxico
são adquiridos. Não pensamos na existência de uma estrutura a priori,
como uma construção permanente, e nem mesmo que a gramática seja
um sistema independente das funções comunicativas, nem para a
criança e nem para o adulto. Acreditamos que a criança constrói a sua
“gramática”, na sua relação com o outro (adulto ou criança) e com outros
discursos. E esta concepção, portanto, diverge das outras concepções de
gramática, como a normativa, por exemplo.
Em nosso trabalho, o nosso foco é a criança bilíngue e, logo, o
conceito de bilinguismo precisa ser definido. Diante das múltiplas
possibilidades de compreensão do conceito de bilinguismo2,
entenderemos, neste artigo e em nossa pesquisa, esse fenômeno como
um processo comparável (mas não igual) ao de aquisição da língua
materna. De tal modo, nesta pesquisa entenderemos por bilinguismo um
processo pelo qual identificamos uma “simultaneous acquisition of two
languages only when a child has been exposed to two languages from birth
onwards.”3 (Houwer, 1990:3)
Quando o tema do bilinguismo ou multilinguismo é abordado, o
tópico do code-switching4 está sempre em voga. Este fenômeno tem nos
interessado cada vez mais, pois com a análise dos dados, percebemos
que o uso deste recurso é bastante peculiar e, poderíamos dizer até,
proposital. O que temos observado na literatura é que os estudiosos da
área explicam o code-switching como decorrente de vários fatores: o
interlocutor, o papel social, relações de poder, o tópico da conversa, o
lugar, o meio, o ambiente e o tipo de interação, entre outros. Para o nosso
trabalho, estas questões nos são particularmente interessantes e
apropriadas, como a relação com os interlocutores, por exemplo, pois

2 Neste artigo não apresentaremos e nem nos aprofundaremos nas discussões sobre o
que seria o bilinguismo.
3 Aquisição simultânea de duas línguas apenas quando a criança foi exposta a estas duas

línguas desde o nascimento. (Tradução Nossa)


4 Entendemos neste artigo o code-switching como a troca de códigos dentro de um

mesmo enunciado ou entre encadeamentos de enunciados.


374

Mar. utiliza o code-switching com o pai para se opor a ele quando não
quer comer.
O que podemos dizer é que, no caso de Mar., é relevante o fato de
que ela faça uso deste “recurso” em situações diversas, com ou sem
interlocutores que sabem a língua, fugindo dos padrões estabelecidos
por algumas pesquisas anteriores. O que torna este assunto significativo
é que Mar. mesmo sendo considerada uma bilíngue “típica”, pois
adquiriu as duas línguas em contexto familiar e ao mesmo tempo, ela
reage de maneira ora divergente, ora igual às pesquisas sobre este
tópico. Os episódios que seguem parecem-nos relevar e explicar a
importância da pesquisa de caso, o olhar para o que é individual, pois
cada indivíduo tem peculiaridades e especificidades únicas.
Finalmente, quanto ao quadro teórico que utilizamos, os conceitos
de subjetividade e identidade são de grande importância para nosso
trabalho, pois aspiramos observar, descrever e compreender a maneira
como se dão as manifestações da individualidade e a constituição da
subjetividade na criança – por meio de algumas marcas de referência
que ela deixa em seu discurso.
Dessa forma, tendo em vista as leituras de Bakhtin e do Círculo e
as discussões dentro de nosso grupo de pesquisa (GEALin), entendemos
que a individualidade se manifesta nas escolhas dos elementos que
compõem o enunciado, isto é, ela emerge nas escolhas individuais, a
singularidade está ligada a uma materialidade expressa, a um
posicionamento do sujeito em determinado momento histórico. Assim,
cada “ato singular”, cada manifestação em forma de linguagem, de
diálogo, de discurso, está repleto de marcas de subjetividade e estas
marcas seriam as diferentes identidades (Del Ré, Hilário, Vieira, 2012).
Este estudo foi desenvolvido por meio de uma pesquisa de base
etnográfica, ou seja, aquela que tem no participante da interação
linguística seu maior interesse, além do contexto social em que estão
envolvidos. Teve também como característica o aspecto longitudinal,
pois fizemos uso de gravações mensais, de aproximadamente 1 hora,
com a mãe e com o pai (filmados separadamente), em vídeo no decorrer
375

de um ano, uma vez que “we need detailed descriptive analyses of


bilingual children’s speech production” (Houwer, 1990: 5).
Mar. foi registrada em situações cotidianas e as transcrições foram
realizadas no formato CHAT (Parisse, C. et Le Normand, M..T. 1997), que
permite trabalhar com o sistema CLAN (MacWhinney, 2000) Child
Language Analysis e também será, posteriormente, disponibilizado no
site de base de dados CHILDES – Child Language Data Exchange System
(http://childes.psy.cmu.edu).

Dados

Quando tratamos do code-switching5 e observando os gráficos


abaixo, percebemos que Mar. faz maior uso deste recurso em francês
com o pai. Veremos nos excertos escolhidos que, em geral, estas trocam
acontecem quando ela quer se colocar discursivamente contra uma
ordem ou pedido do pai. Já em português, com a mãe, as trocas
acontecem por motivos diversos, ora porque a mãe diz uma palavra em
francês, ora para trocar de assunto ou também quando os tópicos estão
relacionados ao pai.
Nestes dois gráficos que seguem, temos uma visão geral de todas
as sessões e as trocas feitas tanto por Mar. quanto pelos pais. Isso para
que possamos notar que a influência do input é visível, mas não
determinante na produção infantil, pois, em geral, a mãe faz mais estas
trocas do que o pai e a criança realiza, por sua vez, mais trocas com o pai.
Queremos chamar a atenção para a sessão em que a criança está com 2;8
anos de idade. Esta sessão configura-se como uma exceção porque
ambos os pais estão presentes e eles utilizam as duas línguas quando se
dirigirem à criança e ela faz o mesmo, por isso, o número de code-
switching é maior.

5 Preferimos adotar para este artigo, o termo Code-Switching para a criança bilíngue e
“trocas” para os pais por se tratar de fenômenos linguísticos divergentes partindo de
nossa concepção do que é bilinguismo, ou seja, os pais de Mar. não são bilíngues dentro
de nossa definição.
376

Gráfico 1:

Gráfico 2:
377

Exemplo 1:

426 *CHI: papa !


427 *FAT: qu'est-ce qui y'a?
428 *CHI: j'ai bobo au ventre.
429 *FAT: t'as mal au ventre ?
430 *FAT: bobo au ventre ?
431 *CHI: oui.
432 *FAT: mais non.
(...)
441 *CHI: eu quero queijo encore.
442 *FAT: papa#il a déjà mis plein du fromage.
443 *CHI: <non>[/]<non>[/]<non>.
444 *CHI: encore.
445 *FAT: encore quoi ?
446 *CHI: petit xxx encore.
447 *FAT: encore quoi ?
448 *CHI: petit.
449 *FAT: petit peu de quoi ?
450 *CHI: euh@i queijo.
451 *OBS: [=! risos]
452 *FAT: hein@i ?
453 *CHI: só petit.
454 *FAT: un petit peu de +/ ?
455 *CHI: queijo !
456 *FAT: comment on dit queijo en français ?
457 *FAT: hein@i ?
458 *CHI: quei^jo !
459 *FAT: non queijo c'est pas en français .
460 *FAT: papa#il comprend pas.
461 *CHI: não queijo !
462 *CHI: <queijo>[5x] .
463 *OBS: [=! risos]
464 *FAT: [=! risos]
465 *FAT: queijo non.
466 *FAT: c'est du +/?
467 *FAT: je veux du +/?
468 *FAT: comment on dit en français ?
469 *FAT: papa#il comprend pas queijo.
470 *CHI: non <queijo>[4x] .
378

471 *FAT: c'est quoi queijo?


472 *CHI: [=! risos]
473 *FAT: c'est du +/?
474 *OBS: [=! risos]
475 *CHI: non <queijo>[4x] .
(...)
479 *FAT: non papa#il va pas donner si tu dis pas en français.

Neste trecho, pai e filha estão comendo juntos na hora do jantar.


Podemos notar que Mar. utiliza o francês primeiramente, no turno 428
para dizer ao pai que não quer comer porque está com dor. Entretanto,
o pai parece não acreditar, e ela começa a utilizar o português para pedir
queijo. Podemos perceber que até o final deste trecho (e da sessão) ela
não diz a palavra “fromage”, mesmo o pai dizendo que atenderia seu
pedido se ela falasse francês. Isto, acreditamos, seja porque ela consegue
provocar o pai e causar risos tanto no observador quanto no próprio pai.
Poderia ser interpretado como uma maneira de enfrentamento e de
chamar a atenção daqueles que estão envolvidos na situação de
interação.

Exemplo 2:

1138 *CHI: quero yyy .


1139 *CHI: je veux [/] je veux .
1140 *MOT: que que ela falo(u) ?
1141 *CHI: je veux [/] je veux .
1142 *MOT: je veux [/] je veux .
1143 *CHI: cadê o barbe à papa#cadê ?
1144 *MOT: ó@i o barbe à papa aqui ó@i .
1145 *CHI: aqui .
1146 *MOT: aqui ?
1147 *MOT: cadê o barbe à papa ?
1148 *MOT: aqui <a moça>[//]<o moço> fazendo o barbe à papa .
1149 *MOT: (vo)cê gosta do barbe à papa ?
1150 *CHI: não .
1151 *MOT: (vo)cê que(r) comer ?
379

1152 %act: CHI faz que não com a cabeça


1153 *MOT: é gostoso o barbe à papa .
1154 *MOT: é (a)çúcar [/] açúcar .
1155 *CHI: cadê pompom
1156 *CHI: xxx petit .
1157 *MOT: a@i xxx .
1158 *CHI: petit [/] petit [/] petit manege .
1159 *MOT: ã@i ?
1160 *CHI: petit manege .
1161 *MOT: petit manege ?
1162 *CHI: xxx .
1163 *MOT: ulálá@i esses papais compram tudo p(a)ra Juliette .
1164 *CHI: petit papa [/] petit papa .
1165 *CHI: amanhã é fermé .
1166 *MOT: amanhã [/] amanhã o manege vai (es)ta(r) fechado ?
1167 *CHI: é.
1168 *OBS: [=! risos] .
1169 *CHI: (a)cabo(u) .
1170 *MOT: quem conta essa história p(a)ra você todo dia ?
1171 *CHI: Ma(r)ina .
1172 *MOT: não#quem conta p(a)ra você aqui no quarto ?
1173 *MOT: quem lê p(a)ra você essa história?
1174 *CHI: Marina .
1175 *OBS: o@i .
1176 *MOT: não#quem é que lê p(a)ra você essa história ?
1177 *CHI: mamãe .
1178 *MOT: não#mamãe não .
1179 *MOT: quem é que lê todo dia essa história p(a)ra você ?
1180 *CHI: mamãe .
(...)
1189 *MOT: antes de você toma(r) o gagao ?
1190 *MOT: quem ?
1191 *MOT: fala .
1192 *CHI: num*[:não] sabe .
1193 *MOT: ã@i ?
1194 *CHI: num*[:não] sabe .

Neste trecho, mãe e filha estão no quarto lendo um livro, que


podemos descobrir, pelo turno 1178, que é o pai quem o lê todos os dias
380

para a criança. Este fato poderia justificar o uso de code-switchings (?)


pela criança, haja vista que ela escuta esta história sempre em francês.
Passemos agora para o uso da referência a si e ao outro observado
nas sessões analisadas. O primeiro gráfico que segue mostra o uso da
auto-referência pela criança tanto em português como em francês.
Podemos observar que Mar. utiliza a primeira pessoa (eu/je); o próprio
nome; a primeira pessoa do plural (a gente); a marcação no verbo ou
nenhum (quando o verbo está no infinitivo ou quando os enunciados
não fazem referência a primeira pessoa). Como já poderíamos esperar,
ela utiliza o pronome pessoal “je” com mais frequência uma vez que ele
é “obrigatório” em francês e a marcação no verbo acontece apenas em
português, pois no francês falado/oral esta diferença não existe.

Gráfico 3:

Exemplo 3:

186 *MOT: olha#o que (es)tá acontecendo aqui ?


187 *MOT: conta .
188 *CHI: tu voir t’aime .
189 *MOT: ã@i?
190 *CHI: é je t’aime .
191 *MOT: ã@i ?
192 *CHI: je t’aime .
193 *MOT: quem que (es)tá dizendo je t’aime?
381

194 *CHI: je t’aime papa .


195 *MOT: a@i é o papai (es)tá dizendo je t’aime?
196 *MOT: e a mamãe (es)tá dizendo o quê?
197 *CHI: te amo .
198 *MOT: a@i !
199 *OBS: [=!risos] .
200 *OBS: muito espertinha você .

Escolhemos este exemplo e o seguinte para mostrarmos como o


code-switching pode/está relacionado com o uso das marcas de
referência de primeira pessoa e segunda pessoa. Neste exemplo, a
criança está lendo um livro com a mãe e faz uso deste recurso para
trocar de assunto ou chamar a atenção, já que é a primeira gravação.
Entretanto, o primeiro momento em que ela utiliza os pronomes de
primeira e segunda pessoa é utilizando o code-switching, ou seja, o
pronome em francês. O mesmo ocorre no exemplo 6, quando o pai pede
para que a criança vá até a cozinha fazer a refeição e o primeiro uso do
pronome pessoal ocorre em português.

Exemplo 4:

46 *FAT: du fromage aussi ?


47 *CHI: hum@i.
48 *FAT: et pas#euh@i.
49 *FAT: non#on va pas manger ici .
50 *FAT: on va manger dans la cuisine#hein@i ?
51 *FAT: d'accord ?
52 *CHI: eu como aqui.
53 *FAT: non dans la +/.
54 *CHI: xxx
55 *FAT: ++ dans la cuisine.
56 *OBS: [=! risos]

Quando tratamos da mesma questão, mas olhando para os


interlocutores, percebemos que os usos das marcas de referência a si
são parecidos, embora o pai utilize mais a forma “papa” para referir-se
382

a si mesmo e o uso de “on” também é mais comum; fato esperado pela


estrutura do francês. O mesmo ocorre com a mãe, que utiliza muitas
vezes os verbos sem referência à pessoa, característica do português.

Gráfico 4

Passemos agora para a apreciação dos usos da referência ao


interlocutor pela criança. Podemos ver que seu comportamento é
bastante parecido em ambas às línguas, predominando o uso de
“mamãe” e “papai”.

Gráfico 5
383

É relevante observar que quando verificamos o mesmo uso pelos


pais, percebemos um comportamento semelhante entre eles, com
muitos imperativos (marcado nenhum no gráfico). O que nos chama a
atenção é que o pai utiliza a forma “tu” mais do que as outras e Mar.
utiliza mais o pronome “je” em francês do que em português, mas
praticamente não utiliza o “você” em nenhuma das duas línguas. Em
Português há uma maior variação de auto-designação, assim como há
também uma variação maior de como a mãe se refere a ela.

Gráfico 6
Referência de segunda pessoa utilizada
pelos pais
60

40

20

0
Marina ela/elle menina você/tu nenhum

Mãe Pai

Vejamos alguns excertos em que temos os usos das diferentes


formas de referência a si mesmo e ao outro, tanto pelo locutor como pelo
interlocutor.

Exemplo 5:

22 *CHI: vamo(s) .
23 *MOT: entao <vamo(s) primeiro> [/] <vamo(s) primeiro> arrumar tudo isso
.
24 *MOT: vai#guarda .
25 *MOT: mas é para guardar arrumadinho .
26 %act: CHI começa a jogar os brinquedos dentro da casinha .
384

27 *MOT: não é pra fazer bagunça não .


28 *MOT: eu te conheço .
29 *MOT: guarda .
30 %act: CHI coloca os brinquedos dentro da casinha devagar .
31 *MOT: a:: a menininha .
32 *MOT: vamos botar a menininha sentada na cadeira ?
33 *CHI: u@i bota .
34 *CHI: o@i não !
35 %act: CHI faz careta porque a bonequinha cai quando ela a coloca sentada na cadeira
.
37 *OBS: [=!risos] .
38 *OBS: dá#manda um beijinho aqui .
39 %act: CHI olha para a câmera e manda um beijo para OBS .
40 *OBS: [=! risos] .
41 *OBS: depois eu deixo você ve(r)#(es)tá bom ?
42 *MOT: depois a Marina vai ve(r) .
43 *MOT: <essas meninas> [//] <essas crianças> tecnologia hoje .
(...)
56 *MOT: pronto # agora a gente vai guarda(r) aqui # né ?
57 *MOT: a casinha # porque essa casinha de quem que é ?
58 *CHI: (Es)tela .
59 *MOT: ã@i ?
60 *CHI: (Es)tela .
61 *MOT: e a Marina pode brinca(r) ?
62 %act: CHI faz que sim com a cabeça .
63 *MOT: pode mas##sem estraga(r) .
64 *CHI: xxx .
65 *MOT: ã@i?
66 *CHI: xxx .
67 *MOT: hum@i ?
68 *MOT: que que a gente vai fazer agora ?
69 *CHI: xxx .
70 *MOT: que que a gente vai fazer agora ?
71 *MOT: (vo)cê vai pega(r) o quê ?
72 *MOT: ã@i ?
73 *CHI: moto .
74 *MOT: não#a gente falo(u) o quê ?
75 *MOT: que a gente i(ri)a guarda(r) a casinha .
76 *MOT: e a gente vai faze(r) o que agora ?
77 *CHI: pega(r) a menininha moto .
385

78 *MOT: a menininha que tem medo do escuro ?


79 *CHI: é .
80 *MOT: então vai busca(r) .
81 *OBS: [=! risos]
82 %act: CHI desce da cadeira onde estava.
83 *MOT: onde que (es)tá ?
84 *CHI: lá .
85 *OBS: [=! risos]
86 %act: CHI corre para fora da sala e MOT vai atrás dela .
87 *CHI: yyy .
88 *MOT: deixa eu ve(r) se (es)tá aqui .
89 *MOT: (es)tá aqui Marina no banheiro .
90 *MOT: vai busca(r) .
91 *OBS: [=! risos] .
92 %act: CHI: entra no banheiro .
93 *CHI: mamãe le(ia) .
94 *MOT: a mamãe vai le(r) ?
95 *MOT: não#você vai le(r) p(a)ra mamãe .
96 *CHI: não !
97 *CHI: le(ia) mamãe !
98 *MOT: a mamãe que vai le(r) ?
99 *CHI: é
100 *MOT: mas você conhece já a história .

Neste exemplo, mãe e filha estão negociando a próxima atividade


e podemos verificar uma variedade de usos de marcas de referência
tanto de primeira como de segunda pessoa.

Exemplo 6:

1369 *CHI: Marina é medo Alessand(r)a .


1370 *MOT: você (es)tá com medo da luva da Alessandra .
1371 *CHI: é.
1372 *OBS: não pode pega(r) .
1373 *OBS: pega ela [//] pega .
1374 *MOT: pega .
1375 *CHI: não [/] não#que(r)o não .
1376 *OBS: quero não .
1377 *MOT: que você diz p(a)ra Estela ?
386

1378 *CHI: não que(r)o .


1379 *OBS: [=! risos] .
1380 *SIS: de nada .
(...)
1388 *MOT: você que(r) esse ?
1389 *MOT: deixa eu experimenta(r) .
1390 *MOT: hum@i é de morango .
1391 *CHI: mo(r)ango .
1392 *MOT: gostoso .
1393 *CHI: quero brinca(r) eu que(r)o brinca(r) .
1394 *OBS: claro#né ?
1395 *SIS: Marina posso brinca(r) um pouco?

Neste exemplo, temos nos excertos da criança um uso variado de


maneiras de referir-se a si mesma. Vejamos o próximo:

Exemplo 7 :

373 *FAT: ça y est ?


374 *FAT: tu veux que papa#il t'aide ?
375 *CHI: non.
376 *CHI: non#je ne veux pas.
377 *FAT: hein@i ?
378 *CHI: xxx
379 *FAT: tu fais toute seule ?
380 *CHI: oui.
381 *FAT: allez !
(...)
393 *FAT: allez#vas-y.
394 *FAT: fini#papa il va t'aider.
395 *CHI: <miam@o>[3x].
396 *FAT: alors#dépêche-toi mon cœur !
397 *CHI: non papa !
398 *FAT: dépêche-toi mon cœur !
399 *FAT: allez regarde !
400 *FAT: Estella#elle a fini.
401 *FAT: bravo Stella !
402 *FAT: papa va faire un gros bisou à Estella.
403 *FAT: Marina#il est pas content papa.
387

404 *CHI: xxx


405 *FAT: ben#tu manges pas.
406 *CHI: manger.
407 *FAT: hein@i ?
408 *CHI: manger.
409 *FAT: <tu veux manger>[//]<tu manges>.
410 *CHI: papa ?
411 *FAT: é#je suis pas content.
412 *CHI: <papa>[/]<papa>.
413 *FAT: tu manges pas.
414 *FAT: regarde Estella.
415 *FAT: elle a fini.
416 *FAT: bravo Estella !
417 *FAT: ouais.
418 *CHI: j'ai fini.
419 *FAT: non#t'as pas fini .

Neste exemplo, pai e filhas estão comendo na cozinha e o pai está


insistindo para que a criança termine a comida. Podemos verificar que o
pai e Mar. utilizam diferentes maneiras de se referirem a si e ao outro.
O gráfico que segue mostra os tempos verbais utilizados pela
criança nestas duas sessões quando ocorre a referência a si mesma. Em
seguida, escolhemos alguns exemplos que ilustram estes usos.

Gráfico 7

Exemplo 8 :
388

218 *FAT: j'en mets un petit peu sur la purée.


219 *CHI: <mets>[/]<mets>.
220 *FAT: vas-y !
221 *FAT: mets !
222 *CHI: <vas-y papa>[//]<vas-y> !
223 *FAT: quoi ?
224 *CHI: xxx
225 *FAT: tout ?
226 *CHI: <tout>[/]<tout>.
227 *FAT: tu veux tout mettre ?
228 *CHI: j'veux mettre <tout> [/] <tout> [/] <tout>.
229 *FAT: vas-y !
230 *FAT: mais Estella fais pas tom +/.
231 *FAT: Marina fais pas tomber partout cochonne.
232 *CHI: <tout>[/]<tout>[/]<tout>.
233 *FAT: tout##attention !
234 *CHI: xxx
235 *FAT: oui grand#plus grand.
(…)
283 *FAT: qu'est-ce qu'on dit ?
284 *CHI: merci !
285 *SIS:merci !
286 *FAT: <tac@o>[/]<tac@o>.
287 *FAT: xxx du steack haché.
288 *CHI: steack haché ?
289 *FAT: ouais.
290 *OBS: [=!risos]
291 *FAT: xxx
292 *CHI: papa !
(...)
304 *FAT: Marina tu fais pas de cochonneries.
(...)
324 *FAT: <c'est bon>[/]<c'est bon>[/]<c'est bon>[/]<c'est bon>.
325 *SIS:j'ai fini.
326 *CHI: j'ai fini.
327 *FAT: non#t'as pas fini.
328 *FAT: c'est pas vrai Marina.
389

Nesta sequência, Mar. utiliza o verbo no imperativo, passado e


futuro enquanto conversa com o pai e a irmã durante a refeição.

Exemplo 9 :

667 *FAT: tu veux quoi ?


668 *FAT: tu veux ce bout là ?
669 *CHI: oui je veux ce bout là.
670 *FAT: tu vas le manger ?
671 *CHI: oui.
672 *FAT: t'es sûr ?
673 *CHI: papa content.
674 *FAT: papa#il est content ouais.
675 *CHI: [=! resmunga]
676 *FAT: c'est bon ?
677 *CHI: ouais#c'est bon.
(...)
776 *CHI: xxx papa quero descendre.
777 *FAT: hein@i ?
778 *CHI: quero descendre.
779 *FAT: tu veux descendre ?
780 *CHI: oui.
781 *FAT: papa#il arrive.
782 *FAT: papa#il finit ça.
783 *FAT: alors qu'est-ce qu'on va faire maintenant ?
784 *CHI: xxx
785 *FAT: qu'est-ce qu'on va faire maintenant avec papa ?
786 *CHI: dente.
787 *FAT: hein@i ?
788 *CHI: dente.
789 *FAT: é@i !
790 *FAT: on va se laver les dents.
791 *CHI: <tout seul>[/]<tout seul>.
792 *FAT: <tout seul>[/]<tout seul>.
793 *FAT: tu veux te laver les dents ?
794 *FAT: tiens#le cheveu.
795 *FAT: et après qu'est-ce qu'on va faire ?
796 *CHI: <dodo>[/]<dodo> .
390

797 *CHI: non dodo non.


798 *CHI: e@i##comedinha.
799 *FAT: tu veux jouer dans ton lit comme hier avec la comedinha ?
800 *SIS:avec papa ?
801 *FAT: xxx on va jouer dans ta chambre.
802 *FAT: tous les deux#avec papa.
803 *FAT: d'accord ?
804 *FAT: on va jouer avec papa ?
805 *FAT: après papa#il va raconter une histoire.
806 *CHI: avec papa ?
807 *CHI: jouer avec papa ?
808 *FAT: jouer avec papa.
809 *CHI: avec papa ?
810 *FAT: oui.
811 *CHI: a fini papa.
812 *FAT: hein ?
813 *CHI: a fini.
814 *CHI: eu quero água.
815 *FAT: tu veux de l'eau ?

Neste último exemplo, podemos verificar que a criança utiliza uma


diversidade de tempos verbais e maneiras de se colocar no discurso.

Considerações finais

Podemos depreender dos dados que foram analisados até o


momento – 2 sessões completas em um total de 3000 enunciados – que
Mar. utiliza o recurso do code-switching como uma ferramenta também
para confrontar, para se colocar no discurso e mostrar suas vontades
tanto com a mãe, quanto com o pai, mas especialmente com ele. As duas
línguas são muito bem entendidas por ela, não apenas como códigos
(como não poderia ser), mas também como instrumentos de poder
utilizados para se posicionar. É possível também observar que o input é
essencial ao desenvolvimento linguístico da criança, constituindo a
interação e sendo essencial para a construção da subjetividade, mas não
é o único elemento determinante da produção infantil.
391

Comparando nossos estudos com outros (por exemplo, Caet,


2013) verificamos que nossos resultados, até o momento, divergem até
mesmo quanto às formas encontradas. Neste estudo mencionado, um
dos resultados mais intrigantes é o uso de “My” em inglês no lugar do
sujeito e de “Moi” para o francês, fato que não ocorre com Mar. nem
mesmo em francês. Isso demonstra, também, que o bilinguismo é um
universo distinto merecedor de atenção. Por fim, devido as suas
especificidades, o Português do Brasil parece fazer jus a uma atenção
especial nos estudos em aquisição da linguagem por suas características
únicas.

Referência

BAKHTIN, M. / VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem.


Tradução de Michel Lahud e Yara F. Vieira. 7. ed. São Paulo: Hucitec,
1997.
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução de
Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2010.
______. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão
Gomes Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
______. Discurso na vida e discurso na arte (1926). Trad. Inédita de
Cristovão Tezza do artigo “Discourse in Life and Discourse in Art”,
publicado como apêndice in: Voloshinov, V.N. Freudianism: a marxist
critique. New York: Academic Press, 1976.
BRUNER, J. Uma nova teoria de aprendizagem. Cambridge,
Massachussets, 1969.
BULLIO, P. A socialização e a criança bilíngüe. Alfa, 54 (2),
http://seer.fclar.unesp.br/alfa/article/view/3182
CAËT, S. (2012). De l’éclosion à la grammaticalisation de la référence à
soi et à l’interlocuteur dans les productions d’une enfant francophone.
Journal of French Language Studies, 2012, 77-93
392

DEL RÉ, A. “Os pronomes ‘eu’/ ‘você’/ ‘ele’ no discurso infantil: um jogo
de identidade/alteridade”. Estudos Linguísticos, SP, 38 (2): 19-29,
maio-agosto, 2009
______. Jogos de pronomes, marcadores linguisticos e movimento
discursivo no diálogo entre uma criança e seus pais: manifestação da
subjetividade linguageira?. Alfa, 54 (2), 2010 http://seer.fclar.
unesp.br/alfa/article/view/3180 Acesso em 15/02/2011
DEL RÉ, A., HILÁRIO, R. N., VIEIRA, A. J. Subjetividade, individualidade e
singularidade na criança: um sujeito que se constitui socialmente.
Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, p. 57-74, 2012.
Disponível em: httPAI://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana
/article/view/10331 Acesso em 15 de maio de 2013.
FRANÇOIS, F. Morale et mise en mots. Paris : L’harmattan, 1994.
______. Enfants et récits. Mises em mots et “reste”. Lille: Presses
Universitaires du Septentrion, 2004.
HOUWER, A. The acquisition of two languages from birth: a case
study. Cambridge, CUP, 1990
MAC WHINNEY, B. The CHILDES project: tools for analyzing talk.
Volume : Transcription format and programs. Volume 2: The database.
3rd ed. Lawrence Erlbaum,2000
MORGENSTERN, A. Un JE en construction – Genèse de l’auto-
désignation chez le jeune enfant. Ophrys, 2006
MORGENSTERN, A., BRIGAUDIOT, M., NICOLAS, C. “Me found it, I find it,
à la recherche de "je" entre deux et trois ans”. In: Faits de Langues 3 -
La Personne. pp.123-131 (1994). hal-00118234, version 1 - 4 Dec 2006
MORGENSTERN, A. L’enfant dans la langue. PSN, Paris, 2009
PARISSE, C. & LE NORMAND, M.T. Étude des catégories lexicales chez le
jeune enfant à partir de deux ans à l’aide d’un traitement automatique
de la morphosyntaxe. Bulletin d’Audiophonologie, 6. 305-328, 1997
SALAZAR-ORVIG, A. Les mouvements du discours: style, référence et
dialogue dans des entretienscliniques.books.google.com.br/books
?id=TuFbAgAACAAJ&dq=Anne%20Salazar%20Orvig&source=gbs_slid
er_thumb. Acesso em Agosto, 2010. Resenhas Harmattan, 1999. 294 p.
393

______. L’acquisition en dialogue des expressions référentielles:


approches multidimensionnelles. In: Programme enfants et enfance,
edition 2009, projet diaref, document de soumission b.
OCHS, Elinor & SCHIEFFELIN, B. B. Language Socialization across
cultures. CUP, 1999
SALAZAR ORVIG et al. “Emergence des marqueurs anaphoriques avant
3 ans: le cas des pronoms de troisième personne. Calap. La cohesion
chez l’enfant (24), 57-82, 2004
SALAZAR et al. “Une étude sur les premières expressions référentielles.
Le cas des pronoms. Tranel (41), 15-25, 2005
SALAZAR ORVIG, A. et al. « Dialogical Beginnings of Anaphora: The Use
of Third Person Pronouns Before The Age Of 3 ». Journal of Pragmatics
42, 2010A, P. 1842–1865.
SALAZAR ORVIG, A. et al. «Dialogical Factors in Toddlers’ Use of Clitic
Pronouns». First Language 30(3-4), 2010B, P. 375–402.
SALAZAR ORVIG, A. et al. «Les Mouvements du Discours: Style,
Reference et Dialogue Dans des Entretiens Cliniques». Paris: Harmattan,
1999.
SALAZAR ORVIG, A., BERNICOT, J. & VENEZIANO E. «Les reprises:
dialogue, formes, fonctions et ontogenèse». La linguistique, 42, pp. 29-
50, 2006.
SALAZAR-ORVIG, A.; ELAMOTTE-LEGRAND, R.; HUDELOT, C.
«Dialogues, mouvements discursifs, significations». Fernelmont:
E.M.E., 2008.
SALAZAR ORVIG, A. (2008) "Entre Gramática y Pragmática: Adquisición
de los determinantes en francés" in Luis Miranda (ed.): Actas del V
Congreso Nacional de Investigaciones Lingüístico-Filológicas.
Cátedra UNESCO para la Lectura y la Escritura en América Latina (Sede
Perú). Lima. p. 55-87.
TOMASELLO, M. First verbs: A case study in early grammatical
development. Cambridge University Press. 1992.
394

AQUISIÇÃO/APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA:


SUBJETIVIDADE E DESDOBRAMENTOS DE IDENTIDADES

Patrícia Falasca (Unesp)


Alessandra Del Ré

RESUMO: O presente trabalho propõe uma reflexão sobre os processos


de constituição da subjetividade e da identidade de alunos adultos de
inglês como língua estrangeira (LE). Considerando que o lugar de
constituição desses sujeitos é a língua materna (LM), acreditamos que o
contato com a LE possa trazer consigo desafios de caráter identitário
para os alunos adultos. Para discutir essas questões, partimos de uma
perspectiva dialógico-discursiva, baseada das ideias do Círculo de
Bakhtin (BAKHTIN, 2006; BAKHTIN/VOLOSHINOV,1997; BAKHTIN,
1981; BAKHTIN, 1976), tomando a língua como essencialmente
dialógica e ideológica, que se faz possível dentro de um grupo de sujeitos
socialmente organizados e dependente da relação entre eu e o outro.
Nessa perspectiva, pensamos na hipótese de que a LE e sua organização
trariam possíveis deslocamentos identitários (FRANÇOIS, 1996) para os
alunos, ao evidenciar a necessidade de se adentrar em uma visão de
mundo diferenciada, inerente à LE. Nossos objetivos são, portanto,
verificar a consistência da hipótese de que há, ao aprender uma LE,
deslocamentos identitários que trariam modificações à própria
subjetividade do aprendiz, além de procurar compreender, através da
linguagem, de que maneira tais deslocamentos aconteceriam. A fim de
verificar tais questões, analisamos dados filmados em entrevistas com
cinco alunos adultos que aprendem inglês como LE. Os vídeos que
compõe o corpus foram transcritos de acordo com as ferramentas
concebidas para o projeto CHILDES (programa CLAN, formato de
transcrição CHAT) (MACWHINNEY, 2000). Por meio da análise de
aspectos verbais e não-verbais presentes nas entrevistas, foi possível
perceber que a hipótese inicial do trabalho se mostra consistente, na
395

medida em que é possível observar, nos alunos, diferentes


posicionamentos ao fazerem uso da LM e da LE.

PALAVRAS-CHAVE: Aquisição/aprendizagem. Língua estrangeira.


Subjetividade. Identidade. Deslocamento.

ABSTRACT: This paper proposes a reflection on the processes of


constitution of subjectivity and identity of adult students of English as a
foreign language (FL). Considering the mother language (ML) as the
basis for the constitution of the subjectivity, we believe that the contact
with the FL can bring adult learners some identity challenges. To discuss
these issues, we use a dialogical and discursive perspective - based on
the ideas of the Bakhtinian Circle (BAKHTIN, 2006; BAKHTIN /
VOLOSHINOV, 1997; BAKHTIN, 1981; BAKHTIN, 1976), viewing
language as essentially dialogic and ideological, which is only possible
within a group of socially organized people and dependent on the
relationship between the self and the other(s). In this perspective, we
propose the hypothesis that FL and its organization would bring
possible identity displacements (FRANÇOIS, 1996) for students,
bringing the need to enter into a different worldview - inherent to the
FL. Our objectives are therefore to verify the consistency of the
hypothesis that there are, in order to learn a FL, identity dislocations,
that would bring changes to the very subjectivity of the learner. We also
intend to understand, through language, how such displacements
happen. In order to verify such issues, we analyze data from filmed
interviews with five adult students learning English as FL. Videos that
compose the corpus were transcribed according to the tools designed for
the CHILDES project (CLAN program, CHAT transcription format)
(MACWHINNEY, 2000). Throughout the discussions, through the
analysis of verbal and nonverbal aspects present in the interviews, it
was revealed that the initial hypothesis of the work has been proved
consistent, once it is possible to observe different positions and actions
of the students, when they use the ML and the FL.
396

KEYWORDS: Acquisition/learning. Foreign language. Subjectivity.


Identity. Displacement.

INTRODUÇÃO:

A pesquisa aqui apresentada tem o objetivo de investigar a


maneira como se dá, no discurso, o movimento de constituição da
subjetividade de alunos adultos, aprendizes de inglês como língua
estrangeira (LE), considerando os deslocamentos identitários pelos
quais eles passam ao tomar contato com a nova língua. Para tanto,
consideramos imprescindível a relação dos sujeitos com a língua
materna (LM) (no caso, o português brasileiro (PB)) para sua inserção
como sujeitos no mundo, na sociedade em que se encontram.
Tomamos como base teórica para tal discussão a perspectiva
dialógico-discursiva, partindo das reflexões do Círculo de Bakhtin
(BAKHTIN, 2006; BAKHTIN/VOLOSHINOV,1997; BAKHTIN, 1981;
BAKHTIN, 1976), principalmente no que diz respeito à linguagem - com
sua essência intrinsecamente dialógica e ideológica -, à interação e à
importância do outro na constituição da subjetividade e do discurso.
Tais noções são imprescindíveis para a compreensão do processo de
constituição da subjetividade, da forma como ela é concebida por nós.
Pode-se perceber, à medida que tomamos a cronologia dos
estudos em aprendizagem de LEs, que o foco das pesquisas recai,
durante muito tempo, apenas sobre a questão da pedagogia de línguas e
sobre a proposição de novas metodologias de ensino, buscando
melhorias na sala de aula, sem levar em consideração de forma relevante
a posição dos aprendizes com relação ao processo de aprendizagem, ou
com a língua em si.
Assim, tais pesquisas concentravam-se, inicialmente, em uma
perspectiva estrutural, apoiada pela psicologia behaviorista, na
concepção de aprendizagem de línguas como uma formação de hábitos,
através do princípio de estímulo-resposta.
397

Na década de 60, as contribuições da teoria chomskyana tiveram


suas implicações nas pesquisas sobre aprendizagem de LE (GUEDES
EVANGELISTA, 2003), considerando que os aprendizes, com seu
dispositivo de aquisição de linguagem (DAL), formulavam regras a
respeito da língua alvo, da mesma forma, ou de forma semelhante a que
haviam feito ao adquirir sua LM (CHOMSKY, 1959), embora aquisição e
aprendizagem sejam, nessa teoria, tomadas como processos
diferenciados.
A partir da década de 1990, teorias de cunhos cognitivistas e
desenvolvimentistas tomam lugar, postulando que não há necessidade
de formular hipóteses sobre determinado módulo no cérebro para a
aprendizagem de línguas, ou mesmo que a distinção entre aquisição e
aprendizagem não teria tanta importância. O que constitui real
preocupação, neste ponto de vista, é o processo de desenvolvimento da
complexidade sintática para o aprendiz. (LIGHTBOWN & SPADA, 2006,
p. 38-39)
Nesse contexto, desenvolve-se também a perspectiva
sociocultural, baseada nas ideias de Vygotsky (2007, 2001) acerca do
desenvolvimento humano, do pensamento e da linguagem. Esta
perspectiva dá grande ênfase à interação social como forma de
promover a aprendizagem. Através da mediação por um tutor,
juntamente com a atividade social, o conhecimento é internalizado pelo
aprendiz.
É acrescentando tais questões, intrínsecas à área de aquisição de
LE, às reflexões propostas pelo Círculo de Bakhtin (BAKHTIN, 2006;
BAKHTIN/VOLOSHINOV,1997; BAKHTIN, 1981; BAKHTIN, 1976) que
olhamos nossos dados e fazemos uma seleção deles para este artigo,
buscando marcas que permitam a percepção da identidade e,
consequentemente, da subjetividade do aprendiz.
Na área de Aquisição/aprendizagem de Língua Estrangeira, a
opção por trabalhar com a perspectiva bakhtiniana deu-se
398

considerando que tais ideias trazem diversas implicações à


compreensão atual desse processo 1:

First, it helps us to see language as a living tool – one that is


simultaneously structured and emergent, by which we
bring our cultural worlds into existence, maintain them,
and shape them for our own purposes. In using language to
participate in our activities, we reflect our understanding
of them and their larger cultural contexts. At the same time,
we create spaces for ourselves as individual actors within
them. (HALL et al., 2005, p.3)2

Além disso, as contribuições de Bakhtin e do Círculo possibilitam


encarar a aquisição/aprendizagem como um processo social, não
localizado apenas na cabeça do aprendiz, e sim como uma forma de
entrar em contato, através da língua, com as questões culturais e
históricas que estão nela presentes (HALL et al., 2005, p.3).
Tendo tais pressupostos considerados, pretendemos trazer, neste
trabalho, um panorama das reflexões levantadas ao longo da dissertação
de mestrado, defendida no ano de 2012, na FCLar – UNESP.

1. AS IDEIAS BAKHTINIANAS E AS CONSIDERAÇÕES ACERCA DA LINGUAGEM

Em Marxismo e Filosofia da Linguagem (BAKHTIN / VOLOSHINOV,


1997), há a ideia da palavra como o signo ideológico por excelência, na
qual se pode perceber todo o tipo de mudança social, ainda que esta seja

1Neste trabalho, não fazemos a diferenciação dos conceitos de aquisição e


aprendizagem.
2 Primeiramente, ela [a teoria bakhtiniana] nos ajuda a ver a linguagem como uma

ferramenta viva – que é simultaneamente estruturada e emergente, através da qual nós


trazemos nossos mundos culturais para existência, os mantemos e a eles damos formas,
para nossos propósitos. Ao usar a língua para participar em nossas atividades, nós
refletimos nosso entendimento sobre elas e seus contextos culturais mais abrangentes.
Ao mesmo tempo, criamos espaços para nós mesmos enquanto atores individuais
dentro delas. (Tradução nossa)
399

leve ou esteja ainda por vir. Isso ocorre pelo fato de que, segundo Bakhtin/
Voloshinov (1997, p.31), tudo o que é ideológico é também um signo, à
medida que possui um significado que excede a sua natureza física. Sendo
a palavra uma realidade que não existe fora de sua função de signo, é nela
– e na linguagem como um todo - que mais claramente se pode notar as
relações sociais (BAKHTIN/VOLOSHINOV, p. 36). É preciso pensar, então,
de que maneira se dá a realidade dos signos e, em especial, da linguagem.
Como realidade ideológica, a linguagem apenas se faz possível entre
sujeitos socialmente organizados, de forma a gerar, em cada signo, uma
significação que seja interindividual. É somente adquirindo um valor
social que se adentra no domínio da ideologia. Dessa forma:

Todo signo, como sabemos, resulta de um consenso entre


indivíduos socialmente organizados no decorrer de um
processo de interação. Razão pela qual as formas do signo
são condicionadas tanto pela organização social de tais
indivíduos como pelas condições em que a interação
acontece. (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1997 p. 44) (grifo do
autor).

Assim, observamos que a linguagem é, em um primeiro momento,


essencialmente ideológica e social, e, portanto, encontra-se
necessariamente marcada pelo “horizonte social de uma época e de um
grupo social determinados” (1997, p.44) (grifo do autor). Ao encarar a
língua dessa forma, Bakhtin se posiciona contrariamente aos modelos
formalistas (dos primeiros formalistas russos) de linguagem, dando a
ela, ao contrário da normatividade fechada em si, uma dinamicidade
ligada ao contexto sociocultural do qual participa:

In contrast to an understanding of language as sets of


closed, abstract systems of normative forms, Bakhtin
viewed it as comprising dynamic constellations of
sociocultural resources that are fundamentally tied to their
social and historical contexts. These collections, which are
400

continuously renewed in social activity, are considered


central forms of life in that not only are they used to refer
to or represent our cultural worlds, but they also are the
central means by which we bring our worlds into existence,
maintain them, and shape them for our own purposes
(HALL et al, 2005. p. 2). 3

Vemos então que, para Bakhtin, é através da linguagem que somos


capazes de representar e de trazer à tona nosso mundo, da forma como
o entendemos. Considerando também esse aspecto dinâmico e centrado
nas atividades sociais, uma característica essencial da linguagem dentro
da perspectiva bakhtiniana está relacionada ao seu funcionamento
dialógico. Nas reflexões do Círculo, “todos os enunciados constituem-se
a partir de outros [enunciados]” (FIORIN, 2006, p.30).
Nessa perspectiva, os enunciados que participam da esfera social
de existência de cada sujeito participam também da formação de seus
próprios enunciados, que são sempre, direta ou indiretamente, uma
resposta a algo que já fora enunciado, ao mesmo tempo que evocam
respostas por sua manifestação.
Tal concepção não quer, de forma alguma, minimizar a ação dos
sujeitos sobre os enunciados que produzem, ou mesmo reduzir os
enunciados a meras repetições do que se ouviu em determinado
momento. Ao contrário disso, toma-se cada enunciado como um ato
irrepetível, uma vez que ocorre de maneira única, com determinado
acento, entoação, valor, em um momento único e irrepetível de
interação. Portanto, ao enunciar, fazemos, ao mesmo tempo, dois

3 Em contraste com uma compreensão da língua como conjuntos de sistemas normativos

de formas fechados e abstratos, Bakhtin a viu como incluindo constelações dinâmicas de


recursos socioculturais que são essencialmente atados ao seu contexto histórico e social.
Estas coleções, que são continuamente renovadas na atividade social, são consideradas
formas centrais de vida, na qual elas são usadas não somente para referir ou representar
nossos mundos culturais, mas também são meios centrais através dos quais nós
trazemos nossos mundos para a realidade, os mantemos e lhes damos forma para os
nossos próprios propósitos. (Tradução nossa)
401

movimentos: usamos o que já é conhecido em nossas sentenças


enquanto adicionamos a elas nossa própria voz (HALL et al., 2005, p. 2).
Ter o seu discurso atravessado pelo discurso do outro significa
retomar a fala alheia, mas de forma nova, após um trabalho individual
de investir tal fala de significados específicos, condizentes com o novo
discurso produzido naquele determinado momento. Enunciar faz-se
uma atividade de constante ressignificação e responsividade
(POSSENTI, 2004).
Não é possível pensar na essência dialógica da linguagem –
considerando o discurso do outro como base para o discurso próprio -
sem pensar também na maneira como o outro, dentro das práticas
sociais, constitui o eu. Para Bakhtin, eu e outro devem ser vistos não
como conceitos absolutos, mas sim como em constante relação,
manifestada através da linguagem, dos discursos. Dessa forma, eu e
outro estão sempre relacionados. E ainda que sejam diferentes por
ocuparem diferentes espaços e tempos, “the self cannot exist without
the other; the other is what gives meaning to the self”4 (HALL et al., 2005,
p. 36), e sua simultaneidade emerge nos enunciados, na retomada da
palavra do outro, que se torna a palavra do eu, à medida que nela são
investidos significados específicos.
Nesse ponto, ao compreender a interação como forma essencial
para o desenvolvimento dos significados, traçamos um paralelo com as
propostas de Vygotsky (2007, 2001) acerca do desenvolvimento
humano, que se dá, segundo o autor, através da interação. Acreditamos,
então, como o faz Vygotsky, que o desenvolvimento cognitivo, e com ele
o desenvolvimento da linguagem, acontece como resultado das
interações sociais entre indivíduos - tal como colocou também Bakhtin.
Dessa forma, a aprendizagem passa a ocorrer a partir do momento em
que há interações com um interlocutor e o falar e o pensar encontram-
se numa relação de completa interligação.

4 O eu não pode existir sem o outro; o outro é o que dá sentido ao eu. (tradução nossa)
402

Assim, entendemos que o processo de aquisição/aprendizagem


envolve, em sala de aula e fora dela, o conceito de socialização, definido
por Ochs (1999) como aquilo que permite que um indivíduo se torne
membro de uma sociedade específica, ato referido também por
Bernstein (1966, p.162) como o processo através do qual o indivíduo
adquire uma determinada identidade cultural e as respostas que dá à
esta identidade adquirida. É uma espécie de acordo social que permite
perceber, a cada momento, os papéis esperados para cada sujeito. Dessa
forma, é preciso considerar a importância dos aspectos interacionais,
que são a forma pela qual se dá a socialização, para a
aquisição/aprendizagem de LE, já que o aluno adulto – em questão nesta
pesquisa - necessita, para que possa realmente se colocar dentro da
nova língua, de práticas interacionais que de fato o posicionem como um
sujeito falante de uma língua específica e que ele possa, através deste
contexto interacional, reconhecer seus próprios papéis e os papéis do
outro.
Considerando os estudos em aquisição de LM, sabe-se que a
criança, em processo de aquisição de sua primeira língua, passa por uma
série de transformações, inicialmente fazendo uso da língua a seu modo,
passeando pelo sistema linguístico de forma a testar suas inúmeras
possibilidades. Desde cedo, a criança é incentivada a tomar parte em
interações dialógicas – inicialmente, de maneira geral, com o pai e a mãe
– até que, aos poucos, sua fala se aproxima daquela do adulto, com todas
as suas formas de expressão.5
Para a criança, entrar no mundo da linguagem significa muito
mais que apenas conseguir comunicar-se: dentro da linguagem, a
criança vai se constituindo como sujeito e, como para
Bakhtin/Voloshinov (1997), é apenas na linguagem e através dela que
se efetua esse processo de constituição da subjetividade, uma vez que o

5 Consideramos, para afirmar que as crianças são incentivadas a participar das


interações sociais desde cedo, as práticas ocidentais mais comuns, inclusive no Brasil.
Sabemos, no entanto, que há diferenças culturais e que tal prática não se dá em todos os
contextos do mundo (OCHS, et al., 1999).
403

eu da criança define-se apenas em relação ao outro, ao tu, dentro de uma


perspectiva discursiva. Assim, a criança constitui sua subjetividade à
medida que adentra no mundo simbólico da linguagem e,
concomitantemente, é inserida, por meio da linguagem, na ideologia da
sociedade em que se encontra, a qual está intrinsecamente presente na
língua por ela utilizada.
Tendo isso em mente e considerando tal formação da
subjetividade da criança à medida que ela adentra na linguagem, não
podemos deixar de refletir, então, sobre o papel que a LE passa a ter para
um aluno adulto e o que ela proporciona ou causa no sujeito
subjetivamente formado (e se formando) em sua LM. Dessa forma, ao
aprender uma LE, algo é operado no ser, que modifica esta sua
subjetividade baseada na LM, abrangendo suas relações e permitindo
adentrar em uma outra língua e sua ideologia.
Na perspectiva bakhtiniana de compreensão da linguagem e seu
funcionamento, a aquisição/aprendizagem de LE tem suas
especificidades, justamente por trazer consigo diversas mudanças ao
sujeito, reorganizando, sempre através das práticas sociais, o que havia
sido anteriormente traçado pela LM:

For Bakhtin, as well as for other sociocultural theorists,


second language learning is considered do involve the
reorganization and redevelopment of semiotic tools from
the native language to the second language, through
participation in social practices. According to this view,
language emerges from engagement in social and cultural
activity and latter becomes internalized (i.e. reconstructed
internally, as psychological processes, e.g., ways of
thinking, modes of learning). These activities are mediated
by signs (i.e. semiotic tools) – for example linguistic and
nonverbal elements (e.g. gestures, facial expressions). As
these semiotic tools and resources become reorganized
404

and redeveloped, individuals become transformed (HALL,


2005, p. 34).6

Acreditamos que essas mudanças aconteçam na subjetividade do


aprendiz, abrangendo-a, trazendo novas organizações que relacionamos
também com questões de identidade do aluno. Para compreender
melhor tais propostas, discutimos a seguir os parâmetros nos quais nos
pautamos para pensar a subjetividade e a identidade, em uma
perspectiva bakhtiniana de estudos, no que diz respeito à
aquisição/aprendizagem de LE.

1.1.AS QUESTÕES DE SUBJETIVIDADE, IDENTIDADE E OS DESLOCAMENTOS

A partir do que fora anteriormente colocado, pensamos o sujeito


como não “acabado” em si, mas sim um espaço de constantes
reformulações e ressignificações, como constata Geraldi (2010), que
traz, com base nos estudos bakhtinianos, a “construção de uma
concepção de sujeito que não aceite qualquer “alma governante”,
qualquer princípio ou origem a não ser sua constante mobilidade e
mutabilidade” (2010, p. 124).
Assim, consideramos o sujeito que é, ao mesmo tempo, social e
individual, o que implica compreender o sujeito como formado tanto
pelo que toma do outro para si, como pelas experiências que o fazem
considerar o mundo da maneira como o faz. Tal característica leva a
refletir sobre a ideia de um “tornar-se ideológico”, ou seja, o processo de

6 Bakhtin, assim como outros teóricos socioculturais, considera a aprendizagem de


segunda língua como algo que envolve a reorganização e o redesenvolvimento de
ferramentas semióticas da língua nativa para a segunda língua, através da participação
em práticas sociais. De acordo com esta visão, a linguagem emerge do engajamento em
atividades sociais e culturais e se tornam, posteriormente, internalizados (isto é,
reconstruídos internamente como processos psicológicos, por exemplo, formas de
pensar, maneiras de aprender). Estas atividades são mediadas por signos (isto é,
ferramentas semióticas) – por exemplo, elementos linguísticos e não- verbais. Conforme
tais recursos e ferramentas semióticas são reorganizados e redesenvolvidos, os
indivíduos são transformados. (tradução nossa)
405

assimilar, de forma seletiva, as palavras dos outros (BAKHTIN, 1981, p.


341).
Através de tal assimilação seletiva, buscamos no discurso do outro
aquilo que se aproxima do que pensamos, com o que nos identificamos,
para poder compor nosso discurso - da mesma forma que nos colocamos
contrários a discursos com os quais não nos identificamos.
Constituindo-se como sujeito dentro da linguagem e sendo a
linguagem dialógica por natureza, compreendemos que o sujeito é,
também, dialógico, tendo sua subjetividade constituída em função das
relações sociais que mantém e que, por sua participação ativa nas
construções de significados, não é um sujeito assujeitado, como já dito
acima, embora também não possa considerar-se independente com
relação à sociedade na qual se encontra (FIORIN, 2006). A alteridade é,
então, imprescindível no processo de constituição do eu. Tal
característica constitutiva do sujeito pode ser observada no processo de
aquisição de LM, no qual há um movimento da palavra do outro, que aos
poucos se torna palavra do outro-minha e que, com o passar do tempo,
torna-se, finalmente, palavra minha, ainda que embebida da palavra
alheia, sobre a qual meu discurso se constrói:

As influências extratextuais têm uma importância muito


especial nas primeiras etapas do desenvolvimento do
homem. Estas influências estão revestidas de palavras (ou
outros signos), e estas palavras pertencem a outras
pessoas; antes de mais nada, trata-se das palavras da mãe.
Depois, estas “palavras alheias” se reelaboram
dialogicamente em “palavras próprias-alheias” com a ajuda
de outras palavras alheias (escutadas anteriormente) e
logo se tornam palavras próprias (com a perda das aspas,
falando metaforicamente) que já possuem um caráter
criativo. (BAKHTIN, 1997, p. 385)

Tendo em vista tais considerações sobre o sujeito, vemos que a


subjetividade é, essencialmente, o que se forma na e pela linguagem e,
406

em especial, pela língua materna, à medida que o indivíduo torna-se


social dentro das relações que estabelece, em suas interações com o
outro, dentro dos discursos com os quais toma contato. É aquilo que o
sujeito assimila para si, da corrente de comunicação na qual está
inserido, adicionado de suas significações.
A subjetividade é a base das formações psíquicas desse sujeito
ativo e historicamente inscrito, possibilitada por sua entrada no mundo
simbólico da LM. Essa base psíquica é o que norteia as atividades do
sujeito e é a partir dela que se pode desenvolver diversas facetas, que
abrangem sua constituição – em constante reformulação. Tais facetas
são as identidades, e uma delas é a LE, conforme discutimos em trabalho
anterior (DEL RÉ, HILÁRIO, VIEIRA, 2012) e defendemos neste trabalho.
Considerando tais aspectos da subjetividade, no que diz respeito
à aquisição/aprendizagem de LE, acreditamos que falar seja posicionar-
se, colocando em jogo uma cultura específica. Portanto, adquirir uma
nova língua é deparar-se com uma nova ideologia. Se a língua é um
material ideológico, para adquirir uma nova língua é preciso que o
aprendiz tome contato e inicie um novo diálogo com a ideologia atrelada
a essa língua, inserindo-se, de certa forma, nela.
Tal contato traz ao sujeito novos pontos de vista, novas vozes,
levando-o a diferentes questionamentos que conduzem a uma
modificação na subjetividade do aprendiz, sem que haja, no entanto, um
apagamento da discursividade constituída na língua materna, base para
seus discursos.
Ao tomar contato com a língua alvo (LA) e, por consequência, ao
tomar contato com a nova organização por ela imposta, vê-se que a
aquisição/aprendizagem faz com que o sujeito deixe de acreditar que
existe um único ponto de vista sobre as coisas7 e uma única forma de se
encarar o mundo. Uma consequência dessa constatação se faz presente
na necessidade de adaptação do aprendiz à multiplicidade de pontos de
vista ao qual passa a ter acesso.

7 Lembramos, nesse momento, o trabalho de Revuz, 1998.


407

Tal constatação, no entanto, nem sempre é acolhida pelo aprendiz


de forma pacífica, sendo que, para alguns sujeitos, esse deslocamento
identitário, essa necessidade de adaptação, configura-se em um embate
traumático entre aquilo que se constituiu em LM e aquilo que está em
constituição na língua alvo (LA). Portanto, a maneira como o aprendiz
se relaciona com as diferentes ideologias (a ideologia da LM e a da LE)
pode prejudicar ou contribuir para o sucesso do processo de
aquisição/aprendizagem de outra língua.
Uma vez que acreditamos, para a realização da pesquisa aqui
tratada, que a aquisição/aprendizagem de uma língua estrangeira se
configura, necessariamente, em uma modificação na subjetividade do
aprendiz, considerando-o um sujeito não acabado, em constante
modificação, postulamos que, de certa forma, aprender/adquirir uma
língua estrangeira é sempre um transformar-se, em maior ou menor
grau. 8
A questão que se coloca, então, é: de que maneira e em que medida
se dá esta mudança na subjetividade do aprendiz e como ela pode ser
observada através de seu discurso?
Defendemos que é a partir do despertar da consciência através da
entrada na LM e a constituição da subjetividade dentro dessa língua que
se faz possível, depois disso, buscar novas aberturas e significações.
Uma das possibilidades que acreditamos ser aberta com essa
subjetividade é o desenvolvimento de diferentes identidades, de acordo
com as variadas relações estabelecidas pelo sujeito.
Partindo dos trabalhos do Círculo de Bakhtin (BAKHTIN, 2006;
BAKHTIN/VOLOSHINOV,1997; BAKHTIN, 1981; BAKHTIN, 1976) e das
discussões no seio do grupo que integramos GEALin (Grupo de Estudos
em Aquisição da Linguagem/FCLAr-NALingua/CNPq)9 acerca da

8 Lembramos, novamente, do trabalho de Revuz (1998), em que a autora afirma que


“aprender uma língua estrangeira é sempre, um pouco, tornar-se um outro” (p.227).
9 O grupo de estudos é coordenado pela Profa. Dra. Alessandra Del Ré e conta com a

participação de onze pesquisadores, entre graduandos e pós-graduandos do Programa


de Linguística e Língua Portuguesa da FCLAr. Os trabalhos do GEALin estão ligados ao
NALingua (CNPq).
408

questão da identidade, traçamos pontos importantes para a pesquisa


aqui apresentada e que se fazem essenciais para as reflexões levantadas
durante as análises de nossos dados. É importante lembrar, no entanto,
que o conceito de identidade está ainda em discussão dentro desse
grupo, sendo nossas colocações neste trabalho uma reflexão ainda em
constituição e, portanto, aberta a reformulações.
Tomamos a identidade como intrinsecamente ligada à
subjetividade, por dela provir. A identidade é, ao mesmo tempo, o que
identifica o sujeito com o outro, que os aproxima numa relação de busca
do sujeito por algo que o cative e que o aproxime, de alguma forma,
no/do outro, e também aquilo o que diferencia do outro, o que faz dele
um sujeito único.
Assim, tendo sua subjetividade baseada em sua língua materna, o
sujeito tem a possibilidade de permitir, como dissemos, a emergência de
diferentes facetas/identidades, que o ligam a determinados discursos
com os quais tem acesso e aos quais procura vincular-se. Acreditamos,
então, que a aprendizagem de uma LE leva ao desenvolvimento de uma
identidade diferenciada no aluno, que passa a integrar sua
subjetividade, abrangendo seus pontos de vista e compondo,
gradativamente, novos olhares sobre a realidade. Esse processo,
acreditamos, ocorre por meio de uma série de deslocamentos, os quais
definimos, conforme François (2006, 1996), como uma espécie de
liberdade discursiva, na qual ocorre um movimento de um domínio a
outro, mudança de ponto de vista, de mundo, que levam o aluno adulto
à constituição desta identidade diferenciada e, portanto, à abrangência
de sua subjetividade em constante formação.
É trabalhando com a possibilidade de levar o sujeito a encarar de
formas diferentes aquilo que anteriormente parecia mais ou menos
estabilizado por conta de seu ponto de vista, de seu domínio traçado
pela LM, que operam os deslocamentos, desestabilizando o que parecia
fixo e permitindo novas construções e relações, a partir daquilo que se
constrói na LE.
409

Portanto, acreditamos que, a partir da subjetividade de base, que


coloca o sujeito no mundo pela linguagem, abrem-se possibilidades de
novos vir-a-ser, e se torna possível a emergência de identidades, que
passam a existir devido aos deslocamentos sofridos pelos aprendizes. É
importante lembrar que a LE é apenas uma das formas de permitir que
as identidades aflorem e se tornem visíveis. E cada uma dessas
diferentes formas encaixam-se em variados formatos de interações
sociais às quais o sujeito está exposto e dos quais participa.
São essas as questões que buscamos observar e discutir no
discurso dos alunos adultos de inglês como LE.

2.COLETA DE DADOS E CONSTITUIÇÃO DO CORPUS DA PESQUISA

Para a obtenção do corpus de análise, foi proposta a realização de


entrevistas, com quatro alunos de uma escola de idiomas da cidade de
Americana (SP), no início do primeiro semestre de 2011. Um quinto
participante foi, em seguida, integrado ao grupo de alunos filmados.
Tratava-se de um aprendiz de alemão da própria escola onde realizamos
as gravações, mas que já havia passado pelo processo de aprendizagem
de inglês em outra instituição de ensino. Pensamos que a participação
desse aluno com experiências de aprendizagem de inglês distintas dos
demais – ele inclusive morou por cerca de dois anos nos Estados Unidos
– pudesse enriquecer os dados do corpus de trabalho.
A realização das entrevistas seguiu um padrão no qual os alunos,
sozinhos com a pesquisadora, na própria escola onde frequentam o
curso10, respondiam às perguntas feitas inicialmente em PB e, logo em
seguida, em inglês. As questões realizadas nas duas línguas eram
semelhantes. A intenção era que, ao responder às questões, fosse
possível flagrar diferenças entre as duas línguas no que diz respeito a

10Apenas a entrevista da aluna Vanessa (nome fictício) seguiu um padrão um pouco


diferenciado: por conta de incompatibilidade de horário com a escola, uma vez que a
aluna se deslocava da cidade vizinha até Americana para assistir às aulas, a filmagem foi
feita na própria casa da aluna.
410

subjetividade e a identidade dos alunos, principalmente em sua forma


de expressão em cada uma das duas línguas, incluindo diferenças no
aspecto gestual, que são também importantes para nossa pesquisa,
como veremos adiante.
A idade dos alunos envolvidos nessa fase da coleta dos dados
variou entre 17 e 37 anos e os participantes possuíam uma aptidão em
inglês que lhes permitia comunicar nesta língua e, ainda que de forma
simplificada, expressar suas ideias.
O corpus aqui apresentado conta, portanto, com cinco entrevistas
filmadas e transcritas com a ferramenta CHAT, no programa CLAN. Tal
programa de transcrição permite ao pesquisador alinhar o vídeo às
linhas transcritas, de forma a dar maior visibilidade aos dados
extralinguísticos presentes na filmagem, além de aumentar a
credibilidade das análises propostas pelo pesquisador, que acaba
trazendo uma carga menor de interpretações subjetivas. O programa
permite, ainda, o acréscimo de linhas de descrição da situação em que o
enunciado é produzido, linha fonética e linha de comentários do
transcritor.
Partindo das observações acerca dos dados de que dispomos,
detectamos certos elementos verbais e não-verbais, os quais
acreditamos tratarem-se de índices do deslocamento de identidade, que
acompanham o processo de aquisição/aprendizagem de uma LE. Tais
elementos são a base para a elaboração das categorias de análise
contidas na pesquisa.
Vale salientar que o contexto extra-verbal (principalmente os
gestos) é extremamente importante para a nossa pesquisa, em conjunto
com os elementos verbais, uma vez que:

[...]a entoação e o gesto são ativos e objetivos por tendência.


Eles não apenas expressam o estado mental passivo do
falante, mas também sempre se impregnam de uma relação
forte e viva com o mundo externo e com o meio social –
inimigos, amigos, aliados. Quando uma pessoa entoa e
411

gesticula, ela assume uma posição social ativa com respeito


a certos valores específicos e esta posição é condicionada
pelas próprias bases de sua existência social.
(BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1976, p.09). (grifo do autor)

Por isso, ao analisar as entrevistas dos alunos envolvidos,


buscamos observar seus gestos e demais elementos de forma a
comparar a maneira como agem quando falam LM e LE, para
percebermos, em sua fala, alguma alteração que possa ser interpretada
como um possível deslocamento identitário.
Dessa forma, ao longo das análises dos discursos filmados durante
as entrevistas dos alunos, buscamos os seguintes elementos, dentro das
categorias propostas, refletindo sobre sua relação com a emergência de
uma identidade, ligada à LA:

Elementos verbais Elementos não-verbais Aspectos discursivos


a) troca de pronomes (ele/ela a)mudança de postura, a)reconhecer em nossos
(he/she) ou você/nós características gestuais e a dados o discurso alheio
(you/we), ao invés de eu (I); maneira de se colocar ao falar sempre que possível,
uso de formas generalizantes as duas línguas;
ao reportarem-se a si
mesmos; o uso de pronomes
possessivos nessas mesmas
situações.
b)formação dos enunciados b) colocações dos alunos
sobre a LE
c) marcadores linguísticos
(né, é, sabe?, etc.)

3.CONSIDERAÇÕES ACERCA DOS DADOS

Trazemos, a seguir, recortes das entrevistas dos alunos, que


julgamos ser os mais representativos das categorias que apresentamos
no quadro acima.
412

Inicialmente, temos um excerto da entrevista de Tadeu11, 20 anos,


estudante universitário, que demonstra a troca de pronomes realizadas
pelo aluno em sua fala:

87 *OBS12: como você se sente ao falar inglês ?


88 *OBS: quando você (es)tá falando com alguém nativo ou não .
89 *STD: a:: (vo)cê se sente (vo)cê se sente bem não é .
90 *STD: sei lá .
91 *STD: eu acho que a parte mais prazelo prazerosa de se saber uma língua.
92 *STD: é conseguir falar e se comunicar .
93 *STD: principalmente sem pensar no que você (es)tá falando .
94 *OBS: aham.
95 *STD: acho que este é um ponto quando você passa a entender as coisas e a
96 fala(r) sem pensa(r) .
97 *STD: é o que significa de fato agora você (es)tá entendendo a língua.

Nesse trecho, o aluno responde à indagação feita pela


pesquisadora (que pergunta diretamente para ele, fazendo uso o
pronome “você”) utilizando-se, para se referir à sua sensação ao utilizar
a língua inglesa, o pronome de segunda pessoa, “você” – ao invés de dizer
“eu”. Vemos aí, numa interpretação desse dado, que o aluno coloca-se
em posição de distanciamento da fala outra, na outra língua (podemos
pensar na hipótese, inclusive, de um distanciamento desta sensação que
falar a LE causa).
Essa espécie de distanciamento daquilo que fala, marcada no
discurso pelo pronome de segunda pessoa “você”, ainda que esteja se
referindo a si próprio, é bastante interessante para nossa observação,
uma vez que percebemos que tais processos de trocas pronominais
podem caracterizar um tipo de deslocamento do aluno no processo de
aquisição/aprendizagem de LE, no qual ele se distancia daquilo que fala
ou das sensações que tem, no que se refere à LE. É comum, em língua
portuguesa, que os falantes utilizem formas de segunda pessoa para se
reportar a algo com distanciamento, de maneira genérica, o que viabiliza

11 Todos os nomes dos alunos citados neste trabalho são fictícios.


12 “Obs” é a pesquisadora e “STD”, o aluno.
413

tal interpretação. Acreditamos que este distanciamento inclua também


a posição do aluno enquanto alguém que, de certa forma, não quer
identificar-se com aquele enunciado, com aquela situação de fala.
No que diz respeito à formação de enunciados, trazemos o
seguinte exemplo, da fala do aluno Roger, 36 anos, contador:

259 *STU: é: I I like the United_Kingdom 'cause is a:: a country very traditional .
260 *STU: and I like of the monarchy and the lifestyle in the United Kingdom.

Aqui, o aluno utiliza, no turno 259, o verbo be, sem marcar o


sujeito gramatical da oração, padrão da língua inglesa. Logo em seguida,
vemos a formação “a country very traditional” (substantivo + adjetivo)
em sua fala, enquanto o esperado, segundo as regras de colocação do
adjetivo em inglês (a saber: adjetivo + substantivo), seria a very
traditional country. Tal fala do aluno traz a formação comum no
português, na qual utilizamos o adjetivo após o substantivo. Os demais
alunos entrevistados não utilizam essa formação, respeitando as regras
do inglês. Já Roger não segue essa norma gramatical, talvez por não se
distanciar o suficiente de sua LM no momento de sua fala.
Entendemos que tais ocorrências de estruturas comuns ao
português e que muitas vezes não existentes em inglês, encontradas,
ainda que sem muita frequência nas entrevistas, podem ser
consideradas como uma maneira de flagrar a forte presença da LM na
fala em LE. Essa presença nos remete à formação da subjetividade dos
aprendizes e deixa perceber que, embora eles permitam-se desenvolver
identidades correspondentes à LE, a LM é subjacente e reguladora de
seu funcionamento, em momentos nos quais a LE se mostra falha, de
alguma forma.
Quanto à utilização dos marcadores linguísticos, acompanhamos
a fala de Vanessa, 25 anos, estudante de direito. A entrevista dessa aluna
demonstra que é notável a diferença na frequência dos marcadores
discursivos quando a aluna fala a LM ou a LE. Ao falar português, a aluna
utiliza marcadores constantemente, chegando mesmo a colocar quatro
deles em apenas um enunciado, como vemos em sua fala no turno 125:
414

125 *STU: sabe então assim é revoltante isso eu me revolto sabe ?

O uso de mais de um marcador por enunciado é comum na fala da


aluna, durante toda a entrevista em português. Já em sua fala em inglês,
só encontramos três ocorrências do marcador “I don’t know” e uma do
marcador “é”, existente em língua portuguesa, mas não legítimo do
inglês. Tal mudança radical em sua fala pode nos indicar que, embora a
aluna se disponha a adquirir/aprender a LE, não demonstrando
barreiras a ela enquanto nova forma de conceber o mundo e a realidade
(MARCHEZAN, 2010, p. 266), o fato de ela dedicar-se tão devotamente
ao estudo formal do idioma enquanto estrutura linguística pode ter feito
com que ela se distanciasse, em certa medida, da língua falada,
impedindo, em sua fala, o uso de marcadores, mesmo aqueles da LM. A
preocupação da aluna recai sobre as formas gramaticais da língua e a
busca pela pronúncia adequada das palavras. Outra possibilidade que
vemos, nesse caso, é a de a aluna estar, ao utilizar a LE frente às câmeras,
em uma situação pouco confortável, evitando, assim, utilizar-se de tais
recursos linguísticos.
Tratando das questões não-verbais, é ainda na entrevista de
Vanessa que encontramos um exemplo representativo da maneira como
os dados gestuais podem impactar na análise de questões identitárias
na aquisição/aprendizagem de línguas. Durante toda a entrevista,
Vanessa se mostra um pouco nervosa e tímida. No entanto, ao falar
português, sua LM, a aluna não demonstra tantas hesitações. Já no início
da entrevista em inglês, coloca as duas mãos no rosto, em sinal de
vergonha e, de forma bastante interessante, muda a posição em que
estava sentada. Durante toda a entrevista em português, a aluna esteve
com as pernas cruzadas, a esquerda sobre a direita. Ao começar a falar
inglês, sua primeira reação, após tirar as mãos do rosto, é trocar as
pernas, deixando a direita sobre a esquerda.
A aluna fica nessa posição enquanto responde à primeira
pergunta, mas assim que termina sua fala, marcando que está
415

encerrando o assunto rapidamente com “that’s it”, ela descruza as


pernas e senta-se de forma mais ereta, endireitando a coluna e deixando
as pernas retas. Passa a mexer bastante com as pernas e conforme a
entrevista se desenrola, volta a cruzá-las: a direita sobre a esquerda. A
posição inicial, na qual a aluna permaneceu durante toda a entrevista
em português, não retorna até o final da entrevista.
Pensamos tal mudança de posição (das pernas, da postura) como
um dado interessante para mostrar a forma como a entrada na LE opera
mudanças no aprendiz: é como se houvesse uma espécie de preparação
para o uso da outra língua e, de alguma forma, este uso traz mudanças
na maneira de agir, sentar, se movimentar. É como se não fosse possível
continuar na mesma posição, uma vez que a língua já não é a mesma. A
postura inicial, usada em LM, não volta mais, já que a LM também não
retornou à entrevista – a não ser nas hesitações da aluna ao longo de sua
fala. Essa visão a respeito dos gestos da aluna é possível, pois, como
coloca Bakhtin/Voloshinov (1997), os gestos compõem o
posicionamento dos sujeitos com referência a certos valores e
demonstram uma relação do falante com o mundo externo e o meio
social no qual se insere. Assim, a fala em LE com a postura e gestos
diferentes daqueles utilizados em LM nos leva a compreender os
diferentes posicionamentos e relações feitos por essa aluna – e pelos
demais alunos - ao falar essa língua e, portanto, os deslocamentos
operados no aprendiz: desloca-se a visão de mundo, o ponto de vista
(FRANÇOIS, 2006, 1996) e isso pode ser visto claramente no próprio
gestual dos alunos, na forma como suas ações e gestos também se
deslocam.
Na busca pelo discurso do outro na fala dos alunos, verificamos,
na entrevista de Gilberto, 19 anos, estudante universitário, a tomada
para si do discurso de que os países falantes de inglês como LM são
consumistas, descuidados com o meio ambiente e que são
autodestrutivos. Vemos, a seguir, o aluno colocando-se como sendo
“muito brasileiro”, talvez como uma forma de justificar o “desprezo” que
alega sentir por tais países:
416

85 *STD: a primeira coisa acho que vem consumismo .


86 *STD: acho que:: é:: uma coisa que eu num gosto é o meio de vida deles .
87 *STD: e:: é: como fala o é:: a cultura deles eu não valorizo
88 tanto .
89 *STD: mas é:: em relação é:: a:: como fala cultura diferente uma
90 coisa que igual se precisar de conhecer eu gosto .
91 *STD:de viajar assim mas eu s(into) eu sinto um pouco de desprezo
92 eu acho que eu sou muito brasileiro .
93 *STD: e daí (vo)cê vê:: aqueles casos de: obesidade de:: descaso com o
94 meio ambiente que eles tem essas coisas e você já: fica meio
95 com o pé p(a)ra trás .

No que concerne à maneira como o aluno se coloca a respeito da


LE, verificamos, na fala de Roger, que o aluno, ainda que tenha
dificuldades ao utilizar a língua, declara sentir-se muito bem ao
comunicar-se em inglês:

74 *OBS: e como você se sente quando você usa o inglês na comunicação ?


75 *STU: a: eu me sinto muito bem assim porque:: ã:: .
76 *STU: é como se estivesse abrindo uma outra uma outra um outro interruptor
estivesse sendo ligado .
77 *STU: assim um outro um portal (es)tivesse se abrindo também para um outro
mundo assim .
78 *STU: porque é outra coisa é outra realidade .
79 *STU: é: parece aqui até eu (es)to(u) falando da minha viagem mas não .
80 *STU: mesmo antes .
81 *STU: falando outra língua eu quando (es)tou(u) falando inglês .
82 *STU: é:: é como se eu me teletransportasse p(a)r(a) um outro lugar estando aqui
83 *STU: seriam as dimensões paralelas eu (es)to(u) em duas dimensões ao mesmo
tempo.

O trecho acima traz noções interessantes sobre como o aluno


encara a LE e a forma como, para ele, falar esta língua modifica seu ponto
de vista – e opera os deslocamentos identitários dos quais tratamos
neste trabalho. Assim, a partir do turno 76, o aluno compara a LE com
“um outro interruptor” que é ligado, um portal “se abrindo também para
outro mundo”, é “estar em duas dimensões ao mesmo tempo”. Falar uma
417

LE, para ele, é entrar em uma outra realidade, tal como tratamos nessa
pesquisa, pois consideramos, assim como Bakhtin e Medvedev, que a
língua seja um recorte da realidade (MARCHEZAN, 2010, p. 266) e,
assim, ao aprender uma LE, aprendemos também a visão de mundo
recortada por tal língua. No turno 79, o aluno refere-se à viagem que fez,
no início de 2011, para a Inglaterra e sobre a possibilidade de essa
consideração de dois planos distintos relacionar-se com a viagem, mas,
no turno 80 ele já esclarece que isso ocorria mesmo antes, quando ainda
não havia visitado outro país.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste trabalho, discutimos, a partir da perspectiva


bakhtiniana de estudos e em um viés discursivo, questões relativas aos
conceitos de subjetividade e identidade, pensados para melhor
compreensão dos processos atravessados pelos alunos adultos de língua
estrangeira.
Assim, considerando que os alunos, para inserirem-se no recorte
ideológico trazido pela LE, passam por uma série de deslocamentos
identitários, que proporcionariam mudanças na subjetividade do
indivíduo, constituída continuamente em sua LM.
Para ilustrar tais reflexões, trouxemos exemplos da fala de alunos
de inglês com LE, levantando, a partir deles, elementos verbais e não-
verbais que nos fizessem perceber os deslocamentos atravessados pelos
alunos. Com tais análises, foi possível verificar que é consistente a
hipótese inicialmente lançada de que, ao entrar em contato com uma
língua estrangeira, são operadas mudanças de caráter identitário e
subjetivo nos alunos.
418

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes,


2006.
______. (V. N. Volochinov, 1929). Marxismo e filosofia da linguagem.
São Paulo: Huitec, 1997.
______. The dialogic imagination (M. Holquist, Ed., C. Emerson & M.
Holquist, Trans.). Austin: University of Texas Press, 1981.
______. Discurso na vida e discurso na arte (1926). Trad. Inédita de
Cristovão Tezza do artigo “Discourse in Life and Discourse in Art”,
publicado como apêndice in: Voloshinov, V.N. Freudianism: a marxist
critique. New York: Academic Press, 1976.
BERNSTEIN, B. Aspects of Language and Learning in the Genesis of the
Social Process. In: HYNES, D. Language in culture and society. N.Y.
Harper, 1966.
CHOMSKY, N. A review of B. F. Skinner’s Verbal Behavior. Language, 35,
n.1, 1959.
DEL RÉ, A., HILÁRIO, R. N., VIEIRA, A. J. Subjetividade, individualidade e
singularidade na criança: um sujeito que se constitui socialmente.
Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, v.7, p.57 - 74, 2012.
FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática,
2006.
FRANÇOIS, F. O que nos indica a “linguagem da criança”: algumas
considerações sobre a “linguagem”. In: DEL RÉ, A. Aquisição da
linguagem: uma abordagem psicolinguística. São Paulo: Contexto,
2006.
______. Práticas do oral. Trad. de Lélia Erbolato Melo. São Paulo: Pró-
Fono, 1996.
GUEDES EVANGELISTA, M. C. R. A modalidade em redações escritas
por aprendizes brasileiros de alemão. Tese (Doutorado em Língua e
Literatura Alemã). Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas,
USP, São Paulo, 2003.
419

HALL, J. K.(Ed.). Dialog with Bakhtin on second and foreign language


learning: new perspectives. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates,
2005.
LIGHTBOWN, P. and SPADA, N. How languages are learned. Oxford,
OUP, 2006.
MACWHINNEY, B. The CHILDES Project: Tools for analyzing talk. Third
Edition, Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum Associates, 2000.
MARCHEZAN, R. C. “Diálogo”. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: outros
conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2010, p.115 - 131.
OCHS, E.; SCHIEFFELN, B. B. Language Socialization across cultures.
CUP, 1999.
POSSENTI, S. Os limites do discurso. Curitiba: Criar edições, 2004.
REVUZ, C. A língua estrangeira entre o desejo de um outro lugar e o risco
do exílio. In: SIGNORINI (org.). Língua(gem) e identidade. Campinas:
Mercado das Letras; São Paulo: FAPESP, 1998, p. 213-230.
VYGOTSKY, L. A formação social da mente. 7ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
______. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
420

A FLUÊNCIA EM L2 SOB A LUZ DA HIPÓTESE DO PERÍODO CRÍTICO

Francisco das Chagas de Sousa

RESUMO: Buscamos neste artigo desenvolver um estudo das


abordagens teóricas sobre a HPC, a saber: A concepção do período de
maturação do cérebro proposto por Lennennberg (1967); da noção de
período apropriado para aquisição conforme Pinker (2002), dos
estudos sobre a influência da idade na aquisição de L2 na visão de
Newport (1990) e Newport e Johnson (1999). O objetivo central deste
trabalho é discutir as bases teóricas que fundamentam a HPC para a
aquisição da linguagem, bem como utilizá-las como suporte para a
transcrição e análise dos dados, visando investigar uma possível
correlação entre idade para a aquisição e fluência em L2. Propomos uma
avaliação do nível de fluência em L2 para realizar inferências
relacionadas à hipótese proposta. As análises realizadas sobre o corpus
mostraram um nível avançado de fluência pela informante tendo
adquirido a L2 dentro do período proposto pela HPC, o que nos permitiu
inferir a existência de uma correlação entre a idade de recepção de
estímulo e o seu nível de fluência em L2, confirmando a hipótese de
pesquisa.

PALAVRAS-CHAVE: hipótese do período crítico, aquisição da


linguagem, primeira língua, segunda língua, língua estrangeira.

ABSTRACT: This article brings a developmental perspective to the


ongoing study of theoretical approaches about HPC: the conception of
the period of maturation of the brain proposed by Lennennberg (1967);
the concept of appropriate period for acquisition as Pinker (2002),
studies on the influence of age on the acquisition of L2 acoording to
Newport (1990) and Newport and Johnson (1999). The central purpose
of this research article is to discuss the theoretical foundations of the
HPC for the acquisition of language, as well as how to use them as
421

support for the transcription and analysis of the data, in order to


investigate a possible correlation between age for acquisition and
fluency in L2. We propose an assessment of the level of fluency in L2 to
perform inferences related to hypothesis proposed. The analyzes
carried out on the corpus showed an advanced level of fluency by the
informant who has acquired the L2 within the period proposed by the
HPC, which has enabled us to infer the existence of a correlation
between the age of reception of stimulus and her level of fluency in L2,
which has confirmed the hypothesis of research.

KEYWORDS: The critical period hypothesis, language acquisition, first


language, second language, foreign language.

INTRODUÇÃO

É de consenso geral nas sociedades, independente de seu nível


cultural ou econômico, a importância do aprendizado de outra língua.
Este fato está comprovado pela inclusão de uma ou mais línguas no
currículo do ensino regular das escolas públicas brasileiras (ALMEIDA
FILHO, 2013).
A questão da “fluência” tem sido recorrente com frequência em
diversas áreas do conhecimento. Na Linguística e na Fonoaudiologia, ela
ocupa uma posição marginal, ao passo que no aprendizado da LE situa-
se num lócus privilegiado: considerada como quesito necessário para
detectar o nível de proficiência dos aprendizes. Sendo assim, é ponto
pacífico considerá-la mais como uma habilidade, dotada de vários
componentes sujeitos a desvios, do que a um conhecimento linguístico.
Logo, isto não quer dizer que o último não exerça influência na
performance da fluência (MERLO, 2006).
Em seu trabalho, Merlo (2006) elencou com possíveis
componentes característicos da fluência: 1- baixa freqüência de
hesitações; 2- baixa freqüência de reformulações; 3 - baixa freqüência,
curta duração e uso nativo de pausas silenciosas fluentes; 4 - taxa de
422

elocução confortável; 5 - Facilidade de emissão; 6 - habilidade


gramatical; 7 - diminuição da complexidade semântica.
No presente objeto de estudo, investigamos a incidência de pausas
e suas possíveis implicações na avaliação da fluência. Tendo por base os
pressupostos de Merlo (2006), as pausas, conforme este autor, tanto as
silenciosas quanto as preenchidas podem ser consideradas como
fluentes ou hesitativas. Já Cagliari (1992, apud ALMEIDA, 2009, p. 168),
entende por pausas fluentes aquelas que emergem em momentos
oportunos, geralmente ao final de construções de orações/frases,
sintagmas e palavras. Por outro lado, as pausas hesitativas ou
disfluentes, por sua vez, não obedecem a este princípio, sendo que se
originam de uma reorganização do processo de produção da fala.
A hipótese do período crítico (doravante HPC) para aquisição da
linguagem está fundamentada na consideração da linguagem como
faculdade biológica e de uma consideração de desenvolvimento de
caráter naturalista. Enquanto faculdade biológica está sujeita a um
período de maturação cerebral, processo esse dividido em etapas, que
poderemos resumir em início, meio e fim. Postula-se o período meio
como o ótimo para aquisição, bem como o período denominado fim no
qual o indivíduo sofre uma perda significativa desta capacidade.
No presente estudo, dialogaremos com proeminentes bases
teóricas que têm sido utilizadas com a finalidade de dar suporte à
hipótese da HPC para a aquisição da linguagem, bem como, por meio
delas, realizar análise de dados de transcrição oral com vistas a
investigar uma hipotética correlação entre idade de aquisição da língua
e nível de fluência em L2.
A hipótese projetada foi que se o indivíduo estiver enquadrado no
período de maturação cerebral considerado ótimo para a aquisição da
linguagem e tiver recebido o estímulo para aprendizagem em L2, o
mesmo adquirirá uma fluência equivalente aos falantes maternos desta
língua.
Dessa forma, a análise qualitativa das pausas como indicador de
fluência se tornou viável para sustentar os argumentos em favor de um
423

período crítico, creditando ao mesmo a razão das evidentes diferenças


linguísticas encontradas em indivíduos que adquiriram a L2 durante e
após tal espaço biológico temporal.

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

Uma breve revisão da caracterização de segunda língua


(doravante L2) e de aquisição, neste nível do presente artigo, nos parece
oportuna e viável para elucidar esse conceito. Sendo assim, neste
trabalho consideraremos a L2 como sendo a língua a qual foi aprendida
após a aquisição da língua materna (ou primeira língua – L1), termo que
se apresenta de forma mais ampla na visão de Mitchell e Myles (1998).
Para o autor, esse conceito abrange quaisquer línguas que não sejam a
materna (nativa do indivíduo), incluindo também as línguas
estrangeiras (LE).
Com respeito à aquisição da linguagem concordamos com
Krashen (1987), que a descreve como um processo desempenhado pelo
indivíduo de forma inconsciente, subconsciente ou intuitiva num
ambiente contextual não formal, sem a voluntária observação de regras
e sem perceber a sua absorção a cada uso. Tal concepção se opõe ao
aprendizado, o qual ocorre em ambiente formal (escolar) e com a
percepção consciente das regras.
Conforme Santana (2004), a hipótese da existência de um período
crítico para a aquisição da linguagem (HPC) já tem sido objeto de
estudos desde 1915 através de Hughlings-Jackson, ao afirmarem que o
processo da aquisição devia se dar nas mais tenras idades, sob o risco
do desenvolvimento ser prejudicado de forma permanente.
Dentre os principais pressupostos da HPC, podemos considerar: a
crença em um desenvolvimento maturacional das estruturas neurais e
em um input, o qual tem um papel fundamental na modelagem dessas
estruturas. Assim, estando o sistema neural não maduro um adequado
input linguístico determinará o seu desenvolvimento para as
habilidades comunicativas, ao passo que após sua completa maturação,
424

tal input não teria mais influência, causando um óbice à aquisição da


linguagem (SANTANA, 2004).
No entanto, as mais proeminentes teorias sobre a HPC não
chegaram a um consenso com relação ao início, meio e fim deste
período. Para Lenneberg (1967), um dos precursores desta hipótese,
bem como para Newport (1990) e Newport e Johnson (1999), a época
oportuna para a aquisição da linguagem expira ao início da puberdade.
Conforme Lenneberg, a habilidade para aquisição não estaria
disponível antes de um determinado nível de maturação, a qual seria
atingida na idade entre 2 e 3 anos e que a mesma ficaria disponível,
porém em uma progressão descendente até a sua extinção ao início da
puberdade. Uma das explicações dessa limitação pode ser creditada à
lateralização cerebral proposta por Lennenberg, conforme Ferrari
(2007):

“[...] o hemisfério esquerdo, que está ligado ao


desenvolvimento das funções da linguagem, por falta de
uso na infância, sofre uma “atrofia funcional”. Dessa forma,
os adolescentes, ao adquirem a língua materna depois
desta fase, passam a utilizar o hemisfério que não está
capacitado para as funções da linguagem – o direito. Esses
dois hemisférios passam a trabalhar separadamente. O
funcionamento do hemisfério próprio, predisposto à
aquisição da língua no seu estágio apropriado de
maturação, está condicionado à tabela do crescimento
físico.”

Também adepto da influência da idade maturacional, Pinker


(1994) defende a idéia que a aquisição da linguagem teria seu processo
normal ocorrendo até a idade de 6 anos, tem um comprometimento
entre esse tempo e antes da puberdade e tem ocorrência rara após esse
período. O autor atribui influência do processo de maturação do cérebro
que vem acompanhada de redução metabólica, neuronal e sináptica.
425

METODOLOGIA

A pesquisa desenvolvida tem caráter qualitativo e interpretativo


conforme Denzin & Lincoln (2006), na qual podemos observar os
significados e as interpretações emergindo a partir do ambiente
contextual da entrevista de pesquisa. Assim, partindo do ambiente
natural como local de origem dos dados, os mesmos foram produzidos,
em sua maior parte, descritivamente sem priorização da busca pela
comprovação da hipótese inicial, e finalmente com as abstrações
observadas através da análise dos dados.
A pesquisa contou com informante do sexo feminino, com idade
de 12 anos, cursando o 7° ano do ensino fundamental regular, nascida
no interior da Espanha. O idioma espanhol foi o primeiro e único que a
informante teve contato até o momento da sua imigração para o Brasil,
especificamente em João Pessoa-PB, quando ela ainda tinha 9 anos de
idade.
O corpus sob análise foi obtido através de uma entrevista realizada
na residência da informante, no dia 13 de junho de 2013, e teve a
duração de 8 min e 09s. O ambiente amistoso e natural foi marcado pela
interação entre entrevistador e entrevistada, onde a mesma verbalizou
sobre a sua vivência escolar e sobre sua vida antes e após a sua
imigração.
Com o objetivo de analisar as pausas realizadas pela entrevistada
ao longo de seu percurso oral, a entrevista foi, inicialmente, armazenada
através de equipamento eletrônico: um gravador de áudio e, em seguida,
foi transcrita levando em consideração os critérios que julgamos
relevante para a descrição e análise dos dados. Assim, salientamos as
pausas ocorridas e as classificamos com relação à sua duração, bem
como assinalamos as incompreensões na fala, reparos e
prolongamentos. Para tanto, utilizamos o referencial defendido por
Schoffen (2003), o qual adotamos nas transcrições conforme a
simbologia elencada abaixo.
426

(.) pausa curta, com duração de até um segundo;


(...) pausa longa, com duração até três segundos;
(0.0) tempo da pausa longa, com duração a partir de 3 segundos;
(?) incompreensão na fala;
/ indicador de corte ou reparo durante a fala;
: indicador de alongamento.

Com o intento de instrumentalizar a análise dos dados, utilizamos


os descritores apresentados por Schoffen(2003) para que, assim,
pudéssemos detectar uma acareação do nível de proficiência em língua
portuguesa, os quais selecionamos apenas a subcategoria “fluência”.
Através dos descritores, pudemos observar a fluência em três níveis, a
saber: avançado, intermediário e sem certificação. O referido estudo
apresenta para cada um destes níveis de fluência as seguintes
características:

“[...] Certificado Avançado [...] > Pausas e hesitações para


organização do pensamento e, eventualmente, para
resolver algum problema de construção lingüística, sem
interrupções no fluxo da conversação. [...]
[...] Certificado Intermediário [...] > Pausas e hesitações
para organização do pensamento e, mais frequentemente,
para resolver problemas de construção lingüística, com
algumas interrupções no fluxo da conversação. [...]
[...] Sem Certificação [...] > Pausas e hesitações freqüentes
interrompem o fluxo da conversação. [...]” (SCHOFFEN,
2003, p. 37)

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DE RESULTADOS

Após a transcrição e a devida evidência colocada para a variável,


objeto de análise, vamos a observação dos dados, conforme abaixo,
tendo como E (entrevistador) e I (informante):
427

1. E: como é o teu nome?


2. I: completo?
3. E: sim
4. I: vou dizer bem devagar porque ele é beeem complicado (.) Mihaela Cláudia
5. Cinstitu Gomes
6. E: você sabe a origem do nome “Mihaela”?
7. I: sei (.) pela metade, mas algumas coisinhas (..) eu só sei que (.) Mihaela (.) e
8. Cinstitu são nomes romenos (.) porque o meu pai é lá da Romênia, aí ele escolheu
9. o nome Mihaela pra mim (.) e o Cinstitu é o sobrenome dele (..) eu só sei que essa
10. é a origem de lá
11. E: ok (.) qual o nome do seu pai?
12. I: Mihai Cinstitu
13. E: hum (.) muito bem
14. I: é quase (.) o meu nome, né? Mihai, Mihaela
15. E: o nome Mihaela é comum, na Romênia?
16. I: ist-daí eu não sei
17. E: qual a tua idade?
18. I: eu tenho doze anos
19. E: há quanto tempo você está morando no Brasil?
20. I: Vô/Vou completar esse ano, já uns quatro anos mas (.) contando de hoje eu
21. tenho uns três anos e uns (..) alguns quatro cinco meses já
22. E: o que você acha da tua vida aqui no Brasil?
23. I: ah ela é bem legal (..) porque tem praia perto (.) aqui um país beem
24. diversificado, né, porque na Espanha uma coisa (..) tem paisagens (?) mais rurais
25. e urbanas igualmente, ou seja, cinqüenta por cento do que eu via era urbano,
26. cinqüenta por cento rural, mas aqui no Brasil já (.) tem (.) tem uma quantidade
27. de/de zonas urbanas mais do que a rural, mas o que eu gosto mesmo do Brasil é a
28. biodiversidade que ela tem (.) a as frutas que são m/muito raras lá na Europa que
29. são muito caras (.) eu amo as frutas aqui do Brasil, ou seja, eu amo tudo, eu só
30. não amo (.) a política que tem (..) eu detesto
31. E: falando sobre (.) os detalhes da tua vida escolar, como é o seu relacionamento
32. com os seus colegas de sala e com os teus professores?
33. I: com meus professores (.) é ótimo né? (.) a gente se relaciona (.) é: como amigos
34. mesmo com meus professores a gente se aciona ou seja se tô com dúvida (.) eu
35. pergunto (.) mas como eu estudo na escola de Estado é muito (.) difícil de se ter
36. uma (.) relação (.) instantemente com professores por causa que (.) mudam de
37. professor (.) saem professor botam um novo (.) com/com pros novos professores eu
38. tenho mais dificuldade de me relacionar a eles, por causa que (.) eu tenho que
39. conhecer eles melhor (3) também (.) com os professores já que eu conheço já faz
40. um ou dois anos eu me relaciono perfeitamente (.) já com os meus colegas que vem
428

41. novatos já (.) na verdade a relação (.) ela é boa e ela é média, porque (..) é uma
42. escola de Estado (.) primeiramente e ainda mais os alunos de lá, eles não são ton
43. disciplinados como os alunos que tem lá na Europa, ou seja, eles falam de
44. qualquer maneira com os professores, desrespeitam os professores, fazem bagunça
45. (.) tem uns que já são mais calmos (.) que eu já sou mais amigos deles, ou seja,
46. esses que são (.) esses tipos de maloqueiros (.) como eu falo (.) meio doidos, eu não
47. me relaciono com eles (.) eu fico distante (.) pá: essa energia que eles trazem pras
48. pessoas (.) eles não me contagiarem (..) já essas pessoas (.) que elas tem um:
49. estudo bom, eu já me rela/relaciono mais com elas (.) e meus amigos já melhores
50. eu já fico com eles (.) então essa é a minha re/relação boa e média (.) boa por
51. causa dos meus amigos (.) e média (.) por causa (.) desse assunto de alunos não
52. interessados em estudo
53. E: como é que você se vê tendo, nascida na Espanha, aos 9 anos vindo para o
54. Brasil, você tendo essa dupla cidadania, como é que você se enxerga dentro desse
55. contexto?
56. I: bom (.) eu me acho o máximo (..) porque (.) aqui no Brasil quando eu cheguei o
57. povo dizia “olha ela é da Espanha (.) fala em espanhol pra mim (.) como é lá?
58. você sente falta de lá? como é? é igual aqui? lá tem isso? tem manga? tem esse
59. certo tipo de árvore aqui? tem esses bichos?” não, não tem (.) digo bem (..). aí
60. também na Espanha (.) quando meu/meus amiguinhos também sabiam que a minha
61. mãe era brasileira (.) eles “menina eu quero conhecer a tua mãe (.) como é (.)
62. lá?, tu/tu já foi no Brasil? lá é bonito? que é que tem lá?” disse eu não sei o que
63. tem lá (.) quem sabe é a minha mãe (..) aí a minha mãe ficava sorrindo de mim por
64. causa que (.) diziam/eu dizia pra ela que queriam conhecer ela (.) que era saber de
65. tudo dela (.) como era lá (.) se era bonito ou não
66. E: o que você fazia na Espanha que você não faz no Brasil hoje e vice-versa?
67. I: como assim vice-versa?
68. E: uma coisa que você fazia na Espanha que você não consegue fazer no Brasil e
69. ao contrário, uma coisa que você faz aqui no Brasil que você não fazia na
70. Espanha.
71. I: bom (.) vou dizer di/do meu jeito mesmo (.) eu não vou fazer desse/desse jeito
72. que você explicou não (.) bom o que eu fazia lá na Espanha (.) era um roteiro bem
73. diferente do/do que aqui no Brasil (.) por que lá a minha mãe/meu pai tinha mais
74. condições financeiras né (.) aí a gente às vezes ia no final de semana (.) ou nos
75. dias de semana (.) a gente ia (..) pro Shopping (.) fazias umas compras (.) as vezes
76. a gente (.) eu ia até de viagem com o meu pai (.) é: por causa que ele (.) era
77. caminhoneiro (..) aí ele importava vários produtos, ou seja, da França para
78. Alemanha (.) aí eu viajava junto com ele o tempo todo (..) aí é (.) eu isso o que eu
79. fazia com o meu pai era impossí/é impossível fazer aqui, por causa que ninguém
80. aqui (?) caminhoneiro e ninguém nem vai pra fora do país (.) lá meu pai sim (.) aí
81. eu conheci lá França (.) Alemanha (.) é: o que mais (..) é: (4) na verdade eu acho
429

82. que eu conheci já quase a metade da Europa, né (.) eu fui pra (..) Suíça, fui?
83. Sué/Suíça (.) eu fui (.) pra perto da (.) Noruega (.) eu fui (..) em Dinamarca (..)
84. hum esses países assim né? mas os países que eu fu(?) mais (.) foi na França e
85. Alemanha (.) foi os países que eu mais freqüentei (..) na verdade é isso que eu não
86. consigo fazer aqui no Brasil (..) já no Brasil o meu roteiro já é diferente (.) é um
87. roteiro já (..) de (.) um/uma (.) um desenvolvimento artístico meu, ou seja, todos os
88. dias eu vou para o Espaço Cultural pá poder ter as minhas aulas de música (.) pá
89. poder eu ter um futuro, né, brilhante (.) aí sempre recebo elogios das pessoas (.)
90. dos professores (.) também, eu chego em casa (.) muito tarde né, às vez quando a
91. gente volta de ônibus (.) aí a gente quando a minha mãe tem, um dinheirinho extra
92. a gente sai pá ir pu cinema (.) comprar algumas coisinhas (.) isso

A partir dos relatos da entrevistada, verificamos que a informante


contribuiu, positivamente, no desenvolver da entrevista, inclusive para
a compreensão do entrevistador (linhas 4 e 5). Numa visão superficial,
percebemos através das respostas da informante que houve uma
compreensão perfeita das perguntas que lhe foram postas. Houve uma
participação ativa por parte da entrevistada que não limitou seu
discurso, surpreendendo-nos com o seu rico conhecimento do léxico,
bem como sua compreensão geográfica e política geral (linhas 23 a 30).
A entrevistada apresentou durante todo o experimento fluência
em língua portuguesa, não realizando pausas que provocassem a
interrupção do discurso com o objetivo de buscar vocábulos, nem tão
pouco que interrompesse o fluxo do que estava sendo dito. Os poucos
equívocos lexicais e gramaticais, conforme os observados nas linhas 23,
28 e 37, são passíveis de serem atribuídos à sua idade e nível de
escolaridade. Porém, esses elementos não são objetos da análise do
presente estudo. Tais resultados permitiram que a entrevistada fosse
classificada, segundo o descritor de fluência do Celpe-Bras por Schoffen
(2003), como de nível avançado, no qual as pausas e hesitações
observadas estão dentro da normalidade e são inerentes ao fluxo da
conversação.
430

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados apresentados corroboram com a hipótese inicial, na


qual o aprendizado de uma segunda língua dentro do período crítico de
aquisição da linguagem está positivamente correlacionado ao nível de
fluência por parte do aprendiz.
Com base nos resultados elencados acima, sugere-se que o ensino
de segunda língua seja proposto às crianças ainda no ensino regular
desde as séries iniciais, para um melhor aproveitamento e
desenvolvimento desta janela de habilidades, a fim de que o nível de
aprendizado do falante se aproxime ao de um nativo daquela língua.
Apresentamos as limitações deste estudo em forma de sugestão
para estudos futuros, sendo a primeira, a investigação de indivíduos que
iniciaram a aquisição de L2 após o período crítico, tanto para maior
investigação da HPC quanto para a consolidação dos resultados do
presente estudo. Como segunda sugestão, o desdobramento deste
estudo com um número maior de informantes, uma vez que quanto
maior o seu número, maior é o valor metodológico, confiança e validade
que o estudo terá.

BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA FILHO, J. P. O ensino de português como língua não


materna: Concepções e contextos de ensino. Museu da Língua
Portuguesa. Disponível em: <http://www.museulinguaportuguesa
.org.br/files/mlp/texto_4.pdf>. Acesso em: 18 Jun. 2013.
ALMEIDA, V. B. Pausas preenchidas e domínios prosódicos: Evidências
para a validação do descritor fluência em um teste de proficiência oral
em língua estrangeira. Alfa, v. 1°, n. 53, p. 167-193, 2009.
DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. Planejamento da pesquisa qualitativa –
teorias e abordagens. Porto Alegre: Artmed, 2006, p.367 - 388.
Ferrari, M. A hipótese do período crítico no aprendizado da língua
estrangeira analisada à luz do paradigma conexionista. 2007. Tese
431

(Doutorado em Linguística) – Faculdade de Letras, Pontifícia


Universidade CAtólica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007.
KRASHEN, S. D. Second language acquisition theory. Tradução inédita de
J. C. P. Almeida Filho (mimeo). In: Krashen, S. D. Principles and Practice
in Second Language. 1. ed. Londres: Prentice Hall International (UK),
1987.
Lenneberg E. H. Biological Foundations of language. New York: John
Wily & Sons; 1967.
MERLO, S. Hesitações na fala semi-espontânea: análise por séries
temporais. 2006. 218 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) –
Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade de Campinas,
Campinas, 2006.
MITCHELL, R.; MYLES, F. Second language learning theories. London:
Arnold, 1998.
Newport E, Johnson JS. Critical period effects in second language
learning: the influence of maturational state on the acquisition of
english as a second language. Cognit Psychol 1999; 21:60-99.
Newport E. Maturacional constraints on language learning. Cognit
Sci 1990; 14:11-28.
PINKER, S. The language instinct. Boston: MIT Press, 1994
SANTANA, A. P. Idade crítica para aquisição da linguagem.
Distúrbios da Comunicação, n. 16, p. 343-354, 2004.
SCHOFFEN, J. R. Avaliação de proficiência oral em língua
estrangeira: Descrição dos níveis de candidatos falantes de
espanhol no exame Celpe-Bras. Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre, 2003. (Dissertação de Mestrado)
432

A AQUISIÇÃO DA ESCRITA COMO MOVIMENTO DO SIMBÓLICO

Magda Wacemberg Pereira Lima Carvalho1


Glória Maria Monteiro de Carvalho 2

RESUMO: Este estudo propõe-se compreender o funcionamento e


movimento da estrutura da escrita em crianças recém-inseridas no
universo simbólico, para isso, refletiu-se sobre o processo de Aquisição
da Linguagem a partir de pesquisas filiadas à Linguística, ressignificada
pela Psicanálise Lacaniana, adotando, assim, os textos de Cláudia de
Lemos (1992 e 1995) e Sonia Borges (2006 e 2010). Para esta análise
foram selecionados dois textos produzidos por uma criança de quatro
anos, que conhece as letras, mas não as fonetiza. Percebeu-se, numa
escrita espontânea, que a criança, ainda não alfabetizada, mas que (re)
conhece as letras do alfabeto, escreve a partir de uma cadeia de
significantes, entrando, dessa maneira, no movimento do simbólico e
dando sentido ao Outro, ao funcionamento linguístico-discursivo.

PALAVRAS-CHAVE: Aquisição da linguagem, Interacionismos,


Aquisição da Escrita.

ABSTRACT: This study proposes to understand the operation and


movement of the structure of writing in newcomer children to the
symbolic universe, for this, it was reflected on the Language Acquisition
process from the research affiliated to the Linguistics resignified by
Lacanian Psychoanalysis, adopting, thus, Claudia de Lemos (1992, 1995)
and Sonia Borges’ (2006, 2010) texts. For this analysis, two texts
produced by a four year old child, who knows the letters, but doesn’t
know their sounds, were selected. It was noticed, in a spontaneous

1 Mestranda do Mestrado em Ciências da Linguagem da Universidade Católica de


Pernambuco. E-mail: magdapcarvalho@hotmail.com
2 Professora pesquisadora do PPG em Ciências da Linguagem da Universidade Católica

de Pernambuco. E-mail: gmmcarvalho@uol.com.br


433

writing, that the child, not literate yet, knows the alphabet letters, and
writes from a chain of signifiers, entering, this way, the movement of the
symbolic and giving meaning to the Other, to the linguistic-discursive
operation.

KEYWORDS: Language Acquisition, Interactionisms, Writing


Acquisition.

SUJEITO E ESCRITA

A relação sujeito-escrita está marcada pela inserção do homem no


universo simbólico, em que o sujeito é um lugar de significação
historicamente constituído, prova disso é o fato de que os mais diversos
eventos sociais requerem inscrições na escrita.
Segundo Olson (1994), na história da escrita, é revelado que
representações gráficas como marcas numéricas e desenhos já eram
empregados no dia a dia de povos do neolítico. Essas representações
evoluíram conforme a exigência do novo perfil de sociedade, a qual
passou a usar sinais geométricos para indicar propriedade, além de
outros códigos gráficos como bastões entalhados, cordões com nós,
emblemas, selos, postes totêmicos, escudos de armas, estandartes e
sinais religiosos.
Olson (1994), afirma que a evolução da escrita iniciou-se

com a escrita pictórica que expressava as ideias


diretamente, seguida pelos sistemas de escrita baseados
em palavras, depois pelos sistemas silábicos, inclusive os
silabários sem vogais, isto é, os sistemas apenas
consonantais, e terminando com a invenção do alfabeto
pelos gregos. (OLSON, 1994, p. 82-83)

Diante dessa evolução, os sistemas de escrita, que antes


representavam “coisas” que se transformavam em signos, passaram dos
ideogramas aos fonemas numa tentativa de chegar a um sistema de
434

escrita que representasse, de acordo com Olson (1994), explícita e


adequadamente as práticas orais.
Nessa concepção, escrita como representação da oralidade, várias
teorias foram formuladas ao longo do tempo a fim de compreender
como se dá a inserção do sujeito na linguagem – oral e escrita - e de como
as revoluções conceituais, no campo da linguagem, têm provocado
mudanças no funcionamento da fala e da escrita.
Para uma aproximação à pesquisa do processo de aquisição da
linguagem escrita, na contemporaneidade, faz-se necessário entender,
nos estudos postulados pela teoria construtivista e pelo interacionismo
dialógico, como ocorre o fenômeno da aquisição da escrita.

AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM

No processo de aquisição da linguagem escrita, teorias sobre


alfabetização, filiadas à filosofia clássica, têm compreendido a escrita,
segundo Borges (2010), como representação gráfica da linguagem oral.
Dentre essas, destacam-se as propostas fundamentadas nos estudos de
Jean Piaget que, aportado na Psicologia Cognitiva, postula princípios de
uma teoria do desenvolvimento, onde a noção de representação ocupa
lugar importante na Aquisição da Linguagem.
Nessa perspectiva, a alfabetização consiste, de acordo com Borges
(2010), no processo cognitivo necessário à construção conceitual da
escrita, onde a língua escrita é concebida como objeto de conhecimento
pertencente a um sujeito epistêmico que “reconstrói as concepções [...]
sobre determinados objetos” (REGO, 1994, p. 20), desempenhando,
assim, um papel ativo no aprendizado.
Filiada à psicologia cognitiva está a pedagoga e psicóloga
argentina Emília Ferreiro, que também compreende a escrita como
representação da oralidade. Nesse entendimento, Ferreiro leva,
consoante Borges (2010), para o campo da alfabetização algumas
questões levantadas por Piaget, dentre elas, como a criança chega a
435

dominar as técnicas e procedimentos para agir e construir os objetos de


conhecimento.
Ferreiro (1985) se interessa, dessa forma, em “compreender as
estruturas que são ativadas para a assimilação das regras de composição
da escrita” (BORGES, 2010, p. 87), para tanto, suas investigações
consistem em saber o que a escrita representa e como representa. Em
seu trabalho Psicogênese da Língua Escrita (1985), Ferreiro assinala
que a partir do momento em que a criança é inserida no processo de
alfabetização, ela passa por diferentes fases da escrita, desde a
dificuldade de relacionar letras e sons (pré-silábica) até o domínio da
correspondência entre fonemas e grafemas (alfabética). Diante disso,
Ferreiro (1985) passa a entender que o processo de alfabetização se
constrói progressivamente numa correspondência grafofônica, termo a
termo, cabendo à criança construir o objeto da escrita como uma
representação da linguagem oral.
Diante desta concepção de aquisição da linguagem, os
experimentos desenvolvidos por Ferreiro, embora se apresentem, para
Borges, como um não reconhecimento da sistematicidade da língua,
suscitam-lhe algumas questões, como por exemplo, o fato de que a
criança ao construir encadeamentos de letras, busca reconstruir os
critérios formais de composição da palavra escrita por meio de uma
correspondência termo a termo. Tal fenômeno, no entendimento de
Borges, “indica que o ‘objeto-escrita’ já saiu de uma evanescência
puramente imaginária para a organização simbólica da escrita”
(BORGES, 2010, p. 94), o que faz essa autora recorrer ao trabalho
desenvolvido, no início da década de 1990, por Cláudia de Lemos, cuja
questão central consiste em compreender, através da Linguística
ressignificada pela Psicanálise, a sistematicidade e o funcionamento da
língua na criança.
Mediante a perspectiva teórica, Interacionismo Dialógico,
postulada por Lemos, Borges assinala que a “constituição do ‘objeto-
escrita’ na criança se dá na passagem pela escrita do Outro, pela via do
‘espelho’, ou seja, das apropriações e capturas significantes” (BORGES,
436

2010, p. 99), proporcionada pelo outro (semelhante) quando coloca a


criança em situações de leitura e escrita de textos, dado que “escrever
para a criança é essencialmente uma atividade de imitação” (BORGES,
2010, p. 98), por isso a escrita não pode ser determinada, consoante essa
autora, por processos lógicos, mas pela palavra ou interpretação do
outro.
Nesse processo, o papel do outro (adulto/interlocutor) seria o de
intérprete que, interrogando a criança sobre o sentido do que
“escreveu”, oferece-se, de acordo com Lemos (1995), ao mesmo tempo
como semelhante e como diferente que insere a criança no movimento
linguístico-discursivo da escrita.

AQUISIÇÃO DA ESCRITA NA PERSPECTIVA DO INTERACIONISMO


DIALÓGICO

As pesquisas sobre Aquisição da Linguagem, no Brasil, foram


revolucionadas a partir dos estudos realizados, no início dos anos 1990,
pelo grupo de pesquisadores do Instituto de Estudos da Linguagem
(IEL) da Universidade Estadual de Campinas, coordenado por Cláudia
de Lemos.
Para o entendimento do processo de aquisição da escrita pela
criança, tomamos, neste estudo, os textos de Cláudia de Lemos (1992 e
1995) e Sônia Borges (2006 e 2010), assumindo assim, a proposta do
interacionismo dialógico, nova base teórica que trata da interação entre
a criança e o adulto, onde o Outro é tomado como lugar do
funcionamento da língua ocupado pelo outro (semelhante).
Segundo Lemos (1995), para tratar a aquisição da escrita como
transformação ou mudança que se opera através do funcionamento do
simbólico, o que se tem em mente é o sujeito e objeto como efeitos desse
funcionamento. Isso significa, para essa autora, que não se parte da
interação sujeito-e-objeto, mas da linguagem, diferente da concepção
piagetiana que concebe a linguagem como um real estruturado, fora do
sujeito.
437

Para Borges, imaginar que a criança precise representar


logicamente as estruturas da língua para conhecê-la “é negar os efeitos
da subjetividade e dizer que o sujeito está sob o domínio das estruturas,
que está no lugar do objeto” (BORGES, 2010, p. 99). Nesse entendimento,
o interacionismo dialógico questionará a concepção de escrita como
representação da linguagem oral postulada, principalmente, pelo
construtivismo e considerará a alfabetização como um fato de
linguagem.
Nessa perspectiva, Lemos (1992) aponta o funcionamento da
linguagem como lugar privilegiado para a fala da criança e a interação
com o outro como condição necessária à aquisição da linguagem, sendo
possível compreender que o universo discursivo em que a criança está
inserida é, conforme Borges (2010), determinante de sua fala e condição
de sua interpretação.

ANÁLISE DO CORPUS

O corpus desta análise é constituído por dois textos escritos por


uma criança de quatro anos que conhece as letras, mas não consegue
fazer a correspondência entre a grafia e o som. Para entender a escrita
desta criança, tomamos o texto “A aquisição da escrita como processo
linguístico” (Borges, 2006), onde essa autora afirma que a criança, no
processo de aquisição da escrita, conduzida pelo adulto, é colocada em
contato com textos, fazendo com que o sujeito da Psicologia, do
conhecimento, ceda espaço ao da Psicanálise, o qual é “alienado ao
discurso do Outro” (BORGES, 2006, p.149), em que o Outro, segundo
Lacan (1983), corresponde ao lugar do simbólico, da linguagem.
Lemos (1992) diz que as produções escritas iniciais da criança
podem ser interpretadas como funcionamento da língua (no sentido
estrutural), permitindo, assim, a atividade “da linguagem sobre a
linguagem” (Lemos, 1992, p. 132). Diante disso, busca-se, nos registros
a seguir, compreender o funcionamento e movimento da escrita de uma
criança recém-inserida no universo simbólico.
438

FIGURA 1

1 NELHR
2 mIeIEnHA

3 AIioguel

4 UIMGAOORES
5 DIegomIguel

Leitura da criança

“Ela uma vez uma menininha qui:: foi pá casa da VOvozinha dela
Aí...aí... aí... ((a criança interrompe a “leitura” para reclamar com o irmão
mais velho que tenta atrapalhá-lo)) a:: mãe dela mandou levar os doces
pá vovozinha dela aí:: a mãe disse pá ela pá ela ir de um lado, aí, aí ela
FOi seguinu pelo lado da folesta que o lobo mandou, aí... aí... ela disse que
foi pá casa da vovozinha, aí o lobo chegou pimeilo ( )
Aí o LObo mau CUmeu a vovozinha, aí quando ele cumeu, vistiu o da
vovozinha, verdade.
Aí como chegou o lobo mau, aí a Chapeuzinho Vermelho disse assim:
- qui zolhos tão grande você tem
Aí depois foi:
- qui:: naliz tão gande você tem.
- é pá te cheilá melhor. - Aí
- qui olelhas tão gande você tem.
- É pá te ouvir melhor.
- Que boca gande você tem.
- É pá te coMÊÊÊ.
Aí ela escondeu LOgo no armálio. Aí:: quando iscodeu no armálio, aí o
lobo pegou no sono. Aí o caçador viu, aí o caçador cortô a barriga dele,
do lobo, aí ele tava sintinu a vovozinha, aí quando cortô, encheu de
pedas, aí:: folam felizes pala sempe.”
439

FIGURA 2

1 DDII
2 DILEgj

3 ocIeEgRRp
4 egmIoÃE
5 eBHnEPIegoo
6 COnO

7 PIiLEgH
8 DIego

Nessas sequências, percebe-se que, na escrita de uma criança


inserida num sistema que considera a escrita como representação
gráfica da língua oral, presentifica-se o que Borges denominou de jogo
gráfico, em que aparecem “combinatórias de letras que não constituem
palavras da língua constituída, mas que têm sistematicidade mesmo que,
com efeito, nonsense.” (BORGES, 2006, p. 150).
Na perspectiva das investigações desenvolvidas por Ferreiro
(1985) no processo de alfabetização, pode-se notar, neste corpus, o que
esta estudiosa classificou como escrita pré-escolar, onde aparece uma
combinação de letras dispostas na folha seguindo o curso de linhas retas
e paralelas, causando o efeito de que a criança “conhece” a organização
e segmentação das palavras em um texto, sendo possível, neste caso,
entender, sob a perspectiva teórica do interacionismo dialógico, que a
maneira como a criança dispôs as letras no papel “já é efeito do outro-
discurso (escrito).” (BORGES, 2010, p. 106).
Ao ser solicitada a fazer uma leitura do que “escreveu”, a criança
inicia com a expressão “Era uma vez”, e passando o dedo indicador
direito sobre a folha, num movimento linear da esquerda para a direita,
simula a leitura do conto Chapeuzinho Vermelho, fenômeno que nos
440

remete à Borges (2010) quando ela afirma que o processo de


alfabetização implica necessariamente a representação simbólica,
sendo para isso, necessário, segundo a autora, “que a criança represente
a língua escrita pela constituição de um simulacro que, de certo modo,
confere-lhe estabilidade, ainda que imaginária” (BORGES, 2010, p. 98).
Na figura 1, linha 1, pode-se perceber a grafia dos segmentos
NELHR, numa representação da palavra “vermelho”, na linha 2,
MIEIENHA simbolizando a palavra “menininha” e, UIMGAOORES para
representar a palavra “caçadores”. Neste sentido, os significantes
presentificados na escrita da criança apresentam-se, ainda, como formas
isoladas, cuja significação é dada, consoante Lemos (1992), na
proporção em que a criança ressignifica suas produções e assume a
posição de intérprete de si mesma e do outro (semelhante).
Nessa compreensão, é possível observar que, a criança quando
colocada em situações de leitura e escrita que não priorizam a
correspondência entre grafemas e fonemas, escreve a partir de
significantes, os quais se analisados sob a ótica do interacionismo
dialógico, podem “ser interpretados como efeitos da linguagem sobre a
própria linguagem” (LEMOS, 1992, p. 167).
Esse tipo de escrita faz com que Borges (2006, 2010), em suas
análises, reporte-se aos estudos de Saussure, Jakobson, Lacan e Cláudia
de Lemos, resultando no entendimento de que “o papel do Outro, na
constituição da escrita da criança, não se limita ao de provedor de
unidades que se acrescentariam como unidades isoladas às que já são
do seu domínio” (BORGES, 2010, p. 120), uma vez que a escrita de
unidades gráficas convencionais, pela criança, já é resultado do outro-
discurso, da relação da criança com o Outro (da linguagem).
Assim como na análise de Borges (2006), acerca dos textos
escritos por Rãimora Rodrigues, observa-se, na escrita desta criança, o
frequente aparecimento das letras que compõem o seu nome: Diego
Miguel, havendo variação na disposição da sequência, tamanho e tipo de
letra, podendo ser observado que na segunda linha, da figura 1, aparece
a série: m, I, e, I, E, n, H, A e na terceira linha, da figura 1, o seguimento:
441

A, I, i, o, g, u, e, l, numa variação entre letra cursiva e de imprensa. Tal


fenômeno remete-nos à concepção lacaniana do signo, onde o
significante exerce autonomia sobre o significado, dado que é possível
perceber nesta escrita, que a criança desliza de significante em
significante, dando ênfase aos significantes E, I, G e M.
Desse modo, concorda-se com Borges quando ela aponta a escrita
inicial como um lugar singular para compreender o funcionamento da
língua, posto que, nessa fase, escrever representa, para a criança, imitar
a escrita constituída.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao eleger, neste trabalho, a análise de uma escrita desvinculada


dos estudos que consideram a alfabetização como representação da fala,
foi possível entender que a sistematicidade da língua não se reduz à
correspondência grafofônica, embora seja possível verificar, neste caso,
que a criança se preocupa em associar a palavra ao nome, como
percebido na figura 1 quando a criança escreve UIMGAOORES para
representar a palavra “caçadores”. Nesse sentido, o interacionismo
dialógico, busca no estruturalismo europeu e na psicanálise, entender a
noção de ressignificação e o papel do outro no processo de aquisição da
linguagem – oral e escrita.
Desta maneira, percebeu-se, por meio da análise de uma escrita
espontânea, o que Borges (2006) chamou, na escrita inicial da criança,
de “feixes de relações”, uma vez que as crianças, ainda não alfabetizadas,
mas que (re) conhecem as letras do alfabeto, escrevem a partir de uma
cadeia de significantes, permitindo o reconhecimento de que o universo
discursivo em que a criança está inserida é decisivo no processo de
aquisição da linguagem, visto que o contato com os discursos do outro
(semelhante) permite, segundo Borges (2010), que se produzam
representações da língua escrita constituída.
442

Sendo assim, ao escrever, a criança entra no movimento do


simbólico e dá sentido ao Outro, ao funcionamento linguístico-
discursivo.

REFERÊNCIAS

BORGES, Sônia Xavier de Almeida. Psicanálise, linguística,


linguisteria. São Paulo: Escuta, 2010.
______. A aquisição da escrita como processo linguístico. In: LIER-DE-
VITO, Maria Francisca; ARANTES, Lúcia (orgs.). Aquisição, patologias
e clínica da linguagem. São Paulo: EDUC, 2006.
FERREIRO, E; TEBEROSKY, A. Psicogênese da Língua Escrita. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1985.
LACAN, Jacques. (1983[1953-54]), O Seminário, livro 1. Os escritos
técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1983.
LEMOS, Cláudia Thereza Guimarães de. Sobre a aquisição da escrita:
algumas questões. IEL - UNICAMP, 1995, p. 1-24.
______. Los processos metafóricos e metonímicos como mecanismos
de câmbio. Substratum/Artes Médicas, v 1, n.1, 1992.
OLSON, David R. O mundo no papel: as implicações conceituais e
cognitivas da leitura e da escrita. São Paulo: Ática, 1994.
REGO, Lúcia Lins Browne. A Alfabetização numa Perspectiva
Construtivista. In: BUARQUE, Lair Levi; REGO, Lucia L. Browne (orgs.).
Alfabetização e Construtivismo: teoria e prática. Recife: Editora
Universitária da UFPE, 1994.
443

ATRASOS DE FALA: CONTRIBUIÇÕES DO INTERACIONISMO PARA


A AVALIAÇÃO E TRATAMENTO FONOAUDIOLÓGICO

Irani Rodrigues Maldonade


FCM/IEL-Unicamp
irani@fcm.unicamp.br
Maria Salete F. Rios
Mestranda Pós-graduação FCM-Unicamp
salete-rios@hotmail.com

RESUMO: O trabalho objetiva refletir sobre três díades mãe-criança,


diagnosticadas com atraso de fala/linguagem aos três anos de idade por
pediatras de unidade básica de saúde e encaminhados à Fonoaudiologia
para avaliação e possível tratamento. Foram interpretados dados das
mães em contato com seus filhos, que não tinham outras alterações de
saúde, à luz da proposta interacionista de De Lemos. A proposta das três
posições da criança no processo de aquisição da linguagem da autora
(De Lemos, 2002) permitiu tratar, mais de perto, da transformação do
infans em sujeito falante. Os resultados mostraram que seria ingênuo
esperar que a simples descrição das manifestações sonoras das crianças
pudesse configurar, isoladamente, padrões de desenvolvimento e/ou
progressos no processo de aquisição da linguagem, pois este é marcado
por mudanças linguísticas e também subjetivas. O lugar das crianças no
discurso das mães foi o de dependência, assim como os cuidados que
demandavam colaboraram para anuncia-las na posição de infans. O
interacionismo foi útil tanto para entender melhor os atrasos de
fala/linguagem como também para eleger o tipo de intervenção
escolhido: em grupo de orientação às mães, com enfoque nos aspectos
relativos à primeira posição da criança no processo de aquisição da
linguagem. Neste sentido, permitiu focar algo além do que as relações
entre os fragmentos da fala da criança e os enunciados das mães fazem
ver.
444

PALAVRAS-CHAVE: aquisição da linguagem; atraso de linguagem;


interacionismo.

ABSTRACT: The work’s objective is to discuss about three mother-child


dyads, diagnosed with speech/language delay at 3 years old by
pediatricians of basic unit of health-care who referred to the speech
therapist for an evaluation and possible treatment. Data from the
interaction between the mothers and children were interpreted, as they
don’t have any other health alterations, in light of interactionist
proposal by De Lemos. The proposal of the three positions of the child
in language acquisition process by the author (De Lemos, 2002)
permitted to see, more closely, the infans transformations into the
speaking subject. The results showed that it would be naive to expect
that a simple description of children sound manifestations alone could
set patterns of development and/or progress in language acquisition
process, once it is marked by linguistic and also subjective changes. The
place of the children in mother’s speech was the dependent one, as well
as the care they demanded collaborated to announce them in the infans
position. The interactionism was useful to better understand the
speech/language delays as well to decide by the appropriate form of
intervention: a mother’s orientation group, focusing on aspects of the
first child’s position in the language acquisition process. In this sense, it
allowed to focus on something other than the relationship between
fragments of children speech and the mothers’ utterance show.

KEYWORDS: language acquisition; speech/language delay;


interactionism.

1- Introdução

Tem-se observado, ultimamente, nas clínicas de Fonoaudiologia,


principalmente no serviço público, um aumento da demanda para
atendimento de crianças, encaminhadas por pediatras, com queixas de
445

“atraso de fala/linguagem”. Para avaliar crianças que ainda não falam, a


Fonoaudiologia tradicional propõe alguns protocolos, que tendem
focalizar as ações da própria criança. Entretanto, isso não parece ser o
suficiente. Conforme apontam Wiethan, F. M.; Souza, A. P. R.; Klinger, E.
F. (2010), torna-se imprescindível uma análise mais detalhada dos
aspectos interacionais dos diálogos dos quais a criança participa,
mesmo porque eles serão fundamentais para a decisão diagnóstica, a
terapia e, posteriormente, na obtenção de resultados terapêuticos
satisfatórios.
Na área de Fonoaudiologia, até os estudos que entendem a
linguagem apenas como comunicação mostram a necessidade de
analisar as habilidades comunicativas em detalhes, seja em relação aos
outros interlocutores e/ou aos dados de contexto. É quase um consenso,
para esse grupo de fonoaudiólogos, que atrelado ao “desenvolvimento”
da linguagem estaria também, o desenvolvimento psicológico
(emocional e cognitivo) da criança. Porém, se pensarmos que o processo
de aquisição de linguagem dito “normal”, de qualquer perspectiva
teórico-epistemológica, já implica em mudanças, como proceder diante
do mistério que envolve seu ponto de partida (a origem), nos casos de
atrasos de fala/linguagem?
Para tentar responder à questão, este artigo buscará refletir sobre
três díades mãe-criança diagnosticas por pediatras da rede pública de
saúde de uma cidade do interior do estado de São Paulo, com atraso de
fala/linguagem aos 3 anos de idade; razão pela qual foram
encaminhadas ao serviço de fonoaudiologia para avaliação e possível
tratamento. Para tanto, serão utilizados os registros produzidos pela
fonoaudióloga, que atuou em unidade básica de saúde no serviço
público, à luz da proposta interacionista de De Lemos (1982,1992,
2002). Com base nessa teorização, a qual se faz adesão aqui, pergunta-
se ainda: o atraso na aquisição da linguagem poderia ser visto como um
funcionamento particular em meio ao funcionamento geral do processo
de aquisição da linguagem?
446

Para dar desenvolver o tema proposto, apresentamos, na próxima


seção, brevemente, o quadro teórico.

2- O interacionismo

A teorização desenvolvida por De Lemos e colaboradoras pode ser


vista como uma proposta original se comparada a outras perspectivas
teóricas, também reconhecidas como interacionistas, existentes na área
de aquisição da linguagem. De Lemos (1982) identificou dois teóricos
que apesar de partirem do reconhecimento de que as crianças repõem a
fala do outro em suas próprias falas, não chegaram a propor um
mecanismo de mudança linguística e subjetiva que explicasse o processo
de aquisição da linguagem. Na verdade, isso só foi formulado no
interacionismo, pela autora, anos mais tarde, em 1992 através da
proposta dos processos metafóricos e metonímicos como mecanismo de
mudança. De acordo com a autora, Bruner (1975) voltava-se para
aspectos da construção da dinâmica dual da reciprocidade, mas
permanecia comprometido com a visão de que o desenvolvimento
cognitivo precedia a linguagem. Tanto isso é verdade que essa
preocupação é logo mostrada pelo título de seu artigo: “A ontogênese
dos atos de fala”. No entanto, M. T. De Lemos (2002) destaca que a
contribuição de Scollon (1979) foi ainda maior para a área de aquisição
da linguagem, podendo até ser referida como uma descoberta na área,
pois em sua atividade de transcrição de fitas de fala de crianças,
descobriu algo digno de nota: a chamada “sintaxe vertical”. Tratava-se
da reposição de fragmentos dialógicos (suas partes), que procediam dos
enunciados dos interlocutores, precedentes à fala da criança em sua
própria fala. Desta forma, De Lemos (1982) propôs o diálogo como
unidade de análise e passou a problematizar a análise da fala da criança
a partir das categorias derivadas da descrição linguística. A
consequência imediata para a teorização foi incluir também a fala do
outro como dado de análise. Mais do que isso, os processos dialógicos
(especularidade, complementaridade e reciprocidade, inicialmente
447

propostos pela autora) mostravam a fala da criança ancorada na fala do


outro (principalmente na da mãe, que se constitui, normalmente, como
o interlocutor privilegiado no processo de aquisição da linguagem).
Entretanto, foi preciso deixar claro que o adulto não era simplesmente
visto como aquele que ensinava ou transmitia a língua à criança, ou seja,
meramente como um provedor de significados. Na teorização proposta
por De Lemos (1992, 2002), ele é concebido como instância de
funcionamento da língua.
O interacionismo proposto distancia-se, por assim dizer, da
concepção reducionista que trata a linguagem apenas como
comunicação entre indivíduos, na qual o adulto assumiria o lugar de
quem sabe a língua e a criança o de não saber, da qual partem muitos
trabalhos na área de Fonoaudiologia. A implicação da ordem própria da
língua, na abordagem da fala da criança e a explicação de como as
mudanças nela ocorrem, distante de uma visão desenvolvimentalista,
anunciam pontos de profundas diferenças entre essa proposta teórica
frente a outras também chamadas de interacionistas. A teorização de De
Lemos (1992, 2002) e colaboradoras (dentre estas, Figueira (1996),
Lier-de-Vitto (1994), Arantes (1994) e Maldonade (1995, 2003) afasta-
se da ideia vigente nos estudos de fonoaudiologia, que tem na díade
mãe-criança apenas uma expressão restrita da interação enquanto
“troca” (ou contato, comunicação) entre indivíduos, caracterizados
pelas teorias da comunicação.
De Lemos propõe, em 2002, que as mudanças que qualificam a
trajetória da criança de infans a sujeito-falante são mudanças de posição
relativamente à fala do outro, à língua e em relação à sua própria fala.
Tais mudanças foram definidas como mudança de posição em uma
estrutura, no sentido em que não há superação de nenhuma das três
posições, mas uma relação que se manifesta, na primeira posição, pela
dominância da fala do outro, na segunda posição, pela dominância do
funcionamento da língua e, na terceira posição, pela dominância da
relação do sujeito com sua própria fala. Seria na terceira posição que a
criança, enquanto sujeito falante, se dividiria entre aquele que fala e
448

aquele que escuta sua própria fala, sendo capaz de retomá-la, reformulá-
la e reconhecer a diferença entre sua fala e a fala do outro, assim como
entre a instância subjetiva que fala e a instância subjetiva que escuta de
um lugar outro. Essa interpretação se apresentou, portanto, como
contra-argumento à interpretação dos fenômenos que apontam para
essa divisão como evidência de capacidades metalinguísticas,
justamente a partir da discordância entre essas duas instâncias.
Segundo a autora, sua proposta, assentada quer sobre a alteridade
radical da língua relativamente ao organismo, quer sobre a consideração
daquilo que, na fala da criança, aponta para um sujeito que, ao se
constituir na língua, por ela é também dividido; representa acima de
tudo uma alternativa à noção de desenvolvimento. Sendo assim,
retomando-se o tema deste artigo, pode-se indagar: como o
fonoaudiólogo, que tem que avaliar as queixas de crianças com atraso de
fala/linguagem, encaminhadas pelo pediatra da unidade básica de saúde
(UBS) lida com isso? Em que medida o quadro teórico interacionista
seria suficiente, ou até mesmo útil, para interpretação dos atrasos de
fala/linguagem das três crianças? Como o quadro teórico interacionista
poderia auxiliar o terapeuta em sua reflexão sobre a clínica
fonoaudiológica?

3- Apresentação dos dados

Inicialmente, nesta seção, será apresentado o funcionamento


geral da área de fonoaudiologia na secretaria municipal de saúde e, na
sequência, serão expostos os passos dados em direção à seleção dos
dados, que possibilitaram nossa reflexão.
De acordo com o fluxograma definido pela secretaria municipal de
saúde no Manual de Fonoaudiologia (2006), os casos encaminhados para
este serviço devem ser feitos mediante o preenchimento de instrumento
próprio, denominado referência e contra referência, pelo profissional
que solicita qualquer tipo de procedimento, avaliação e/ou tratamento.
Essa regra vale não apenas para a área de Fonoaudiologia, mas também
449

para qualquer outra área da saúde. Tal procedimento visa propiciar uma
efetiva comunicação entre o profissional que faz um encaminhamento
de determinado paciente para qualquer serviço na área de saúde e
aquele que, em seguida, atende o referido paciente.
Basicamente, no instrumento (formulário) em questão, registram-
se: a) os dados de identificação do paciente, tais como: seu nome, idade
ou data de nascimento, número de registro na unidade básica de saúde
do qual é usuário, endereço e fone; b) dados relativos à avalição do
paciente na área do profissional que solicita o encaminhamento do
paciente e/ou descrição do estado do paciente; c) os achados clínicos,
procedimentos e/ou resultados de avaliações que o solicitante já tenha
realizado1 anteriormente; d) as razões pelas quais o encaminhamento
do paciente é solicitado para determinada área da saúde. Finalmente, o
profissional que solicita o encaminhamento do paciente deve assinar,
datar e carimbar o instrumento, que o usuário deverá entregar na
unidade básica de saúde a que pertence, para que o fonoaudiólogo tome
conhecimento do mesmo, quando for até o estabelecimento de saúde em
questão.
A rotina de visitas do fonoaudiólogo às unidades de saúde varia
conforme o distrito2 em que o profissional trabalha, assim como também
variam suas ações. Há especificidades territoriais que demandam
atenções e atuações diferenciadas. Desta forma, na sua rotina de
trabalho de visitas às unidades básicas de saúde de sua região 3, o
fonoaudiólogo tem acesso a todos os encaminhamentos dirigidos à área,

1 Costuma-se registrar, também, nesse campo do instrumento, resultados de exames já


realizados pelo paciente e/ou diagnósticos feitos anteriormente por outros profissionais
da saúde, que podem colaborar para a elucidação do caso.
2 O município em questão está dividido em 5 distritos na área da saúde, cuja expectativa

era a de cada um pudesse contar com o trabalho de pelo menos um fonoaudiólogo.


Situação esta, por vezes, difícil de concretizar-se na prática. Assim, o que se observa é
que o número de profissionais é insuficiente para atender todas as unidades básicas de
saúde dessa cidade.
3 Elas fazem parte das atividades previstas no “matriciamento”, que é o projeto de

trabalho que norteia a atuação do fonoaudiólogo no serviço público em questão.


450

devendo ele, após a leitura dos mesmos, ingressar na difícil etapa de


priorizar aqueles pacientes que devem ser atendidos rapidamente, ou
ainda, verificar se eles necessitariam ser atendidos em outros
estabelecimentos com recursos de saúde diferenciados.
Para estabelecer prioridades, o fonoaudiólogo seguiu critérios
específicos elaborados pela secretaria de saúde, dispostos no Manual de
Fonoaudiologia, que é o material utilizado para essa finalidade. De
acordo com ele, crianças de 0 a 4 anos que não falam devem ser
atendidas prioritariamente. Assim, os três casos de crianças com atrasos
de fala/linguagem, que são focalizados neste trabalho, foram
selecionados.
De acordo com o objetivo proposto aqui, buscou-se, em primeiro
lugar, elencar as informações dos prontuários que pudessem ser
relevantes para a reflexão, ou a partir das quais fosse possível observar
as principais características dos casos estudados. Antes, é preciso
esclarecer que nenhuma das três crianças tinha quaisquer outros
problemas de saúde conhecidos. Todas tinham passado pela entrevista
inicial com a fonoaudióloga, a partir da qual foi possível observar
algumas similaridades entre os casos, tais como: a) todas começaram
andar entre 1 e 1 ano e 4 meses (1;4); b) não frequentavam creche; c)
todas usavam fralda à noite (sendo que uma delas usava em tempo
integral); d) duas usavam mamadeira, enquanto que uma ainda era
alimentada ao seio; e) todas usavam chupeta.
Com relação ao processo de aquisição da linguagem, observou-se
que: as crianças ocupavam pouco seus turnos dialógicos, que quando
preenchidos por vocalizações, onomatopeias, e/ou “palavras reduzidas”
repostas das falas precedentes no diálogo, nem sempre eram
interpretados pelas mães. Conforme os registros apontavam, as mães,
por sua vez, invadiam os turnos destinados às crianças, preenchendo-os
na interação. Ou seja, “falavam” pelas crianças. Além disso, verificou-se
a preocupação excessiva das mães em torno da fala das crianças, na
medida em que faziam muitas solicitações e observações referentes aos
gestos e ações, no sentido de tentar que os pequenos falassem mais. Uma
451

das mães chegou até assumir uma posição pedagógica, ao perguntar


várias vezes “o que é isso?” para a criança, na tentativa de fazê-la falar.
Outra característica das falas das mães dirigidas às crianças que merece
destaque é o fato de referirem-se a elas em terceira pessoa do singular
ou por “bebê” (ou ainda a variante “nenê”) e, muito raramente, pelo
nome próprio.
Veja, a seguir, como esses achados foram interpretados à luz da
teorização interacionista e suas implicações para a reflexão proposta
neste artigo.

4- Discussão dos dados

Os resultados encontrados acima mostraram que seria ingênuo


esperar que a simples descrição das manifestações sonoras das crianças
pudesse configurar isoladamente padrões de desenvolvimento e/ou
progressos no processo de aquisição da linguagem. Neste sentido, torna-
se imprescindível ultrapassar o limite imposto pelas descrições das
manifestações sonoras infantis e refletir sobre as consequências da
linguagem na história da criança. A proposta das três posições da
criança no processo de aquisição da linguagem de De Lemos (2002)
permitiu tratar, mais de perto, da transformação do infans em sujeito
falante. Há um sujeito, que capturado pelo funcionamento linguístico,
desponta na cadeia significante e ao deslocar-se numa estrutura, ocupa
diferentes posições com relação à fala do outro, à língua e a sua própria
fala. Isso significa que para compreender o processo de aquisição da
linguagem, é preciso também compreender o movimento que vai da
falta à presentificação da fala/linguagem. Desta forma, colocar-se na
perspectiva interacionista faz toda a diferença para o fonoaudiólogo,
que tem que interpretar dados relativos aos atrasos de fala/linguagem,
uma vez que concebe o sujeito como ser constituído na e pela linguagem,
assim como é por ela atravessado.
Nessa teorização, a linguagem deixa de ser vista como um
acessório ou meramente como um “instrumento externo-expressivo de
452

uma condição interna do sujeito”, conforme aponta LIER-DE-VITTO


(1994, p.136), de forma que as manifestações linguísticas fragmentárias
ou até mesmo “corretas” possam ser vistas como reflexos de um saber
prévio e inato. Ao contrário, admite-se que não há conhecimento
anterior ou fora da linguagem e ainda: se há um plano interno, ele é
aquele constituído no e pelo movimento discursivo. Conforme a autora
aponta, é a linguagem que dá forma e organiza a experiência humana no
mundo. Isso quer dizer que para a criança “dar forma ao seu encontro
com o mundo”, será necessário que ela seja, em primeiro lugar,
capturada pelo funcionamento linguístico. Ou seja, ocupar um lugar no
discurso da mãe e ser inserida na ordem da linguagem.
Neste sentido, os dados relacionados anteriormente permitiram
verificar que nos três casos de atrasos de fala/linguagem estudados, a
“linguagem das crianças” está na “fala” (ou discurso) daquele que já está
submetido ao funcionamento linguístico, no caso, a mãe. Foi nas
interações que as manifestações sonoras das crianças (e/ou as de ações)
puderam ser revestidas de significados pelas mães, que são sujeitos que
já se encontram submetidos à ordem própria da língua. Ao mesmo
tempo, a criança (que é significada) ocupa um lugar no discurso da mãe,
ou seja, um lugar na instância de funcionamento linguístico que é
também, de acordo com o interacionismo, uma instância simbólica.
Segundo Lier-De-Vitto (1994), no discurso materno fica espelhada a
oposição necessária entre o dizer da criança e o da mãe, dialeticamente
articulados entre si.
O fato é que uma criança privada do jogo intersubjetivo discursivo
poderá ter dificuldades para interpretar o que é dito. Para Lier-De-Vitto
(1994), o primeiro passo na linguagem corresponderia à submissão da
criança às formas da linguagem, ao significantes. Afirma, ainda, a autora
que o sentido será encontrado, a princípio, apenas no dizer do outro, no
nosso caso, no das mães. Ela aponta que é neste sentido que se deve
entender a afirmação de que a relação com a linguagem é fundante na
história da criança.
453

5- Algumas considerações

Vorcaro (2003) afirma que o atraso de fala/linguagem ou a


inibição do processo de aquisição da linguagem pode demonstrar, além
de um desajuste familiar, a impotência da criança em identificar-se e
reconhecer-se como si mesma, em distinguir-se socialmente, ou seja, em
estruturar-se como sujeito. Já WIETHAN, F. M.; SOUZA, A. P. R.; KLINGER,
E. F. (2010, p. 442) afirmam que, na visão psicanalítica é frequente a
ocorrência de um laço psicopatológico dos pais à criança, o que não
permite sua subjetivação, que é fundamental para o desenvolvimento
normal da linguagem. Sobre a subjetivação, as autoras afirmam que o
rompimento ou enfraquecimento da relação de identificação entre a
criança e a mãe (ou quem exerça esta função dita materna) pode
desfavorecer a possibilidade de deslocamento da criança no processo de
aquisição da linguagem e, consequentemente, de constituir-se como
sujeito na/pela linguagem.
Assim, a teorização desenvolvida por De Lemos (1982 a 2002)
torna-se útil não só para compreender melhor o que a literatura tem
referido sob o rótulo de “atrasos de fala/linguagem”, como também
propor um caminho diferente na Fonoaudiologia para encará-los. A
proposta interacionista permite “deslocar” o sujeito da aquisição da
linguagem do lugar de quem, de fora, toma posse da língua e, ao mesmo
tempo, faz dela um de seus atributos ou pertences. Com isso, as
mudanças de posição da criança são explicadas a partir do efeito do
funcionamento da língua/linguagem. Por esta razão, para o
interacionismo não basta descrever e explicar apenas as mudanças
linguísticas, pois existem, ao lado destas, as mudanças subjetivas, que
ocorrem no processo de aquisição da linguagem. Para De Lemos (2002),
em certo sentido, ainda que timidamente, sua proposta também se
aproximava do que Lacan, a partir da topologia, afirmara: “O sujeito está,
se nos permitem dizê-lo, em exclusão interna a seu objeto” (cf. Lacan
[1966] 1998:875 apud De Lemos 2002). O funcionamento linguístico, do
ponto de vista da criança nele inserido, não pode ser apreendido pela
454

descrição de seus enunciados, e sim pelos processos metafóricos e


metonímicos (cf. De Lemos 1992) conjugados a seus efeitos.
A reposição de fragmentos da fala do outro para a fala da criança
foi definida como “especularidade” na teorização desenvolvida por De
Lemos, para escapar ao sentido conferido pelos behavioristas, que no
início da década de 80 incidia sobre o termo “imitação”. Mais do que uma
noção, a especularidade punha em questão tanto o comunicativo (cuja
continuidade se queria preservar) quanto o linguístico (enquanto
conhecimento instanciado na fala da criança). Além disso, a
especularidade, focalizada atentamente nos trabalhos interacionistas de
M.T. Lemos (2002), Maldonade (1995, 2003) e de Arantes (1994)
acabou evidenciando as vicissitudes desse conceito na teorização.
Entretanto, muitos pesquisadores da área e alguns
fonoaudiólogos fecharam os olhos diante da imitação ao investigar o
processo de aquisição da linguagem da criança. Os que ignoraram o
desafio restringiram-se a tomar a imitação recíproca como prova de que
o “comunicativo” precedia e determinava o “linguístico” no
“desenvolvimento” da criança. Já Peters (1985) preferiu eliminar o que
o termo imitação teria de “negativo” e o substituiu por “extração”. A
autora descartava a relação da criança com a fala da mãe e sua
relevância como base de sustentação de um diálogo inicial possível, em
favor de um mecanismo perceptual que extraia do input porções de
maior saliência, geralmente associada ao contexto. O material extraído
e armazenado na memória de longo termo era depois utilizado na
indução de segmentos e de sua posição em estruturas. A partir dessa
operação as unidades lexicais e classes morfológicas eram constituídas.
Contrariamente, pesquisadores alinhados à perspectiva interacionista
de De Lemos (entre eles, Figueira (1996) e Maldonade (1995, 2003,
2010)) dão um passo adiante e não só encarecem a discussão sobre a
imitação, como também afirmam seu papel crucial no processo que
conduz à sintaxe na fala da criança.
Segundo DE LEMOS (2002, p. 45), enquanto a relação do linguista
com os fatos linguísticos e com a teoria linguística era passível de
455

discussão e de mudança, a do investigador com a fala da criança na área


da aquisição de linguagem era imediata isto é, não mediada e
literalmente indiscutível. Nem é preciso dizer que o que esse
investigador acabava por descrever era a atividade linguística por ele
próprio exercida na compreensão dessa mesma fala. Deste modo, essa
relação de mão dupla tem sido mais visível no que diz respeito à
hierarquia entre componentes, ao tentar responder sobre quais
constituintes aparecem antes na fala da criança no processo de
aquisição da linguagem. Há, assim, aqueles que aclamam a
superioridade de sua análise ao invocar a presença de um determinado
constituinte, construção ou expressão na fala inicial da criança. Mas,
para analisar as queixas nos atrasos de fala/linguagem, houve a
necessidade de alargar a visão com relação aos acontecimentos que
marcavam o lugar de cada criança – a singularidade na sua relação na
díade, portanto, com o outro e a língua/linguagem, no seu trajeto único
no processo de aquisição da linguagem.
Nossos dados deixaram indicado que quando o descolamento da
criança na estrutura não ocorre, o atraso de fala/linguagem encontra um
terreno propício para acontecer. Tudo se passa como se a criança “se
fixasse” ou “não conseguisse sair” da sua posição inicial no processo de
aquisição da linguagem proposto por De Lemos (2002). Além disso, o
olhar “patologizante” dos pais à fala da criança e a ausência de escuta e
do olhar para suas evoluções, projetaram-se como impedimentos para
que o deslocamento da criança no processo de aquisição da linguagem
acontecesse. O lugar da criança no discurso da mãe configurou-se como
o de dependência, assim como os cuidados que elas demandavam
colaboravam para anuncia-las na posição de infans, tais como: uso de
chupetas, mamadeiras e fraldas.
Verificou-se que a abordagem teórica interacionista pode oferecer
uma visão mais precisa do que acontece nos casos de atraso de
fala/linguagem, na medida em que elege a díade mãe-criança como foco
de análise da linguagem e não apenas aspectos relativos à comunicação
em si e restritos aos papéis desempenhados na situação dialógica.
456

Há, na área de Fonoaudiologia, um pensamento geral de que


quanto mais cedo seja iniciada a intervenção terapêutica, mais favorável
será a evolução dos casos. Porém. Não foi isso o que aconteceu aqui. Em
nosso estudo, as díades analisadas indicaram que não houve
necessidade de as crianças serem atendidas em terapias individuais em
fonoaudiologia. A intervenção no caso das três díades aqui focalizadas
se deu sob a forma de orientação às mães realizada em grupo, com
enfoque dirigido para os aspectos relativos à posição da criança no
processo de aquisição da linguagem.
Zimerman D. A (2007, apud Wiethan, F. M; Souza, A. P. R; Klinger,
E. (2010)) aponta que, na área de Fonoaudiologia, diferentes
abordagens de intervenção podem ser adotadas: centradas na criança
e/ou nos pais, além do atendimento em grupo. Na abordagem com foco
na criança, a interação se dá entre paciente e terapeuta, de forma
individual. Já a intervenção com foco no atendimento de mães (pais)
consiste na realização de entrevistas e debates continuados com os pais
das crianças acerca dos temas relacionados à queixa que gerou a busca
pelo atendimento, bem como dar acolhimento e esclarecimentos de suas
dúvidas, na medida do possível. Para Terçariol (2008), esta abordagem
é uma forma de fomentar uma reflexão profunda sobre o exercício das
funções e sentimentos parentais para com a criança e como transcendê-
los, pois a “boa estimulação” para a linguagem estaria calcada em uma
relação flexível entre o filho real e o imaginado e passaria pelos desejos
parentais relacionados à criança.
Hoje em dia, a intervenção em grupo tem se apresentado como
uma estratégia produtiva durante o período em que as crianças
aguardam atendimento nos serviços públicos de saúde, podendo
significar tanto a minimização da problemática de linguagem quanto a
sua resolução. Segundo Moreira (2007), pode ter como consequência a
redução das filas de espera para atendimento fonoaudiológico, pois os
próprios familiares estarão colaborando para a evolução das crianças,
funcionando como agentes ativos do processo terapêutico, além da
importância que a identificação grupal tem para o indivíduo.
457

Diferentemente, o fonoaudiólogo interacionista que concebe que


o processo de aquisição da linguagem como um processo de
subjetivação procura ser mais abrangente na proposição das práticas
terapêuticas. Por isso, esse grupo de profissionais não se contenta
apenas com os possíveis acréscimos e/ou aparecimentos de estruturas
linguísticas na fala das crianças, pois considera que nem sempre é
possível interpretá-las como evoluções no processo de aquisição da
linguagem, para dizer o mínimo. Ao lado desses acontecimentos, a
posição da criança no processo de aquisição da linguagem tem que ser
considerada. Nas três díades analisadas verificou-se que a posição das
crianças no processo de aquisição da linguagem era o mesmo que
ocupavam no discurso de suas mães: o de dependência, típico da
primeira posição na proposta de De Lemos (2002). Neste sentido, a
análise realizada foi fundamental para determinar os pontos a partir dos
quais o processo de orientação às mães fosse conduzido: a) retirada dos
hábitos de sucção, que tanto prejudicavam o desenvolvimento da
motricidade oral das crianças, quantos as colocavam na posição de
bebês, infans; b) retirada do uso de fraldas, que também reforçavam sua
posição de bebês e de dependentes; c) começar a frequentar creche (ou
unidade de ensino regular adequada para a faixa etária das crianças)
para desenvolver-se em ambiente social, de modo a constituir
interações diferentes das vivenciadas no ambiente doméstico e d)
discutir os papéis das mães (evidenciando o de intérprete) e das
crianças nos diálogos dos quais participavam, no sentido de deixar a
criança preencher seus próprios turnos dialógicos.
Ao concluir este artigo, cabe salientar que a intervenção em grupo
com as mães das três crianças que apresentavam queixas de atraso de
fala/linguagem foi eficaz, no sentido que aprimorou a interação mãe-
criança, desmistificando a posição pedagógica da mãe como favorável ao
processo de aquisição da linguagem e, no geral, a do adulto como
provedor de significados, até a do fonoaudiólogo como aquele que
“ensina” a criança a falar. Deste modo, o funcionamento das díades mãe-
458

criança em questão, mostrou algo além do que as relações entre os


fragmentos da fala da criança e os enunciados das mães fazem ver.

REFERÊNCIAS

ARANTES, L. O fonoaudiólogo, este aprendiz de feiticeiro. In: LIER-DE-


VITTO, M. F. (org.) Fonoaudiologia: no sentido da linguagem. São Paulo:
Cortez, 1994. p.23-37.
BRUNER, J. The ontogenesis of speech acts. Journal of Child Language.
Cambridge. Cambridge University Press, n.2, p. 1-19. 1975.
CAMPINAS. Manual de Fonoaudiologia. Campinas: Versão Revisada,
Prefeitura Municipal de Campinas, Secretaria de Saúde, Câmara Técnica
de Especialidades, 2009. Disponível em: http://2009.campinas.sp.gov.
br/saude/. Acesso em 03 de fev. 2011.
DE LEMOS, C. T. G. Sobre a aquisição da linguagem e seu dilema (pecado)
original. Boletim da Abralin, n.3, p. 97-126, 1982.
______. Los processos metafóricos y metonímicos como mecanismo de
cambio. Substratum, n.1, p. 121-135, 1992.
______. Das vicissitudes da fala da criança e de sua investigação.
Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, n. 42, p. 41-69, 2002.
DE LEMOS, M. T. G. A língua que me falta: uma análise dos estudos de
aquisição da linguagem. Campinas: Mercado de Letras, 2002.
FIGUEIRA. R. A. O erro como dado de eleição nos estudos de aquisição
da linguagem. In: PEREIRA DE CASTRO, M. F. (Org.) O método e o dado
no estudo da linguagem. Campinas: Editora da Unicamp, 1996. P.55-
86.
LIER-DE-VITTO, M. F. Aquisição de linguagem, distúrbio de linguagem e
psiquismo: um estudo de caso. In: LIER-DE-VITTO, M. F. (Org.)
Fonoaudiologia: no sentido da linguagem. São Paulo: Cortez, 1994.
p.135-144.
MALDONADE, I. R. Erros na aquisição de verbos com alternância
vocálica: uma análise sócio-interacionista. 211f. 1995. Dissertação
459

(Mestrado em Aquisição da Linguagem), IEL, Universidade Estadual de


Campinas, Campinas, 1995.
______. Erros na aquisição da flexão verbal: uma análise interacionista.
169f. 2003. Tese (Doutorado em Aquisição da Linguagem), IEL,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003.
______. Erros na aquisição da flexão verbal: reflexividade e constituição
do paradigma verbal. Estudos Linguísticos, v. 39, n. 2, p. 462-476, 2010.
MOREIRA, M. D. A orientação fonoaudiológica a pais e a capacitação
da linguagem de seus filhos. 106f. 2007. Dissertação (Mestrado em
Distúrbios da Comunicação Humana, Universidade Federal de Santa
Maria, Santa Maria, 2007.
PETERS, A. Language segmentation: operating principles for the
perception and analysis of language. In: SLOBIN, D. (ed.), The
crosslinguistic study of language acquistion. Hillsdale, Lawrence
Erlbaum, v.2, p. 1029-1068, 1985.
SCOLLON, R. A real early stage: an unzippered condensation of a
dissertation on child language. In OCHS, E.; SCHIEFFELIN, B. (Eds.)
Developmental pragmatics. New York: Academic Press, p. 215-228,
1979.
TERÇARIOL, D. A clínica fonoaudiológica: da prática à construção de
fundamentos teórico- metodológicos. In: Graña, C. G. Quando a fala
falta: fonoaudiologia, linguística e psicanálise. São Paulo: Casa do
Psicólogo, p. 79-94, 2008.
VORCARO, A. A clínica psicanalítica e fonoaudiológica com crianças que
não falam. Distúrbios da Comunicação, v. 15, n.2, p. 265-287, 2003.
WIETHAN, F. M.; SOUZA, A. P. R.; KLINGER, E. F. Abordagem terapêutica
grupal com mães de crianças portadoras de distúrbios de linguagem.
Revista da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia, v. 15, n.3, 442-
451, 2010.
ZIMERMAN, D. A. importância dos grupos na saúde, cultura e
diversidade. Vínculo, v.4, n.4, p.1-16, 2007.
460

AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM E FALAS DE PACIENTES


DEMENCIADOS: PROCESSOS DE EVOLUÇÃO E INVOLUÇÃO DA
LINGUAGEM?

Mariana Emendabili (PUCSP)


Melissa Catrini (UFBA)

RESUMO: Segundo De Lemos (1982) o que motiva o campo da Aquisição


da Linguagem (AL) é explicar a mudança da fala na trajetória da criança
na passagem de infante a falante. Os pesquisadores desejam explica-la
e, para isso, entendem que devem assumir um compromisso com a
diacronia e descrever a “gênese de estruturas e categorias” (DE LEMOS,
1982, p. 11). Esse compromisso pressupõe uma hierarquia de aquisição
que partiria do mais simples para o mais complexo (a língua
constituída). No extremo oposto às falas de crianças em aquisição, estão
às manifestações sintomáticas da fala de pacientes com Demência.
Nesses casos, a literatura afirma que há déficit na linguagem que decorre
de déficits cognitivos e esses são provenientes de uma degeneração
cerebral. Os pacientes começam a perder a capacidade de dizer
estruturas mais complexas de fala e chegam ao mutismo. Quadros de
demência são caracterizados como processos cerebrais degenerativos
que tem como correlato cognitivo a perda de memória e é na “involução”
da fala que este sinal aparece (MAC-KAY,2007). A noção de involução da
fala está pautada no seu correlato ideal – a noção evolutiva de
desenvolvimento. O objetivo deste trabalho é discutir a afirmação de
que há perda da linguagem nos quadros demenciais – processo de
involução, caso concebamos o processo de AL como de
desenvolvimento. Tal visão será contestada a partir do posicionamento
teórico aqui assumido, em que linguagem é operação linguístico-
discursiva (DE LEMOS, 1992, 2002 e outros): operação que incide na fala
e que é determinada por “leis de referência interna da linguagem”
(Saussure, 1916). Não reduzida ou submetida a outros domínios, seu
funcionamento incide sobre as cristalizações sígnicas e discursivas de
461

uma língua particular que capturam o falante. O presente trabalho


alinha-se ao Grupo de Pesquisa Aquisição, Patologias e Clínica de
Linguagem (LAEL-PUCSP), coordenado por Lier-DeVitto e Arantes.

PALAVRAS-CHAVE: Demência; Aquisição de linguagem; involução.

ABSTRATC: According to De Lemos (1982) what motivates the field of


Language Acquisition (LA) is to explain the change of speech in children
trajectory from infant to speaker. The researchers wish to explain it and
for this purpose understand that they must have a commitment with
diachrony and describe the "genesis of structures and categories"(DE
LEMOS, 1982, p. 11). This commitment implies a hierarchy of
acquisition to depart from simplest to the most complex (the
incorporated language). At the opposite extreme of the speech
acquisition in children, are the symptomatic speech manifestations of
Dementia patients. In such cases, the literature states that there is a
deficit in language that arises from cognitive deficit sand those are
coming from a brain degeneration. Patients begin to lose the ability to
speak complex structures of speech and progress to mutism. The clinical
presentation of dementia are characterized as degenerative brain
processes whose cognitive correlate is memory loss and it is in the
"involution" of speech that this signal appears (MAC-KAY, 2007). The
notion of speech regression is guided on its ideal counterpart - the
concept in evolutionary development. The principal objective of this
paper is to confirm that there is loss of language in dementia - a process
of involution, if we conceive the process of LA as development. Such a
view will be challenged from the theoretical position here adopted that
language is a linguistic-discursive operation (DE LEMOS, 1992, 1997,
2002): operation that focuses on speech and that is determined by
"referenced laws of internal language” (Saussure, 1916). Not reduced or
subjected to other domains, its functioning focuses on the semiotic and
discursive crystallizations of a particular language that capture the
speaker. This work aligns the Acquisition Research Group, Pathology
462

and Clinical Language (LAEL-PUCSP), coordinated by Lier-DeVitto and


Arantes.

KEYWORDS: Dementia; Language Acquisition, involution

Demência é um diagnóstico médico que remete a múltiplas


dificuldades ditas cognitivas. Mais recentemente, a quinta versão do
Manual Diagnóstico dos Transtornos Mentais (DSM-V, 2013) sugere a
substituição do termo demência por “desordem neurocognitiva”. Essa
modificação terminológica acaba por destacar a dupla condição
sintomática relacionada às síndromes demenciais: há déficit cognitivo e
lesão neurológica – esta última mesmo que constatada e/ou
comprovada somente em exame post-mortem.
De maneira geral, entende-se que as disfunções cerebrais que
ocorrem na demência perturbam a memória e trazem prejuízos à
linguagem. É por isso, e também pelo fato de acometer adultos que no
passado se reconheciam e eram reconhecidos como falantes plenos de
uma língua, que se diz que “nas demências, há afasias” (MARCOLINO-
GALLI, 2013, p. 14). Nas demências, os sintomas na linguagem são, via
de regra, descritos e divididos em estágios de comprometimento/
evolução da doença. Nessa direção, “os resultados da avaliação de
linguagem podem ser empregados como diagnóstico diferencial e também
ser utilizados para avaliar a progressão do quadro demencial” (ROMERO,
2005, p. 314). Fala-se em evolução da doença e involução da linguagem.
As manifestações sintomáticas da fala de pacientes com demência
encontram-se localizadas como estando no extremo oposto das falas de
crianças em processo de aquisição. A degeneração cerebral provocaria
o déficit cognitivo e com ele os pacientes começariam a perder a
capacidade de dizer estruturas mais complexas de fala, chegando ao
mutismo.
Estudos buscam enumerar a ordem de aparecimento dos
sintomas linguísticos e o fazem com base na frequência de ocorrência
dos mesmos, quais sejam: problemas para encontrar palavras;
463

dificuldade para nomear objetos; dificuldade para escrever uma carta;


prejuízo na compreensão de instruções; dificuldade para sustentar a
conversação; problemas para completar sentenças; tendências para
repetir idéias; problemas de compreensão da leitura; produção de
sentença sem sentido; diminuição da fala (conversação); assuntos
inadequados (impróprios); tendência para interpretações literais
(BAYLES, 1991 apud ROMERO, 2005). Essa forma de descrição sustenta
o estabelecimento de estágios de evolução da doença.
No caso da Demência do Tipo Alzheimer (DA), os sintomas são
assim categorizados:

1) estágio inicial:
 produção da linguagem oral relativamente preservada;
 tendência a repetir idéias;
 anomia;
 raras parafasias verbais;
 leitura preservada;
 dificuldades na introdução e manutenção coerente de tópicos
durante o discurso;
 compreensão de escrita comprometida.

2) estágio intermediário:
 falhas de evocação são mais frequentes
 repetições de idéias aumentam
 presença de parafasias verbais, de termos vagos e de neologismos;
 dificuldade em acompanhar discursos;
 empobrecimento semântico da fala;
 diminuição do interesse pela leitura;
 tendência a uso de automatismos;
 ruptura do discurso;
 comprometimento da compreensão.
464

3) estágio final:
 todas as funções cognitivas estão comprometidas;
 redução significativa da produção oral;
 dificuldade maiores de compreensão;
 presença de perseverações e de ecolalias;
 mutismo.

É esta classificação em estágios, fundamentada nos sintomas e no


seu grau de severidade, que sustenta a avaliação e a terapêutica de
grande parte dos fonoaudiólogos atuantes na área. Naturalmente se faz
referência à importância da atuação fonoaudiológica na equipe
multidisciplinar dedicado ao cuidado com o paciente com DA, sendo o
objetivo principal o auxílio na identificação da progressão dos sintomas
e, quando possível, a elaboração de um “plano terapêutico
individualizado, visando uma melhor qualidade de vida do paciente e de
sua família” (ROMERO, 2005, p.318).
Entende-se, ainda, que o critério que estabelece um plano
terapêutico individualizado é o estágio de evolução demencial em que o
paciente se encontra (inicial, intermediário ou final). Além disso, a
palavra “plano” remete a planejamento terapêutico: implica, portanto,
um modelo pronto de ação para o paciente de determinado estágio da
classificação da doença. O planejamento é delineado por estratégias
comunicativas que o familiar e o cuidador utilizam na interação com o
paciente. Tais estratégias são divididas também de acordo com os
estágios de evolução da doença.
Nesse caminho, é inegável a rejeição da marcante e factível
heterogeneidade dos sintomas linguísticos nos quadros demenciais,
uma vez que testa pacientes e reduz a linguagem a um comportamento
submetido ao cerebral e à memória. Isso que se faz presente no trabalho
de Romero, acima mencionado, é recorrente no campo da
Fonoaudiologia.
Romero (2005) e Mac-Kay, Assêncio-Ferreira e Ferri-Ferreira
(2007), representantes da área, enfatizam o uso de “estratégias
465

facilitadoras da comunicação” com os pacientes. Podemos pensar que o


diálogo, nesta visão, é tomado como troca de mensagens (codificação e
decodificação) em uma relação dual; diálogo assim concebido deve
contar com a integridade das funções cognitivas de emissor e de
receptor. As “estratégias facilitadoras” que devem regular o diálogo com
o paciente visam uma simplificação da fala (frases curtas e literais,
vocabulário simples) para que se possa colocar em relevo o que é
essencial para que a comunicação seja efetiva. Deve-se dizer, ainda, que
não se esclarece qual seria o critério que define o que faz com que uma
palavra seja simples. O critério deve ser, provavelmente, o mesmo que
define essa “categoria” nos testes de linguagem utilizados por médicos e
por fonoaudiólogos: o de frequência de ocorrência da palavra na fala
espontânea – palavras mais frequentes são mais simples, palavras
menos frequentes são mais complexas.
Salientamos que tal pressuposição (de que existem palavras mais
simples e palavras mais complexas) é estranho a um pesquisador/clínico
comprometido com uma teoria de linguagem e revela a adesão à visão
organicista/comportamentalista da linguagem. Em propostas
terapêuticas como a de Romero e Mac-kay é a “tríade estímulo –
resposta – reforço [...] que configura o diálogo” (TESSER, 2007, p.33).
Com Tesser (2007), reconhecemos que não há possibilidade de
sustentar a noção de diálogo porque ela inibe a fala do paciente para que
somente as respostas “corretas” sejam ditas.
Quadros de demência são caracterizados como processos
cerebrais degenerativos que tem como correlato cognitivo a perda de
memória e é na “involução” da fala que este sinal aparece (MAC-KAY,
ASSÊNCIO-FERREIRA; FERRI-FERREIRA, 2007). Note-se que tal
avaliação não é pautada em considerações linguístico-discursivas a
respeito do sintoma de linguagem. Muito menos levam em consideração
o funcionamento linguístico que rege toda manifestação da linguagem,
como bem alertou Jakobson (1954). A noção de involução da fala está
pautada no seu correlato ideal – a noção evolutiva de desenvolvimento.
466

Pensar em desenvolvimento obriga-nos a raciocinar a partir da


ideia de ontogênese de processos evolutivos (DESSEN; GUEDA, 2005),
ou seja, em uma ordem de emergência de aquisições e sua evolução.
Nesse contexto, evolução é entendida como um processo de
transformação progressiva e gradual que indica o ganho de algum grau
de aperfeiçoamento, ou seja, de progresso em uma função. Trata-se de
compreender as mudanças que ocorrem na trajetória da vida como uma
direção a ser seguida ao longo do tempo. Na perspectiva da evolução e
desenvolvimento, as mudanças caminham na direção de um ponto final
ótimo de aquisição.
Do ponto de vista da aquisição da linguagem, a ideia de
desenvolvimento linguístico acompanha a de “processo de
aprendizagem ou de construção de conhecimento”. Como explica De
Lemos (2006), “a linguagem é necessariamente assumida como objeto
que pode ser parcelado ou cujas propriedades podem ser acessadas por
uma série ordenada de processos reorganizacionais” (DE LEMOS, 2006,
p. 21). A aquisição da linguagem é compreendida como processo
cognitivo de apreensão/aprendizagem gradual do conhecimento
linguístico. Uma vez apreendido/aprendido, esse saber é
guardado/estocado para ser acessado e usado sempre que necessário,
isto é, que o ambiente demandar. Não é sem razão que o processo
demencial tomado como um processo de contínua perda da memória
seja analisado a partir da involução da linguagem – tratada como um
código habilmente manipulado pela cognição com fins comunicativos e
de expressão do pensamento, sendo por isso mesmo tomada como
instrumento que serve de apoio ao diagnóstico médico.
Quando falamos em aquisição de linguagem, a decisão
metodológica de descrever e estabelecer estágios tem como objetivo
revelar as etapas percorridas pela criança num processo ascendente.
Segundo De Lemos (1982), o que motiva o campo da Aquisição da
Linguagem (AL) é explicar a mudança da fala na trajetória da criança na
passagem de infante a falante. Os pesquisadores desejam explica-la e,
para isso, entendem que devem assumir um compromisso com a
467

diacronia e descrever a “gênese de estruturas e categorias” (DE LEMOS,


1982, p. 11). Esse compromisso pressupõe uma hierarquia de aquisição
que partiria do mais simples para o mais complexo (a língua
constituída).
No campo da Aquisição da Linguagem, as tentativas de descrição
a partir de aparatos linguísticos fracassaram ao longo dos anos. Como
relata De Lemos (2006), tentativas de descrição a fim de estabelecer
estágios de desenvolvimento ou conhecimento enfrentaram a
impossibilidade de transformar teorias linguísticas em instrumentais
descritivos. Isso porque, constatações empíricas revelaram que a ordem
de aquisição não pode ser prevista com base na complexidade da língua
a ser adquirida, bem como erros e acertos comparecem na fala da
criança em aquisição de linguagem num mesmo momento. E ainda, a
heterogeneidade e imprevisibilidade da fala da criança não impedem
que os adultos a tomem como um falante da língua e interpretem sua
fala.
Mais do que isso,

[...] enunciados fragmentados, erros e tudo o que pode


aparentemente apontar para a ausência de conhecimento
da criança não resultam nem em tentativas de ensinar a
criança a falar, nem em mal-entendidos explícitos” (DE
LEMOS, 2006, p. 23).

Embora a mudança que ocorre na fala da criança seja fenômeno


atestável, não está em causa a apropriação de um conhecimento.
O passo explicativo dado por De Lemos a partir dessa conclusão
caminha na direção do estruturalismo europeu na figura de Saussure
(1916). A autora aponta que, ao refletir sobre mudança linguística,
Saussure constata que o falante não tem consciência das mudanças
semânticas, fonéticas, morfológicas, entre outras, que podem ter
ocorrido ao longo do tempo. Há evidências, segundo ele, de que as
mudanças não causam rupturas na comunidade falante. O sujeito
468

reconhece a variação, mas não tem consciência da mudança que ela


engendra na Língua, pois fatores históricos e culturais particulares
acabam por ser obliterados quando a diferença é absorvida pela
comunidade falante, sendo posta em movimento pelo funcionamento de
la langue – “sistema autônomo de relações” (DE LEMOS, 2006) que
comanda todas as manifestações da linguagem.
A aproximação à reflexão saussuriana sobre a mudança linguística
ilumina a discussão de De Lemos sobre a aquisição da linguagem. Para
Saussure, o estudo da linguagem comporta duas partes, uma essencial
“cuja realidade é independente da maneira como é executada” e outra
secundária, “dependente da execução (...) dos que falam” (SAUSSURE,
1916/1969). Destaca-se, assim, que em matéria de linguagem há
condições singulares, mas há as que são “permanentes”.
De Lemos (2006) entende como condições permanentes:

“O ato do falante como lugar em que emerge uma diferença;


os processos através dos quais o falante é identificado e se
identifica com o outro, cuja alteridade é obliterada em
favor de um assemelhamento, obliteração essa que incide
sobre diferenças linguísticas; e, finalmente, la langue como
sistema de relações internas, que oblitera a cena ou ato
individual quanto a semelhança como efeito do processo de
identificação”. (De Lemos, 2006, p. 27)

O reconhecimento da ordem própria da Língua, ou seja, de la


langue obriga a suspender a ideia de desenvolvimento, a dizer não à
noção de acúmulo gradual de conhecimento. La langue é anterior ao
sujeito (já existia antes dele) e ele não tem o poder de controlá-la e nem
tem acesso a ela sem a presença do outro – um já falante. Deve-se
entender, assim, a mudança que ocorre no processo de aquisição da
linguagem como mudança na relação entre o sujeito, a Língua e o outro.
A mudança é, assim, de posição.
Nessa perspectiva, a aquisição de linguagem, longe de ser um
processo de aprendizagem ou acúmulo gradual de conhecimento,
469

“é definida como um processo de subjetivação configurado


por mudanças de posição da criança numa estrutura em
que la langue e a parole do outro, em seu sentido pleno,
estão indissociavelmente relacionados a um corpo
pulsional, i.e. à criança como corpo cuja atividade demanda
interpretação” (De Lemos, 2006,p.28).

As mudanças na fala da criança são consequência de mudanças


de posição em relação à fala do outro, em relação à língua e relação à
sua própria fala. E como se trata de mudança estrutural não há
superação e nem ordenação em etapas. Mais do que isso, a autora nos
chama atenção para o fato de que: “[...] nenhuma dessas relações
estruturais deixa de comparecer na fala adulta, que está longe de se
manter homogênea através de diferentes tipos de discurso e de
situações”. Não se pode falar então em evolução da linguagem, podemos
dizer involução da linguagem nos casos de demência?
Se há sintoma na linguagem, em primeiro lugar é preciso admitir
que:

“no particular de uma fala, “há língua” – um funcionamento


simbólico [universal] que é condição de possibilidade de
fala e de haver falante. Nisso reside o cerne das reflexões
sobre a linguagem e as patologias da linguagem” (LIER-
DeVITTO, 2006).

Landi (2007) discutiu a referência externa da linguagem na


demência e afirmou que a fala desses pacientes é comandada pelas
referências internas da língua e a referência externa fica abalada; perde-
se a função comunicativa. Isso quer dizer que mesmo “desorientado”, o
demenciado fala as suas vivências. Há língua, há falante, há memória na
demência.
Na demência, fragmentos vindos de textualidades diversas
irrompem na fala e a descaminham. Na maioria das vezes, os
470

demenciados não se dão conta imediatamente dos deslizamentos


desestruturantes e disruptivos deixando o discurso à deriva.
Interessante que em alguns momentos, mesmo nos estágios avançados
da doença, o paciente está sob efeito do que diz.
Falas de pacientes com demência revelam uma “dissolução
subjetiva” - o passado vai sendo esquecido, o laço social se esgarça e
tem-se um abalo na unidade imaginária do eu. Entendemos que a perda
de laço social, de memória e de localizações espaço–temporais sejam
sinais inequívocos, recolhidos pelas clínicas. A diferença entre elas está
no modo de explicação sobre a relação linguagem-memória e no quanto
e no como abordam a questão do sujeito e seu sofrimento. A partir de
Carvalho e Lier-DeVitto afirmamos que a teoria afeta o corpo do clínico.
O ponto não está, portanto, na constatação dos sintomas e nas ditas
perdas, e sim em reconhecer, nessas falas, ligações esparsas do sujeito
com uma história – uma história que fica fragmentada e descosturada
em sua fala (EMENDABILI, 2010).
Com Lier-DeVitto (1999) afirmamos que “na fala, há falante”. Se
assim é, como afirmam Fonseca e Landi (2004, p. 315), desconsiderar
isto tem uma consequência fundamental – “a diluição da singularidade
das condições subjetivas da criança” e do demente. Encontramos nas
demências falas sintomáticas e esta é a particularidade em relação à fala
de crianças. Ainda com as autoras, “é a condição sintomática de uma fala
que exige, então, que se leve em conta uma diferença fundamental, qual
seja: a dimensão de um sofrimento” (idem, p. 319). É necessário
problematizar a relação do sujeito com a linguagem.
“Se, no Interacionismo, a heterogeneidade da fala da criança
obstaculiza a ordenação do processo de aquisição em etapas, nas afasias
[... e também na demência] é essa condição subjetiva do falante que
impede pensar que esse processo patológico seja um espelho invertido
da aquisição da linguagem” (idem, p. 319). Consideramos, portanto, que
o modo de presença da criança e do paciente com demência na
linguagem é distinto. Não se trata de uma questão evolutiva ou
involutiva da linguagem, mas sim de mudança sintomática ou não.
471

Encerramos esta apresentação com um pequeno recorte de uma


sessão de atendimento fonoaudiológico de um paciente com diagnóstico
de demência em estágio intermediário para avançado. Sr. J. está em
atendimento fonoaudiológico há três anos em uma ILPI (Instituição de
Longa Permanência para Idosos) e sua queixa no início do atendimento
era a de que ele apresentava “dificuldades de linguagem” (sic). Curioso
é que, geralmente, a queixa inicial nos casos de demência está articulada
à memória e neste caso era sempre referente ao seu discurso ou escrita.
Sr. J. diz/dizia, na maioria das sessões, sobre seu incômodo em relação à
velhice e sobre sua condição de fala, este incômodo e sofrimento são
crescentes, assim como sua dificuldade de fala. Neste momento do
atendimento, o paciente apresenta uma fala evanescente, uma fala que
se apresenta de modo articulado e em seguida é uma fala que hesita, que
se revolve em si. O importante aqui é conseguirmos apreender a posição
de falante que Sr. J. assume e que mesmo neste “estágio da demência”
consegue enunciar algo que está desde o início de seu processo.

O Senhor está com dor para engolir, Sr. J.? (Faz feição de dor para engolir)
O Senhor está com dor para engolir?
Eu to. To com dificuldade de de de falar
de me mu de me mu mudar, de engolir...
E por que será que ta com dificuldade? De
onde sera que ela vem?
É. De de de de de de de de de do interior.
É uma du/ uma dúvida que ficou.
Uma dúvida que ficou. Que vem do O que é.
interior. E o senhor não consegue
esclarecer essa dúvida e nem saber o
que/

Este fragmento nos coloca a questão tanto do aprisionamento na


fala quanto a do sofrimento subjetivo, o que é muito diferente de uma
fala de criança em aquisição da linguagem. Falas como essas não podem
ser tomadas como um retrocesso ou mesmo retorno a uma posição
subjetiva anterior, é outra dimensão que está em jogo.
472

Referências bibliográficas

DE LEMOS, C. T. G. Sobre a aquisição da linguagem e seu dilema (pecado


original). Boletim da Abralin, v. 3. Recife: Editora da Universidade
Estadual de Pernambuco, 1982.
______. Uma crítica (radical) à noção de desenvolvimento na Aquisição
da Linguagem. In: MARIA FRANCISCA LIER-DeVITTO & LÚCIA
ARNATES (orgs.) Aquisição, patologias e clínica de linguagem. São
Paulo: EDUC/FAPESP, 2006. p. 21-32.
DESSEN, M. A. & GUEDEA, M. T. D. A ciência do desenvolvimento
humano: ajustando o foco de análise. Paidéia-Cadernos De Psicologia
E Educação, 15, 11-20, 2005.
Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Firfth
Edition, DSM-V, by the American Psychiatric Association, Washington,
D.C., American Psychiatric Association, 2013.
EMENDABILI, M. E. T. Um estudo de perspectivas teórico-clínicas nas
demências: sobre a relação linguagem, memória e sujeito. 93 f. 2010.
Dissertação de Mestrado em Linguística Aplicada e Estudos da
Linguagem – LAEL, PUC, São Paulo, 2010.
FONSECA, S.C. O afásico na clínica de linguagem. 267 f. 2002. Tese de
Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem – LAEL,
PUC, São Paulo, 2002.
______. O estatuto da entrevista no processo diagnóstico da afasia. In:
MARIA FRANCISCA LIER-DeVITTO & LÚCIA ARNATES (orgs.)
Aquisição, patologias e clínica de linguagem. São Paulo:
EDUC/FAPESP, 2006.p. 331-340.
FONSECA, S. C.; LANDI, R. Questões sobre a correlação entre estágios de
aquisição da linguagem e estados afásicos. Letras de Hoje, Porto Alegre,
v. 39, p. 313-321, 2004.
JAKOBSON, R. Dois aspectos da linguagem. Dois tipos de afasia. In: ______.
Linguística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1954.
LANDI, R. Falas Vazias: língua, referência e sujeito na demência. 125 f.
2007. Tese de Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da
473

Linguagem – LAEL, PUC, São Paulo, 2007.


LIER-DEVITTO, M.F., FONSECA, S.C., LANDI, R. Vez e voz na linguagem: o
sujeito sob efeito de sua fala sintomática. Revista Kayrós. São Paulo,
2007.
LIER-DEVITTO, M.F. (2006). Patologias da linguagem: sobre as
“vicissitudes de falas sintomáticas”. In: MARIA FRANCISCA LIER-
DeVITTO & LÚCIA ARNATES (orgs.) Aquisição, patologias e clínica de
linguagem. São Paulo: EDUC/FAPESP, 2006.p. 183-200.
MAC-KAY, A.P.M.G., ASSENCIO-FERREIRA, V.J., FERRI-FERREIRA, T.M.S.
Afasias e demências: avaliação e tratamento fonoaudiológico. São
Paulo: Santos Editora, 2003/2007.
MARCOLINO-GALI, J. F. A relação linguagem-memória nas
demências: abrindo a caixa de pandora. 156 f. 2013. Tese de
Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem – LAEL,
PUC, São Paulo, 2013.
ROMERO, S. B. Intervenção Fonoaudiológica nas Demências. In: K.Z.
ORTIZ (org.) Distúrbios neurológicos adquiridos: linguagem e
cognição. São Paulo: Lovise Editora, 2005. p. 312-319.
SAUSSURE, F. De Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix,
1916/1991.
TESSER, E.. Doutorado Reflexões sobre o diálogo: sob(re) o efeito da
clínica de linguagem com afásicos Mestrado em Linguística Aplicada e
Estudos da Linguagem – LAEL, PUC, São Paulo, 2007.
474

JOGOS DE PALAVRAS NA POESIA INFANTIL DE CECÍLIA MEIRELES:


UMA ABORDAGEM LINGUÍSTICO-ESTRUTURALISTA

Alexandrina Verônica Guedes das Neves, UNICAP


Glória Carvalho
Maria de Fátima Vilar

RESUMO: Este trabalho tem por objetivo fornecer indicações de uma


análise de jogos de palavras que compõem a poesia infantil, sob o
enfoque linguístico-estruturalista. Nessa perspectiva, destaca-se, não o
conteúdo das palavras, mas a sua materialidade fônica, por meio,
sobretudo, das figuras de som (assonâncias e dissonâncias). Por sua vez,
nessa materialidade fônica, são focalizados os dois polos de
funcionamento da língua – os processos metafóricos e metonímicos –
segundo a leitura realizada por De Lemos (2002), em aquisição de
linguagem. A título de exemplo, analisamos um poema de Cecília
Meireles extraído de seu livro: Ou isto ou aquilo que é considerado um
clássico da literatura infantil.

PALAVRAS-CHAVE: Poesia infantil; jogos de palavras; figuras de som;


processos metafóricos e metonímicos.

ABSTRACT: This work aims to provide indications of an analysis of


word games that make up the Children's poetry, under the language-
structuralist approach. From this perspective, is emphasized not the
content of the words, but their phonic materiality through, especially the
figures of sound (assonance and dissonance). In its turn, on this phonic
materiality, are focused the two poles of language functioning -
metaphoric and metonymic processes – by the reading performed by De
Lemos (2002), in language acquisition. As an example, we analyzed a
poem by Cecilia Meireles extracted from her book: Either this or what ,
considered as a classic of children's literature.
475

KEYWORDS: Children's poetry, word games, sound figures;


metaphorical and metonymic processes.

1 Introdução

Este artigo possui, como objetivo, realizar uma abordagem


linguístico-estruturalista de jogos de palavras que compõem um poema
infantil. Com esse objetivo, pretendemos indicar – num poema
selecionado da obra poética infantil Ou isto ou aquilo de Cecília Meireles
(2002), tanto as formas de funcionamento da língua (os processos
metafóricos e metonímicos), como as figuras de som – as assonâncias, as
dissonâncias e as aliterações – à luz do enfoque linguístico-
estruturalista.
Destacamos um gênero da literatura, a poesia, que constitui nosso
objeto de interesse. Paz (1982, pp. 16-17), declara que: O poético é a
poesia em estado amorfo: o poema é a poesia que se ergue [...] o poema
não é a forma literária, mas o lugar de encontro entre a poesia e o homem.
O poema é o organismo verbal que contém, suscita ou emite poesia. Forma
e substancia são a mesma coisa. Drummond de Andrade (1930) indaga:
“Por que motivo as crianças, de modo geral, são poetas e, com o tempo,
deixam de sê-lo?”; a poesia, assim como as histórias, chega com
princípios pedagógicos às escolas e instituições e não se consegue
entender a capacidade da criança de ver e entender o mundo
poeticamente.
Ressaltamos, contudo, que o nosso estudo não tem o compromisso
com a abordagem pedagógica e, sim com a linguística estruturalista, em
sua vertente francesa que será colocada mais adiante com o objetivo de
fundamentar uma indicação de análise dos jogos de palavras que
compõem um poema infantil. Antes, porém abordaremos algumas
questões relativas à literatura infantil e, mais especificamente, à poesia
infantil.
476

2 Literatura: para criança, para adulto

A literatura traz, em sua essência, a arte da palavra. Vindo do latim


litteratis significa letras; conjunto de saberes concernentes a escrever e
ler bem e se relaciona com as artes da gramática, retórica e poética. Nas
palavras de Coutinho:

[...] é uma transfiguração do real, é a realidade recriada


através do espírito do artista e retransmitida através da
língua para as formas, que toma corpo e nova realidade.
Passa, então a viver outra vida, autônoma, independente do
autor e da experiência de realidade de onde proveio.”
(COUTINHO, 1978, pp. 9-10)

A obra de Aristóteles registrada entre os anos 335 a. C e 323 a. C,


Arte poética, serve de referência para a teorização e a divisão dos
gêneros literários. A divisão clássica existe desde a Antiguidade e partiu
de questionamentos daquilo que representaria o literário e de que
maneira essa representação seria produzida. Nesse texto, também o
filósofo grego afirma ser a arte uma imitação e justifica: “ O imitar é
congênito do homem (e nisso difere dos outros viventes, pois de todos,
é ele o mais imitado e, por imitação, aprende as primeiras lições) e os
homens se comprazem no imitado”.
Assim, na diversidade literária, a literatura ultrapassa o tempo,
integra as instituições sociais e oferece à sociedade leitora e não leitora,
a oportunidade de vivenciá-la em toda a sua plenitude.
Ainda no século passado, a literatura toma lugar no universo
infantil e se identifica também como aliada às questões pedagógicas e à
sensibilização do público mirim. Todavia, a suposta divisão entre
literatura para crianças e para o adulto trouxe alguns questionamentos
que divergem em muitos aspectos. A escritora de livros infantis e
pesquisadora do tema Lúcia Pimentel Góes reconhece que não é fácil
definir o que é literatura infantil. Ela situa o debate sobre o tema e
propõe considerar que:
477

(...) literatura infantil é, antes de tudo, “ literatura”, isto é,


mensagem de arte, beleza e emoção. Portanto, se destinada
especificamente á criança, nada impede (pelo contrário)
que possa agradar ao adulto. E nada modifica a sua
característica “literária” se, escrita para o adulto, agradar e
emocionar a criança. (...) Literatura infantil é linguagem
carregada de significados até o máximo grau possível e
dirigida ou não às crianças, mas que responda às exigências
que lhe são próprias (GÓES, 1991, pp. 15-16)

Responder a essas exigências é considerar que a literatura


direcionada à criança deve ser de boa qualidade e que deva ter
parâmetros de comparação e atenda a possíveis preferências.
Sendo assim, a escolha do texto tem grande importância dentro
deste contexto e oferece oportunidade aproximação e identificação com
o que se lê claro, longe de uma retórica elevada que dificultará o
entendimento. A poetisa Cecília Meireles, autora de poesias infantis, diz
a respeito:

Evidentemente, tudo é uma literatura só. A dificuldade


está em delimitar o que se considera especialmente do
âmbito infantil. São crianças na verdade que delimitam
com sua preferência. Costuma-se classificar Literatura
Infantil o que para elas se escreve. Seria mais acertado,
talvez, assim classificar o que elas leem com utilidade e
prazer. Não haveria, pois, uma literatura infantil a priori,
mas a posteriori. (1984, p.20).

Para Roman Jakobson (apud Eichenbaum, 1971, p.8), “o objeto de


estudo da ciência da literatura não é a literatura, mas a ‘literariedade’,
ou seja, o que faz que uma obra possa ser considerada uma obra
literária”.
478

Assim, o modo especial de elaboração da linguagem é que faz o


texto ter sentido. Por isso a qualidade do poema levado à criança é de
extrema importância neste processo de escolha.
Considerando, a princípio, que dividir a literatura depende menos
de sua produção e sim de sua recepção, comenta Drummond de Andrade
(1964),

“A partir de que ponto uma obra literária deixa de


constituir alimento para o espírito da criança ou do jovem
e se dirige ao espírito do adulto?... Será a criança um ser à
parte, estranho ao homem e reclamando uma literatura
também à parte? Ou será a literatura infantil algo de
mutilado, de reduzido, de desvitalizado?” (p,8).

Reforça-se, então, a importância da escolha do texto, bem como a


forma de chegar até à criança. Desde cedo, a criança que entra em
contato com a obra literária escrita terá oportunidade de desenvolver
seu potencial criativo e ampliar os horizontes da cultura e do
conhecimento, percebendo o mundo e a realidade que a cercam. Mas,
nem sempre foi assim; a literatura infantil nasce na Europa, a partir de
histórias contadas em rodas de adultos que, no entanto, também eram
frequentadas por crianças. Teve seu início às vésperas do século XVIII,
quando, em 1697, Charles Perrault publicou os célebres Contos da
mamãe gansa. Por sua vez, a literatura infantil brasileira só veio surgir
muito tempo depois, quase no século XX, muito embora ao longo do
século XIX reponte, registrada aqui e ali, a notícia do aparecimento de
uma ou outra obra destinada à criança.
Em 1921, Monteiro Lobato publica Reinações de Narizinho, após
ter se preocupado com a literatura infantil, conforme sugere a
correspondência trocada com Godofredo Rangel, com quem comenta a
necessidade de se escreverem histórias para crianças numa linguagem
que as interessasse.
479

3 Sobre a poesia infantil

Um artigo publicado pelo escritor e ilustrador de livros infantis


Camargo (1999) trata da relevância de nos remetermos a um panorama
histórico da poesia infantil brasileira. Esse autor demonstra que o
gênero poesia infantil surgiu no Brasil de braços dados com a escola,
visando, especialmente, à aprendizagem da língua portuguesa. No final
do século XIX, começaram a surgir textos em prosa e verso que
passaram a ser utilizados como livros de leitura escolar. Esse forte
vínculo com a escola que, no século XX, se estende até os anos 60, faz
com que a poesia infantil siga um paradigma moral e cívico,
aconselhando os leitores infantis ao bom comportamento e ao civismo.
Muitas citações de autores de livros infantis sobre poesia
mostram a diversidade de aspectos que o contato com esse gênero
proporciona ao desenvolvimento da criança: “Poesia, arte de mexer bem
com as palavras, de modo a despertar nelas um sentido oculto do dia a
dia” (Paixão,1996) ou mesmo “O principal elemento da poesia é a
criatividade com as palavras” (Silvestrin, 1998). Nota-se com base
nessas citações, o quanto é relevante para lidar com a linguagem e,
especificamente, com a língua escrita conhecer e gostar de poesia. Esse
gênero pode ser visto como instrumento que propicia uma série de
reflexões sobre a língua por parte do público infantil.
A produção poética para a infância solidificou-se nos últimos anos,
não só em termos de quantidade (proporcionalmente aos outros
períodos) e diversidade, como em termos de qualidade, desvencilhando-
se do recorte pedagógico e didático a que nos referimos antes. Nesse
amadurecimento, a poesia infantil brasileira aproxima-se da não infantil
do mesmo período, igualmente fértil em experiências poéticas que
englobam tanto o engajamento ideológico quanto a ruptura com a
poesia marginal.
Até a década de 60, a poesia infantil brasileira guardava resquícios
parnasianos, quer pelo conservadorismo formal, quer pelo seu
compromisso com a pedagogia. A crença no poder comunicativo dos
480

versos é tão forte que, ao longo da tradição da poesia infantil brasileira,


valores ideológicos emergentes foram sempre confiados à força
persuasória de poemas.
A poesia talvez seja um dos gêneros da literatura (infantil) mais
sacrificada e muitos são os motivos; imaginamos que a criança não gosta
de poesia e, às vezes, a falta de sensibilidade do professor o leva não
querer trabalhar o gênero em sala de aula; convém realçar que a escolha
do poema levado à criança como já citado, é extremamente importante.
Por sua vez, a poesia é ouvida na boca da criança espontaneamente e,
muitas vezes, surpreendemo-nos com falas intensamente poéticas
produzidas pelos pequeninos. Esse gênero literário possui uma
linguagem afetiva que agrada muito à criança, uma vez que o mundo
infantil é rodeado de fantasias e imaginação, assim como as produções
poéticas que tocam os pequenos leitores/ouvintes de maneira divertida
e simples criando, assim, uma tendência natural para gostar do gênero.
Vale lembrar, também, que o poeta lida com a ludicidade verbal,
sonora e musical; pode ser engraçada no seu formato ou no seu contexto
e jogar com significados diferentes, tornando-a divertida e fácil de ser
memorizada.
Nessa perspectiva, (PAIXÃO, 1993) comenta:

A relação entre a simbolização e linguagem é tão íntima ao


ponto de não se saber o que pode ter surgido primeiro; se
a capacidade de o homem se expressar organizadamente
através de códigos e línguas, ou se a necessidade de criar
signos (palavras, sons, gestos, etc) para signar os objetos da
realidade. A linguagem, por sua vez, permitiu o nascimento
da arte, que é uma atividade onde se manifesta
intensamente a criação simbólica.

Assim mesmo tratando de literatura e por sua vez a literatura


poética, podemos dizer que nem as palavras possuem substância
concreta, mas sim aparente; concluímos que os signos sempre
habitaram as artes, indo contra ou a favor da realidade ou mesmo
481

criando situações fantásticas e imaginárias. Na poesia habitam


signos que traduzem os gritos ecoados, os sentimentos mais profundos
do ser humano, ser, que um dia foi criança.
Quando pensamos, com exclusividade, em poesia infantil,
agrupamos uma série de elementos que a compõem: o ritmo, marca
essencial da poesia, possibilita o acompanhamento musical ao que é lido
ou ouvido; o jogo de palavras que, também é muito usado em poesias
infantis, trazendo à poesia a brincadeira, o desafio de ler; a rima,
também é muito importante porque causa fácil memorização e joga com
as semelhanças de sons, as homofonias; as onomatopeias fazem a
criança entrar no mundo das palavras inventadas de forma a querer
descobrir e criar novas palavras, e as assonâncias e aliterações, figuras
de som que permitem o brincar com a materialidade fônica. Ressaltamos
também que a metáfora e a metonímia não são de difícil compreensão,
uma vez que, surpreendentemente, como já referido, essas figuras de
linguagem ou estilo, são ouvidas espontaneamente por algumas crianças
e fazem parte de suas descobertas com a língua.
A linguagem do poema ofertado à criança deve ser simples, sendo
inaceitáveis, para a infância, o rebuscamento e a retórica, às vezes,
difíceis até para o adulto. Os poemas curtos são os mais aconselháveis
porque facilitam a memorização e a observação do ritmo. Assim, quanto
menor o número de elementos conceituais, quanto maior a exploração
do sentimento e do sensorial, melhor será a acolhida entre as crianças,
sendo os poemas narrativos e os descritivos são de certa forma, os mais
fáceis e interessantes por encenarem uma história.
Embora haja muitas controvérsias, ao que tudo indica, o poema
modernista seria um dos tipos que mais possibilitam o interesse da
criança, por se aproximar da experiência infantil, na medida em que a
poesia de hoje está muito próxima das cantigas populares, do folclore,
das cantigas de ninar, dos versos de roda, dos jogos, das coisas que estão
verdadeiramente próximas à criança por meio de sua identidade
cultural e social. Assim, ao entrar na escola, esta experiência continuará
nas outras etapas escolares, uma vez que as experiências não acabam e,
482

fortalecem assim o campo da poesia. É importante lembrar, conforme foi


destacado antes, que, embora seja muito comum, na atualidade, a
abordagem da poesia na escola – considerando-a como um instrumento
facilitador da aprendizagem da língua (oral e escrita) –, não temos o
compromisso com essa abordagem pedagógica e sim, com o enfoque
linguístico-estruturalista em sua vertente francesa.

4 Abordagem linguístico-estruturalista da poesia infantil: um


exemplo

Por meio de sua concepção sistêmica de língua, Ferdinand de


Saussure fundou a linguística como ciência, sendo formuladas as
dicotomias: langue / parole, sincronia / diacronia, significado /
significante e relações paradigmáticas / relações sintagmáticas. Na
linguista de Saussure, às relações sintagmáticas opõem-se as relações
associativas (Saussure não fala em relações paradigmáticas). Este autor
propôs a distinção entre eixo sintagmático (eixo horizontal de relações
entre as unidades da cadeia falada, que se dão em presença) e eixo
paradigmático (eixo vertical das relações virtuais entre unidades
comutáveis, que se dão em ausência). No primeiro eixo, abrem-se as
relações que pertencem ao domínio da fala, a segunda pertence ao
domínio da língua. Neste caso, todas as palavras podem ser comutáveis,
dependendo do contexto e da natureza do enunciado.
Por sua vez, Jakobson (1985), partindo das ideias de Saussure a
respeito das relações associativas e sintagmáticas, reinterpreta e
renomeia essas relações a partir das figuras de linguagem existentes na
retórica clássica, respectivamente, metáfora e metonímia, termos hoje
conhecidos como processos metafóricos e metonímicos. Segundo
Jakobson (1985), o processo metafórico consiste na seleção e
substituição de um termo por outro, seguindo o critério de semelhança.
Já o processo metonímico, apresenta, como característica, a
contiguidade, o que indica que envolve a combinação de itens verbais e
o contexto em que unidades mais simples se incluem em uma unidade
483

linguística complexa. De Lemos (2002, 1998), numa releitura de


Jakobson, concebe os processos metafóricos e metonímicos como
mecanismos responsáveis pela mudança na relação da criança com a
língua durante a sua trajetória linguística. Tais processos assumem um
caráter explicativo e descritivo dos variados aspectos da fala da criança.
Essa autora, em sua abordagem das produções verbais infantis, indica a
dominância do processo metonímico na fala inicial da criança, fazendo-
se presente, posteriormente, o processo metafórico o qual traz à tona a
relação entre o termo substituto e o termo latente, naquelas produções.
As figuras de linguagem – a metonímia e, sobretudo, a metáfora
– são visíveis nos textos poéticos, favorecendo a riqueza de detalhes
transcrita nos versos e o efeito produzido pela seleção de determinada
palavra; o mesmo acontece com o poema infantil que, brincando com
palavras, permite à criança a percepção da sonoridade e da construção
de suas rimas. Para Lemos (2002) “A poesia é feita de rupturas da
língua”. Essa autora assinala, então, a ruptura que o novo provoca nos
sentidos constituídos.
Retomemos, então, nossa proposta que consiste em fornecer
indicações de uma tentativa de analisar a poesia infantil, no enfoque
linguístico-estruturalista, apontando para os processos metafóricos e
metonímicos e as figuras de som presentes nos jogos de palavras. A
título de exemplificar essa tentativa, optamos pelo livro de Cecília
Meireles (2002) intitulado Ou isto ou aquilo publicado, inicialmente, em
1964, sendo considerado um clássico da literatura infantil, que reúne
poesias e musicalidade sobre os sonhos e as fantasias que povoam o
imaginário da criança, na medida em que ele é composto por produções
poéticas cujos jogos de palavras ganham especial visibilidade. Desse
livro, retiramos um poema – Colar de Carolina –, dentre os cinquenta e
seis que o compõem, levando em conta, nessa escolha, o efeito que
provoca, no leitor, sua materialidade fônica.
Em relação a esse poema, realizamos, então, os passos seguintes:
uma abordagem inicial que consiste numa primeira leitura cuidadosa e
atenta do material; uma segunda leitura por meio da qual foram
484

selecionados e colocados em fichas os jogos de palavras encontrados;


um agrupamento desses jogos de palavras a partir dos processos
metafóricos e metonímicos e das figuras de som – assonâncias,
dissonâncias e aliterações, neles presentes.
A título de ilustração, segue a tentativa de análise do poema
selecionado:

COLAR DE CAROLINA
Com seu colar de coral,
Carolina
Corre por entre as colinas
Da colina.

O colar de Carolina
Colore o colo de cal,
Torna corada a menina.

E o sol, vendo aquela cor


Do colar de Carolina,
Põe coroas de coral

Nas colunas da colina.


(MEIRELES, [1964] 2002, p, 13)

No poema transcrito, observamos jogos de palavras produzidos a


partir de semelhanças de som:

1ª estrofe
Com/ colar/ coral – 1º- verso da 1ª- estrofe
Carolina/ corre/ colunas/colina – 2º-, 3º- e 4º- verso da 1ª-
estrofe.
Encontramos o jogo rimático em Carolina e colina com ênfase
nas aliterações encontradas com repetição da letra C
Na 2ª- estrofe, os sons também se assemelham em:
485

Colar- Carolina – 1ª- verso


Colore- Colo- Corada- 2º- e 3º- verso
O jogo de rimas é percebido nas palavras Carolina/ menina
E as assonâncias compreendidas na repetição das vogais O e A.
Na 3ª- estrofe encontramos também os sons semelhantes:
Cor/ Colar/ Carolina/ Coroas/Coral – 1º, 2º e 3º- verso
Observamos também que as rimas se fazem na construção do 1º e
3º- verso- Cor/ Coral
E com as palavras Carolina/ Colina- esta última no último verso.
Apreendemos, no poema, um jogo de rimas cruzadas A/B/A/B e
novamente a predominância das aliterações e assonâncias distribuídas
no jogo de palavras nas palavras com a sílaba inicial C. Temos também
uma predominância do que chamamos “rimas pobres” porque as
palavras que rimam (Carolina/ colina/ menina) pertencem à mesma
classe gramatical, no caso do poema acima, o substantivo.
Com relação aos processos metonímicos e metafóricos, estes
ganham visibilidade especial no poema em questão. Por exemplo,
destacou-se, como processos metafóricos, o 3° verso da 3ª estrofe:
coroas de coral; essa expressão substituiu a expressão “reflexos cor de
laranja”, provocando no leitor um efeito poético.
Quanto ao processo metonímico, este prevalece em todo o poema
na medida em que, por suas assonâncias e aliterações, as palavras
convocam umas às outras, ou melhor, articulam-se umas às outras.
Exemplo: Carolina/ corre/ colunas/colina.
Convém notar que se trata de uma dominância de um processo ou
de outro, na medida em que, segundo os autores assumidos (Jakobson,
2008, Saussure, 2006, Lemos, 2002), um processo não existe sem o
outro.

Considerações Finais

No poema recortado, indicamos algumas figuras de som cuja


singularidade ganha realce, na medida em que se trata de poesia infantil.
486

Do mesmo modo, revela-se a forma singular de funcionamento dos


processos metafóricos e metonímicos que se tornam, especialmente,
visíveis nesse tipo de composição. Ao que parece, tais indicações
mostram um caminho a ser percorrido, no sentido de levar adiante essa
proposta de abordar a chamada poesia infantil, visando a favorecer uma
melhor apreensão de sua singularidade.
Por sua vez, essa abordagem nos faz retomar a pergunta
formulada por Drummond de Andrade (1930) “Por que motivo as
crianças, de modo geral, são poetas e, com o tempo, deixam de sê-lo?”
Acreditamos que essa indagação possa, futuramente, servir de
eixo para um confronto entre os jogos de palavras, no poema infantil, e
as produções verbais da criança num determinado momento de sua
trajetória linguística, levando, portanto, a uma proposta de articulação
entre os campos da poesia e da aquisição de linguagem.

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. Belo Horizonte:


Edições Pindorama, 1930.
CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Como ensinar literatura infantil. 2.
ed. Belo Horizonte: Editora Bernardo Álvares, 1970.
DE LEMOS, C. T. Los processos metafóricos e metonímicos como
mecanismos de cambio. Substratum 1 (121-135), 1992.
______. Poética e Significante. Letras e Letras, Uberlândia 25(1) 207-
218- jan./ jun. 2009.
GÓES, Lúcia Pimentel. Introdução à literatura infantil e juvenil. 2. Ed.
São Paulo: Pioneira, 1991.
JAKOBSON, R. Linguística e Comunicação. São Paulo: Editora Cultrix,
2008.
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira:
histórias e histórias. 6. ed. São Paulo: Ática, 1999.
MEIRELES, Cecília. (1964). Ou isto ou aquilo. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2002.
487

PAIXÃO, Fernando. Poesia a gente inventa. São Paulo: Ática, 1990.


PINHEIRO, Helder. Poesia na sala de aula. Campina Grande: Bagagem,
2007.
SILVA, Maria Tavares; RODRIGUES, Etiene Mendes (orgs). Caminhos da
leitura literária – propostas e perspectivas de um encontro.
Campina Grande: Bagagem, 2009.
SILVESTRIN, R. Poesia infantil. Rio Grande do Sul: Ed. Projeto, 1998.
SOUZA, Ivane E. Poesia em práticas de alfabetização. In: BRANDÃO, C.
P.; ROSA, E. C. S (orgs) Leitura e produção de textos na alfabetização.
Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Editora Cultrix,
2006.
488

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO DA CRIANÇA COM


A LÍNGUA

Irani Rodrigues Maldonade


FCM/IEL-Unicamp
irani@fcm.unicamp.br
iranirm@uol.com.br

RESUMO: Objetiva-se aqui refletir sobre os movimentos da língua na


fala de M (uma criança brasileira gravada semanalmente de 1:6 a 4:6
anos de idade), ao analisar erros e/ou autocorreções que acontecem em
diferentes níveis de descrição linguística. Um dos desafios do quadro
teórico interacionista de De Lemos, que aqui se faz adesão foi o de
explicar como seria possível chegar à ordem da língua na fala da criança
a partir das estruturas dialógicas, já que nesta perspectiva rejeita-se a
simples transposição das categorias linguísticas para a fala da criança.
Em etapa anterior desta pesquisa, duas situações em que a língua foi
colocada em destaque na fala de M foram analisadas: 1) aquela em que
a mensagem se refere à própria mensagem e 2) aquela em que a
mensagem se refere ao código, nos termos de Jakobson (1974). Essas
duas situações relacionam-se ao deslocamento do sujeito no processo
de aquisição da linguagem, porém de formas diferentes. Na primeira
situação, a criança se encontra frequentemente, na primeira posição da
criança, de acordo com a proposta de De Lemos (2002), enquanto que
na segunda situação, a criança se encontra na segunda ou terceira
posição. A terceira corresponde ao que, na literatura da área, relaciona-
se à “capacidade metalinguística” da criança. Os resultados mostraram
aqui que as autocorreções constituíram dados preciosos para análise,
pois é a própria criança que ao escutar-se, reconhece uma diferença
entre a fala do outro e a sua, mostrando relacionar-se de modo diferente
com a língua. A análise de dados permitiu concluir que a explicitação das
relações linguísticas pela criança não parece ser um passo necessário no
processo de aquisição da linguagem, assim como foi possível observar
489

que a subjetividade está sempre inscrita no trabalho do sujeito com a


língua/linguagem.

PALAVRAS-CHAVE: aquisição da linguagem; erros; interacionismo.

ABSTRACT: This work aims at reflecting on the movements of the


language in M’s speech (a Brazilian child recorded weekly from 1:6 to
4:6 years old), by analyzing errors and/or self repairs that occur at
different levels of linguistic description. One of the challenges of
interactionist theoretical framework of De Lemos, which is adhered
here was to explain how it would be possible to reach the order of
language in the child's speech from the dialogic structures, since in this
perspective the simple transposition of categories language to the
child's speech is rejected. In an earlier stage of this research, two
situations in which the language was highlighted in the speech of M were
analyzed: 1) one in which the message refers to the message itself, and
2) one in which the message refers to the code, according to Jakobson
(1974). These two situations are related to the displacement of the
subject in the language acquisition process, but in different ways. In the
first situation, the child is often placed in the first position of the child,
according to the proposal of De Lemos (2002), while in the second
situation, the child is in the second or third position. The third
corresponds to that in the literature related to the "metalinguistic
capacity" of the child. The results here showed that self repair
constituted precious data for analysis, because when the child listen to
himself recognizes a difference between the other’s speech and him,
showing different relation to the language. The data analysis showed
that the explicitation of linguistics relations does not seem to be a
necessary step in the language acquisition process, as it was possible to
observe that subjectivity is always inscribed in the subject work with
the language.

KEYWORDS: language acquisition; errors; interactionism.


490

1. Introdução

Dentre os inúmeros fatos linguísticos que ocorrem durante o


processo de aquisição da língua materna, há um produto singular, na fala
da criança: o erro, às vezes acompanhado de autocorreção, que tem
provocado intensas discussões entre os pesquisadores da área. Tem
sido possível notar que a reflexão sobre o tema exige do investigador
que se discuta, também, um pouco dos efeitos atrelados a esses fatos; o
que nos permite focalizar, em última instância, a relação do sujeito com
a língua/linguagem.
Na literatura da área de Aquisição da Linguagem é possível
destacar muitas contribuições sobre o erro e sua investigação. Do ponto
de vista da teorização interacionista de De Lemos, a qual se faz adesão,
observa-se que o erro acaba por mostrar diferenças n(d)a fala da criança
em relação à fala do interlocutor adulto. Tais diferenças, para algumas
pessoas, podem até ser encaradas como realizações “imperfeitas” da
língua e, por isso, convocarem correções. Porém, hoje em dia, a maioria
dos pesquisadores da área de aquisição da linguagem (incluindo-se uma
parcela significativa de fonoaudiólogos) acredita que os erros fazem
parte do processo de aquisição da linguagem de qualquer criança. Eles
constituem, portanto, alvos privilegiados de análise por aqueles que
pretendem explicar o desenvolvimento linguístico infantil. Para Salonen
& Laaksoo (2009), não apenas os erros, mas também as autocorreções
devem ser examinadas nas falas das crianças, uma vez que estas
cumpririam um papel importante no processo de aquisição da
linguagem, que é concebido por eles como processo de aprendizagem.
Já no interacionismo proposto por De Lemos desde 1982, quadro
teórico que fundamenta este e outros trabalhos anteriores1, o erro é
concebido como produto do movimento da língua na fala da criança em

1Refiro-me, principalmente, à minha dissertação de mestrado defendida em 1995


(intitulada Erros na aquisição de verbos com alternância vocálica: uma análise sócio-
interacionista) e à tese de doutorado defendida em 2003 (intitulada Erros na aquisição
da flexão verbal: uma análise interacionista).
491

determinado momento de seu trajeto. De acordo com o que já se


produziu sobre esse tema nesta perspectiva teórica, sabemos que os
erros não atingem as mesmas estruturas linguísticas e nem acontecem
de forma ordenada e na mesma proporção na fala de dois sujeitos
diferentes em processo de aquisição da linguagem. São pontos de
subjetivação que marcam de forma singular o trânsito da criança na
(pela) linguagem ao se constituir como sujeito falante.
Em seu artigo sobre metalinguagem, Possenti (1992) afirma que
os sujeitos quando falam também tomam a língua como seu objeto de
conhecimento, crítica ou diversão. Tal situação não é incomum. Para ele,
essa relação do sujeito com a língua pode não se dar desta forma quando
se trata de criança, estrangeiro, ou pessoa que tenha sofrido algum
acometimento do tipo afásico, por exemplo. Sendo assim, a pergunta que
se busca responder neste artigo é: de que forma essa relação é mostrada
na fala de M2?
É importante deixar claro, que o tema atual de investigação
decorre dos resultados alcançados em etapas anteriores da pesquisa
que venho desenvolvendo, em que foi dado relevo ao efeito produzido
(na fala do outro) pelo erro na fala de M, na medida em que se
investigava o deslocamento do sujeito da segunda para a terceira
posição no processo de aquisição da linguagem, proposto por De Lemos
(2002). Naquela ocasião, foi também possível recortar dois movimentos
da língua na fala da criança, que serão considerados neste trabalho: a)
aquele em que parte da mensagem remete à própria mensagem, nos
termos de Jakobson (1974) e b) aquele em aquele parte da mensagem
remete ao código.
Tendo introduzido a questão, apresento, a seguir, a posição de
alguns autores da área de aquisição da linguagem, que acaba tocando

2Trata-se da abreviação do nome da criança que gravei desde um ano e meio até quatro
anos e meio de idade, cujos dados subsidiaram vários trabalhos, tais como a dissertação
de mestrado (MALDONADE, 1995), a tese de doutorado (MALDONADE, 2003) e alguns
artigos (MALDONADE, 2010, 2011 e 2012).
492

em aspectos polêmicos, complexos e delicados sobre a possível


“atenção” dada pela criança ao objeto linguístico.

2. Estudos em Aquisição da Linguagem

Vários estudos na área que abordam o assunto diferem,


substancialmente, no modo como concebem a língua/linguagem e o
próprio processo de aquisição da linguagem pela criança, ao ancorar
suas considerações ora em quadros teóricos da Linguística, ora em
quadros teóricos da Psicologia. Neste sentido, Stump (2011) afirma que
a maioria dos estudos existentes toma a fala da criança com indício para
a compreensão do funcionamento cognitivo, deixando de lado a
descrição linguística dos enunciados. A autora, que reivindica um
tratamento enunciativo da metalinguagem, inicia sua argumentação ao
apresentar suas considerações sobre a visão de vários investigadores,
tais como: Van Kleeck (1980, apud STUMP, 2011), Karmiloff-Smith
(1986, 1998, apud STUMP, 2011), Lier-De-Vitto; Fonseca (1997, apud
STUMP 2011), De LEMOS (2009, apud STUMP, 2011) e Figueira (2003,
apud STUMP, 2011). Para ela, a preocupação de Van Kleeck (1980, apud
STUMP, 2011) liga-se ao desenvolvimento cognitivo a partir dos
estágios de desenvolvimento propostos por Piaget. Desta forma, as
manifestações metalinguísticas por parte da criança são encaradas
como evidência de mudanças cognitivas, que possibilitam as próprias
manifestações acontecerem. Entre os objetivos do autor, está o de
determinar em que idade as manifestações metalinguísticas ocorreriam
sistematicamente no desenvolvimento, ao considerar que elas podem
ser mostradas a partir de estudos experimentais.
Stump (2011) acrescenta que o modelo delineado por Karmiloff-
Smith (que tenta conciliar o ponto de vista piagetiano com o
chomskiano) explica as manifestações metalinguísticas a partir de um
493

modelo de redescrição representacional3. Ele propõe que as habilidades


metalinguísticas aconteçam por níveis de redescrição do material
implícito, que é inato. As sucessivas redescrições desse material
possibilitariam tornar as representações do conhecimento linguístico
cada vez mais explícitas, podendo até chegar a ser verbalizada pela
criança. Ou seja, a se tornar consciente e explícito para a criança. Porém,
Karmiloff-Smith (1986) deixa bem claro que esse não é um passo
necessário para a aquisição da linguagem, mas sim uma possibilidade no
processo de aquisição da linguagem. Logo, o processo é o de caminhar
da inconsciência até a consciência, que pode até chegar a disponibilizar
a representação do material linguístico armazenado para acesso
consciente. Entretanto, causa estranheza para Stump (2011) que o
interesse por tais representações se dê apenas pelo que elas
possibilitem inferir sobre os processos mentais de redescrição.
Entretanto, para os pesquisadores da perspectiva interacionista, na qual
estou incluída, a estranheza está em supor um momento, no processo de
aquisição da linguagem, em que a criança possa interromper sua relação
com a linguagem/língua, tal como suposto por Karmiloff-Smith (1986).
Com relação ao modelo chomskiano, Stump (2011) assume uma
visão crítica e para isso cita Lier-De-Vitto; Fonseca (1997), ao dizer que
a proposta de Chomsky diverge da literatura da década de 70, pois para
ele a capacidade dita “metalinguística” é prévia, inata. Isso faz com que
a descoberta da linguagem obedeça a um processo governado por esse
saber tácito, implícito e não consciente, porque a aquisição da linguagem
é vista como algo que acontece à criança e não algo que a criança faz. A
criança não é, no caso, o sujeito (agente) do processo de aquisição da
linguagem. Ela é mostrada como aquela que sofre a ação do processo.
Sobre a teorização interacionista de De Lemos (1992, 2002),
Stump (2011) afirma que a noção de desenvolvimento é coloca em
questão, uma vez que o processo de aquisição da linguagem é concebido

3Essemodelo já foi abordado por mim em trabalhos anteriores (MALDONADE, 1995 e


2003).
494

como processo de subjetivação, em que não se pode pensar na


apreensão da língua (enquanto objeto) em partes e em etapas sucessivas
pela criança. De acordo com a proposta das três posições da criança no
processo de aquisição da linguagem (v. DE LEMOS, 2002), que será
apresentada brevemente, mais adiante – a terceira posição é, na opinião
de Stump (2011), aquela que pode ser relacionada à emergência das
habilidades metalinguísticas da criança. Neste sentido, acrescenta-se
que as autocorreções são dados preciosos, uma vez que a própria
criança ao escutar-se, é capaz de modificar o seu dizer. Este trabalho
busca refletir sobre as instâncias discursivas em que língua é colocada
em destaque na fala de M. Acredita-se que a aproximação de dados,
obtidos em situações discursivas naturais, diferentemente dos obtidos
por experimentos, podem identificar no processo de aquisição da
linguagem da criança, os momentos em que a criança “parece colocar” a
língua em questão. Ou dito de outra forma, permite tocar de forma mais
aprofundada no que se tem chamado de propriedade reflexiva da
linguagem. Isso parece acontecer muito cedo na fala da criança e de
modo muito natural.
Já Stump (2011) busca na teoria de enunciação, tal como proposta
por Benveniste, a sustentação para sua proposta de conferir um
tratamento enunciativo da metalinguagem no terreno da aquisição da
linguagem. Conclui a autora que “por ser uma propriedade da língua, a
metalinguagem pode fazer-se presente, através dos mecanismos de
interpretância, a partir do preenchimento da estrutura enunciativa pela
criança”. Acredita que uma vez que a criança entra na língua, é
“universal” que a metalinguagem possa se manifestar em seu discurso,
mas considera que é “absolutamente singular” (minhas aspas) a forma
através da qual esta pode aparecer. De acordo com a autora, não haveria
uma ordem de emergência dos mecanismos de interpretância. Enfatiza
que sua intenção foi a de mostrar como a criança os empregaria.
Contudo, há, na perspectiva enunciativa adotada pela autora, certa
percepção da criança, como aquele sujeito detentor de um saber, que se
mostra na ação sobre o objeto – a língua. A pergunta que se faz é: haveria
495

mesmo uma razão para propor um tratamento enunciativo da


metalinguagem no processo de aquisição da linguagem? Acredito que
não. A concepção da língua como heterogênea e o próprio
funcionamento linguístico, tal como pensados na proposta
interacionista já são suficientes para recobrir essa questão, no que se
refere à constituição do sujeito falante. Com isso, o que se pretende é
buscar no quadro teórico interacionista, que tem iluminado minhas
reflexões na área de aquisição da linguagem, o acolhimento para essas
discussões.
Se, por outro lado, a discussão sobre a consciência e/ou
inconsciência parece não interessar à Stump (2011), na posição de
Lorandi; Lamprecht (2008) ela recebe um tratamento bem nítido. De
acordo com as autoras, a partir do segundo ano de vida, a criança já
revelaria seu conhecimento de língua através do modo como manipula
os morfemas. A criança teria uma sensibilidade morfológica que, com o
aprimoramento linguístico decorrente do contato com a língua e devido
à maturação de suas capacidades cognitivas, evoluiria para uma
habilidade metalinguística identificada como “consciência morfológica”.
As autoras emprestam de Carlisle (2000, apud LORANDI; LAMPRECHT,
2008) a definição de consciência morfológica, como sendo a reflexão e a
manipulação intencional da estrutura da língua. Os estudos sobre o
desenvolvimento da consciência morfológica têm incidido sobre a
sensibilidade da criança aos processos de derivação e flexão da língua e
suas habilidades em lidar com a formação de palavras, bem como as
diferentes flexões nominais e verbais.
A hipótese das autoras é de que a criança demonstra, desde cedo,
uma sensibilidade aos recursos morfológicos, que vai sendo aprimorada
com o passar do tempo e com seu contato com a língua, correspondendo
essa a uma etapa rudimentar da consciência morfológica. Mais tarde,
496

segundo as autoras, esta poderá manifestar-se intencionalmente na fala


da criança, quando ela puder pronunciar-se sobre a língua4.
Sem se comprometer com uma visão maturacional ou mesmo
desenvolvimentalista do processo de aquisição da linguagem, no
interacionismo, nos interessa ver, em primeiro lugar, quais são os
indícios na fala da criança que oferecem a possibilidade de flagrar sua
relação com a língua/linguagem durante o processo de aquisição da
linguagem. Antes da apresentação dos dados, exponho, na próxima
seção, em linhas gerais, o quadro teórico interacionista.

3. Quadro teórico interacionista

Desde o início de sua formulação, a teorização desenvolvida por


De Lemos (1982), sempre rejeitou a análise da fala da criança através
das categorias oferecidas pelas descrições linguísticas, recusando-se a
tomar os enunciados das crianças como evidência de conhecimento
categorial da língua. Ao longo dessa perspectiva teórica, os processos
metafóricos e metonímicos propostos por De Lemos (1992) se
mostraram como os adequados para demonstrar de que maneira as
propriedades formais da linguagem (da língua) podiam ser derivadas de
processos de interação linguístico-discursivos. Desde então, a
possibilidade para descrever a fala da criança tem sido oferecida pelo
estruturalismo, particularmente nas considerações feitas por Saussure
(1972) e Jakobson (1974). Um pouco mais tarde, no percurso teórico do
interacionismo foi preciso conjugar os efeitos desses processos à
articulação da posição do sujeito no processo de aquisição da linguagem;

4Um dos resultados de pesquisa das autoras diz respeito aos erros de flexão verbal no
processo de aquisição da linguagem. Elas afirmam que a segunda e terceira conjugações
verbais não são produtivas no português, razão pela qual aparecem os erros de flexão
verbal na fala da criança, que toma como padrão a primeira conjugação verbal.
Entretanto, outra situação bastante diferente é encontrada no corpus de M e também no
de um dos sujeitos analisados por Figueira (2003), em que não se verificam apenas erros
de verbos de segunda e terceira conjugações seguindo o padrão da primeira conjugação.
497

o que se estruturou como sendo a proposta das três posições da criança


no processo de aquisição da linguagem (v. DE LEMOS, 2002). Afirmou-
se, com isso, que as mudanças que ocorrem no processo de aquisição da
linguagem são mudanças relativas à fala do outro, à língua e à fala da
própria criança. De acordo com a autora, essas mudanças são
linguísticas e também subjetivas. Cabe acrescentar que a proposta das
três posições da criança no processo de aquisição da linguagem
apresenta-se como uma alternativa à noção de desenvolvimento, que se
assenta sobre a alteridade radical da língua relativamente ao organismo,
pois o sujeito ao se constituir na e pela língua é também por ela dividido.
Notadamente influenciada pelas leituras que fez de Lacan, De Lemos
(2002) propõe que as três posições não são ordenáveis entre si, nem são
determinadas cronologicamente. Dessa forma, a autora afirma que o
processo de aquisição da linguagem é um processo de subjetivação em
que a criança, capturada pelo funcionamento linguístico, desponta na
cadeia significante.
Resumidamente, de acordo com a proposta das três posições da
criança no processo de aquisição da linguagem, na primeira posição,
observa-se a fala da criança submetida à fala do outro. Verifica-se o
efeito de semelhança entre as cadeias linguísticas da fala do outro e da
fala da criança. Já na segunda posição, observa-se a criança presa ao
movimento da língua, de tal forma que o erro, como que “explode” em
sua fala; o que não acontece do mesmo modo, na primeira posição.
Na segunda posição, verifica-se certo distanciamento da fala da
criança com relação à fala do outro. Tal deslocamento é percebido do
ponto de vista linguístico, pelo fato de que é a fala da própria criança que
se oferece para a sustentação dos movimentos dos significantes que nela
são ressignificados e, não mais, a fala do outro. De acordo com a autora,
“a criança surge na segunda posição no intervalo entre os significantes
que metaforicamente se substituem tanto no erro quanto nas
sequências paralelísticas” (DE LEMOS, 2002, p. 27-28).
Segundo a autora, na terceira posição, observa-se a dominância da
relação do sujeito com sua própria fala. Nessa última posição, podem
498

surgir: as reformulações, as hesitações, as retomadas da criança de sua


própria fala, assim como as correções. Por isso, pode-se dizer que esta,
particularmente, nos interessa aqui, dado o objetivo de refletir sobre a
relação da criança com a língua nas modificações que faz em sua fala.
O fato é que a proposta das três posições da criança no processo
de aquisição da linguagem tem demonstrado dificuldades quando
confrontada com dados, pois a definição de cada uma das posições
considera os pontos extremos dos polos relacionais: a fala do outro, a
língua e a fala da própria criança (v. MALDONADE, 2011). Na etapa
anterior dessa pesquisa, foi possível mostrar, na terceira posição, que a
modificação da fala de M surge em resposta ao efeito produzido pelo
erro na fala do adulto. Em outras palavras, mostrou o papel fundamental
que a fala do outro tem nas reformulações da criança, que colocam as
relações da língua em destaque. Sendo assim, dada a necessidade de
articulação entre língua, fala e falante, o quadro delineado por Jakobson
(1974) é convocado para enfrentar, mais adiante, a análise dos dados de
M.

4. O quadro proposto por Jakobson

Jakobson (1974) afirma que tratar o signo em seu dualismo


irredutível é o ponto de partida da Linguística moderna. Acrescenta
ainda que os mínimos linguísticos – as unidades – devem ser sempre
investigados em termos de grupo de ordem e grupo de substituição, ou
seja, em termos de relações paradigmáticas e sintagmáticas, ou ainda
metafóricas e metonímicas. O autor inicia sua discussão sobre a
gramática, do ponto em que os fatores fundamentais da comunicação
linguística se apresentam. Para ele, os conceitos de código e mensagem
introduzidos pela teoria da comunicação são muito mais claros, muito
menos ambíguos, muito mais operacionais do que tudo o que nos
oferece a teoria tradicional da linguagem para exprimir a dicotomia
língua e fala. Jakobson (1974) afirma que a interlocução deve ser o
problema básico para qualquer linguista que, segundo ele, tem muito a
499

aprender com a teoria da comunicação. Ao mesmo tempo, afirma que


toda significação linguística é diferencial.
Para o autor, qualquer ato de fala envolve uma mensagem, o
código utilizado, o emissor e receptor. No entanto, a relação entre esses
quatro elementos é variável. De acordo com a teoria da comunicação,
uma mensagem é transmitida por um destinador a um destinatário, que
tem que decodificá-la. Esta pode se referir ao próprio código ou a outra
mensagem, da mesma forma que, por sua vez, o significado geral de uma
unidade do código implicará numa referência ao código ou à mensagem.
Sendo assim, quatro combinações possíveis são obtidas: a mensagem
que remete à própria mensagem (M/M), o código que remete ao código
(C/C), a mensagem que remete ao código (M/C) e o código que remete à
mensagem (C/M). O autor cita o discurso indireto (citado) como um
exemplo sobre a mensagem que se refere à outra mensagem (M/M).
Desse modo, toda interpretação explicativa de palavras e orações, sejam
elas interlinguísticas ou interlinguísticas (traduções), constitui um tipo
de mensagem que remete ao código (M/C). Todo código linguístico tem
uma classe especial de unidades gramaticais chamadas comutadores 5,
cuja significação não pode ser definida sem se referir ou remeter a
mensagem (C/M). Os pronomes pessoais são apresentados como
exemplo pelo autor, pois não apresentam uma significação única e
constante.
Com vistas a classificar as categorias verbais, mais
especificamente o verbo russo, Jakobson (1974) afirma que é necessário
levar-se em conta duas distinções básicas: 1- o discurso em si6 e seu
objeto, a matéria relatada (enunciada) e 2- o ato ou processo em si7 e
qualquer um de seus protagonistas (participantes do discurso), agente
ou paciente. A partir disso, consegue distinguir quatro elementos: 1) um

5São os “shifters”.
6O termo discurso foi encontrado na tradução de Pujol y Cabanes (1974) para o
espanhol, enquanto que, na tradução de Ruwet (1963) para o francês figura
“l’énonciation elle-même”.
7Na tradução para o espanhol encontra-se “hecho em si” e, na francesa, “l’acte ou le

procès lui même”.


500

evento relatado (ou procès de l’énoncé); 2) um ato de discurso (ou procès


de l’énonciation); 3) um participante do procès de l’énoncé e participante
do procès de l’énonciation; 4) destinador ou destinatário. Segundo
Jakobson (1974), todo verbo se refere a um procès de l’énoncé, de forma
que as categorias verbais podem ser subdivididas entre as que implicam
os participantes do processo ou não.
Com isso, torna-se possível entender a aproximação do
interacionismo desenvolvido por De Lemos (1992, 2002) ao quadro
proposto por Jakobson (1974). No interacionismo, o diálogo é proposto
como unidade de análise para a fala da criança. Logo, rejeita-se a análise
que recorre às categorias pré-estabelecidas pela descrição linguística,
concebidas fora da esfera do discurso, em que se exclui o falante.
Apresenta-se assim, para o interacionismo, uma possibilidade de tornar
viável sua proposta, posto serem as categorias derivadas da relação do
procès de l’énoncé com o procès de l’énonciation, tomadas num quadro
de oposições, que se estabelecem no sistema, em que o falante está
implicado. No quadro delineado por Jakobson (1974), a dicotomia entre
língua e fala é retomada de forma mais ampla. Porém, é preciso dizer
que tal relação é, no interacionismo, marcada por um estado de tensão
permanente, conforme a interpretação dos dados de M indicam, na
sequência.

5. Apresentação e análise de dados

Inicialmente, serão mostrados os episódios ilustrativos do


primeiro movimento da língua na fala de M: aquele em que parte da
mensagem remete à própria mensagem, nos termos de Jakobson (1974).
1) 3;01.23 (D)8

8A sequência dos números indica a idade da criança no episódio expressa em ano, meses

e dias, respectivamente. O primeiro número indica anos. Os números que aparecem


depois do ponto e vírgula indicam meses e os que aparecem depois do ponto final
indicam dias. Se a letra d maiúscula vier entre parênteses depois da sequência numérica,
significa que o dado é do diário, a segunda fonte de dados existente. As outras
abreviaturas que aparecerão na apresentação dos dados referem-se: à investigadora (I),
501

M: Eu escrévo também, escrévo. (na caixa da fita cassete em que uma


sessão fora gravada)
Dani: Ai, não faz isso porque a Dindinha não vai gostar!
M: Eu esquévo.
Dani: Não entendi o que você disse. Eu não escrevo na fita!
M: E eu também não escrevo.

A primeira ocorrência é exemplar no sentido de mostrar o


espelhamento entre as falas do interlocutor e de M. A fala da criança é
modificada após a intervenção do adulto, que manifesta não ter
entendido o que ela disse. Sutilmente, observa-se a correção de
“escrévo” das falas anteriores de M, na medida em que Dani apresenta a
forma esperada ao dizer: “eu não escrevo na fita”. Na sequência dialógica,
a forma escrevo da fala de Dani e é recolocada na de M. Logo, o “acerto”
aparece na fala da criança mostrando um efetio de semelhança entre a
fala de M e a fala anterior do interlocutor. Mas, apesar de a forma
“correta” comparecer em “Eu também não escrevo” na fala de M, do
ponto de vista da relação entre os enunciados de Dani e M, registra-se a
fala da criança submetida à do interlocutor; o que corresponderia à
primeira posição da criança no processo de aquisição da linguagem
proposta por De Lemos (2002). Em 1, observa-se que parte da
mensagem remete à própria mensagem na fala de M, nos termos de
Jakobson (1974).
Veja, na sequência, a próxima ocorrência.

2) 3:04.07 (M, I e Mari estão no quarto de M, que pinta um desenho)


I: A Amandinha é do seu tamanho?
M: É, porque ela já tem assim, e eu já tenho assim, ó. Que a gente ó,
I: Quem disse que é sério isso?
M: A gente até mide.

à mãe de M (S), ao pai de M (L), à irmã mais velha de M (Dani), à outra irmã, também
mais velha do que M (Mari) e à prima de M (A).
502

I: Ã?
M: A gente até mide que ela é do meu tamanho. (M diz enquanto
continua pintando um desenho)

Em 2, após o estranhamento de I, do erro na fala de M, a forma


mide volta a aparecer na fala seguinte da criança. Ao contrário da
ocorrência anterior, a fala da criança não se modifica após o a
intervenção (estranhamento, ou pedido de correção) do interlocutor. De
acordo com a proposta de De Lemos (2002), observa-se a fala da criança
regida pelo movimento da língua; o que corresponderia à segunda
posição da criança no processo de aquisição da linguagem. Nesta
ocorrência, o que se mostra é que parte da mensagem remete à própria
mensagem na fala de M.
Observe, a seguir, em 3, um outro desdobramento do
espelhamento entre as cadeias linguísticas da fala do outro para a fala
da criança e seus efeitos na constituição do paradigma verbal de M.

(3) 3;03.01 (M chupa uva com I e S na cozinha) M: Marcelinha!


M: Hum.
I: Eu não tive catapora.
M: Por que não?
I: Porque eu não peguei quando eu era pequena. A Simone, acho que
também não teve não.
M: Eu já.
S: Cê já teve.
M: Eu vô pegá ma/ ma/ mais uma uva.
I: Simone, eu acho que não teve não.
M: Teve.
I: Não teve!
M: Você tive, mãe?
S: Não, não tive não.
I: E o Luís?
M: Tive.
503

S: Não também.

Teve aparece na fala de M com aparência de “acerto”, contudo o


que se mostra é a dependência da fala de M à fala do outro. Cabe neste
ponto, informar ao leitor que na origem do processo da rede relacional
primitiva – ou na configuração paradigmática inicial – só tive se
apresentava até esse momento na fala de M. Não havia formas
concorrentes para ocupação desse lugar sintático no paradigma em
constituição, nem qualquer indício de ação reflexiva consciente sobre a
língua por parte da criança. A marcação de pessoa se dá apenas
parcialmente: pelo nome ou pronome, mas não no verbo. Mais do que
isso, observa-se que tive guarda uma relação com o texto em que foi
produzido na fala do outro. Outros exemplos existem relacionados ao
mesmo tópico discursivo sobre doenças, nas estruturas: “eu, você,
ela/ele não tive (doença)” e “eu, você, ela/ele tive (doença)”. Há uma
espécie de fixação ou congelamento de tive neste lugar discursivo.
A partir de agora teve passa a ser concorrente de tive na
organização paradigmática em construção. Tive e teve passam a
estabelecer relação entre formas e discursos. Realmente, o
aparecimento de teve não indica a estabilidade da forma na fala da
criança, pois tive volta a ocupar esse mesmo lugar no paradigma em
constituição, o que é notado tanto pelo fragmento “Você tive, mãe?”
quanto “Tive” de M, na sequência do diálogo em 3.
A marcação de pessoa se apresenta parcialmente. Levando-se em
consideração a definição de Jakobson, em que a pessoa verbal
caracteriza os participantes no procès de l’énoncé com referência ao
procès de l’énonciation, pode-se dizer que em “Você tive, mãe?” da fala
de M, embora a segunda pessoa marque uma identidade de um
participante do procès de l’énoncé com o protagonista atualizado do
procès de l’énonciation (a mãe), o verbo resiste em primeira pessoa.
Para nossa discussão, o que não se pode perder de vista até aqui,
é que “acerto” e “erro” na fala da criança têm origem na fala do outro.
Veja, outra ocorrência do mesmo tipo, também com o verbo medir.
504

4) 3;04.21 (M, S e I brincam com quebra-cabeça)


S: Cê mede sim. Eu vi aquele dia. Mas como a menina fala! Ela não parava
mais! Pobre da M nem tinha voz!
I: E com o Chico você mede?
M: Mido.
I: E a Ana Cláudia?
M: Tamém.
I: E quem é maior?
M: Eu.
I: Sério?
M: Sério.

Em 4, o erro (Mido), na fala de M mostra uma relação de diferença


com a fala do outro, imediatamente anterior a dela. A desinência de
primeira pessoa (o /o/ desinencial) marca a posição da criança no
discurso, que aqui já parece não estar totalmente submetida à fala do
outro. Mas, mesmo assim, a língua parece não estar em causa na fala de
M. Após o erro em sua fala, o diálogo segue seu curso. De acordo com
Jakobson (1974), a ocorrência em questão exemplifica o caso em que
parte da mensagem volta-se para a própria mensagem.
Dando prosseguimento à reflexão, veja, a seguir, os episódios na
fala de M que mostram o segundo movimento da língua na fala da criança:
aquele em que parte da mensagem remete ao código, nos termos de
Jakobson (1974).

5) 3;04.21
S: Eu não quero que bota essa almofada no chão, M. Você tá careca de
sabê disso!
I: Cê mede com o Chico também, M?
M: Ã?
I: Você mede com o Chico também?
M: Não, o Chico nem é médico. O Chico tá qui pra brincá de médico?
505

I: Não tô falando “médico”. Eu falei se você mede (pausa) com o Chico


também.
S: Mede com o Chico também? (ri)
I: É.
M: Você falô aquela hora se o Chico era médico, né.
S: (ri) I: Não. Eu perguntei o seguinte: você também mede pra sabê quem
é mais alto, quem é mais baixo, com o Chico?
M: Medo.
I: Hum. E com a Ana Cláudia?
M: Mido. (em tom mais baixo)
I: Quem que é maior?
M: Eu.

A ocorrência 5 coloca em destaque a relação que a criança mostra


ter estabelecido entre o fragmento “mede com o Chico” da fala de I com
a palavra “médico” de sua própria fala. Acontece que no encadeamento
sonoro, a sequência “mede com o Chico” da fala de I, promoveu o
aparecimento de outro significante na fala de M: “médico”. Ora, a
segmentação feita pela criança da cadeia sonora foi tal que o fragmento
“mede com” foi entendido como se I tivesse falado “médico”. A relação
linguística na fala da criança foi estabelecida: “mede com o Chico” fez
aparecer “médico”. No diálogo, I modifica sua fala, introduzindo uma
pausa, de modo a tentar desfazer a ambiguidade para a criança, ao dizer
“Eu falei se você mede (pausa) com o Chico também”. Em seguida, S ri
ao perceber a ambiguidade existente e refaz a pergunta dirigida a M:
“Mede com o Chico também?”. Na sua resposta, a criança deixa claro a
relação linguística que estabeleceu, ao dizer: “Você falô aquela hora se o
Chico era médico, né.”. De acordo com Jakobson (1974), pode-se dizer
que trata-se de um exemplo, no qual partes da mensagem remetem ao
código. Esta ocorrência mostra o trabalho da criança com a língua de
modo absolutamente particular: entre os fatos e os efeitos.
No corpus de M, existem outras ocorrências semelhantes à última.
Elas mostram uma forma de segmentação própria que a criança faz
506

n(d)a língua. Colaboram ainda para mostrar o risco que seria sobrepor
as categorias da descrição linguística à fala das crianças. Além disso,
atestam que não se pode predizer quais serão as relações que
aparecerão na fala da criança, e quais serão as cadeias sonoras que
servirão para ancorar as futuras combinações linguísticas. Elas não são
fixas. Há sempre o trabalho do sujeito com a língua(gem) que
inesperadamente pode romper com qualquer previsibilidade e, com
isso, fazer despontar o sujeito falante na cadeia significante de forma
única e singular. Isso nos permite tratar esses momentos como
relacionados à subjetividade em constituição do ser falante, que não
serão os mesmos (iguais) para qualquer outra criança. Fatos (e efeitos)
como esses levaram De Lemos (2002) a afirmar que o processo de
aquisição da linguagem é um processo de subjetivação.
Em 5, observa-se ainda que há duas formas linguísticas diferentes
na fala de M: “medo” e “mido”. A primeita apareceu em responta à
pergunta “você também mede pra sabê quem é mais alto, quem é mais
baixo, com o Chico?” de I e a segunda surgiu em responta à pergunta “E
com a Ana Cláudia?”, também de I. Sem enveredar para qualquer outro
efeito que “Medo” pode suscitar pelo lado psicanalítco, limito-me a
mostrar que duas forma linguísticas aparecem na fala de M para poder
ocupar o mesmo lugar sintático e, por isso, podem ser entendidas, neste
caso, como formas concorrentes. Na realidade são erros, pois “medo” e
“mido” não correspondem às formas previstas pela língua adulta para
esse lugar sintático. Note-se, entretanto, que “mido” foi dito em tom
mais baixo por M; fato este que podeira ser interpretado como marca de
“incerteza” ou “insegurança” da criança ao operar sobre a língua.
O fato é que ocorrências intrigantes como a anterior, não limitam
o que se pode encontrar na fala da criança com relação ao tema
proposto. Veja, a seguir, a última ocorrência que problematiza o tema
em questão.

6) 4;03.09 (D) (pintando um desenho com Mari na sala de sua casa)


Mari: O que é isso?
507

M: Pata.
Mari: Nossa, cê pintou o pescoço dela de rosa. Não existe pata assim!
M: Cê lembra eu fala “pescosto”?
Mari: É mesmo!
M: Mas é pescoço. Agora já cresci. (continuou pintando o pescoço da
pata com o lápis de cor-de-rosa)

A ocorrência 6 mostra um trabalho sofisticado da criança com a


língua aos quatro anos de idade. A observação da irmã mais velha, ao
invés de modificar a pintura de M, produz como efeito, uma análise de
M sobre sua própria fala; ou seja, uma análise linguística, ao dizer que
quando mais nova falava “pescosto” para “pescoço” e, naquele
momento, isso não ocorre mais.
Observa-se, neste episódio, que essas duas palavras são
comparadas na fala de M, produzindo como efeito, não se pode negar,
uma “análise” da língua realizada pela criança, que naquele momento,
não tinha como explicitá-la utilizando uma metalinguagem. Não há como
pressupor na criança, nessa idade, uma capacidade de explicitar a
operação linguística do que aconteceu em sua fala. De acordo com
Jakobson (1974), pode-se dizer que parte da mensagem remete ao
código. Esta ocorrência mostra um trabalho diferenciado da criança com
a língua, em que não há como subtrair seu efeito de “análise”. Foi a fala
do interlocutor, que possibilitou que as relações da língua fossem
tratadas por M.
Veja, em seguida, algumas considerações feitas sobre a atividade
linguística de M com relação ao que se expôs até aqui.
6. Considerações

O quadro teórico interacionista aponta que a criança entra na


linguagem capturada pelo funcionamento linguístico, produzindo
enunciados que, submetidos à interpretação do adulto, recortam
entidades ou eventos do mundo. A partir disso, é possível contrapor-se
à concepção de que o conhecimento seja anterior ao uso das formas
508

linguísticas e tocar na problemática da subjetividade, que tem sido


tratada por De Lemos (1992, 2002) e outros pesquisadores da linha
interacionista ((Figueira, 1996 e 2008) e (Maldonade, 1995, 2003, 2010
e 2011)). Nesta linha de pesquisa não há lugar para um sujeito
epistêmico, pois as operações da língua implicam também na
estruturação do sujeito. E é também, nesta direção, que LIER-DE-VITTO;
ANDRADE (2008, p. 55) afirma ser possível entender o alcance do termo
captura no interacionismo: “não se supõe à criança nem saber, nem
capacidade perceptual ou cognitiva prévios, que governem seu acesso à
linguagem.”
O fato de o interacionismo trazer o diálogo como unidade de
análise, já anuncia uma posição particular na área de aquisição da
linguagem, em que muitas vezes só a língua é tomada como objeto. A
maioria dos estudos concentra-se nas mudanças linguísticas n(d)a fala
da criança e são guiados, fortemente, por descrições (em graus
crescentes de complexidade) da língua tomada como objeto. Conceber a
língua como um conjunto de relações destituídas de toda concretude,
não permite tocar na questão que, para a aquisição da linguagem, é
crucial: a relação da criança com sua língua, levando-se, ao mesmo
tempo, em consideração a sua estruturação enquanto falante. Logo, não
se pode negar que a subjetividade está implicada nisso. Portanto, é
necessário conceber a língua, não unicamente como um conjunto de
relações já consolidadas, uma geometria, mas como algo em movimento
que oferece a possibilidade de compor essa realidade de várias
maneiras.
Neste sentido, é possível afirmar que os dados selecionados
mostram alguns fatos e efeitos tocantes à relação da criança com a
língua, no seu trajeto ao constituir-se como falante. De modo geral, eles
indicam que a criança não toma a língua como objeto da mesma forma
que o adulto o faria, conforme presumia Possenti (1992), na primeira
situação descrita anteriormente, pois ela não está na língua da mesma
forma que o adulto, para dizer o mínimo. É bastante comum (e talvez até
por isso mais aceitável) a ideia de que a língua possa ser tomada como
509

objeto. Entretanto, o próprio Saussure (1972) abre a possibilidade para


que a fala possa também se tomada como objeto. Isso está registrado no
Curso de Linguística Geral, quando se afirma que língua e fala estão
estreitamente ligadas e se implicam mutuamente (Saussure, 1972, p.
27). No momento, cabe apenas dizer (com Saussure) que “nada entra na
língua sem ter sido antes experimentado na fala, e todos os fenômenos
evolutivos têm sua raiz na esfera do indivíduo” (SAUSSURE, 1972, p.
196). Não foi sem razão, que o quadro de Jakobson foi aqui retomado.
Ele realizou parte da articulação entre língua e falante. O quadro de
Jakobson (1974), em que as unidades linguísticas são derivadas da
relação do procès de l’énoncé com relação ao procès de l’énonciation, tem
possibilitado interpretar as instâncias discursivas em que a língua é
colocada em destaque na fala de M, ancoradas nos conceitos de código e
mensagem, quando os fatores fundamentais da comunicação se
apresentam.
O fato é que episódios semelhantes à ocorrência 1 permitiram
afirmar (v. MALDONADE, 2010) que o erro e a correção na fala da
criança podem ser regidos pelos mesmos processos na aquisição da
linguagem. Ocorrências desse tipo mostram que é a fala do outro que
sustenta o aparecimento do acerto (em 1, “escrevo”) e também do erro
(“esquévo”) na fala de M. Na primeira posição da criança no processo de
aquisição da linguagem, há o espelhamento entre as cadeias da fala do
adulto e da criança, de tal forma que o código não parece estar em
questão. Apesar de a ocorrência 2, não mostrar o espelhamento entre as
cadeias da fala do adulto e da criança, verifica-se que a mensagem
remete à própria mensagem. Observou-se, ainda, que a fala de M não se
modificou após o estranhamento mostrado pela fala do interlocutor. Nas
ocorrências 1, 2, 3 e 4 a língua parece não estar em causa na fala de M.
Nem mesmo o erro na fala de M, nas ocorrências 3 e 4 faz o movimento
da língua voltar-se sobre o código: o diálogo segue seu curso.
Diferentemente, as ocorrências 5 e 6 ilustram a situação flagrada
no processo de aquisição da linguagem, em que ao falar, M volta-se sobre
o já dito, mostrando ser capaz de reconhecer, pela escuta de sua própria
510

fala, mesmo que de uma maneira incipiente, uma diferença na língua. Tal
situação pode ser indicativa do início da condição de escuta que a
criança tem de sua própria língua.
A ocorrência 5 focaliza como as relações linguísticas vão sendo
trabalhadas na fala da criança (pela criança). Além disso, é possível
entender a aproximação com o paralelismo de Jakobson (1970, 1974),
já que a simples disposição em paralelo confere a cada similitude e
diferença um peso particular. O paralelismo entre formas (medo e
mido) faz surgir sempre possibilidades novas, imprevistas, uma vez que
não há como prever o rumo que as ressignificações podem tomar na fala
da criança (v. DE LEMOS, 1992). Tais considerações impedem que ao
paralelismo seja associada uma visão de aprendizagem na aquisição da
língua materna. Ele se torna útil para enfrentar a heterogeneidade
constitutiva da fala da criança, distante da noção de desenvolvimento.
Não se nega com isso que a língua possa estar em causa na fala da
criança, conforme esta ocorrência parece indicar. É o caso assinalado
por Jakobson (1974) em que parte da mensagem remete ao código. Há
uma atividade (linguístico-discursiva) cuja referência é a própria
língua/linguagem. É o enunciado da própria criança que dá sustentação
para as novas formas serem derivadas. Mostra-se aqui uma das
possibilidades de como se pode interpretar a “operação sobre o
linguístico” “feita” pela criança em seu processo de aquisição da
linguagem.
Na ocorrência 6 não é possível deixar de apontar a naturalidade
com que as relações da língua se apresentam na fala de M. Além disso,
deixa registrado que a explicitação das relações linguísticas pela criança
não é um passo necessário no processo de aquisição da linguagem,
podendo esta acontecer ou não. Sobre isso, Karmiloff-Smith (1986)
afirma que a “consciência” pode surgir como resultado do processo de
aquisição da linguagem e não como ponto de partida, contrariamente ao
que Lorandi; Lamprecht (2008) hipotetizam. Neste aspecto,
aproximamo-nos mais do afirma Karmiloff-Smith (1986).
511

Resumidamente, os episódios ilustrativos do primeiro movimento


da língua na fala de M mostram que a língua parece não estar em causa
para a criança, enquanto que os ilustrativos do segundo movimento da
língua (aquele que a mensagem remete ao código) exibem como as
relações linguísticas vão, gradativamente, sendo estabelecidas,
principalmente, enquanto efeitos n(d)a linguagem. Por isso, acredita-se
que não é simples falar em “consciência morfológica” e, muito menos, os
dados da fala de M permitem dizer que ela “amadureça” com o simples
passar do tempo. Ao contrário, os dados apontam para a posição de
escuta da criança no momento da “análise” que faz da língua ou
interferindo nessa relação. Ocorre que a língua materna enquanto
estrutura vai se impondo à criança na medida em que esta vai se
constituindo como sujeito falante.

REFERÊNCIAS

DE LEMOS, C. G. Sobre a aquisição da linguagem e seu dilema (pecado)


original. Boletim da Abralin, n. 3, p. 97-126, 1982.
______. Los processos metafóricos y metonímicos como mecanismo de
cambio. Substratum, n. 1, p. 121-135, 1992.
______. Das vicissitudes da fala da criança e de sua investigação.
Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, n. 42, p. 41-69, 2002.
FIGUEIRA, R. O erro como dado de eleição nos estudos de aquisição da
linguagem. In: CASTRO, M. F. C. (Org.) O método e o dado no estudo da
linguagem. Campinas: Editora da Unicamp, p. 55- 86, 1996.
______. Quando reflexividade e aquisição da linguagem se encontram:
jogos, réplicas e reformulações. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA
ALFAL, XV, 2008, Montevidéu. Anais...Montevidéu: ALFAL, 2008, CD do
evento.
JAKOBSON, R. Linguística e Comunicação. 2ª ed. São Paulo: Ed. Cultrix,
1969[1963]. 162p.
______. Ensayos de Linguística General. Tradução de J. Pujol e J.
Cabanes. Barcelona: Editorial Seix Barral, 1974.
512

KARMILOFF-SMITH, A. From meta-processes to conscious access:


evidence from children metalinguistics and repair data. Cognition, v. 23,
p. 95-147, 1986.
LIER-DE-VITTO, M. F.; ANDRADE, L. Considerações sobre a
interpretação de escritas sintomáticas de crianças. Estilos da Clínica,
São Paulo, v.13, n.24, p.54-71, 2008.
LORANDI, A.; LAMPRECHT, R. R. Processos morfológicos na fala infantil:
a percepção da gramática da língua pela criança. In: ENCONTRO DO
CÍRCULO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS DO SUL, 8, 2008, Porto Alegre.
Anais... CELSUL, 2008, p. 1-10.
MALDONADE, I. R Erros na aquisição de verbos com alternância
vocálica: uma análise sócio-interacionista. Campinas: UNICAMP, 1995.
211 f. Dissertação (Mestrado em Linguística). Instituto de Estudos da
Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1995.
______. Erros na aquisição da flexão verbal: uma análise interacionista.
Campinas: UNICAMP, 2003. 167 f. Tese (Doutorado em Linguística).
Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2003.
______. Erros na aquisição da flexão verbal: reflexividade e constituição
do paradigma verbal. Estudos Linguísticos, São Paulo, v. 39, nº 2, p.
462-476, 2010.
______. Algumas considerações sobre o erro e a autocorreção no processo
de aquisição da linguagem. Estudos Linguísticos, São Paulo, v. 40, nº 2,
p. 539-552, 2011.
POSSENTI, S. Metalinguagem tem! In: Encontro do Grupo de Estudos
Linguísticos do Estado de São Paulo, XXI, 1992, Jaú. Anais… São Paulo:
Anais do GEL, 1992, v. 2, n.2, p. 1123-1130.
SALONEN, T.; LAAKSO, M. Self-repair of speech by four-year-old Finnish
children. Journal of Child Language, Cambridge, v.36, p. 855-882,
2009.
SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Editora Cultrix,
1972. 279 p.
513

STUMP. E. M. Uma proposta enunciativa para o tratamento da


metalinguagem na aquisição da linguagem. Acta Scientiau. Language
and Culture. Maringá, v. 33, n. 2, p. 271-280, 2011.
514

A AQUISIÇÃO DA ORALIDADE NA CRIANÇA COMO UM PASSO


RELEVANTE NO PROCESSO DE AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM
ESCRITA: UMA ABORDAGEM INTERACIONISTA

Adauto Alves da Silva


Mestrando Universidade Católica de Pernambuco
Mestrado em Ciências da Linguagem

RESUMO: Muitos têm sido os pesquisadores que têm se aventurado em


pesquisas e publicações em torno da aquisição de linguagem oral e
escrita, motivados por objetivos os mais variados. Entretanto, o foco
desta pesquisa está centrado na teoria interacionista de Cláudia de
Lemos (2002) e na abordagem de Sônia Borges (2006), que têm trazido
contribuições ao campo da aquisição de linguagem oral e escrita,
apoiadas no estruturalismo de Saussure ressignificado pela psicanálise
lacaniana. Essas autoras colocaram em discussão os pressupostos
psicológicos cognitivos de aquisição de linguagem oral e escrita segundo
os quais, a criança elabora hipóteses sobre a língua e vai seguindo
paulatinamente em direção à fala e a escrita de forma cumulativa; trata-
se de um sujeito psicológico dono de sua vontade e de sua consciência.
Por outo lado, a teoria interacionista vai abarcar o sujeito do
inconsciente, que não é dono de sua vontade nem de seu fazer, sujeito
psicanalítico. Nesse processo, levantamos a seguinte questão,
assumindo que a criança é capturada pela língua, como afirma Cláudia
de Lemos (2002): poderá a oralidade interferir no processo de aquisição
de linguagem escrita da criança? A passagem de um não falante (infante)
para falante servirá de base para a aquisição da linguagem escrita?
Embora muitos dos trabalhos na linha teórica, aqui adotada, sejam
desenvolvidos no campo da aquisição de linguagem oral, acreditamos
que se pode fazer um elo entre a aquisição de linguagem oral e a
aquisição de linguagem escrita, uma vez que essas modalidades estão
imbrincadas ao longo do percurso de constituição subjetiva da criança.
515

PALAVRAS-CHAVE: aquisição, oralidade, escrita, psicanálise.

ABSTRACT: Many have been researchers who have ventured into


research and publications around the acquisition of oral and written
language, motivated by goals varied. However, the focus of this research
is focused on interactive theory of Claudia de Lemos (2002) and the
approach of Sonia Borges (2006), who have brought contributions to the
field of acquisition of oral and written language, supported the
structuralism of Saussure reframed by psychoanalysis Lacanian. These
authors discuss the assumptions placed on the acquisition of cognitive
psychological oral and written language according to which the child
produces hypotheses about the language and will follow gradually
toward speech and writing in a cumulative way, it is a psychological
subject owner your will and your conscience. Autumn by hand,
interactionist theory will cover the subject of the unconscious, that is not
the master of your will or your doing, psychoanalytic subject. In this
process, we raise the following, assuming that the child is captured by
language, as stated by Claudia de Lemos (2002): orality may affect the
process of acquisition of written language the child? The passage of a
non- speaker (Infant) speaker to serve as the basis for the acquisition of
written language? Although many of the works on the theoretical line,
adopted here, are developed in the field of oral language acquisition, we
believe we can make a link between oral language acquisition and the
acquisition of written language, since these modalities are imbrincadas
over path subjective constitution of the child.

KEYWORDS: acquisition, orality, writing, psychoanalysis.

As discussões a luz da psicanálise em torno da captura da


linguagem oral e escrita

Muitos têm sido os pesquisadores que têm se aventurado em


pesquisas e publicações em torno da aquisição de linguagem oral e
516

escrita, motivados por objetivos os mais variados. Entretanto, o foco


desta abordagem está centrado na teoria interacionista de Cláudia de
Lemos (2002) e na abordagem de Sônia Borges (2006), que têm trazido
contribuições ao campo da aquisição de linguagem oral e escrita,
apoiadas no estruturalismo de Saussure ressignificado pela psicanálise
lacaniana.
Essas autoras colocaram em discussão os pressupostos
psicológicos cognitivos de aquisição de linguagem oral e escrita segundo
os quais, a criança elabora hipóteses sobre a língua e vai seguindo
paulatinamente em direção à fala e a escrita de forma cumulativa; trata-
se de um sujeito psicológico dono de sua vontade e de sua consciência.
Por outo lado, a teoria interacionista vai abarcar o sujeito do
inconsciente, que não é dono de sua vontade nem de seu fazer, sujeito
psicanalítico. Nesse processo, levantamos a seguinte questão,
assumindo que a criança é capturada pela língua, como afirma Cláudia
de Lemos (2002): poderão as garatujas, os rabiscos da criança, as
primeiras escritas serem um ponto facilitador no processo de aquisição
de linguagem escrita da criança?
Embora, muitos dos trabalhos na linha teórica, aqui adotada,
sejam desenvolvidos no campo da aquisição de linguagem oral,
acreditamos que se pode fazer um elo entre a aquisição de linguagem
oral e a aquisição de linguagem escrita, uma vez que essas modalidades
estão imbrincadas ao longo do percurso de constituição subjetiva da
criança.
O interacionismo de aquisição de linguagem oral, noção iniciada
por Cláudia de Lemos na perspectiva da linguagem oral teve seu escopo
estendido para a aquisição da escrita sobre os trabalhos de Sônia Borges
(2006), em sua tese de doutoramento; o quebra-cabeça a alfabetização
depois de Lacan.
Assumindo uma concepção de mudança de perspectiva na
aquisição da linguagem escrita, fez surgir uma série de indagações sobre
a abordagem do processo de aquisição de escrita norteada pela noção
de desenvolvimento. Ou seja, essa teoria questiona os processos
517

lineares, por meio da abordagem psicológica, questionará também, o


sujeito analisado comodono do conhecimento.O que afirma a autora a
seguir:

“Recusamos, portanto que tais unidades articuladas


possam ser vista como elementos positivos e
categorizáveis, pois eles emergem sob efeito da relação... E
não de representação no sentido psicológico do termo”
(MOTA, 2006, p.151).

Essa nova abordagem veio contribuir com uma perspectiva


diferente, atentando para o fato de a aquisição de linguagem escrita ser
um fato puramente linguístico, fazendo um deslocamento da área da
psicologia para a linguística. O meio em que a criança adquiri a
linguagem escrita não passa pelo desenvolvimento LierDeVittor (2012),
diz que a ideia de desenvolvimento é problemática, não se enquadra nos
esquemas psicanalítico do termo e, não atende ao processo de aquisição
de linguagem escrita. Desenvolvimento remete ao ser que se desenvolve
coisa que a teoria adotada aqui, não acredita, é relevante lembrar que o
sujeito que se adota nessa teoria é o sujeito capturado. Sobre a
linguagem escrita da criança, Borges (2006), afirma que as noções de
aquisição de linguagem escrita estavam todas filiadas à psicologia.

O estruturalismo na aquisição da linguagem escrita e as críticas ao


modelo psicológico cognitivo

Os trabalhos de Emília Ferreiro (1998) fazem um retorno ao


sujeito cognoscente de Piaget trazido o sujeito do conhecimento que vai
ser delineado na perspectiva diferente da de seu mestre maior Piaget
que fez um recorte para entender a aquisição de linguagem escrita.
518

A aquisição de escrita baseada na teoria psicogenética de Ferreiro


(1998) é categorizada da seguinte forma, o aluno começa pelas fases 1
que são divididas em um total de quatro, descritas da seguinte forma;
pré-silábica, silábica, silábico-alfabética e alfabética, contudo não vamos
nos deter a essa explicação das fases, pois nossa abordagem visa tão
somente à abordagem interacionista.
A criança vista por essa teoria passa por essas fases de forma
homogênea comum a todas as crianças, que vai de uma linearidade até
se tornar um usuário competente da língua escrita, que nessa trajetória,
seguiu uma linha de evolução regular, elaborando hipóteses, passando
por diferentes etapas, para poder compreender o funcionamento do
código linguístico que podem ser reconhecidas durante o processo de
alfabetização, tudo isso, norteada pelo sujeito cognoscente.

É só a partir do momento em que a criança começa a


perceber que a escrita tem relação com a sequência de sons
da fala que tem início o estágio que ferreiro considerou
como o de fonetização da escrita e para a autora essa
fonetizaçao vai começar de forma gradual. (REGO, p.23.94)

É nesse processo que essa teoria afirmará que a criança se


desenvolve na linguagem, de forma paulatinamente como um pequeno
linguista e, adquirirá todos os conhecimentos de que precisa para
escrever. Sobre a ideia de “pequeno linguista” Pereira de Castro (2011)
“diz de uma perspectiva que assegura de antemão um futuro,
considerado como o ápice de um processo, e não uma interrogação
sobre sua trajetória, entendida aqui como mudança”.
Nesta mesma visão Borges (2006), tece uma crítica contra a teoria
psicológica é justamente porque essa teoria apagou da criança toda sua
singularidade e tentou homogeneizar, como se esse processo se desse
apenas através das fases psicológicas, homogêneas, comum a toda

1 As fases de que se fala no texto poderá ser melhor analisada na seguinte obra; Ferreiro,

E. Psicogênese da Língua Escrita. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1998.


519

criança. A pesquisadora viu que essa teoria psicológica não dava conta
de todo esse processo de aquisição de linguagem escrita, Borges (idem)
explica os passos pelo qual a criança é capturada pela escrita.
A criança que escreve não tem consciência de seu agir e começará
pelos desenhos rabiscos garatujas e etc. esse é o momento de
singularidade momento também em que a criança vai sendo capturada
pela linguagem, os rabiscos para essa autora, querem dizer muitas
coisas, e quando ela fala em uma não consciência, quer dizer que a
criança nesse momento não é um sujeito psicológico, não tem uma
consciência sobre o seu fazer, como tem atestado a teoria psicológica.

Em nosso ver, foi à natureza das práticas linguístico-


textuais desenvolvidas na sala de aula que ensejou o
caráter singular das produções daquelas crianças, e foi esse
caráter singular que nos fez desconfiar de explicações que
reduzem a aquisição da escrita aos processos cognitivos.
Disto resultou o que foi o cerne deste livro: uma discussão
quanto à perspectiva psicológica/cognitivista da aquisição
da escrita, particularmente de Emília Ferreiro, pois
consideramos seu trabalho o de maior expressão nessa
área de estudos. (Ibidem, 2006, p. 15)

Foi da percepção da autora em perceber que havia algo da escrita


das crianças que escapavam as explicações psicológicas e viu que a
escrita das crianças haviam muitas coisas deixadas para traz, e foi desse
novo olhar sobre esse campo de conhecimento que Borges (ibidem),
trouxe uma nova visão sobre a aquisição de linguagem escrita para tanto
ela se apoiouna teoria interacionista com a noção de sujeito assujeitado
e com uma abordagem estrutural, norteará o ensino de língua,
sobretudo nos anos iniciais, apontando para as questões do
inconsciente, mostrando que o sujeito que escreve não é um sujeito
psicológico e sim o sujeito psicanalítico sujeito esse que não é dono do
seu fazer, como afirma a teoria psicológica e, sua escrita emergirá das
estruturas da linguagem,dotado de uma não consciência por aquele que
520

escreve. Mais uma vez sãooportunas as palavras de De Lemos (2002)


que afirma como acontece esse processo que é “efeito da linguagem
sobre a própria linguagem”. Retomando as considerações saussureanas.
(Saussure, [1916] 2008:16). Condições essas determinadas pela língua
em sua ordem própria.
Nesse caso o aluno será aos poucos, capturado por essa força que
o envolve, sem que ele tenha consciência nem controle, é quando Borges
afirma que o aluno é capturado pela linguagem e não contrário como
tem atestado outras teorias, como a psicológica.
O interacionismo trabalhará as questões deixadas pelas outras
teorias à singularidade da criança, vai trazer para a discussão as
questões como as sobras deixadas pela teoria psicológica, o que foi
esquecido à singularidade da criança, esses são os pressupostos teóricos
dessa teoria Borges (2006).
O processo de captura da criança nessa visão de língua é um
processo singular. Borges apoia justamente em algo que não foi
estudado pela teoria psicológica de aquisição de linguagem escrita veio
trazer à tona algo que até então estava encoberto ou esquecido que não
foi abordado pelas teorias até então vigente esse é o ponto central da
teoria interacionista.

A CAPTURA DA CRIANÇA NA LINGUAGEM ESCRITA

Antes, porém, de iniciar essa trajetória se faz necessário o que


afirma Saussure sobre a condição da linguagem “condições essas
determinadas pela língua em sua ordem própria” ([1916]2008:16). Ou
seja, parafraseando Saussure, o que é da língua só diz respeito às suas
próprias leis, e não o contrário.
Por natureza, a aquisição de da linguagem oral é mais envolvida e
intensificada pela criança e as pessoas que estão envolvidas do que a
modalidade escrita, e dessa maneira, a criança por ter tudo ao seu favor
no momento que inicia a sua trajetória na fala, ou seja, o início de sua
captura de forma tal que envolve corpo e linguagem em um só impulso.
521

O outro que está na base à mãe, os parentes, os cuidadores e


cuidadoras, fazem sua parte de forma consciente ou inconsciente
envolvendo a criança envolvendo a criança nessa captura. Falar nessa
fase é prazer é ser incentivado pelo outro, mesmo que a fala da criança
nesta fase de captura esteja no lugar do nonsense, não tenha um
significado efetivo, mesmo assim, o outro procura significar o que o
pequeno disse ou tentou dizer, o que De Lemos (2002) dirá que se trata
do processo de captura da linguagem.
Pereira de Castro (2011) afirma que a captura da criança se dá
pelos efeitos da fala do adulto no corpo do infans. Saussure afirma que a
língua é; “tesouro depositado pela pratica da fala em todos os indivíduos
pertencentes a mesma comunidade” ([1916]2008:21).
Entretanto, quando se parte para o outro lado, da aquisição de
linguagem escrita, nos questionamos com a seguinte indagação, poderá
a oralidade, ou seja, os meios pelos quais a criança adquiriu a linguagem
oral facilitar o processo de aquisição de linguagem escrita?
O professor que está na base da aquisição deveria envolver as
crianças com variados gêneros textuais da escrita e aceitar os escritos
das crianças mesmo que as produções estejam, mas para o lado do não
texto do que do que texto, contudo é dessa aceitação que acreditamos
ter uma preparação linguística adequada e que também possa se tornar
um ser humano mais seguro e confiante, pois não foram tolhidos em
suas fases de captura da linguagem escrita.
Quando a criança começa a falar é tudo progresso, entretanto
quando se começa a escrever é tudo mais sacrificado.
O aluno tem que conviver com as questões do erro e do acerto
desde muito cedo na aquisição de linguagem escrita e muitas vezes
poderão ser traumáticas.
Essa teoria dá os passos como pode ser realizada a aquisição de
linguagem escrita ancorada na teoria interacionista. A autora diz que os
alunos tão somente precisam estar envolvidos nas salas de aula com
variados gêneros textuais para que ele vá emergindo na linguagem não
precisa, por exemplo, ensinar o alfabeto ou corrigir as produções dos
522

alunos, pois, isso ele vai adquirir com o passar dos tempos, a sala de aula
deve ser um ponto de criação das crianças uma sala de cotação de
histórias pelos professores os gêneros deve ser os mais variados
possíveis como; carta, bilhete anúncio, contos e etc. Após o
envolvimento dos alunos eles são solicitados a fazer suas produções que
possivelmente versem sobre os temas em circulação em sala de aula de
forma bem natural. A noção de erro não deve ser mencionada nesse
contexto às trocas entre alunos às conversas sobre os textos em
circulação devem ser permitidas até mesmo as ajudas entre os alunos
devem ser encaradas como normal.
Enfim, as questões abordadas aqui sobre a teoria interacionista de
aquisição de linguagem escrita, tem demonstrado que a teoria
psicológica não dá conta da de todos os pressupostos que envolvem esse
processo. Os questionamentos de Borges ancorada na teoria
psicanalítica ressignificada pela psicanálise lacaniana tem apresentado
um novo olhar sobre esse campo de conhecimento capaz de provocar
discussões, mostrando que a aquisição de linguagem, não tem nada a ver
com a noção de desenvolvimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa em torno da aquisição de linguagem escrita


buscando os pressupostos teóricos De lemos (2002) e Sônia Borges
(2006) de forma simplificada com fim não de esgotar a temática, mas de
pôr em evidência, alargar e, possivelmente trazer para o meio escolar
para que os educadores possam se debruçar sobre a teoria
estruturalista das autoras supracitadas a qual acreditamos ser bastante
relevante para entender um pouco a noção de língua estrutural, e de
sujeito psicanalítico assujeitado.
A escola não pode ficar alheia às discussões que são discutidas nas
academias a respeito das teorias e possam também trazer contribuições
acima de tudo para o campo pedagógico.
523

Longe de terminar essa pesquisa afirmando que encontramos


respostas que devem ser seguidas, afirmamos mais uma vez que
questões devem ser levantadas de modo que muitos trabalhos possam
surgir com o intuito de entender a complexidade de se tratar de um
assunto que envolva a linguagem e o sujeito enquanto efeito dessa
linguagem, em especial no que concerne à escrita.
Os posicionamentos trazidos à tona sobre o campo de aquisição
de linguagem escrita não se dão em um processo de desenvolvimento
psicológico cognitivo onde o sujeito é dono do seu conhecimento e, aos
poucos vai capturando a língua, como um pequeno linguística.
Trata-se na verdade do sujeito psicanalítico, alienado as
estruturas da língua, dotado de uma não consciência, processo em que
ele vai sendo capturado pela linguagem como afirmam as pesquisadoras
Cláudia de Lemos (2002), Sonia Borges (2006), LierDeVittor& Andrade
(2011), Glória Carvalho (2009), Lúcia Arantes (2013) e, etc. Trouxemos
dados de trabalhos bastante significativos na área da aquisição de
linguagem escrita, trabalhos que têm sido capaz de abrir caminhos para
novos questionamentos no campo da linguagem.
Os rabiscos, as garatujas, as pseudo-palavras e os pseudos-textos
das escritas inicias da criança podem evidenciar muitos conhecimentos
sobre o aluno que escreve de forma a ser um fato beneficiador no campo
da aquisição da linguagem escrita.
Essa abordagem que fizemos sobre a teoria interacionista de
aquisição de linguagem escrita, não foi com a intenção de demonstrar
superioridade de uma teoria em detrimento de outra, neste caso, em
particular, a teoria psicológica cognitiva. Pois acreditamos que a
sensibilidade do professor é um fator de suma importância nesse
processo, e, essa sensibilidade embasada em uma teoria que possa
questionar sempre, poderá reder bons frutos.
524

BIBLIOGRAFIA

BORGES, Sonia. O Quebra-cabeça: a alfabetização depois de Lacan.


Goiânia: ed. da UCG, 2006.
BUARQUE, L.L. &BROWNE, L.L. Alfabetização e construtivismo:
teoria e prática. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1994.
Carvalho, Glória Maria Monteiro.
CARVALHO, Glória Maria Monteiro. A singularidade da fala da criança
e o estatuto do investigador da aquisição de linguagem. Revista
Intercâmbio, volume XX: 99-113 2009. São Paulo: LAEL/PUC-SP.
ISSN1806-275x
DE LEMOS, C. Das vicissitudes da fala da criança e de sua
investigação. Cadernos de Estudos Linguísticos, 42: 41-70, 2002.
FERREIRO, E. Psicogênese da Língua Escrita. Porto Alegre: Artes
Médicas Sul, 1998.
Lier-DeVittor, M. Em Aquisição e Sintomas de Linguagem:
Levantamento de Questões. Em Seminário apresentado na
Universidade Católica de Pernambuco, no Mestrado em Ciências da
Linguagem (2012.2).
Lier-DeVittor, M. ANDRADE. L. abordagem do erro na fala e na
escrita: aquisição, alfabetização e clínica. Anais do SILEL. Volume 2,
número 2. Uberlândia: EDUFU, 2011.
LÚCIA, Arantes (2013.1). Aquisição de Desvios de Linguagem.
Seminário apresentado no curso de mestrado em Ciências da Linguagem
na universidade Católica de Pernambuco.
MOTA, S. O quebra-cabeça: a instância da letra na aquisição da
escrita. São Paulo: Psicologia da PUC, 1995. (tese, doutorado em
psicologia).
SAUSSURE, F. de. Curso de Linguística Geral. Org. por Charles Bally e
Albert Sechehave. São Paulo: Coutrix, [1916], 2008.
PEREIRA DE CASTRO.M.F.; Questões sobre a Infância e a Fala da
Criança na Teorização sobre Aquisição da Linguagem. Revista da
Abralin, v. Eletrônico, n. Especial, 63-76. 2ª parte 201.
525

HETEROGENEIDADE E PLURALIDADE: EFEITOS DA CLÍNICA DE


LINGUAGEM EM CASOS DE SUJEITOS COM PARALISIA CEREBRAL

R. Vasconcellos, UNESP - FCLAr

RESUMO: O presente trabalho remete à tese de doutorado “Organismo


e sujeito: uma diferença sensível nas paralisias cerebrais”
(VASCONCELLOS, 2010) com filiação teórica no Interacionismo
Brasileiro de De Lemos (1992, 2002, 2006, 2007 entre outros) e seus
desdobramentos no Projeto Integrado Aquisição, Patologias e Clínica de
Linguagem do CNPq/LAEL-PUCSP, que reúne pesquisadores sob a
coordenação de Lier-DeVitto, em que me incluo. Na tese, procurei
aprofundar a discussão acerca da distinção organismo e corpo falado
considerando sujeitos com paralisia cerebral que não oralizam, com
vistas a demonstrar a viabilidade de uma Clínica de Linguagem não
conduzida por um raciocínio centrado nas dificuldades motoras desses
sujeitos que inviabilizam, muitas vezes, a oralização. Para falar em
corpo, não o corpo-orgânico da Medicina, um diálogo inicial com a
Neurologia foi desenvolvido, enfocando-se os mais novos achados (as
técnicas de neuroimagem) e suas relações com o mais antigo (as
afirmações de Freud acerca da natureza das paralisias cerebrais) que
sugerem forte convergência. A diferença, tanto teórica quanto clínica,
que introduzi na tese, relativamente ao tratamento de sujeitos com
paralisia cerebral que não oralizam, é iluminada pelos efeitos dessa
clínica que inclui a Comunicação Alternativa com seus ditos sistemas de
símbolos gráfico-visuais que viabilizam a materialização do significante,
o que se faz pela via do empréstimo do corpo e da voz do outro-
terapeuta. Os dados dos pacientes analisados na tese falaram a favor da
presença de um corpo-linguagem e remeteram a heterogeneidades em
seus efeitos promovidos nessa clínica que suscitaram considerações


Pesquisadora (Pós-Doutorado na área de Aquisição da Linguagem do Departamento de
Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de
Araraquara).
526

sobre a escuta, a transferência e sobre o prazer ou conflito que


acompanham a produção de certas falas vocalizadas de alguns
pacientes.

PALAVRAS-CHAVE: Paralisia Cerebral; Linguagem; Comunicação


Alternativa; Clínica de Linguagem.

ABSTRACT: This article refers to the doctoral thesis "Body and subject:
a significant difference in cerebral palsy" (VASCONCELLOS, 2010)
theoretically based in De Lemos Brazilian Interactionism (1992, 2002,
2006, 2007 among others) and its consequences in the Integrated
Project Language Acquisition, Language Clinic and Language Pathology,
CNPq / LAEL - PUCSP, that brings together researchers under the
coordination of Lier-DeVitto , in which I include myself . In the thesis, I
sought to deepen the discussion about the body and “body-language”
distinction considering subjects with cerebral palsy who do not speak,
aiming to demonstrate the viability of a Language Clinic therapy not
conducted by a focused reasoning on motor difficulties that prevent
these individuals oralization. To considerate “body”, not that of
Medicine, an initial dialogue with neurology was developed, focusing on
the last findings (neuroimaging techniques) and their relationships with
the oldest ones (Freud's claims about the nature of cerebral palsy) that
suggest strong convergence. The difference, both theoretical and clinic ,
which I introduced in the thesis, for the treatment of subjects with
cerebral palsy who do not speak is illuminated by the effects of this clinic
that includes the so called Alternative Communication systems with
graphic - visual symbols that enable the materialization of significant,
which is done by way of loan the therapist’s body and voice. Patient data
analyzed in the thesis referred to the presence of a “body-language” and
to the heterogeneities in their effects promoted in this clinic that raised
considerations about listening purposes, the ‘transference’ and the
pleasure or conflict that accompany the production of certain vocalized
speech of some patients .
527

UMA BREVE INTERLOCUÇÃO COM A NEUROLOGIA

Iniciei meu trabalho de doutorado com uma concisa revisão dos


estudos médicos mais atuais sobre a Paralisia Cerebral (PC) com o
objetivo de situar o leitor quanto à natureza desse distúrbio de ordem
neurológica. A presença de um diálogo com o discurso organicista se
justifica, pois, partindo dele, procurei iluminar a diferença tanto teórica,
quanto clínica, que introduzi na tese relativamente ao tratamento de
pessoas com PC na Clínica de Linguagem a ser esclarecida, em momento
oportuno, nesse artigo.
Segundo o órgão de pesquisa americano NINDS (National Institute
of Neurological Disorders and Stroke), as paralisias cerebrais (daqui em
diante PC) são causadas por anormalidades no cérebro, que obstaculizam
o controle do movimento e da postura. Segundo o NINDS (2013), a
maioria das crianças com PC já nasce com distúrbios neurológicos,
apesar de poderem ser detectados apenas após algum tempo de vida, ao
longo de seu desenvolvimento neuromotor.
O emprego de técnicas de neuroimagem nos dias atuais contribui
tanto na compreensão da etiologia da PC, quanto no redirecionamento
das pesquisas que inclui, entre outros, o campo da genética e o da
farmacologia. Assinalo, entretanto, que, mesmo com o advento de
técnicas bastante avançadas, a investigação da PC no campo médico,
revela, menos do que certezas, mistérios.
Foi Freud quem cunhou quadros desse tipo como “Paralisia
Cerebral”, quando, precisamente, estudava a Síndrome ou Moléstia de
Little (cf. NINDS, 2006/2013). Para Little, a lesão, observada por ele,
resultava da falta de oxigenação durante o nascimento em partos
complicados - a falta de oxigenação lesionava os tecidos cerebrais
responsáveis pelo controle do movimento. Freud observou que outros
problemas acompanhavam frequentemente a PC: retardo mental,
problemas visuais, e convulsões. Para Freud, esse quadro sugeria que
essa desordem teria sido provocada durante o desenvolvimento do
528

cérebro, ainda na fase intrauterina. Freud observou que "partos difíceis,


em certos casos, são meramente um sintoma de efeitos mais profundos
que influenciam o desenvolvimento do feto" (NINDS, 2006/20013).
Apesar das observações de Freud, a crença de que complicações
ao nascimento causariam a maior parte dos casos de PC foi, de fato, a
hipótese mais difundida nas pesquisas médicas até muito recentemente.
De acordo com o NINDS (2006/2013), nos anos 1980, cientistas
analisaram mais de 35 mil nascimentos e se surpreenderam ao
descobrir que apenas menos de 10% dos casos poderiam ser
relacionados a problemas no nascimento. Na maioria das ocorrências de
PC, não se pode precisar a causa. Esses achados recentes colocaram em
questão as teorias médicas acerca das causas da PC e, ao mesmo tempo,
levaram pesquisadores a investigar outros fatores que, acreditam eles,
pudessem estar associados com essa desordem neurológica. Os estudos
mais recentes sobre a PC não diluem mistérios e impasses na
determinação da etiologia orgânica. Nesse âmbito, a PC caracteriza-se
como uma entidade nosológica que aponta para a certeza, com relação à
existência detectável, de uma lesão irreversível que promove um
prejuízo neuromotor permanente.

SOBRE O CAMPO DA COMUNICAÇÃO ALTERNATIVA (CA)

A Comunicação Alternativa (CA) vem sendo cada vez mais


empregada tanto no tratamento de pacientes com PC, junto aos quais
sua implementação foi pioneira, por meio dos símbolos Bliss - a que farei
referência a seguir - quanto no atendimento clínico terapêutico de
pacientes com outros comprometimentos cuja oraliação se encontra
impedida ou comprometida. Segundo os autores noruegueses Tetzchner
& Jensen (1997, p.1) “a Comunicação Alternativa envolve o uso de
modos não orais (non-speech modes) para suplementar ou substituir a
linguagem falada” e compreende recursos de comunicação face a face
(TETZCHNER & MARTINSEN, 1992) que possibilitam a comunicação
para pessoas que apresentam prejuízos gestuais, orais e/ou na escrita.
529

Convém dizer que a CA pode ser introduzida para crianças em aquisição


da linguagem, bem como para pessoas cuja fala se encontra
comprometida temporária ou permanentemente e que ela está presente
nas esferas educacionais, clínicas e hospitalares, envolvendo, portanto,
profissionais de diversas áreas (Educação, Saúde e das Ciências Exatas).
A CA inclui o uso integrado de recursos (sinais manuais e gráficos)
e de estratégias e técnicas diversas. Esses recursos podem ser bastante
simples ou envolver o uso de baixa e de alta tecnologia1. Os sistemas de
sinais gráficos podem incluir desde fotografias e desenhos, até escritas
ortográficas tradicionais ou combinações entre esses diferentes tipos
gráficos. Os sistemas gráficos de CA mais empregados no Brasil são o
Picture Communication Symbols (PCS) e o Bliss (Blissymbols). No início
da década de 70, os Símbolos Bliss aparecem como precursores dos
sistemas gráfico-visuais que figuram entre os SAC. Esse Sistema leva o
nome de seu idealizador, Charles Kasiel Bliss (1897-1985) que o
produziu entre os anos de 1942 e 1965. Bliss dedicou-se a criar um
“esperanto gráfico”, mas seu trabalho não ganhou popularidade. Os
símbolos Bliss (Blissymbols) foram encontrados por profissionais
envolvidos com pacientes com PC e introduzidos, em 1971, na atividade
clínica, no Ontário Crippled Children´s Centre, hoje, The Mac Millan
Children´s Centre, em Ontário, Canadá. Antes da implementação do
Bliss, os programas voltados para as necessidades comunicativas de
sujeitos com PC, que não oralizavam, partiam de habilidades de leitura
e escrita ou de programas limitados baseados em figuras (MC
NAUGHTON, 1978).
Os Símbolos Bliss foram concebidos como um sistema de escrita
ideográfico que reúne símbolos básicos que, por sua vez, podem ser
agrupados para gerar novos símbolos 2. A introdução do Bliss foi uma
revolução, não somente porque tornou a linguagem expressiva acessível

1 Não pretendo, contudo, realizar aqui uma extensa discussão crítica sobre tais sistemas

de comunicação e nem mesmo apresentá-los de maneira detalhada. Remeto o leitor


interessado nessa discussão a Vasconcellos (1999 e 2010).
2 Dados extraídos do site www.blissymbolics.org
530

para pessoas com dificuldades motoras e para não leitores com “boa
compreensão da linguagem falada”, mas também porque inaugurou o
uso sistemático dos sistemas de sinais gráficos em geral, asseguram
Tetzchner & Jensen (1997, p. 7). Os autores sustentam que, depois de
1985, o emprego de processos comunicativos, envolvendo a
comunicação com ajuda, teve grande repercussão.
O Picture Communication Symbols (PCS) reúne desenhos lineares
em preto e branco, originalmente desenvolvidos por Johnson em 1981,
com o objetivo de serem utilizados como Sistemas Alternativos de
Comunicação de alta ou baixa tecnologia. Trata-se de um sistema
basicamente pictográfico, “para quem um nível simples de expressão
seja aceitável, porque o sistema tem um vocabulário limitado, apesar de
permitir a inclusão de outros desenhos e fotos” (FERNANDES, 2006)3. O
PCS é o sistema gráfico-visual alternativo de comunicação de maior
alcance em termos mundiais, tendo sido traduzido para 40 línguas
diferentes.
Segundo Mizuko (1987), “muitos estudos têm apontado para o
PCS como o mais transparente dos sistemas”. Na literatura sobre a CA,
um sistema é transparente se “forma, movimento ou função do referente
estão representados de maneira que o significado do símbolo seja
rapidamente evocado na ausência do referente” (MIZUKO, 1987). Como
se vê, no dito do campo dos Sistemas Gráfico-Visuais – principalmente
no PCS, que se apoia em desenhos, a questão do significado e da
significação fica atrelada, sem exceção, à determinação precisa de uma
relação de correspondência entre referente (coisa no mundo) e
representação (sua forma, movimento ou função). Mesmo no Bliss, esse
é o caso, porque a linguagem não é mais do que nomenclatura e,
portanto, tem função de fornecer símbolos que designem coisas no

3Essa caracterização do PCS foi retirada de um texto elaborado por Fernandes e está
disponível no site www.clik.com.br, que reúne, entre outros tópicos, uma breve
apresentação da CA. A última atualização do referido texto sobre CA data de
21/07/2006.
531

mundo e possam representar o pensamento. Por aí, sua função não


difere daquela desempenhada por figuras e desenhos. Aliás, Bliss
pretendeu mesmo conter os desvarios da linguagem, a pluralidade dos
sentidos e forjar uma língua em que só houvesse positividade - uma
coleção de “símbolos satisfatórios”. Ele almejava uma língua como
nomenclatura (VASCONCELLOS, 1999, p.65-6/ 2010, p. 28). Seguindo de
perto esse ideal, os símbolos do PCS visam a ser ainda mais simples,
“mais transparentes” que os símbolos Bliss.
Tenho proposto outra leitura e entendimento da implementação
dos sistemas gráfico-visuais de comunicação, a partir dos efeitos de sua
utilização em minha clínica e do compromisso que assumo com a
desnaturalização da linguagem – sem isso, não parece haver mesmo
porta de saída de uma ideia de linguagem enquanto representação/
comunicação e de sujeito como suporte de conteúdos perceptuais
analíticos inatos (ANDRADE, 2003). Saussure está no pano de fundo da
posição que assumo para discutir “o que é linguagem”.
A Linguística nasce como ciência, com Saussure. Para o autor, as
unidades da língua não são dadas previamente: ela, a língua, “não
oferece unidades perceptíveis à primeira vista” (SAUSSURE,1916/1989,
p.124). Desse modo, diferentemente do que almejam os estudiosos dos
Sistemas Alternativos e alegam ser sua qualidade especial, a posição
teórica aqui assumida sustenta que não há transparência no domínio da
linguagem, ou melhor, sendo a língua um sistema de relações, operações
precedem as unidades: não há unidades delimitadas antes do recorte
feito pela língua. Saussure propõe que se aborde o problema da
delimitação das unidades pelo “aspecto do valor” (SAUSSURE,
1916/1989, p.128) e passa, nesse ponto, da definição da língua como
“sistema de signos” à de linguagem enquanto “sistema de valores puros”
(SAUSSURE,1916/1989, p.30). Saussure define valor como resultado
das relações no sistema da língua. Assim, o significado de um signo é
efeito da relação que ele estabelece com os demais, numa cadeia. O que
determina unidades é o jogo entre os agrupamentos associativos e os
tipos sintagmáticos.
532

Sustento, na tese (VASCONCELLOS, 2010, p. 29), o que afirmei em


trabalho anterior: “os símbolos dos sistemas gráfico-visuais não são
instrumentos de representação do mundo e não podem ser utilizados,
como tais...” (VASCONCELLOS, 1999, p. 69-70/ 2006, p. 298). Isto
significa dizer que a percepção não é via de acesso direto seja a símbolos,
seja ao mundo: a percepção é também, um efeito (DE LEMOS, 1992;
ANDRADE, 2003). Os chamados sistemas gráfico-visuais nada mais são
do que um amontoado de sinais que não se articulam como “um
sistema”. Sua eficácia “resulta do fato de serem significantes, de poderem
operar como entidades linguísticas ao serem submetidos ao trabalho da
língua, num texto” (VASCONCELLOS, 1999, p. 70-1).
Tenho afirmado que tais sistemas de comunicação não constituem
uma língua: os símbolos desses sistemas são marcas, traços, desenhos,
que exigem interpretação, ou seja, necessitam do concurso da linguagem
para serem erigidos como significantes – eles devem ser movimentados
na fala do outro e na escuta e escrita dos pacientes para que venham a
significar (VASCONCELLOS, 1999/2006, 2010).

OS CAMINHOS DA CLÍNICA DIANTE DE SUJEITOS COM PARALISIA


CEREBRAL

No trabalho a que me remeto aqui, trouxe à discussão as


diferentes formas propostas por autores4, tanto na literatura
estrangeira quanto na brasileira, de se conceber o papel da Comunicação
Alternativa junto a sujeitos impedidos de se comunicar oralmente de
modo eficaz. Em seguida, fiz algumas pontuações sobre sua importância
e forma de inclusão na Clínica de Linguagem e assinalei o
distanciamento de todas as outras formas de introdução desses
instrumentos nessa clínica, distanciamento que se deve às concepções
de linguagem e de sujeito assumidas na referida tese.

4Ver Vasconcellos (2010) Capítulo 3 - A literatura sobre Comunicação Alternativa (p.


30-50).
533

Nela, procurei tomar distância da perspectiva orgânica quando se


trata de sujeitos com paralisia cerebral e considerar a dimensão do
sujeito que habita esse organismo prejudicado, pois, se, sob a
perspectiva do organismo fala-se em “paralisia”, pode-se surpreender
mobilidade quando se pode abrir a escuta para sujeitos com Paralisia
Cerebral. Procurei justificar essa tomada de distância do orgânico a
partir de argumentos clínicos, teóricos e empíricos. Devo dizer também
que, pelas mesmas razões, afastei-me da concepção de sujeito
epistêmico presente nas considerações sobre a clínica fonoaudiológica
com sujeitos com PC, mesmo quando se faz valer da Comunicação
Suplementar e Alternativa. No referido trabalho, a noção de sujeito que
acolhi harmoniza-se com pressupostos da Linguística Científica que
expulsa o sujeito “em controle da linguagem” do coração da língua. O
referencial teórico de que me aproximei tem filiação com
Interacionismo Brasileiro em Aquisição de Linguagem, que reflete sobre
a articulação criança-língua-fala e que assume posição crítica em relação
ao sujeito psicológico.
Do ponto de vista da clínica com pessoas com PC, inquietações
provocadas pela certeza da patologia orgânica não anulam ou impedem
as manifestações incontestáveis de um sujeito, certeza que tem me
acompanhado desde o início de meu atendimento clínico. Para mim,
seus olhares e gestos, mais do que movimentos incoordenados, dizem
de uma presença viva que convoca o outro: um corpo como gesto, como
presença na linguagem - um corpo atravessado pelo linguístico.
(VASCONCELLOS, 1999/2006). Entendo que o fato de não oralizar a fala,
não exclui o sujeito com PC de uma relação com a linguagem. Além de
ouvir, esses sujeitos escutam (ANDRADE, 2003). Desse modo, indico que
a barreira motora, que deixa o organismo prejudicado, não impede que
se realize nele uma “apreensão qualitativa” do som, que implica “a esfera
de onde se ouve falar” (PARRET, 1993; DE LEMOS, 1995, p. 244) –
situação que permite que se possa “passar do ouvir para o escutar e para
o escutar-se” (DE LEMOS, 1995, p. 244). De fato, a clínica atesta que a
barreira motora não impede que o sujeito seja envolvido pelo simbólico,
534

como apontam os dados da fala-escrita de S. com símbolos Bliss e escrita


alfabética que exibem cruzamentos entre oralidade/escrita com
símbolos e escrita alfabética e podem ser apreendidos nos “erros” de S.
em Vasconcellos (1999/2006). Tais “erros” indicam um movimento na
linguagem e falam a favor da afirmação que faço de que o motor não
pode ser tomado como causa ou justificativa para os problemas nesse
domínio no caso de sujeitos com PC.
Ocorre que o modo como as clínicas dirigidas aos pacientes com
PC são concebidas não tem qualquer compromisso com o campo dos
estudos sobre a linguagem. O atendimento clínico a sujeitos com PC é
calcado no discurso organicista – nele perpetuam-se técnicas oriundas
da Neurofisiologia e são elas que invadem o espaço clínico
fonoaudiológico, que, pensado desse modo, pode ser caracterizado
como uma “fisioterapia da fala”. Não é preciso dizer que tais
procedimentos colocam a linguagem fora de cena, ou melhor, acabam
por naturalizá-la, tratando-a como produto de conquistas em um campo
que lhe é estrangeiro: o campo do orgânico. O que se busca com esses
procedimentos de cunho fisioterápico é a transformação de movimentos
reflexos em voluntários e se espera que esses movimentos
desordenados (primitivos e/ou reflexos) cedam, “naturalmente”, lugar
à fala. Ocorre que fala é mais do que sinergia de movimentos. Quero
dizer, com isso, que a linguagem não é extensão do organismo, que a
relação organismo e corpo-que-fala envolve uma complexidade que
merece estudo e reflexão. Resumidamente: mesmo frente a um
impedimento motor severo, capaz de barrar a oralização da fala, é
possível afirmar que sujeito e organismo não coincidem
(VASCONCELLOS, 20110, p. 52-53).

DA ANCORAGEM TEÓRICA

Na pesquisa a que faço referência aqui, coloquei em questão a


problemática da pessoa com PC procurando iluminar o fato de que ela
não se reduz à lesão neurológica que afeta profundamente seu
535

organismo. Em outras palavras, a clínica com essas pessoas me levou na


direção do Interacionismo, da Clínica de Linguagem e, mais
recentemente, da Psicanálise. Fato é que a heterogeneidade imprevisível
dos efeitos da “paralisia motora permanente” de pessoas com PC não
permite que se obscureça o fato de que elas são “seres de linguagem”,
como tenho procurado sustentar (VASCONCELLOS, 1999/2006/2010,
entre outros). Se esse é o caso, fica-se frente a um corpo pulsional, que
se sustenta de/na linguagem. De outro lado, não se pode ignorar, como
indiquei acima, os efeitos reais desse comprometimento neurológico
sobre o sujeito e o outro.
A questão que me inquietava como fonoaudióloga e que enunciei
como argumento clínico, encontrou espaço de discussão na Clínica de
Linguagem, no grupo de pesquisa liderado por Maria Francisca Lier-
DeVitto, no LAEL-PUCSP, que tem laço de filiação com o Interacionismo
em Aquisição da Linguagem, proposto por Cláudia De Lemos, vertente
teórica iniciada na UNICAMP, no final da década de 1970. O projeto de
Aquisição da Linguagem tem sido liderado por Maria Fausta Pereira de
Castro desde o início do século XXI. No Interacionismo Brasileiro de De
Lemos, fala-se em “captura” do sujeito pela linguagem (e não de
“apropriação” da linguagem pela criança). Pode-se entender, assim, que
o outro da criança seja visto como outro-falante: como “instância da
língua constituída; como instância do funcionamento linguístico-
discursivo” (DE LEMOS, 1992) e não como outro-social (LIER-DEVITTO,
1996, 1998).
O fato de sustentar a impossibilidade de homogeneização da fala
da criança e de projetar sobre ela o saber da Linguística permitiu ao
Interacionismo sustentar a sua “indeterminação categorial” (DE LEMOS,
1982) e firmar posição contra a Psicologia do Desenvolvimento
(CASTRO, M.F., 1992). Se essas falas de crianças são indeterminadas do
ponto de vista categorial, elas não o são do ponto de vista dialógico.
Segundo De Lemos, elas são compostas de fragmentos da fala do outro
que são movimentados, articulados pelas operações internas da língua.
536

Gostaria de assinalar que essas discussões foram e são da maior


importância para o trabalho que tenho desenvolvido.
No Interacionismo Brasileiro, o diálogo foi assumido como
unidade de análise e o erro como dado de eleição. O ponto de apoio da
teoria é o “constante refazer do enigma na fala da criança” (DE LEMOS,
2002), tomando-a na resistência que ela impõe ao investigador que dela
pretenda fazer uma simples empiria. A partir de 1992, as mudanças na
fala da criança são assumidas como efeitos estruturais: como mudanças
de posição do sujeito relativamente à fala do outro, à língua e à sua
própria fala. A teoria é redimensionada pela necessidade da articulação
entre língua-fala-falante. Acrescenta-se a dificuldade de relacionar
processos de subjetivação e processos de objetivação da linguagem. A
“subjetividade” implicada no trabalho de De Lemos não é outra senão
aquela introduzida pela Psicanálise, diz ela. A autora, de fato, desloca a
concepção de criança e de mudança vigente no campo da Aquisição
(principalmente a partir de 1997). A criança está numa estrutura,
sustenta De Lemos. É enquanto vir-a-ser, falada pelo outro-falante
(instância da língua constituída) e, portanto, pelo Outro-língua (ponto de
articulação entre língua e fala) que ela é concebida. Essa “criança falada”
é concebida como corpo pulsional5 e não como organismo ou sujeito
psicológico.
Desdobramentos importantes do Interacionismo, acima
explicitado têm ocorrido no âmbito das discussões sobre as patologias e
a Clínica de Linguagem. Trata-se de um esforço teórico que, desde 1990,
vem sendo realizado no Grupo de Pesquisa CNPq, “Aquisição, Patologias
e Clínica de Linguagem” assim nomeado desde 2000, sob a coordenação
de Lier-DeVitto, no LAEL-PUC/SP. Conforme Lier-DeVitto (2006),
categorias ou operações nodais do Interacionismo proposto por De
Lemos foram mobilizadas para pensar questões suscitadas por “falas
sintomáticas” e pela clínica que as acolhe. Trata-se de pensá-las como
“diferença”, portanto. Assim, interação, mudança, erro, heterogeneidade

5 Conceito a ser abordado no tópico a seguir.


537

e interpretação deveriam, diz a pesquisadora, adquirir tonalidades


próprias e bem específicas na Clínica de Linguagem.
Há, portanto, que se empreender uma aproximação ao
Interacionismo levando-se em conta que “outro”, “erro” e “interação”
devem ganhar contornos particulares: outro = terapeuta; erro =
sintoma, interação = relação clínica (LIER-DEVITTO, 2006). Lier-DeVitto
demarca, assim, o que designa como uma aproximação ao
Interacionismo, que deve ser caracterizada como um “diálogo teórico”
(op. cit., p. 184). Para sustentar uma posição frente ao acontecimento na
Clínica de Linguagem é preciso ter uma escuta instrumentalizada por
questões teóricas. Porém, como assinalou Lier-DeVitto (2006), “os
deslizes daqueles que enfrentam as patologias de linguagem correm por
conta do fato de que eles são assombrados pelo que os convoca – as falas
sintomáticas” (LIER-DEVITO, 2006, p. 189 - ênfase minha) e incorrem
numa naturalização da linguagem e na suposição, portanto, de que o
sintoma pode ser esclarecido pela via da etiologia (orgânica, cognitiva,
etc.) – a relação sujeito-linguagem não é jamais considerada. Pode-se
dizer que a diferença e as conquistas do Grupo de Pesquisa estão
relacionadas ao compromisso assumido com a teorização sobre as
patologias de linguagem e com a heterogeneidade das manifestações
sintomáticas.
A questão da heterogeneidade, enunciada por De Lemos (1992,
1997, 2002) como argumento empírico em favor de uma abordagem
contrária à noção de desenvolvimento, partiu da constatação de que
“acertos” e “erros” na fala da criança ocorrem num mesmo segmento de
coleta de dados, o que aponta para uma não-coincidência de uma fala
com ela mesma e, necessariamente, para a não-coincidência do sujeito
consigo próprio, razão para que se suspeite do sujeito epistêmico em
controle de si mesmo e que se abram, assim, caminhos para se pensar
num sujeito compatível com a proposta interacionista de De Lemos: um
processo de subjetivação solidário ao de estruturação da linguagem,
processo que implica a ordem própria da língua e que remete ao modo
singular de captura pela linguagem.
538

Interessou-me, no âmbito dessas discussões, enfocar a Clínica de


Linguagem com sujeitos com PC e discutir, ao lado das
heterogeneidades/particularidades da linguagem desses sujeitos, as
heterogeneidades/particularidades da clínica dirigida a pacientes com
PC. O que procurei foi aprofundar a questão de que, apesar de todos os
entraves que dizem respeito a uma condição orgânica, quando em
questão estão pacientes com PC, há ali um corpo pulsional, há um
funcionamento que permite pensar em presenças-sujeito particulares
na linguagem.
Lier-DeVitto (2003, p.238) faz menção à PC e afirma que há
sempre um excesso que ultrapassa a lesão, mesmo quando ela impede o
movimento de um corpo. Trata-se de “excesso” que transborda,
inclusive, do silêncio verbal de um sujeito, que transborda em expressão
mínima: num olhar, num pequeno gesto, num choro, num sorriso. Esses
“excessos” dizem de um corpo falado/investido que investe na parcela
que resta de “vivo”, de ‘não-paralisado” em seu organismo prejudicado
(VASCONCELLOS, 1999). Esse corpo-fala desprendido, que não se
confunde com o corpo orgânico, insiste como linguagem – significa e
demanda interpretação.

A DISTINÇÃO ORGANISMO/CORPO PULSIONAL

Na pesquisa que aqui abordo, procurei aprofundar a discussão


iniciada em 1999 em pesquisa de mestrado, acerca da distinção entre
organismo e corpo-falado considerando sujeitos com PC, que situa a
questão a que me refiro: a de que, apesar de todos os entraves que dizem
respeito a uma condição orgânica, há outro corpo – o pulsional. Procurei
enfrentar alguns mistérios que envolvem não a “paralisia motora” de um
organismo, mas o “movimento” de sujeitos na linguagem e as
particularidades de suas produções linguageiras. Para serem
explorados, esses mistérios não podem prescindir do olhar (e da escuta)
do clínico de linguagem e do espaço clínico que suscita o desafio de
desvendar, por meio da escuta/interpretação algo mais nesse
539

organismo prejudicado, subvertendo sua paralisia quando privilegia


aquilo que nele é particular: sua presença na linguagem – presença que,
à revelia do impedimento orgânico, revela um corpo marcado pelo
simbólico.
Cabe perguntar, neste momento, “o que é corpo?” – uma pergunta
que importa para tecer considerações sobre a Clínica de Linguagem com
sujeitos com PC. E, para tratar dessa questão que envolve olhar para um
lado diferente daquele do campo da Medicina e da doença, parece-me
inevitável convocar Freud mais uma vez. As condições da descoberta do
inconsciente e a ‘invenção’ da Psicanálise estão em relação direta com
os estudos sobre a histeria, que faz aparecer, para ele, um corpo que não
se confunde com o corpo orgânico.
As paralisias orgânicas foram pesquisadas por Freud entre 1885
e 1886, num estudo comparativo com as paralisias histéricas, "com a
esperança de que tal estudo pudesse revelar algumas características
gerais da neurose”, diz Freud (1893c). Em sua pesquisa, Freud destacou
algumas características das paralisias orgânicas, que considerava serem
de aceitação geral, e afirmou que "a neurologia clínica reconhece dois
tipos de paralisia motora: paralisia periférico-medular ou (bulbar) e
paralisia cerebral” (Freud, 1983c). Ao investigar a anatomia do sistema
nervoso, Freud pode discernir diferenças entre esses dois grupos.
Segundo Freud, à diferença das Paralisias Cerebrais, a lesão, nas
Paralisias Histéricas, deve ser vista como completamente independente
da anatomia do sistema nervoso, pois, as paralisias manifestas na
Histeria “comportam-se como se a anatomia não existisse, ou como se
não tivesse conhecimento desta” (FREUD, 1893c). Em se tratando de
Histeria, Freud mostra que há modificação funcional sem lesão orgânica
concomitante. A lição deixada, portanto, pelas Paralisias Histéricas é a
de que nelas há, digamos, “outra anatomia”, diferente daquela que
orienta a prática médica.
Assim, desde Freud, corpo é expressão que não pode ser reduzida
a organismo vivo. Freud propõe a noção de conversão histérica, que pode
ser tomada como representante primeira da problematização do
540

estatuto do corpo na teoria e na clínica psicanalítica. Nota-se que, na


Histeria, o corpo é o lugar da manifestação de um sintoma psíquico que,
para Freud, é “sexual”. Lacan articulará, depois, corpo e linguagem. O
corpo do bebê é superfície em que incidirá a linguagem, pela via do outro
materno – trata-se aqui, do corpo pulsional.
A expressão “corpo pulsional” está no pano de fundo de meu
trabalho e essa noção o movimenta. “Corpo pulsional” é expressão que
indica e distingue o estatuto de um corpo atravessado pela linguagem
(LEITE, 2003, p. 81). Diz a autora que “nada é mais natural, para aqueles
que trabalham com o texto freudiano, do que implicar o conceito de
pulsão para abordar as articulações entre corpo, linguagem, afeto e
sentido” (LEITE, 2003, p. 81-2). Freud (1915/2004) entende ser a
pulsão

um conceito–limite entre o psíquico e o somático, como o


representante psíquico dos estímulos que provêm do
interior do corpo e alcançam a psique, como uma medida
de exigência de trabalho imposta ao psíquico em
consequência de sua relação com o corpo (FREUD,
1915/2004, p.148).

Lacan, a partir de Freud, dirá que, “em relação à instância da


sexualidade [os sujeitos] só têm a ver com aquilo que, da sexualidade,
passa para as redes de constituição subjetiva, para as redes do
significante” (LACAN, 1964/2008, p. 174) - o que nos remete ao fato de
que a sexualidade tem a ver com as incidências significativas e
significantes do outro sobre a superfície do corpo do bebê: “graças à
introdução do outro, a estrutura da pulsão aparece” (LACAN,
1964/2008, p.179). Vemos que, com Lacan, entra em jogo, uma
explicação que envolve o outro e a linguagem. Trata-se de uma relação
objetal em que ambos (bebê e outro) são, ao mesmo tempo, sujeito e
objeto.
Assim, tornar-se mãe é uma condição que se consolida na relação
com o bebê, que, por sua vez se humaniza nessa relação. A linguagem é
541

“alteridade radical” em relação ao ser vivo e a ordem simbólica,


portanto, pré-existe ao bebê, que sem ela ele não pode viver. O outro,
que significa a criança, é também heterogêneo em relação ele, mas a
criança se serve de seu corpo: provoca interpretação e coloca o outro
frente a uma incógnita: quem é esse ser? A mãe recalca esse mistério e
faz da criança o objeto do seu desejo: ela é quem encarna o sujeito que
fica entre o orgânico e o psíquico. É o jogo do significante que constitui
o sujeito e destitui o ser (do ponto de vista do organismo). Desta forma,
a linguagem coloca o bebê numa cadeia: só assim é possível fazer sua
história. (VASCONCELLOS, 2010, p.72-74).
O investimento da mãe ou do agente materno no corpo do filho é
decisivo, como procurei mostrar. No caso de um bebê que nasce e de
pronto é encaminhado para cuidados especiais necessariamente
produzirá efeitos na mãe. O real não incide só na criança, mas também
no próprio sujeito com PC antes mesmo de que se possa falar em
“sujeito”. O sujeito com PC, pelas exigências e necessidades
incontornáveis de seu organismo, estabelece com o outro uma relação
particular. Essa relação implica, naqueles casos em que a gravidade
motora é significativa, uma dependência que não determina, contudo,
uma atitude homogênea por parte do outro. O imaginário do outro (pais,
familiares, cuidadores, profissionais) simboliza o corpo dessa criança de
maneiras distintas: como um sujeito que pode/deve ser
institucionalizado, marginalizado, infantilizado, doente e até como uma
pessoa com uma vida a ser vivida.
Fato é que a heterogeneidade imprevisível dos efeitos da
“paralisia motora permanente” de pessoas com PC não permite que se
obscureça o fato de que elas são “seres de linguagem”, como tenho
procurado sustentar (VASCONCELLOS, 1999/2006 entre outros). De
outro lado, não se pode ignorar, como indiquei acima, os efeitos reais
dessa condição neurológica sobre o sujeito e o outro. Deve-se perguntar,
então, sobre sua incidência: “onde é que ela incide?” e sobre os limites
que ela coloca: “para quem esse limite se impõe?”. É certo que, para além
da restrição motora, que afeta o sujeito de formas diversas, seus efeitos
542

afetam pais e profissionais. Interessou-me, na tese, tentar apreender


como é que se dão os efeitos entre esse sujeito e seu terapeuta numa
clínica que tem contornos singulares por privilegiar nela, a linguagem e
o sujeito em sua complexidade e heterogeneidade.

A HETEROGENEIDADE E A PLURALIDADE DOS EFEITOS NA CLÍNICA

A partir da discussão de cinco casos que atendi, abordei a


heterogeneidade dos efeitos da relação de sujeitos com PC e a linguagem
com o intuito de dar visibilidade à pluralidade vivida por eles na clínica.
Situações dialógicas e monológicas foram registradas e analisadas, e as
particularidades que essa clínica entretém com pais e pacientes em
situações de entrevistas e de atendimento, foram discutidas. A
heterogeneidade dos efeitos dessa clínica, apreendida na discussão dos
dados clínicos da tese, suscitaram pontuações sobre a escuta, sobre a
transferência e sobre o prazer ou conflito que acompanham a produção
de vocalizações e até de fala, no caso de alguns desses pacientes. Nessa
clínica, o corpo falado aparece como falante na heterogeneidade de suas
produções com símbolos, na escrita alfabética e até mesmo numa fala
que irrompe, surpreendendo esses pacientes (VASCONCELLOS, 2010,
2013).
Tratar a linguagem como ponto de partida com pessoas com PC
implica subverter a primazia do orgânico em favor do reconhecimento
de que, ali, na clínica, está presente um sujeito, que “ostenta linguagem”
(OGILVIE, 1988, p.113). Refiro-me a um corpo falado, que fala
(VASCONCELLOS, 1999, 2006), mesmo que tenha que fazê-lo através de
um mínimo de mobilidade – um corpo que fala através de sorrisos e de
gestos significados e significativos dirigidos ao outro. A fala de meus
pacientes com PC faz-se notar, ainda, na escrita com símbolos de
sistemas gráfico-visuais (BLISS e PCS) e/ou da escrita alfabética. Trata-
se de uma fala que está na escuta do sujeito com PC (VASCONCELLOS,
1999, 2006) e que, muitas vezes, se realiza em escrita através do corpo
do outro. Quero dizer que essa fala “não sai pela boca”, mas pelo olho (do
543

paciente) e pela mão (do terapeuta ou do paciente). O outro, portanto,


empresta seu corpo (voz e gestos) ao sujeito com PC toda a vez que
verbaliza e/ou escreve as indicações que lhe são feitas (com o olhar ou
o gesto do paciente). Importante é dizer que esses sujeitos concordam
ou recusam (com gestos bem marcados de ‘sim’ e de ‘não’) as produções
registradas pelo terapeuta. Em outras palavras, eles se empenham em
sustentar sua fala/escrita. De fato, o que tenho podido atestar na clínica
é que esses pacientes sustentam (a) e se sustentam na linguagem, apesar
de não prescindirem do corpo do outro-terapeuta.
Parece-me preciso dar destaque - no caso daqueles sujeitos
introduzidos aos SAC - ao fato de que sua fala-escrita só pode ser
apreendida e atestada devido à indicação feita de marcas (símbolos,
letras do alfabeto e números) que figuram em suas pranchas de
comunicação. É partir da materialização dessas marcas, seja através da
voz ou do gesto de escrita emprestado pela terapeuta ao paciente, que
um registro pode ser lido como significante. Quero dizer, com isso, que
as sinalizações ganham corpo no corpo do outro. Do lado do paciente,
devo assinalar que apenas um corpo falado e falante tem escuta e é
afetado pela fala do outro.
Enfatizo, também, que a implementação da Comunicação
Alternativa, além de ser ponto de abertura da possibilidade de
materialização de uma fala, que fica contida pelo real da patologia, no
caso desses pacientes é, também, ponto de encontro entre o paciente
(aquele que não fala, mas escuta) e o terapeuta (que se coloca em
posição de escuta das manifestações significantes e significativas de seu
paciente). Assinalo que o reconhecimento que esta clínica dá à
linguagem e ao sujeito, marca sua diferença radical em relação a outras
clínicas e técnicas de tratamento voltadas a esses pacientes - é outro o
desejo do clínico de linguagem frente ao paciente com PC.
Dos efeitos particulares que pude surpreender na clínica com
meus pacientes sujeitos da tese, trago, nesse artigo, dois aspectos que
discuti. No decorrer do atendimento de alguns pacientes, pais ou
responsáveis, mesmo o terapeuta e o próprio paciente são
544

surpreendidos por uma fala que irrompe sem ser esperada, tanto que os
dados de J. que integram os dados da tese, foram gravados. J. chega à
clínica com 10 anos e depois de quatro anos de atendimento e passa, a
rudimentos de fala que vão ganhando contornos ao longo do
atendimento clínico. No segmento abaixo temos um sujeito que, ao
mesmo tempo em que apontava símbolos do PCS em sua prancha, podia
realizar gestos articulatórios. Observe-se, porém, que praticamente não
há alternância dialógica: os pedaços de fala de J. são incorporados, sem
dúvida, dos enunciados da terapeuta. Há uma espécie de precipitação,
de pressa, nas produções de J. - no momento da transcrição desse
material, inclusive, a impressão que se tinha era de que as falas de T. e
de J. eram concomitantes. Essas falas aparecem sublinhadas e em
negrito, a seguir e em itálicas estão os símbolos que J. indica em sua
prancha. SI corresponde a emissões ininteligíveis.
545

Segmento 1 - J. (19a)

Lacan (1972/1973) lembra “que uma fala sustenta o gozo daquele


que fala”. No caso de pacientes com obstáculo real para sua
manifestação, pode-se avaliar o efeito de surpresa que vem conjugado
com o de prazer. O sujeito é surpreendido por fragmentos sonoros que
partem dele: falas (significantes e sentidos) de que está “impregnado”.
Há, nessa insistência, parece-me, algo da ordem de um efeito no próprio
sujeito. Efeito que parece vir da gratificação de “falar” mesmo que sua
fala não seja mais do que uma reduplicação de fragmentos sonoros. No
546

caso de J., sua fala, ao dilatar-se e estender-se, passa a compor


articulações significantes em produções subsequentes. Talvez se possa
dizer que em casos como o de J., em que o comprometimento motor é
menor (em que o organismo é menos prejudicado motoramente), a
“rede de inibições da linguagem” se faça notar.
O jovem B. chega à clínica por volta de 13 anos de idade, ao mesmo
tempo em que vai, pela primeira vez, a uma escola. Na clínica, ele é
introduzido tanto à escrita alfabética, quanto aos símbolos Bliss. Menos
do que usufruir da parcela de prazer que poderia retirar de uma
produção de pedaços de fala, B., à diferença de J., deixa aparecer uma
“quota de desprazer”, que me pareceu emanar da impossibilidade de
chegar aos significantes responsáveis pelo sentido do que ele queria
dizer. O impasse dialógico, que veremos no segmento abaixo, remete a
conflito e angústia: o que B. produz e escuta, ele mesmo não pode
reformular. B. não pode, igualmente, fazer reparos às tentativas da
terapeuta de chegar (apreender e dizer) a cadeia que ele espera que seja
materializada.

Segmento 2 - B. (17 anos)

De maneira geral, podemos dizer, a partir deste segmento, que B.


sustenta o texto: ele diz “é” e “não” aos enunciados oferecidos pela
terapeuta. Contudo, quando procura tomar a palavra, segmentos ou
sequências breves precipitam-se em sua voz, criando uma zona de não-
547

sentido – uma ocorrência estranha ao português: COFAESI. Note-se que,


a partir de (9), instala-se um desencontro: do lado da terapeuta, o
desacordo vem pela leitura da não-palavra escrita por B. Apenas quando
o bloco “cofaesi” é dissolvido e fragmentado em elementos que ganham
nova sonoridade ao serem lidos isoladamente: “co” leva a confusão e “é”
(que estava na leitura de T. em cofaési) se transforma em ê. A relação
entre fa ... ê, aparecerá na fala de B: faecimen, momento em que um
significante brota do não-sentido.
O segmento acima nos permite falar de conflito e angústia na
relação com o outro. De Lemos, com Lacan, lembra que a angústia “dá
sinal de alarme diante do desejo do Outro” (DE LEMOS, 2007: 117).
Considerando a criança e a aquisição da linguagem, a autora relê a noção
de “captura” que, embora vinda da Psicanálise, não havia trazido dali a
“violência dos mecanismos do significante”, que arranca a cria humana
de sua imanência vital. Pacientes com quadros graves de PC, como B.,
acrescentam complexidade a essa discussão. Parece-me inegável que
eles tenham sido capturados pela linguagem. Alguns conseguem
bastante com a fala; outros encontram na escrita esse caminho; outros
ainda conseguem menos: ficam nos símbolos e em segmentos de escrita
(e/ou de fala). De todo modo, equivocado, parece-me, seria supor que
“separação”, em todos esses casos, anularia a dependência do corpo do
outro. A angústia e o conflito, que aparecem no diálogo de B. com a
terapeuta, mostram que há resistência ao outro – o sujeito não cede às
dificuldades do diálogo e isso porque, como disse, há escuta, há Outro. É
preciso lembrar, porém, que a rede de inibições da linguagem, que
incide sobre o ser vivo, encontra, no real do corpo, um limite: a
implantação do significante não pôde fazê-lo falar/verbalizar – a
materialização de articulações significantes fica barrada pela patologia
orgânica. Disso resulta uma profunda e permanente dependência em
relação ao corpo do outro.
548

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, L. Ouvir e escutar na constituição da Clínica de


Linguagem. 2003. 143f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e
Estudos da Linguagem) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo.
BLISSYMBOLICS COMMUNICATION INTERNATIONAL. Blissymbolics.
Canadá, 2010. Disponível em: <http://www.blissymbolics.org>
CASTRO, M. F. P. de Aprendendo a argumentar: um momento na
construção da linguagem. Campinas: Editora da Unicamp. 1992
DE LEMOS, C. T. G. Sobre a aquisição da linguagem e seu dilema (pecado)
original. Boletim da Abralin, n. 3. 1982
______. Los Processos Metafóricos Y Metonímicos como Mecanismos de
Cambio. Substratum, v. 1, n. 1. 1992.
______. Corpo e Linguagem. In: Junqueira Filho, L. C. U. (org.) Corpo-
mente: uma fronteira móvel. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1995.
______. Native speaker´s intuitions and metalinguistic abilities: what do
they have in common from the point of view of language acquisition?
Cadernos de Estudos Linguísticos. n. 33, 1997 (5-14).
______. As vicissitudes da fala da criança e de sua investigação. Cadernos
de Estudos Linguísticos, v. 42. 2002
______. Uma crítica (radical) à noção de desenvolvimento na Aquisição da
Linguagem. In: Maria Francisca Lier-DeVitto e Lúcia Arantes (org).
Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem. São Paulo: EDUC,
FAPESP, 2006 (21-32).
______. Da angústia na infância. Escola de Psicanálise de Campinas,
Campinas, São Paulo, 2007 (117-125).
FERNANDES, A. S. Comunicação Suplementar e Alternativa: CSA.
Porto Alegre, 2006. Disponível em <http://www.clik.com.br>
FREUD, S. Algumas considerações para um estudo comparativo das
paralisias motoras orgânicas e histéricas. Obras Psicológicas
Completas. Rio de Janeiro: Imago editora, 1893, c, v I, p.
549

______. Pulsões e destinos da pulsão. Escritos sobre a psicologia do


inconsciente. Tradução por Elsa V. K. P. Susemihl, Helga Araujo, Maria
Rita Salzano e Luiz Alberto Hanns. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1915/2004
(145-162).
LACAN, J. Da interpretação à transferência. O Seminário – livro XI, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1964/2008 (237-252).
_______. Mais ainda. O Seminário – livro XX. Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Editor, 1972-1973.
LEITE, N. V. A. Riso e rubor: para falar do corpolinguagem. In: Nina
Virgínia de Araújo Leite (org), Corpolinguagem: gestos e afetos.
Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 2003 (81-92).
LIER-DEVITTO, M. F. Sobre a interpretação. Cadernos de Estudos
Linguísticos. Campinas: Unicamp. V. 29, 1996 (p. 9-15).
______. Os monólogos da criança: delírios da língua. São Paulo: EDUC,
1998.
______. Patologias da Linguagem: subversão posta em ato. In Nina
Virgínia de Araújo Leite (org). Corpolinguagem: gestos e afetos.
Campinas, SP: Mercado de Letras, 2003 (233-245).
______. Sobre as vicissitudes de falas sintomáticas. In: Maria Francisca
Lier-DeVitto e Lúcia Arantes, (orgs.). Aquisição, Patologias e Clínica
de Linguagem. São Paulo: EDUC; FAPESP. 2006 (79-96).
McNAUGHTON, S. Blissymbolics: a short story. Ontário: Blissymbolics
Communication Institute, 1978.
MIZUKO, M. Transparency and ease of learning of symbols represented
by Blissymbols, PCS, and Picsyms. Augmentative and Alternative
Communication Journal, v. 3, 1987 (129-136).
NATIONAL INSTITUTE OF NEUROLOGICAL DISORDERS AND STROKE
(NINDS). Cerebral Palsy: Hope Trough Research. National Institutes
of health (NIH) Publication n. 06-159. EUA, 2006. Disponível em:
www.ninds.nih.gov/disorders/cerebralpalsy/detailcerebralpalsy.htm.
Última atualização: 2013.
550

OGILVIE, B. Lacan: a formação do conceito de sujeito. 2. ed. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991. Tradução por Dulce Duque Estrada.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.
PARRET, H. The aesthetics of communication: pragmatics and beyond.
Boston: Kluwer Academic Publishers, 1993.
REILY, L. H. Como o Sistema Bliss foi introduzido no Brasil. In: Leila
Regina d´Oliveira de Paula NUNES, Miryam Bonadiu Pelosi e Márcia
Regina GOMES (orgs.). Um retrato da comunicação alternativa no
Brasil: relatos de pesquisas e experiências. Rio de Janeiro: 4 Pontos
Estúdio Gráfico e Papéis, Cap.1, v. 2 2007 (19-45).
TETZCHNER, S. & JENSEN, M. Introdução. In: Stephen Von Tetzchner e
Mogens Hygum Jensen (orgs.). Augmentative and Alternative
Communication: European Perspectives. 2. ed. Londres: Whurr
Publishers, 1997.
Tetzchner, S. & Martinsen, H. Introduction to sign teaching and the
use of communication aids. University of Oslo, Norway, Whurr
Publishers: London, 1992.
VASCONCELLOS, R. Paralisia Cerebral: a fala na escrita. 1999. 128f.
Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada e Estudos da
Linguagem) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
______. Fala, escuta e escrita nas produções de uma criança com Paralisia
Cerebral. In Maria Francisca Lier-DeVitto e Lúcia Arantes (org).
Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem. São Paulo: EDUC,
FAPESP, 2006 (289-311).
______. Organismo e sujeito: uma diferença sensível nas Paralisias
Cerebrais. 2010. 130f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e
Estudos da Linguagem). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo.
______. Clínica de Linguagem e seus efeitos singulares no encontro entre
‘falas’ de terapeuta e paciente com Paralisia Cerebral. In Liliana M.
Passerino et al. (org.) Comunicar para incluir. Porto Alegre: CRBF,
2013 (313-327).
551

HOMEM, LINGUAGEM E CULTURA – O ATO DE AQUISIÇÃO DA


LINGUAGEM

Marlete Sandra Diedrich


(Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade de Passo
Fundo – RS)

RESUMO: Neste trabalho, embasamo-nos na Teoria da Enunciação


proposta por Émile Benveniste, em especial, nos textos em que o autor
apresenta reflexões acerca da relação homem–linguagem-cultura.
Partimos do princípio de que a criança, imersa na cultura, adquire sua
língua, e, portanto, constitui sua linguagem, na vivência de situações
enunciativas nas quais se propõe como sujeito do seu dizer.

PALAVRAS-CHAVE: aquisição; linguagem; cultura.

ABSTRACT: In this paper, we rely on the Theory of Enunciation


proposed by Émile Benveniste, especially in texts in which the author
presents reflections on the relationship man-languagem-culture. We
assume that the child, immersed in the culture, get your language and
therefore constitutes your language in the experiencie of enunciative
situations in which it is proposed as the subject of your say.

KEYWORDS: acquisition; language; culture.

Introdução

Neste trabalho, discutimos o ato de aquisição da linguagem vivido


pela criança a partir da concepção da tríade homem-linguagem-cultura.
Nossa visão pode ser definida pelo viés enunciativo aquisicional dos
fenômenos da linguagem, a partir do que propõe Émile Benveniste em A
natureza dos pronomes e A subjetividade da linguagem. Nesses textos, o
linguista apresenta suas reflexões acerca da linguagem e do papel do
552

sujeito no ato de linguagem, envolvendo a relação desse sujeito com a


língua. É necessário destacarmos que, em nenhum momento, o linguista
de detém no tema aquisição da linguagem. No entanto, ao apresentar
conceitos acerca da linguagem, nos motiva a relacionar tais conceitos ao
ato de aquisição, o que fazemos, certamente, por nossa própria vontade
e interpretação. A partir da afirmação de Benveniste, “a relação humana
entre a língua e a cultura” é uma “relação de integração necessária”
(1968/1989, p.24), entendemos que nosso estudo trata de questões que
extrapolam os limites da Linguística. Embora tenhamos como tema
central a construção de sentidos na e pela língua no discurso,
acreditamos que essa construção se dá no seio de uma cultura, o que nos
leva a buscar conhecer mais acerca do homem e sua cultura, na qual a
língua se encontra e se transforma. Assim, encontramos em textos da
área da Filosofia e da Antropologia fundamentos teóricos que nos
ajudam a tecer a relação pretendida entre homem e linguagem, como
mostrarão as citações de Lévy-Strauus (2011) e Agamben (2005) que
usamos no decorrer de nossa reflexão. Esses fundamentos nos levam a
pensar o ato de aquisição não mais pelo viés da língua como centro de
referência, mas sim, a partir do discurso. Para tanto, defendemos a ideia
de que faz-se necessário pensar numa teoria da linguagem renovada,
capaz de se voltar para as especificidades do discurso e suas condições
de funcionamento.
Para construirmos nossa reflexão, portanto, organizamos este
texto da seguinte forma: inicialmente, em O homem e a linguagem,
apresentamos os princípios propostos por Benveniste em A natureza
dos pronomes e A subjetividade da linguagem e a interpretação que
Agamben faz desses princípios; na sequência, em O homem e a cultura,
relacionamos esses princípios com o conceito de cultura proposto pelo
linguista e por Lèvy-Strauus; já em O homem ,a linguagem e a cultura,
apresentamos reflexões mais particulares acerca da tríade vivida pela
criança no ato de aquisição da linguagem; por fim, apresentamos as
considerações finais, as quais apontam para um novo olhar acerca da
linguagem da criança.
553

1 O homem e a linguagem

Nesta seção, apoiamo-nos nos textos de Benveniste A natureza dos


pronomes, artigo de 1956 (1956/2005) e A subjetividade da linguagem
(1958/2005) para buscarmos entender melhor a relação do homem
com sua linguagem, uma vez que, acreditamos, essa relação é
constitutiva do ato de aquisição vivido pela criança que se move no
mundo linguístico do adulto construído ao seu redor e do qual ela
precisa se apropriar para se tornar sujeito.
No artigo de 1956, A natureza dos pronomes, o autor anuncia que
o problema dos pronomes só é um problema de línguas por ser, em
primeiro lugar, um problema de linguagem; representa, portanto, um
fato de linguagem, dada a sua universalidade. E como fato de linguagem
Benveniste não os vê como uma classe unitária, já que pertencem a
domínios linguísticos diferenciados: “uns pertencem à sintaxe da língua,
outros são característicos daquilo a que chamaremos ‘instâncias do
discurso’ ” (p. 277).
Seguindo esse viés, o autor mostra que a noção de pessoa, na
definição comum acerca de eu, tu e ele, é abolida, pois esta noção só é
própria de eu e tu, falta em ele. E, assim, apresenta seu complexo
raciocínio acerca do papel desses pronomes na enunciação.
Aproveitando ideias de Charles Morris, assume que o enunciado que
contém EU pertence ao nível ou tipo de linguagem pragmático, e que
inclui, com os signos, aqueles que o empregam (p. 278). O que
entendemos com essa ideia? Entendemos que o pronome EU, a cada vez
que é usado, encontra sua definição no próprio ato enunciativo: “a forma
eu só tem existência linguística no ato de palavras que a profere”
(p.279). Entendemos que esta forma só pode, portanto, ser identificada
pela instância de discurso que a contém e a realidade a que se refere é a
realidade de discurso, EU só pode se definir em termos de locução e não
de objeto. Benveniste vai além e apresenta a situação de alocução, na
qual se tem a definição de tu (p. 279).
554

Esse fenômeno representa um problema de comunicação


intersubjetiva, o qual a linguagem resolveu criando um conjunto de
signos vazios, não referenciais com relação à “realidade”, mas que se
tornam plenos assim que um locutor os assume em cada instância do
seu discurso. Ou seja, o pronome EU e o pronome TU encontram-se
vazios até que um locutor os empregue numa situação de discurso e,
assim, torne-os pleno: “eu é o indivíduo que enuncia a presente instância
de discurso que contém a instância linguística eu.” (p.279).
Consequentemente, tu é definido como “o indivíduo alocutado na
presente instância de discurso contendo a instância linguística tu”.
Diferentemente, ocorre com o pronome ELE, não marcado pela
pessoalidade, mas munido de uma referência objetiva, que assume, na
língua, uma função substitutiva e não se refere especificamente à
instância do discurso.
Acreditamos que, com essa visão, o linguista relaciona os
elementos da tríade proposta em nosso trabalho: homem, linguagem e
cultura, uma vez que o homem assume a língua e, portanto, constitui e é
constituído pela linguagem, por meio da enunciação, da qual a
intersubjetividade é constitutiva, ou seja, no ato da linguagem, o outro
implantado diante de si desempenha papel fundamental para que a
língua se atualize em discurso e dessa forma e por essa forma se
consolide o viés cultural, do qual o outro é o representante.
Essa constatação nos leva ao texto Da subjetividade na linguagem
(1958/2005). Neste texto, Benveniste condena a comparação da
linguagem com um instrumento, afirmando que tal comparação deve ser
vista com desconfiança, uma vez que a ideia de instrumento opõe o
homem e a natureza. Entretanto, segundo o autor, a linguagem está na
natureza do homem, que não a fabricou, como fez, por exemplo, com
instrumentos como arco e flecha. Para Benveniste, é ingênua a ideia de
um período original na história do homem, em que “um homem
descobria outro e, entre eles, pouco a pouco, se elaboraria a linguagem”.
Trata-se, segundo ele, de PURA FICÇÃO, pois:
555

Não atingimos nunca o homem separado da linguagem e


não o vemos nunca inventando-a. Não atingimos jamais o
homem reduzido a si mesmo e procurando conceber a
existência do outro. É um homem falando que encontramos
no mundo, um homem falando com outro homem, e a
linguagem ensina a própria definição do homem. (p.285)

O homem se define pela linguagem. E essa relação só se torna


viável em função do conceito de reciprocidade: “a linguagem só é
possível porque cada locutor se apresenta como sujeito, remetendo a ele
mesmo como eu no discurso.” A partir disso, eu propõe tu, conforme já
apresentado pelo autor em A natureza dos pronomes e, assim, institui-se
a comunicação, uma “consequência totalmente pragmática”. Nessa
relação, Benveniste chama a atenção para o fato de que única é a
condição do homem na linguagem: a polaridade evidenciada entre eu-tu
não significa nem igualdade nem simetria: ego tem sempre uma posição
de transcendência sobre tu, mas nenhum se concebe sem o outro. São,
portanto, complementares e reversíveis. Eis aí, segundo o autor, o
fundamento linguístico da subjetividade.
Por essa razão, as formas linguísticas que indicam pessoa
representam uma primeira classe da qual dependem outras, como é o
caso da temporalidade e outras formas linguísticas. Com esse raciocínio,
o linguista anuncia que muitas noções de linguística podem ser vistas
sob uma luz diferente se as restabelecermos no quadro do discurso. A
língua, assim, passa a ser vista na instância do discurso, ou seja,
“enquanto assumida pelo homem que fala, e sob a condição de
intersubjetividade, única que torna possível a comunicação humana”
(p.293).
O filósofo italiano, Agamben (2005), ao discutir o estatuto da
experiência humana à luz das ciências, convoca os estudos de
Benveniste para iluminar suas reflexões. A partir do que propõe o
linguista nos textos citados anteriormente, Agamben vê o
reconhecimento do sujeito da linguagem como o fundamento da
556

experiência e do conhecimento, já que, conforme Benveniste, o homem


se constitui como sujeito na linguagem e através da linguagem. A partir
desses princípios, o filósofo discute a possibilidade de um estado de
experiência humana pura, uma espécie de in-fância, representação
imediata do homem. Mas ao se indagar acerca dessa possibilidade,
adverte: não se pode buscar in-fância antes e indendente da linguagem,
pois a consciência é o sujeito da linguagem.
Se pudéssemos encontrar um momento em que houvesse homem
sem haver linguagem, poderíamos dizer que ali estaria a experiência
pura e muda. Benveniste mostra que isso não existe, por mais que
voltemos no tempo, sempre encontraremos um homem falando com
outro homem, uma vez que a condição de existência do homem é a
linguagem. O homem tal como o conhecemos se constitui como homem
através da linguagem. Assim, Agamben afasta toda ideia que prevê um
estado cronológico representativo de “um antes de si ”e de ‘um depois
de si” para o homem.
Para o filósofo, portanto, infância e linguagem fecham um círculo:
a infância é a origem da linguagem e a linguagem é a origem da infância.
A experiência humana pura não pode ser algo que precede
cronologicamente a linguagem, “um paraíso que de repente
abandonamos para falar, mas coexiste originalmente com a linguagem e
se constitui ela mesma por expropriação feita pela linguagem ao
produzir cada vez o homem como sujeito”. A partir dessa constatação, o
autor chega à conclusão de que o problema da experiência nada mais é
do que o problema da origem da linguagem em sua dupla realidade de
língua e fala. Segundo ele, não é a língua que distingue o ser humano dos
animais, mas a entrada do homem na língua, o que se dá via discurso.
Assim, segundo o autor, a historicidade do ser humano encontra seu
fundamento na descontinuidade entre língua e discurso, entre semiótico
e semântico. Certamente, a leitura que o filósofo faz da obra
benvenistiana abre possibilidades de muitas considerações acerca da
relação homem-linguagem, no entanto, restringimos a leitura ao que nos
interessa especificamente nesta reflexão: a aquisição da linguagem.
557

Sendo assim, entendemos que a criança, ao assumir ou ao ser


assumida como alguém que diz, que constrói sentidos, está se
historicizando de forma singular, dada a maneira como assume a sua
língua e se singulariza por ela. No entanto, traz, em suas enunciações,
vestígios do outro, representante da cultura na qual está imersa desde
antes de seu nascimento. Pensamos essa relação com a cultura na
próxima seção.

2 O homem e a cultura

Entendendo, com Benveniste e Agamben, então, que não


encontramos o homem separado da linguagem, buscamos explicitar o
conceito de cultura com o qual também trabalhamos em nossa pesquisa.
Para isso, partimos de Benveniste, autor cujos princípios nos dirigem
nessa incursão. A definição de cultura em Benveniste, conforme já
explicitado, diz respeito ao meio humano distinto do cumprimento das
funções biológicas, representa o que dá à vida e à atividade humanas
forma, sentido e conteúdo. Ousamos relacionar esse conceito com o que
propõe a tese de Lévi-Strauss (2011), Estruturas elementares de
parentesco, acerca do conceito de cultura. Segundo este estudioso da
Antropologia, “a cultura não pode ser considerada nem simplesmente
justaposta à vida. Em certo sentido, substitui-se à vida, e em outro
sentido utiliza-a e a transforma para realizar uma síntese de nova
ordem” (p.42). O autor reflete acerca dos equívocos constatados em
diferentes posturas que buscaram definir a oposição entre um estado de
natureza e um estado de cultura e assume sua posição na tese
apresentada. Para Lévi-Strauss, a cultura está relacionada à imposição
de regras institucionais, cuja instauração no interior de um grupo
dificilmente pode ser concebida sem a intervenção da linguagem”
(p.46). O autor diz ainda: “Em toda parte onde se manifesta uma regra
podemos ter certeza de estar numa etapa da cultura. Simetricamente, é
fácil reconhecer no universal o critério da natureza” (p.47).
558

Com essa constatação, Lévi-Strauss assume que pertence à ordem


da natureza tudo aquilo que se revela universal no homem,
caracterizado pela espontaneidade; sendo da ordem da cultura tudo o
que está ligado a uma norma, e, portanto, caracterizado pela relatividade
e particularidade. O autor discute os conceitos movido pelo tema de sua
tese, a proibição do incesto, a qual, segundo ele, comporta em si os dois
estatutos: tanto da ordem da natureza, posto que é universal, quanto da
ordem da cultura, visto ser uma regra. Assim, frente a essa realidade,
aparentemente contraditória, o autor defende a ideia de que a proibição
do incesto não pertence nem à natureza nem à cultura, como muitos
estudos realizados antes dele tentaram provar, mas que tal proibição
representa, justamente, a passagem da natureza à cultura, uma espécie
de processo pelo qual a natureza se ultrapassa a si mesma. A constatação
do autor nos interessa sobremaneira. Não pelo tema em si de sua tese, a
proibição do incesto, mas pela relação de passagem percebida entre
natureza e cultura.
Ousamos relacionar o que constata Lévi-Strauss com o que diz
Agamben acerca da in-fância. Vimos que Agamben firma sua tese na
ideia de passagem, negando a existência de um período anterior à
linguagem, assim como Lévi-Strauss nega a existência de um período
pré-cultural na história humana, uma vez que não há estados anteriores
do homem, pois o homem, em sua existência, não revela jamais um
comportamento natural da espécie ao qual possa “regressar”. Toda sua
existência se dá na cultura. E acrescentamos: toda a existência do
homem se dá na cultura, constitutiva e constituinte na e pela linguagem.
Ou seja, ao nos debruçarmos sobre a aquisição da linguagem pela
criança, buscamos visualizar, por meio de mecanismos específicos,
como se constitui essa existência via discurso, o que, seguindo os
critérios propostos por Lévi-Strauss, também representa uma
passagem, na qual a institucionalização da norma, representada na
língua e nos elementos que com ela se relacionam, exerce toda a força
da cultura, necessária para garantir a existência da criança no mundo.
559

A cultura, em seu estatuto de cerceamento, move a linguagem e a


sua aquisição, na relação da criança com o outro, o adulto. Logo, estamos
frente à tríade homem-linguagem-cultura, acerca da qual nos ocupamos
na próxima seção.

3 O homem, a linguagem e a cultura

Nesta seção, chegamos à tríade homem-linguagem-cultura,


segundo a qual, o ato de aquisição da linguagem se dá via discurso na
relação com o outro, relação esta que não é puramente linguística, mas
construída linguisticamente no seio de uma sociedade, marcada por sua
cultura. Portanto, pensar no ato de aquisição da linguagem exige que
pensemos também no homem, enquanto ser antropológico e social e no
papel que a linguagem exerce na constituição desse ser.
Ao mobilizar a língua na sua relação com o outro, a criança vive
uma situação enunciativa, contexto capaz de influenciar o seu dizer e
marcar o seu enunciado. Logo, entendemos que, de fato, a própria língua
pode ser subvertida pelos aspectos da enunciação, na imersão do
discurso construído no aqui-agora enunciativo.
Por essa razão, a Linguística, tal como a conhecemos, centrada na
língua, se revela incapaz de nos dar todas as respostas de que
necessitamos quando voltamos nosso olhar indagador para a linguagem
da criança. Esse olhar indagador que lançamos sobre o dizer da criança
convoca uma teoria capaz de ver o sujeito na língua, uma vez que é na
constituição desse papel que a aquisição da linguagem se presentifica na
vida da criança, por meio das suas histórias de enunciação vividas com
o outro, na reciprocidade dos papéis eu-tu.
É impossível, portanto, recortar a língua e centrar o estudo da
aquisição em suas formas, uma vez que elas são mobilizadas sempre por
um ser antropológico e social, imerso num meio cultural, do qual a
língua é parte constitutiva. Assim, para darmos conta da complexidade
desse ato, a aquisição da linguagem, é fundamental que assumamos uma
nova atitude perante os fatos da língua, a partir da qual a relação
560

homem-linguagem-cultura possa ser asssumida como ponto de partida


para toda e qualquer explicação que se queira buscar acerca dos
fenômenos que marcam a história do homem com o mundo em que vive,
o que se dá sempre via linguagem.

Considerações finais

Baseados nas questões mobilizadas na reflexão apresentada nesse


artigo, cujo fio condutor é a tríade homem-linguagm-cultura no ato de
aquisição, propomo-nos a investigar, em outros trabalhos que ainda
estão por vir, como a cultura deixa seus vestígios na língua e na sua
manifestação enunciativa no ato de aquisição. Cremos que o aspecto
vocal da enunciação, apontado por Benveniste (1970), seja um desses
vestígios, entre outros que se revelam no discurso, marcado pela
mobilização de sentidos sempre particulares, os quais, para nós,
constituem a história da criança na linguagem: duplamente singular:
primeiramente, em função da sua singularidade enquanto sujeito; e, em
segundo lugar, pela particularidade das vivências construídas ao longo
de sua história na sua relação com o outro da enunciação.

Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: ensaio sobre a destruição da


experiência. In: ______. Infância e história: destruição da experiência e
origem da história. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2005.
BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral I. São Paulo:
Pontes, 2005.
BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral II. São Paulo:
Pontes, 1989.
LEVY-STRAUSS, Claude. Estruturas elementares do parentesco.
Petrópolis, Vozes, 2011.
561

ASPECTOS DA FALA EM IDOSOS COM DOENÇA DE ALZHEIMER

Giorvan Ânderson dos Santos Alves1


Isabelle Cahino Delgado 2
Ivonaldo Leidson Barbosa Lima3
Jully Anne Soares de Lima 4
Brunna Thaís Luckwu de Lucena5
Universidade Federal da Paraíba – UFPB

RESUMO: OBJETIVO: Analisar a inteligibilidade de fala em idosos com e


sem a Doença de Alzheimer. MÉTODOS: Foram aplicados protocolos do
teste “Mini Mental State Exam – Folstein et al (1975), sendo analisados
os escores de nomeação e repetição, visando levantar características de
fala em grupos de idosos: sendo 12 sem patologias (ISP) e 06 idosos com
a Doença de Alzheimer (DA) de grau leve (escore >24 para 2º grau
completo e escore >18 para 1º grau completo). Para a análise de fala
selecionamos duas tarefas do teste, no primeiro momento os
participantes deveriam nomear dois objetos, registrados em imagens
impressas, que deveriam atingir escore 2,0, quando a nomeação dos
objetos fossem inteligíveis. E na segunda tarefa os mesmos deveriam
repetir uma frase, contendo 6 palavras, e atingirem escore 1,0 quando a
frase fosse inteligível. O estudo foi aprovado pelo CEP/HULW (Hospital
Universitário Lauro Wanderley) sob protocolo nº 665/10.
RESULTADOS: Comparando os escores encontrados nas duas etapas e
nos grupos supracitados, obtivemos os seguintes resultados: o grupo ISP

1 Doutor em Linguística. Professor do Departamento de Fonoaudiologia da Universidade

Federal da Paraíba – UFPB.


2 Doutora em Linguística. Professora do Departamento de Fonoaudiologia da

Universidade Federal da Paraíba – UFPB.


3 Mestrando em Linguística. Graduado em Fonoaudiologia pela Universidade Federal da

Paraíba – UFPB.
4 Mestranda em Odontologia. Graduada em Fonoaudiologia pela Universidade Federal

da Paraíba – UFPB.
5 Mestre em Modelos de Decisão em Saúde. Professora do Departamento de

Fonoaudiologia da Universidade Federal da Paraíba – UFPB.


562

apresentou a média de escore 2,0 para o teste de nomeação, e a média


de escore 1,0 para o de repetição. Já o grupo DA apresentou a média de
escore 2,0 para o teste de nomeação, e 0,85 para o teste de repetição. As
características desse estudo demonstram que é provável que a Doença
de Alzheimer, na sua fase inicial (grau leve), não compromete o aspecto
motor da fala, não dificultando a sua inteligibilidade. O que entendemos
que por mais que 50% a 70% dos casos de demência, sejam de
indivíduos com a Doença de Alzheimer (DA), a mesma afeta diretamente
a cognição, e a linguagem, mas poderá afetar os aspectos motores da fala,
apenas nos estados mais avançados da doença. CONCLUSÃO: O estudo
demonstrou uma forte tendência dos idosos com a Doença de Alzheimer
de grau leve, sem nenhuma patologia neurológica e motora associada,
apresentarem aspectos de inteligibilidade de fala semelhantes aos
idosos sem patologias, independentes de serem institucionalizados ou
não.

PALAVRAS-CHAVE: fala; Doença de Alzheimer; idoso.

ABSTRACT: OBJECTIVE: To analyze speech intelligibility in elderly with


and without Alzheimer's disease. METHODS: The protocols of the test
"Mini Mental State Exam” - Folstein et al (1975) were applied, and the
scores of naming and repetition were analyzed, aiming to raise speech
characteristics in older age groups: 12 without being pathologies (ISP)
and 06 older adults with Alzheimer's disease (AD) mild (score >24 for 2
full and score >18 for 1 full grade level). For speech analysis we selected
two tasks of the test, the first time the participants should appoint two
objects, recorded in printed images, which should reach 2.0 score when
naming of objects were intelligible. And the second task they should
repeat a sentence containing 6 words, and reach 1.0 score when the
sentence was intelligible. The study was approved by the CEP/HULW
(Hospital Universitário Lauro Wanderley) under protocol number
665/10. RESULTS: Comparing the scores found in both stages and the
above groups, we obtained the following results: the ISP group showed
563

a mean score of 2.0 for the naming test, and the average score of 1.0 for
the repeat. The DA group showed a mean score of 2.0 for the naming
test, and 0.85 for repeat testing. The characteristics of this study
demonstrate that it is likely that Alzheimer's disease in its early stage
(mild), does not compromise the motor aspect of speech, not hindering
its intelligibility. What we mean by that more than 50% to 70% of
dementia cases, whether of individuals with Alzheimer's disease (AD), it
directly affects cognition and language, but may affect the motor aspects
of speech, only in later stages of the disease. CONCLUSION: The study
showed a strong trend of seniors with Alzheimer's disease mild, with no
neurological pathology and associated motor, presenting similar
aspects in understanding the elderly without pathologies, independent
of being institutionalized or not talking.

KEYWORDS: Speech, Alzheimer’s desease, Elder.

INTRODUÇÃO

O envelhecimento é um processo dinâmico e progressivo que faz


parte do ciclo vital. No aspecto biológico, limita a capacidade física e
orgânica do indivíduo e o papel desempenhado por ele no meio
sociocultural, interferindo diretamente nas suas condições de
autonomia e independência (ABREU et al., 2005). Diante de todos os
aspectos de mudança física e social que surgem na vida do idoso, a
comunicação também constitui um fator decisivo para o bem-estar dos
mesmos, pois durante o envelhecimento natural, as habilidades
sensoriais, motoras, cognitivas e linguísticas envolvidas sofrem
modificações. Diante desses aspectos, torna-se evidente a necessidade
de intervenções efetivas nos aspectos linguísticos-cognitivos, buscando
habilitar essa comunicação em seus mais diversos aspectos, entre eles a
fala. Esta, por sua vez, passa por adaptações quando se depara com
mudanças e transformações socioculturais e/ou anatomofuncionais,
como ocorre na Doença de Alzheimer.
564

O período vivido atualmente é especial sob o ponto de vista


histórico, porque nele se registra um contingente elevado de idosos
(MAC-KAY, 2004). Do ano de 1996 até 2011, o número de idosos no
Brasil subiu de 7,6 milhões para mais de 20 milhões, uma estimativa de
vida que subiu de 43 para 73 anos (IBGE, 2011).
Em meio a essa nova configuração populacional do nosso país,
torna-se uma responsabilidade direta das políticas públicas de saúde e
educação a organização rápida e eficiente para fazer face às novas
demandas. Outro desafio que se apresenta é a criação de oportunidades
para que os avanços da ciência e da tecnologia sejam aplicados de tal
forma que o ser humano alcance limites maiores de qualidade de vida
independente, produtiva e saudável.
Atualmente, sabe-se que a socialização é imprescindível para o
indivíduo e que o isolamento social, principalmente em idosos, pode
levar a quadros depressivos, podendo trazer várias consequências à
saúde dos mesmos. Nesse contexto, a linguagem e a cognição são
aspectos que merecem a preocupação de profissionais que trabalham
com idosos, já que elas são essenciais para a comunicação e para o uso
efetivo da língua. Assim, estudos que visem o diagnóstico e a promoção
da linguagem e da cognição nesses indivíduos, são importantes para a
promoção da socialização dos idosos
Diante de todos os aspectos de mudança física e social que surgem
na vida do idoso, a fala também constitui um fator decisivo para o bem-
estar dos mesmos, pois durante o envelhecimento natural, as
habilidades sensoriais, motoras, cognitivas e linguísticas envolvidas
sofrem modificações. Intervir nessa fala e em seus distúrbios é
competência do fonoaudiólogo, quando busca reabilitar esses
transtornos elaborando programas para a sua manutenção da
inteligibilidade de fala, e quando necessário, para procedimentos
terapêuticos, corretivos como nos casos de demência (entre elas a
Doença de Alzheimer) e/ou distúrbios neurológicos adquiridos (afasia
de expressão ou de compreensão), investigando como os indivíduos
com ou sem patologia compreendem e produzem a linguagem,
565

focalizando os processos cognitivos, como a memória, e os níveis


linguísticos envolvidos: fonológico, morfológico, sintático, semântico e
pragmático (KEMPLER et al, 1998; ALMOR et al, 1999).

MÉTODOS

A presente pesquisa se classifica como experimental, uma vez que


o pesquisador realizou intervenção direta sobre os sujeitos, ao aplicar
testes, sendo neste estudo a alocação dos voluntários randomizada. O
estudo foi transversal, por haver um acompanhamento dos sujeitos em
curto período de tempo; caso-controle, pelos testes reportarem dois
grupos, controle formado por idosos sem patologia, e caso composto por
idosos com Doença de Alzheimer; qualitativo e quantitativo, fazendo uso
de métodos estatísticos em nossa análise. A presente pesquisa foi
realizada em uma Instituição de Longa Permanência6 e no Laboratório
de Processamento Linguístico – LAPROL, vinculado ao Programa de Pós-
Graduação em Linguística-PROLING, da Universidade Federal da
Paraíba – UFPB. Ressalta-se que o estudo foi aprovado pelo CEP/HULW
(Hospital Universitário Lauro Wanderley), sob protocolo nº 665/10.
Para serem inclusos na pesquisa, os (as) voluntários (as)
deveriam apresentar idade cronológica de 60 anos ou mais, por termos
como foco da pesquisa uma análise linguística e cognitiva com idosos;
um grau de escolaridade de, no mínimo, o ensino fundamental completo,
pela necessidade de leitura fluente das frases; não ser ou não ter sido
acometido por nenhuma doença neurológica, motora ou psiquiátrica,
que pudesse interferir nos resultados, uma vez que a pesquisa busca a
análise com idosos saudáveis (grupo controle) e com DA (grupo
experimental); não ser acometido por deficiência visual e/ou auditiva,

6 É definida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária na Resolução da Diretoria


Colegiada (RDC) nº283 (Brasil, 2005) como - instituições governamentais ou não
governamentais, de caráter residencial, destinada a domicilio coletivo de pessoas com
idade igual ou superior a 60 anos, com ou sem suporte familiar, em condição de
liberdade e dignidade e cidadania.
566

que viessem a interferir na compreensão da execução, e/ou na leitura


dos experimentos; e, ao ser submetido ao Mini-mental, apresentar um
score de demência leve, o que os tornaram capazes de compreender e
participar das tarefas. No caso do grupo experimental, os voluntários
deveriam apresentar em seu prontuário institucional a hipótese
diagnóstica de Doença de Alzheimer.
Dos idosos institucionalizados7, apenas 12 puderam participar da
pesquisa (06 no grupo controle e 06 no grupo experimental), surgindo
a necessidade de inserirmos mais 06 idosos no grupo controle não
institucionalizados. Participaram da pesquisa 06 idosos com hipótese
diagnóstica de Doença de Alzheimer de grau leve, compondo o grupo
experimental, e 12 idosos sem patologias neurológicas, no grupo
controle, sendo 06 institucionalizados e 06 não institucionalizados.
Diante das condições clínicas, comportamentais e de socialização,
presentes em idosos de instituições de longa permanência, procuramos
aplicar os experimentos com os dois grupos de idosos
(institucionalizados e não institucionalizados). Mas, torna-se
importante ressaltarmos que, independente dos idosos do grupo
controle serem institucionalizados ou não, foram mantidos no mesmo
grupo pelas suas médias de respostas experimentais não demonstrarem
diferenças significativas.
Todos os participantes foram orientados em relação aos objetivos
da pesquisa e métodos de participação, além de preencherem o Termo
de Consentimento Livre Esclarecido, que garante manter em sigilo a
identidade dos participantes e que os dados coletados serão utilizados
apenas para fins acadêmicos.
Realizamos um teste para a triagem dos idosos voluntários,
diagnosticando a presença ou ausência de demências e classificando o
grau de acometimento da mesma, por meio de aplicação de protocolos
de avaliação, com o uso do teste “Mini Mental State Examination” –
Folstein et al (1975) de linguagem e memória, visando levantar

7 São idosos que vivem internos em Instituições de Longa Permanência.


567

características linguísticas e cognitivas dos grupos de idosos sem


patologia e com a Doença de Alzheimer.
O formulário do teste de memória cognitivo-linguístico Mini-
Mental State Examination (MMSE) de Folstein et al. (1975) e traduzido
por Bertolucci et al. (1994), para aplicação no Brasil, foi aplicado
prevendo o nível de desempenho dos idosos voluntários da pesquisa. O
MMSE torna-se hoje o instrumento mais aplicado mundialmente, para
analisar as capacidades cognitivas e linguísticas dos indivíduos,
possuindo várias versões e traduções em diversas línguas, entre essas a
validação brasileira. Segundo Thal et al. (1986) e Uhlmann et al. (1987)
o exame fornece informações sobre diferentes parâmetros cognitivos.
Os mesmos são inseridos na testagem com planejamento e objetivos
próprios para analisar os aspectos específicos como a orientação
temporal (5 pontos), orientação espacial (5 pontos), memória imediata
(3 pontos), atenção e cálculo (5 pontos), evocação (3 pontos), linguagem
(8 pontos) e capacidade construtiva visual (1 ponto). É esperado um
escore de, no mínimo, 0 pontos (maior grau de comprometimento
cognitivo) e um máximo de 30 pontos (melhor grau de capacidade
cognitiva). O teste tem a capacidade de examinar orientação temporal e
espacial, memória de curto prazo (imediata ou atenção) e evocação,
cálculo, praxia e habilidades de linguagem, viso-espaciais, e fala.
Possuidor de 11 itens, o MMSE é subdividido em duas baterias.
Uma primeira, que exige respostas verbais aos questionamentos de
orientação, memória e atenção. E uma segunda, que contempla aspectos
dos sistemas de leitura, escrita, habilidades de nomeação, ativação de
comandos verbais e escritos, escrita, e cópia de desenho (FOLSTEIN et
al., 1975).
Com base no objetivo desse estudo nos deteremos, nessa
discussão, em analisar a fala desses idosos, para tanto selecionamos
duas tarefas do teste: no primeiro momento os participantes deveriam
nomear dois objetos, registrados em imagens impressas, que deveriam
atingir escore 2,0, quando a nomeação dos objetos fosse inteligível. Na
segunda tarefa os mesmos deveriam repetir uma frase, contendo seis
568

palavras, e atingirem escore 1,0 quando a frase fosse inteligível. A seguir,


são apresentadas as orientações fornecidas aos sujeitos durante a
realização das duas tarefas (Tabela 1).

TABELA 1. Mini-Exame do Estado Mental, adaptado da tradução de


Bertolucci et al. (1994), aplicado aos idosos do experimento, com base
nas orientações propostas pelos autores, para aplicação do teste no
Brasil.

CATEGORIA ORIENTAÇÃO PARA EXECUÇÃO

Aponte para a figura do lápis e do relógio e pergunte: o que é


NOMEAÇÃO isso?
O que é isso? Aponte para o lápis.
O que é isso? Aponte para o relógio.

REPETIÇÃO Agora eu vou pedir para o Sr (a) repetir o que eu vou dizer.
Certo? Então repita: “NEM AQUI, NEM ALI, NEM LÁ”.

Diante dos escores apresentados por nossos voluntários, é


importante mencionarmos que a maioria dos autores nacionais
(CHAVES e IZQUIERDO, 1992; ALMEIDA, 1998; MAIA et al., 2006;
LOURENÇO e VERAS, 2006), concorda que o ponto de corte mais
frequente para indicar comprometimento cognitivo (demência leve) é
<24 (para nível de escolaridade alto); <18 para fundamental completo e
<14 para não alfabetizados. Como critério de inclusão, optamos por
seguir esse padrão da literatura nacional.
Inicialmente realizamos uma análise estatística descritiva, a fim
de verificar as variáveis estudadas, fazendo uso de testes para a análise
comparativa entre os grupos. As diferenças foram consideradas
significativas quando apresentaram p<0,05. A análise estatística foi
realizada por meio dos pacotes estatísticos Statistical Package for Social
Sciences (SPSS) 20.0.
569

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Comparando os escores encontrados nas duas tarefas e nos


grupos supracitados, obtivemos os seguintes resultados: o grupo ISP
(idosos sem patologia) apresentou a média de escore 2,0 para o teste de
nomeação, e a média de escore 1,0 para o de repetição. Já o grupo IDA
(Idosos com Doença de Alzheimer) apresentou a média de escore 2,0
para o teste de nomeação, e 0,85 para o teste de repetição. Com base
nesses resultados, podemos perceber a que a Doença de Alzheimer, na
sua fase inicial (grau leve), não compromete o aspecto motor da fala, o
que não dificulta a sua inteligibilidade. Na tabela 2, podem ser
observados os escores obtidos por cada voluntário nas duas tarefas.

TABELA 2. Desempenho dos idosos com e sem a Doença de Alzheimer


no Mini-Mental State Examination (MMSE).

PARTICIPANTES ESCORE NAS PROVAS


Voluntário Grupo Nomeação Repetição
V1 ISP 2 1
V2 ISP 2 1
V3 ISP 2 1
V4 ISP 2 1
V5 ISP 2 1
V6 ISP 2 1
V7 ISP 2 1
V8 IDA 2 1
V9 IDA 2 1
V10 ISP 2 1
V11 ISP 2 1
V12 ISP 2 1
V13 ISP 2 1
V14 IDA 2 1
V15 IDA 2 1
V16 ISP 2 1
V17 IDA 2 1
V18 IDA 2 1
570

As médias demonstraram, estatisticamente, que não houve efeito


significativo nos aspectos de leitura [ANOVA F (0)= 0,0 P<0,443];
comando [ANOVA F (3,44)= 2,9 P<0,11]; repetição [ANOVA F (0)= 0,0
P<0,443]; e nomeação [ANOVA F (0)= 0,0 P<0,443]. As médias
encontradas foram as seguintes: leitura, 1,0 (ISP) e 1,0 (IDA); comando,
2,8 (ISP) e 2,2 (IDA); repetição, 1,0 (ISP) e 1,0 (IDA); e nomeação, 2,0
(ISP) e 2,0 (IDA).
Estudos realizados, por diversos autores, com teste de Boston,
revelaram outras dificuldades na população idosa, entre essas podemos
apontar as dificuldades de nomeação (CRUICE; WORRAL; HICKSON,
2000), de categorização (ACEVEDO et al, 2000) e lentidão para
recuperar nomes próprios (COHEN at al.,1993). Esse baixo desempenho
dos idosos com DA desencadeia uma redução no vocabulário e
desenvolve as dificuldades de ativação das palavras, o que pode
justificar o declínio na evocação e, consequentemente na inteligibilidade
de fala. Os voluntários desse estudo com DA, não apresentaram
diferença significativa quando comparados ao grupo controle,
demonstrando uma boa inteligibilidade de fala durante a fase inicial da
doença.

CONCLUSÃO

A pesquisa evidenciou uma forte tendência dos voluntários com a


Doença de Alzheimer de grau leve, apresentarem aspectos de
inteligibilidade de fala, semelhantes aos idosos sem patologias,
resultando em um bom desempenho nas tarefas de nomeação e
repetição. Cientes que a prevalência da Doença de Alzheimer é de 50%
a 70% dos casos de demência e que a literatura confirma que a mesma
afeta diretamente a cognição, e a linguagem, constatamos com essa
pesquisa que a doença afeta os aspectos motores da fala nos estados
mais avançados da doença, não comprometendo na fase inicial da DA.
571

REFERÊNCIAS

ABREU, I.D.; FORLENZA, O.V.; BARROS, H.L. Demência de Alzheimer:


correlação entre memória e autonomia. Revista de Psiquiatria Clínica,
São Paulo, vol.32, n.3, p.131-136, 2005.
ACEVEDO, A.; et al. Category Fluency Test: Normative data for English –
and Spanish – speaking elderly, Journal of the International
Neuropsychological Society, New York, vol.6, n.7, p.760-9, 2000.
ALMEIDA, O.P. Mini mental state examination and the diagnosis of
dementia in Brazil. Arquivos de Neuro-Psiquiatria, São Paulo, vol.56
n.3B, p. 605-612, 1998.
ALMOR, A.; et al. Why do Alzheimer patients have difficulty with
pronouns? Working memory, semantics, and reference in
comprehension and production in Alzheimer's disease, Brain and
Language, San Diego, vol.67, n. 3, p.202-27, 1999.
BERTOLUCCI, P.H.F.; ROMERO, S.B. Doença de Alzheimer. IN:
CHIAPPETTA, A.L.M.L. (org.) Conhecimentos essenciais para atender
bem o paciente com doenças neuromusculares, Parkinson e
Alzheimer. São José dos Campos: Pulso Editorial, 2003. p.55-68.
BERTOLUCCI, P.H.F.; et al. O mini-exame do estado mental em uma
população geral: impacto da escolaridade, Arquivos de Neuro-
Psiquiatria, São Paulo, vol. 52, n.1, p. 1-7, 1994.
BRASIL. Estatuto do idoso e normas correlatadas. Brasília: Senado
Federal, 2003.
CHAVES, M.L.; IZQUIERDO, I. Differential diagnosis between dementia
and depression: a study of efficiency increment, Acta neurologica
Scandinavica, Copenhagen, vol.85, n.6, p.378-82, 1992.
COHEN, J. D.; et al. Psyscope: a new graphic interactive enviroment for
designing psychology experiments, Behavior Research Methods,
Instruments & Computers, York, vol.25, n.2, p. 257-271, 1993.
CRUICE, M.; WORRALL, L.; HICKSON, M. Boston Naming Test results for
healthy older Australians: A longitudinal and cross-sectional study,
Aphasiology, London, vol.14, n.2, p.143-155, 2000
572

FOLSTEIN, M.F.; FOLSTEIN, S.E.; McHUGH, P.R. Mini Mental State: a


practical method for grading the cognitive state of patients for the
clinician. Journal of psychiatric research, Oxford, vol.12, n.3, p.189-98,
1975.
KEMPLER, D.; et al. Sentence comprehension deficits in Alzheimer’s
disease: a comparison of off-line vs. on-line sentence processing, Brain
and Language, San Diego, vol.64, n.3, p.297-316, 1998.
LOURENÇO, R.A.; VERAS, R.P. Mini-Mental State Examination:
psychometric characteristics in elderly outpatients, Revista de Saude
Publica, São Paulo, vol.40, n.4, p.712-9, 2006.
MAC-KAY, A.P.M.G. Linguagem nas demências. IN: MAC-KAY, A.P.M.G.;
ASSENCIO-FERREIRA, V.J.; FERRI-FERREIRA, T.M.S. Afasias e
Demências: avaliação e tratamento fonoaudiológico. São Paulo: Santos,
2007.
MAIA, A. L. et al. Application of the Brazilian version of the CDR scale in
samples of dementia patients, Arquivos de Neuro-Psiquiatria, São
Paulo, vol.64, n.2B, p.485-9, 2006.
THAL, L.J.; GRUNDMAN, M.; GOLDEN, R. Alzheimer's disease: a
correlational analysis of the Blessed Information - Memory-
Concentration Test and the Mini-Mental State Exam, Neurology,
Minneapolis, vol.36, n.2, p.262-264, 1986.
UHLMANN, R.F.; LARSON, E.B.; BUCHNER, D.M. Correlations of Mini
Mental State and modified Dementia RatingN Scale to measures of
transitional health status in dementia, Journal of Gerontology, St.
Louis, vol.42, n.1, p.33-36, 1987.
573

AS INTERFACES DA INTERVENÇÃO FONOAUDIOLÓGICA COM


ÊNFASE NO LETRAMENTO EM SUJEITOS COM SÍNDROME DE
DOWN

Vanessa Evellin Fernandes Isidro Gomes 1


Ágata Brendel de Lemos Pessoa 2
Giorvan Ânderson dos Santos Alves3
Isabelle Cahino Delgado4

RESUMO: INTRODUÇÃO: A Síndrome de Down é uma condição


geneticamente determinada, caracterizada pela presença de um
cromossomo extra no par 21 e que revela desvios no desenvolvimento,
incluindo-se o atraso ou distúrbio de linguagem, os quais se refletem no
processo de Alfabetização e Letramento dos sujeitos com esta síndrome.
O Letramento é visto como o estado ou condição que adquire um
indivíduo como consequência de ter se apropriado da leitura e da escrita
e de suas práticas sociais. A alfabetização, por sua vez, pode ser vista
como a ação de tornar o indivíduo capaz de ler e escrever. OBJETIVO:
Analisar as interfaces da proposta terapêutica com foco no letramento
em distintas situações de intervenção fonoaudiológica junto a sujeitos
com síndrome de Down. MÉTODO: Caracteriza-se como um estudo
descritivo, de natureza transversal, com base em intervenções
fonoaudiológicas junto a três sujeitos com Síndrome de Down,
direcionadas individualmente a partir de cada necessidade
comunicativa: L. M. e D. J., com idades de 03 e 23 anos, respectivamente,
ambos do sexo masculino, e G. L., sexo feminino, 13 anos. RESULTADOS
e DISCUSSÃO: L. M. desenvolveu de forma positiva a modalidade oral da
linguagem no que diz respeito às aptidões de pragmática e semântica,

1Discentede Fonoaudiologia da Universidade Federal da Paraíba;


2Discentede Fonoaudiologia da Universidade Federal da Paraíba;
3Doutor em Linguística pelo PROLING/UFPB e Docente do Departamento de

Fonoaudiologia da UFPB;
4Doutora em Linguística pelo PROLING/UFPB e Docente do Departamento de

Fonoaudiologia da UFPB.
574

assim como o refinamento das habilidades de memória auditiva e visual.


D. J., por sua vez, indicou uma evolução no que se refere às funções
cognitivas de raciocínio, memória e de habilidades espaço-temporais.
G.L., por fim, indicou evoluções quanto à linguagem oral e escrita e de
raciocínio e memória. A intervenção persiste de acordo com as
necessidades de cada sujeito, na intenção de aprimorar o desempenho
da morfossintaxe e das funções cognitivas de raciocínio e memória;
estimular as habilidades espaço-temporais, bem como a funcionalidade
da leitura e escrita e aperfeiçoar as habilidades de letramento.
CONCLUSÃO: A proposta clínica, assim, voltou-se ao Letramento com
foco nos gêneros orais e/ou escritos, favorecendo um uso
contextualizado da leitura e da escrita, contribuindo, dessa forma, no
alcance efetivo do objetivo da presente pesquisa.

PALAVRAS-CHAVES: Síndrome de Down, Letramento, Fonoaudiologia.

ABSTRACT: INTRODUCTION: Down’s syndrome is a genetically


determined condition characterized by the presence of an extra
chromosome in pair 21 and reveals deviations of development,
including the delay or disorder of language, which are reflected in the
process of Literacy subjects with this syndrome. The literacy is seen as
the state or condition that an individual acquires as a result of having
appropriated the reading and writing and their social practices.
Literacy, in turn, can be seen as the action of making the individual
capable of reading and writing. OBJECTIVE: To analyze the interfaces of
the proposed therapy with a focus on literacy in different situations of
speech therapy intervention with individuals with Down syndrome.
METHODS: It is characterized as a descriptive, cross-cutting, speech
therapy based on the three subjects with Down syndrome, individually
targeted from every communications need: L.M. e D.J., aged 3:23 years
old, respectively, both male and GL, female, 13 years old. RESULTS and
DISCUSSION: L.M. developed positively the oral modality of language
with regard to semantic and pragmatic skills, as well as the refinement
575

of the skills of auditory and visual memory. D.J., in turn, indicative of an


evolution with regard to cognitive reasoning functions, and memory
space-time of ability. G.L., finally, as indicated changes to oral language
and writing of reasoning and memory. The intervention persists
according to the needs of each subject, with the intention of improving
the performance of morphosyntax and cognitive functions of reasoning
and memory, stimulate the spatio-temporal skills as well as the
functionality to read and write and refine skills literacy. CONCLUSION:
The clinic proposal therefore turned to Literacy with a focus on oral
and/or written genres, to promote a contextualized use of reading and
writing, contributing thus in the effective range of the objective of this
research.

KEYWORD: Down Syndrome, Literacy, Speech.

INTRODUÇÃO

A Síndrome de Down é uma condição geneticamente determinada,


caracterizada pela presença de um cromossomo extra no par 21, o seu
portador possui alterações que caracterizam esta síndrome, tais como:
malformações cardíacas, déficit no desenvolvimento neuropsicomotor,
hipotonia corporal global e hiperatividade. Segundo Casarian (1993
apud WERNECK, 1993), os problemas de saúde em linhas gerais em
portadores de S.D. são relativos ao: Sistema Nervoso Central, Aparelho
Gastrointestinal, Aparelho Genital, Aparelho respiratório, Dermatologia,
Odontologia, Ortopedia, dentre outros. Nesse sentido, a síndrome exibe
deficiências em várias áreas como cognição, habilidades motoras,
comportamentos sócio-comunicativos e nas habilidades linguísticas.
Partindo desse pressuposto, o desenvolvimento de um indivíduo
com S.D. se dá de forma semelhante ao de sujeitos sem esta síndrome,
porém, é mais lento, e o desenvolvimento da linguagem não deve ser
visto como independente do desenvolvimento global do sujeito. Ele faz
parte de um todo, enquanto a criança desenvolve sua linguagem,
576

desenvolve paralelamente outros aspectos comportamentais e motores.


Dessa maneira, a criança Down desenvolve a linguagem de modo
parecido a uma criança sem a síndrome, só que mais lentamente.
Segundo Pueschel (2002), as limitações físicas e intelectuais da
criança com síndrome de Down podem ser modificadas por meio do
manejo competente e do treinamento precoce.
Dessa forma, a intervenção precoce auxilia no desenvolvimento
motor e cognitivo da criança com síndrome de Down, pois
“independentemente do nível de desempenho num determinado
momento, sempre há tarefas sensoriais, motoras ou cognitivas simples
que fornecem estimulação, vivência e diversão” (PUESCHEL, 2002, p.
118).
Neste contexto, a Fonoaudiologia atuará junto a indivíduos com
SD no sentido de favorecer todos os aspectos de sua comunicação, isto
é, os aspectos envolvidos na função auditiva periférica e central, na
função vestibular, na função cognitiva, na linguagem oral e escrita, na
fala, na fluência, na voz, nas funções orofaciais e na deglutição,
exercendo portanto, o papel de potencializador do desenvolvimento, e
dos usos da linguagem oral e escrita, consequentemente otimizando a
alfabetização e o letramento desses sujeitos.
O Letramento é visto como o estado ou condição que adquire um
indivíduo como consequência de ter se apropriado da leitura e da escrita
e de suas práticas sociais. A alfabetização, por sua vez, pode ser vista
como a ação de alfabetizar, ou seja, tornar o indivíduo capaz de ler e
escrever. Há, assim, uma diferença entre saber ler e escrever, ser
alfabetizado, e viver na condição ou estado de quem sabe ler e escrever,
ser letrado (adjetivo para alguém que vinculou-se ao letramento). Ou
seja: a pessoa que aprende a ler e a escrever – que se torna alfabetizada-
e passa a fazer uso da leitura e da escrita- que se torna letrada – é
diferente de uma pessoa que não sabe ler e escrever- é analfabeta- ou
sabendo ler e escrever, não faz uso da leitura e da escrita – é
alfabetizada, mas não é letrada, não vive no estado ou condição de quem
sabe ler e escrever e pratica a leitura e a escrita (SOARES, 2004, p.36).
577

Partindo desse pressuposto, o sujeito pode ser alfabetizado e não


letrado: sabe ler e escrever, mas não cultiva nem exerce práticas de
leitura e escrita, da mesma forma que uma pessoa pode ser analfabeta e
letrada: não sabe ler e escrever, mas conhece as funções da leitura e
escrita.
Como ressalta Soares (2004), a criança que ainda não se
alfabetizou, mas que já folheia livros, finge lê-los, brinca de escrever,
ouve histórias que lhe são lidas, está rodeada de material escrito e
percebe seu uso e função, apesar de ainda ser “analfabeta” (porque não
aprendeu a ler e a escrever), é de certa forma letrada, pois já penetrou
no mundo do letramento.
De tal modo, que alfabetizar e letrar são duas ações distintas, mas
não inseparáveis, sendo o ideal alfabetizar letrando, isto é, ensinar a ler
e a escrever no contexto das práticas sociais da leitura e da escrita, de
modo que um indivíduo se torne, ao mesmo tempo, alfabetizado e
letrado, transformando-o e levando-o a um outro estado ou condição
sob vários aspectos: social, cultural, cognitivo, linguístico, entre outros.
Social e culturalmente, a pessoa letrada já não é mais a mesma que
era quando analfabeta ou iletrada, ela passa a ter uma outra condição
social e cultura- não se trata propriamente de mudar de nível ou de
classe social, seu modo de viver na sociedade, sua inserção na cultura-
sua relação com os outros, com o contexto, com os bens culturais torna-
se diferente (SOARES, 2004, p.37).
Nesse contexto, o fonoaudiólogo precisa voltar sua atenção para a
relação entre a escrita e quem escreve, a oralidade e quem fala, ou seja,
para a linguagem escrita e oral como marca e expressão da
singularidade e da história de cada leitor e escritor, e como ação (pessoal
e social) que toma parte no movimento de se fazer sujeito e cidadão. De
modo que venha desenvolver recursos e estratégicas de construção de
sentidos e usos significativos para as linguagens oral e escrita de sujeitos
com S.D., contribuindo para que esses indivíduos possam responder
adequadamente às demandas sociais que envolvem essas práticas.
578

O objetivo deste estudo é analisar as interfaces da proposta


terapêutica com foco no letramento em distintas situações de
intervenção fonoaudiológica junto a sujeitos com síndrome de Down.

METODOLOGIA

O trabalho desenvolvido trata-se de um estudo de abordagem


qualitativa, do tipo descritivo, de temporalidade transversal, com base
em intervenções fonoaudiológicas junto a sujeitos com Síndrome de
Down.
A amostra foi constituída por três indivíduos, L.M. e D.J., com
idades de 03 e 23 anos, respectivamente, ambos do sexo masculino, e
G.L., sexo feminino, 13 anos.
Foram realizadas intervenções com foco no letramento,
direcionadas individualmente a partir da necessidade comunicativa de
cada um dos sujeitos. Portanto, em L. M, considerando-se a idade e
escolaridade do mesmo, a proposta terapêutica voltou-se
principalmente para o trabalho com a linguagem oral, entendendo que
o desenvolvimento desta e o desenvolvimento da escrita se suportam e
se influenciam mutuamente, de modo que quanto mais desenvolvida a
oralidade do sujeito, mais desenvolvida sua linguagem escrita e
melhores serão as condições para o letramento. Contudo, foram também
realizadas atividades direcionadas para o estímulo e apropriação da
linguagem escrita, considerando que o contato com este meio desde
cedo, isto é, o manejo de livros, lápis, papel, entre outros, também
consiste uma prática que favorece o letramento, à medida que a criança
se insere neste mundo, reconhecendo as funções da leitura e da escrita.
Em D.J., o enfoque da intervenção voltou-se ao estímulo da
linguagem oral e escrita, com ênfase na estimulação com a consciência
fonológica, tendo em vista, que o mesmo apresentava dificuldade no
acesso consciente ao nível fonológico da língua e a manifestação
explícita das representações nesse nível, o que é essencial para o
aprendizado da leitura e da escrita, e provoca mudanças no domínio de
579

habilidades do letramento. Foram também realizadas atividades para o


desenvolvimento das funções cognitivas, de raciocínio e memória,
estimulando-se a atenção e concentração, bem como das habilidades
espaço-temporais.
Em G.L., a proposta terapêutica enfatizou a estimulação da
linguagem oral e escrita, propiciando a experimentação de diversos
gêneros textuais, estimulando a leitura, a interpretação, e produção
textual, valorizando-se a autoria do sujeito na escrita, bem como o
desenvolvimento lexical da mesma. Foram também realizadas
atividades voltadas para o exercício das funções cognitivas de raciocínio
e memória, bem como para as habilidades espaço-temporais, e de
estímulo da percepção sensorial auditiva e visual.
Em todos os indivíduos, a atuação fonoaudiológica se procedeu de
forma lúdica e dinâmica, por meio da utilização de jogos educativos,
músicas temáticas, desenhos, e demais instrumentos que se encaixem
ao objetivo pretendido.
Os pais ou responsáveis dos sujeitos foram devidamente
esclarecidos e autorizaram a participação e utilização dos dados
referentes a estes indivíduos na pesquisa.

RESULTADOS

A partir das intervenções realizadas, L. M. desenvolveu de forma


positiva a modalidade oral da linguagem no que diz respeito às aptidões
de pragmática e semântica, aperfeiçoando o seu desenvolvimento
lexical, que possibilitou ao sujeito utilizar de forma mais adequada as
palavras, compreendendo e produzindo significados, percebendo-se
uma melhor elaboração frasal. Verificou-se ainda, o refinamento das
habilidades dialógicas, bem como das habilidades de memória auditiva
e visual, o que otimiza o desenvolvimento do letramento.
Em D.J., por sua vez, observou-se uma evolução no que se refere
às funções cognitivas de raciocínio, memória e das habilidades espaço-
temporais, revelando-se um aumento significativo na concentração e
580

atenção. Quanto a oralidade e a escrita, verificou-se um aperfeiçoamento


dessas modalidades de linguagem, a partir do desenvolvimento da
consciência fonológica, bem como a ampliação do vocabulário,
influenciando positivamente o desenvolvimento do letramento, visto
que o uso da leitura e da escrita implica em apreender habilidades
lexicais e de leitura.
G.L., por fim, indicou evoluções quanto à linguagem oral e escrita,
revelando o aprimoramento das habilidades de codificação e
decodificação e a apropriação de diversos gêneros textuais, verificando-
se portanto melhora na capacidade de interpretação e produção textual,
possibilitando o uso mais funcional da leitura e da escrita. Observou-se
também melhorias nas habilidades de raciocínio e memória, assim como
um aumento significativo da atenção e concentração, e avanço no
desenvolvimento lexical.

DISCUSSÃO

A partir da noção de letramento e do modo como foi utilizada e


apropriada na intervenção fonoaudiológica aqui empreendida, foi
possível verificar que ocorreram alterações positivas nos resultados
apresentados pelos sujeitos pesquisados, no que diz respeito ao
letramento, a consciência fonológica, desenvolvimento lexical, leitura e
escrita, habilidades cognitivas de raciocínio e memória, e as habilidades
espaço-temporais.
As propostas terapêuticas que foram adotadas são consistentes
com os achados em estudos prévios, os quais revelam que os sujeitos
com S.D. apresentam um desempenho inferior ao dos indivíduos com
desenvolvimento típico no que se refere as tarefas de consciência
fonológica, bem como exibem um vocabulário mais reduzido, o que,
frequentemente, faz com eles não consigam se expressar na mesma
medida em que compreendem o que é falado, levando-os a serem
subestimados em termos de desenvolvimento cognitivo.
581

Além disso, as pesquisas apontam que no Sistema Nervoso Central


dos portadores de S.D. encontram-se prejudicadas as estruturas
responsáveis pelo funcionamento da memória auditiva de curto prazo e
da memória espaço-temporal, fazendo com que esses sujeitos
apresentem maior dificuldade de orientação temporal e/ou espacial e
tenham um raciocínio lógico, porque não conseguem lembrar de todas
as palavras de uma frase ou de toda a sequência de uma estória que lhe
é apresentada. Todos esses fatores por sua vez, influem no aprendizado
da leitura e da escrita, bem como no uso social das mesmas, e, portanto,
no desenvolvimento eficaz do letramento.
Dentro desse contexto justifica-se, a atuação fonoaudiológica aqui
adotada, voltada para o trabalho com as habilidades cognitivas de
raciocínio e memória, as habilidades espaço-temporais, o
desenvolvimento lexical, e a consciência fonológica, estimulando-se um
aprendizado que envolva o pensar, raciocinar, lembrar, falar e escrever,
a fim de facilitar a compreensão e interpretação das informações e
promover a evolução do letramento. Para tanto, demonstra-se a
importância do trabalho fonoaudiológico orientado de acordo com as
necessidades particulares de cada um dos sujeitos, pois embora os
portadores de Síndrome de Down apresentem características peculiares
de desenvolvimento, isso não se constitui numa uniformidade pré-
estabelecida de comportamentos e potencialidades.
De tal modo que, a intervenção persiste, na intenção de aprimorar
o desempenho da morfossintaxe e das funções cognitivas de raciocínio
e memória; estimular as habilidades de codificação e decodificação, bem
como a funcionalidade da leitura e escrita, e aperfeiçoar as habilidades
de letramento, em especial ao se considerar o trabalho de gêneros e
tipos textuais distintos, valorizando-se o processo de autoria na escrita.
582

CONCLUSÃO

Diante dos resultados verificados neste estudo, as intervenções


fonoaudiológicas adotadas voltadas ao Letramento com foco nos
gêneros orais e/ou escritos, mostraram-se eficazes promovendo ganhos
qualitativos no que diz respeito ao letramento, vocabulário, consciência
fonológica, habilidades cognitivas de raciocínio e memória e habilidades
espaço-temporais, possibilitando deste modo, um uso mais
contextualizado da leitura e da escrita por parte dos sujeitos
pesquisados, esperando-se um futuro melhor para estas pessoas, pois as
mesmas já provaram ter capacidades para um bom desempenho na
escola, no trabalho e na sociedade. Assim sendo, a presente pesquisa
aponta para a importância da atuação fonoaudiológica sob a ótica do
letramento, considerando-se também a pertinência e a utilidade de um
trabalho interdisciplinar com esses sujeitos, pois para que o letramento
ocorra de forma eficaz, é de fundamental importância a articulação da
tríade: pais, fonoaudiólogo e professores, no sentindo de proporcionar
a esses indivíduos, situações que favoreçam o aprimoramento das
aquisições cognitivas, motoras, emocionais e comportamentais. Torna-
se necessário mais estudos na área de fonoaudiologia, sobre o
letramento, tendo em vista a pouca literatura nacional e internacional
existente neste campo, principalmente no que se refere a estudos tão
específicos como a Síndrome de Down.

REFERÊNCIAS

ALVES, F.; Para entender Síndrome de Down. 2. Ed. Rio de Janeiro.


2011.
ALVES, G. A. S.; DELGAGO, I. C.; VASCONCELOS, M. L. O
desenvolvimento da linguagem escrita em crianças com Síndrome
de Down. Revista Prolíngua. João Pessoa. V.1.n.1.2008. Disponível em:
http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/prolingua/article/view/133
88. Acesso em: 20/11/2013.
583

BRITO, C. L. R.; UZÊDA,C. P. Q., VIEIRA; J. G., CAVALHEIRO; L. G.


Habilidades de letramento após intervenção fonoaudiológica em
crianças do 1º ano do ensino fundamental. Revista da sociedade
brasileira de fonoaudiologia. São Paulo. vol.15, no.1, 2010. Disponível
em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1516-8034201000010001
5&script=sci_arttext. Acesso em: 22/11/2013.
CAGLIARI, L.C., 1998. A respeito de alguns fatos do ensino e da
aprendizagem, da leitura e da escrita pelas crianças na alfabetização. IN:
ROJO, R. (org.) Alfabetização e Letramento: perspectivas linguísticas.
Campinas: Mercado de Letras, 1998 (Coleção Letramento, Educação e
Sociedade).
FERREIRA, L. P.; BEFI-LOPES, D. M.; LIMONGI, S. C. O. Tratado de
Fonoaudiologia. São Paulo: Roca, 2004.
PINTO, B. L.; LAMPRECHT, R. R.; Consciência fonológica e habilidades
de escrita em crianças com síndrome de Down. Pró-Fono Revista de
Atualização Científica. Barureri. Vol. 22, no. 3, 2010. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-56872
010000300022. Acesso em: 23/11/2013.
PUESCHEL, S. M. (org.) (2002). Tradução Lucia Helena Reily. Síndrome
de Down: guia para pais e educadores. 6.ed. São Paulo: Papirus. Série
Educação Especial.
RIBEIRO. N; SOUSA, L. A. P.; Efeitos do(s) letramento(s) na constituição
social do sujeito: considerações fonoaudiológicas. Revista CEFAC. São
Paulo, Vol.14, no.5, 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf
/rcefac/2011nahead/203-10.pdf. Acesso em: 20/11/2013.
ROJO, R. Alfabetização e Letramento: perspectivas lingüísticas.
Campinas, SP: Mercado de Letras, 1998. Coleção Letramento, Educação
e Sociedade.
SCHWARTZMAN, J. S. (org.) et. al. Síndrome de Down. 6.ed. São Paulo:
Mackenzie: Memnon, 1999.
SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. 2. ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2004.
584

WERNECK, C. M. Muito prazer, eu existo: um livro sobre as pessoas


com síndrome de Down. 4.ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: WVA,
1995.
585

SOBRE A INSTITUCIONALIZAÇÃO DE PESSOAS COM PARALISIA


CEREBRAL: A DIFÍCIL RELAÇÃO SUJEITO-OUTRO-LINGUAGEM

Tatiana Lanzarotto Dudas


PUC SP com bolsa concedida pela CAPES

RESUMO: Há, no campo da Fonoaudiologia, trabalhos que exploram


uma gama de questões relativas ao atendimento de pessoas com
Paralisia Cerebral. Praticamente todos são orientados por vertentes
organicistas ou sócio-cognitivas. A ausência de “oralização”, muito
frequente em casos graves da doença, talvez jogue papel nesse caso:
pesquisadores e profissionais podem concluir que se não há fala, o
sujeito está “fora da linguagem”. Supõe-se ao sujeito, contudo,
capacidades perceptuais e cognitivas, mas independentes da linguagem.
Nesse tipo de raciocínio, ela (e seus efeitos sobre o sujeito) são
ignorados. Exceção nesse quadro são aqueles que encaminham uma
teorização consistente sobre linguagem e em quem o sujeito implicado
seja o do inconsciente (VASCONCELLOS, 1999 e 2010). Em outras
palavras, são raríssimas as pesquisas que se distanciam do discurso
organicista e do sujeito epistêmico. Neste trabalho, diferentemente, são
centrais: (1) o reconhecimento da “ordem própria da língua”
(SAUSSURE, 1916), sustentado no estruturalismo europeu (Jakobson,
Benveniste) e mais recentemente, por autores como J-C Milner (1987,
2002) e De Lemos (1992, 2002) e (2) o reconhecimento do sujeito do
inconsciente, introduzido por Freud e formulado por Lacan. Esta
dissertação traz uma reflexão sobre as instituições de longa
permanência, sobre a institucionalização de pessoas com Paralisa
Cerebral, além de discussões relativas aos seus efeitos subjetivos e
clínicos. Noções importantes como doença, normalidade, anomalia e
fragilização, são também discutidas. A perspectiva teórica é aquela que
se alinha aos autores, acima mencionados e que vem sendo
desenvolvida no Grupo de Pesquisa CNPq: “Aquisição, patologias e
586

clínica de linguagem”, do LAEL-PUCSP, coordenado pelas professoras


Dra. Maria Francisca Lier-DeVitto e Dra. Lúcia Arantes.

PALAVRAS-CHAVE: Clínica de Linguagem, Fonoaudiologia,


institucionalização, Paralisia Cerebral.

ABSTRACT: In the Speech Therapy and Pathology areas, few researches


approached questions related to clinical procedures involving persons
with the nosological classification labeled Cerebral Palsy. It´s worth
mentioning they´re oriented by organicist and/or socio-cognitivist
viewpoints. The absence of a “spoken language”, in the most serious
cases of such disease, may be the relevant factor in the scenario.
Researchers may conclude that when there isn´t speech, there isn´t
speaker, that is, that the person at stake is “out of language”. However,
perception and cognitive capacities and skills are assumed. In other
words, they´re assumed to be independent of language. According to this
kind of reasoning, language and its effects on the subject are ignored.
Exceptional cases in the area are those that are submitted a consistent
language theory which is articulated to the issue of subjective theoretical
argumentation (VASCONCELLOS, 1999). In another words, it is
extremely rare the find researches who do not adhere to the idea that
speech (and language also) is mere behavior and the speaker, an
epistemic subject. This dissertation assumes: (1) the autonomous
functioning of language, as first proposed by Saussure (1916);
developed in the european structuralism, by Jakobson and Benveniste
and nowadays, revisited by Milner (1987, 2002), De Lemos (1992, 2002)
and (2) the hypotheses of the unconscious, as proposed by Freud and
Lacan. This dissertation brings a reflection about the institutes of tong
term stay, about the Cerebral Palsy person’s institutionalization
furthermore many discussions related to the subjective and clinics
effects. The important knowledge about what is considered as disease,
common (normal), not common (abnormal) and frailty, are also
discussed. This perspective assumed by the mentioned authors is also
587

sustained by CNPq group: “Language acquisition, language pathology


and language clinic”, LAEL PUCSP, which is coordinated by Dr. Maria
Francisca Lier-DeVitto and Dr Lucia Arantes.

KEYWORDS: Cerebral Palsy, Language Clinic, speech-therapy and


pathology, institution.

Pretendo abordar aqui questões que me inquietaram ao longo de


minha prática em instituições de longa permanência para pessoas com
Paralisa Cerebral e que fizeram parte também de minha dissertação de
Mestrado em 2009 no LAEL PUCSP, orientado pela profa. Dra. Maria
Francisca Lier-DeVitto. Desde a graduação em Fonoaudiologia, meu
interesse esteve voltado para a atuação clínica realizada com pessoas
afetadas pelo quadro médico de Paralisia Cerebral, principalmente para
casos severos de moradores de instituições de longa permanência.
Naquele período universitário, procurei estágios nesses
estabelecimentos e posso afirmar que tanto o modo como essas pessoas
eram abordadas (e são), quanto as restrições e dificuldades que essas
instituições colocam para um clínico me inquietavam (e inquietam).
Os Fonoaudiólogos têm, tradicionalmente, realizado
atendimentos guiados por diretrizes do discurso organicista, próprio do
campo médico. Mais especificamente, faz-se “reabilitação motora”,
“trabalha-se a articulação”, procura-se “melhorar o padrão alimentar”.
Resumidamente: o olhar inequivocamente voltado para problemas no
organismo. Não é sem motivo, portanto, que discuto as polaridades
saúde e doença, normal e patológico que não são interrogadas,
principalmente quando o atendimento é dirigido a pessoas com
Paralisia Cerebral. Parece-me importante ressaltar que as instituições
abrigam, na maioria das vezes, casos graves de comprometimento
motor, que vêm acrescidos de instalação de deformidades e de outras
deficiências associadas como: alterações de comportamento, quadros
psiquiátricos, déficits intelectuais, visuais, auditivos.
588

Importante também é (re)colocar em perspectiva a natureza


dessas instituições de longa permanência. Elas são, sem dúvida, calcadas
na primazia da doença em detrimento do doente (FOUCAULT, 1980 -
2006). De fato, ali, a doença recobre manifestações do sujeito de forma
avassaladora. Na literatura fonoaudiológica, é escassa a discussão sobre
o atendimento de linguagem a pessoas com Paralisia Cerebral, que estão
institucionalizadas - principalmente sobre aquelas que nada ou pouco
verbalizam. Todos (ou praticamente todos) os profissionais são
orientados por vertentes organicistas ou sócio-cognitivas (como disse).
A falta da “oralização”, muito frequente deve participar dessa ausência
de estudos sobre linguagem: pesquisadores e profissionais parecem
concluir que se não há fala, o sujeito está “fora da linguagem” - mesmo
supondo a ele capacidades perceptuais e cognitivas. Nesse tipo de
raciocínio, a linguagem (e seus efeitos sobre o sujeito) são ignorados,
assim como sua participação na dita construção cognitiva. São
praticamente inexistentes autores, como Vasconcellos (1999, 2006,
2010), que tomam direção oposta e encaminham uma teorização
consistente sobre linguagem. Em outras palavras, são raríssimas as
pesquisas que se distanciam do discurso organicista e do sujeito
epistêmico.
A perspectiva teórica assumida aqui é desenvolvida no Grupo de
Pesquisa do CNPq: “Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem”, do
LAEL-PUCSP, coordenado pelas professoras Dra. Maria Francisca Lier-
DeVitto e professora. Dra. Lucia Arantes. Nessa linha, há o
reconhecimento da “ordem própria da língua” (SAUSSURE, 1916 -
1989), sustentado no estruturalismo europeu (Jakobson, Benveniste) e
mais recentemente, por autores como J-C Milner (1987, 2002) e De
Lemos (1992, 2002), além do reconhecimento do sujeito do
inconsciente, introduzido por Freud e formulado por Lacan. Portanto, a
linguagem não é vista como objeto manipulável, mas tem um
funcionamento autônomo regido por leis de referência interna que
determinam os movimentos na fala, movimentos sempre singulares, já
que não há corpo sem falante.
589

Para tornar mais claro, trago, nessa linha, o trabalho de


Vasconcellos (1999) com pessoas que apresentam quadro médico de
Paralisia Cerebral (PC) e que não falam. A autora discute que limitações
motoras e ausência de fala não são capazes de barrar “olhares” e “gestos”
que consistem em gestos plenos de significação a convocar o outro a
todo o momento. O mínimo de habilidade motora que ali restava, era sim
atravessado pela linguagem. É um outro modo de presença na
linguagem que “ignora” a limitação motora do quadro. Esses gestos e
olhares dizem de “uma presença significada, significativa e significante
na linguagem” (VASCONCELLOS, 2010, p. 2). A partir do caso de uma
menina de 7 anos com PC que utilizava símbolos gráficos de
comunicação alternativa e escrita alfabética, a autora pôde apreender
que havia “escuta” dessa menina para a fala do outro através dos
cruzamentos entre símbolos / escrita, oralidade / escrita e escrita /
escrita, enfim, havia fala na produção escrita de uma criança que não
oralizava. “À revelia do impedimento orgânico que exibe, revela um corpo
marcado pelo simbólico” (idem, p. 2).
Feitas essas considerações iniciais e tendo enunciado minha
posição, esclareço que, encaminho uma reflexão sobre as instituições de
longa permanência, sobre a institucionalização de pessoas com Paralisa
Cerebral e a relação com o Outro. Focalizo, nessa discussão, questões
referentes aos seus efeitos subjetivos e embaraços aspectos clínicos no
que tange à linguagem. Minha experiência junto a pacientes
institucionalizados mostra que a melhora clínica é sempre sutil e muito
lenta (na maioria dos casos). Há, por certo, problemas neurológicos e
motores graves, como quadros de disfagia, por exemplo. Minha prática
mostra, porém, que outros aspectos são vitais também e eles remetem
ao sofrimento subjetivo de pessoas internadas - principalmente
considerando-se aquelas que não coordenam músculos e movimentos,
que dependem (em todos os sentidos) do outro. Poder considerar que
há um “corpo que fala”, no mínimo de movimento que lhe resta, é
essencial para essas pessoas.
590

Nessas instituições totais – expressão de Goffman (2003), o


problema de pessoas com PC torna-se mais profundo porque há normas
a serem seguidas: dá-se prioridade aos casos mais graves, ou seja, a
doença é privilegiada e não demandas contingenciais dos doentes. Além
dessa seleção prévia, “pela norma”, não há número suficiente de
profissionais para atender todos os pacientes adequadamente. Dessa
forma, a linguagem não emerge como problema e o sujeito é soterrado,
reduzido a “objeto” de cuidados e de manipulação pelo outro. “Vínculos”,
como se diz nesses estabelecimentos, raramente se estabelecem porque
cuidadores e voluntários ocupam-se basicamente de tarefas como:
garantir a higiene dos internos e prover alimentação de forma
apropriada. Além disso, nem sempre são os mesmos funcionários que
cuidam dos mesmos internos: há rodízio. Afetada por estas vivências,
procurei refletir sobre questões que dizem respeito à relação sujeito-
linguagem que implicam a noção de escuta do outro-terapeuta, na
realidade institucional com internos com PC.
Noto através de minha experiência nesses locais que a rotina de
cuidados é bastante rígida e tem início às seis horas da manhã. Todos os
dias são os mesmos horários de escovação de dentes, banho, café,
almoço, verificação de pressão, entre outros cuidados. Comumente o
cardápio é o mesmo em vista das doações de alimentos e as atividades
diárias são, na maioria das vezes, coletivas. Dessa forma, enquanto não
há cuidados a serem realizados, os internos permanecem assistindo
televisão (escolhido por uma auxiliar de enfermagem ou voluntário),
ouvindo músicas, tomando sol. A rotina é alterada somente em função
de datas festivas ou eventos. Sem dúvida, a rotina institucional sinaliza
efeitos problemáticos e prejuízos para o aparecimento do sujeito. Não
parece haver espaço para manifestações subjetivas e para a
singularidade.
Frente a isso, como pensar em uma Clínica de Linguagem dentro
da Instituição? Sem dúvida, minhas atividades ali podem parecer
diferentes de um atendimento em consultório, e de fato são. Além dos
atendimentos realizados em uma sala de terapia apropriada e adaptada
591

para esse fim, vou a reuniões escolares, acompanho consultas médicas e


passeios e sou colocada na posição de “intérprete”. Em muitos
momentos sou chamada para explicar o que esta ou aquela pessoa quer
dizer com uma vocalização, um gesto, um choro, extensão corporal,
entendidos em alguns momentos como “birras”. Penso que essas
manifestações são positivas e mostram uma posição singular – de
aparecimento do sujeito, apesar de todo o prejuízo trazido pela
institucionalização. Entretanto, entendo que minha convocação como
uma “intérprete” diz da posição clínica que assumo na instituição:
procuro escutar o “corpo que fala”, que demanda interpretação. Ou seja,
como uma Clínica de Linguagem, coloco-me ao lado de pessoas com PC.
Importante dizer que devido às limitações expressivas e
comunicativas dos internos, procura-se estabelecer um código motor
que indique o “sim” e o “não”. Pode ser que ele se estabeleça através de
movimento ocular, de projeção de braço para “sim”, do sorriso ou de
uma “cara feia” ou de meneios de cabeça para “sim” e “não”. Símbolos de
Sistemas gráfico-visuais PCS (Picture Communication Symbols), que
fazem parte dos Sistemas Suplementares e Alternativos de Comunicação
(SSAC) podem ser também utilizados. Trata-se de “prática clínica,
educacional e de pesquisa que tenta compensar, temporária ou
permanentemente, os prejuízos e incapacidades de pessoas severamente
comprometidas”1 (ASHA, 1991).

1 Os Sistemas Suplementares e Alternativos de Comunicação (SSAC) surgiram para


facilitar a comunicação e nos EUA, Canadá e outros países do norte da Europa Ocidental,
há uma grande variedade de recursos tecnológicos que envolvem a produção de
software, entre outros equipamentos. São vários os Sistemas Gráficos, com diferente
simbologia e logística própria, além do uso de fotos, desenhos de alta iconicidade,
desenhos abstratos, bem como a ortografia tradicional. Os sistemas gráficos mais
conhecidos são: Oakland Schools Symbols, Minspeak, Picsyms, Rebus, Picture
Communication Symbols (PCS), Pictogram Ideogram Communication Symbols (PIC) e
Blissymbols. O sistema gráfico que utilizo na Instituição é o PCS – Picture
Communication Symbols – por ser o sistema já iniciado com essas pessoas através da
compra do software. Esse sistema gráfico é o mais usado no Brasil, desenvolvido em
1980 por Roxanna Mayer Johnson, que conta inicialmente com 700 símbolos. É um
sistema pictográfico criado para atender pessoas com dificuldade em oralizar e que não
conseguiam compreender um sistema gráfico mais ideográfico. O PCS é composto por
592

Feitos esses assinalamentos, é necessário refletir também sobre


quem é a criança que chega à instituição de longa permanência e sobre
o caminho percorrido até sua internação. A rigor, pode-se admitir que a
criança que chega a esses locais recebe seu atestado de portadora de
“patologia”, justificando a existência da instituição. O primeiro passo
para a admissão certamente é o diagnóstico médico de paralisia
cerebral, muitas vezes em grau severo e profundo. Outro critério é o fato
da criança não andar, caracterizando sua dependência e necessidade de
ser cuidada pelo outro. O caminho percorrido por esses sujeitos até a
instituição de longa permanência não só reflete o efeito e o estigma para
a família, do diagnóstico médico de PC, como também (e acima de tudo)
a institucionalização representa forte agressão contra o sujeito que é ali
“depositado” ao ser retirado do convívio familiar. Assim, o impacto
dessa decisão, muitas vezes inevitável, é trágico para a criança PC. A
relação com aqueles que dela cuidarão está, além do mais, abalada desde
o início de seu ingresso na instituição que se fixa, para a criança, como
signo de perda, de afastamento do convívio familiar.
René Spitz foi um destacado pesquisador americano que se
dedicou à reflexão sobre os efeitos negativos da privação materna e
caracterizou como síndrome de hospitalismo a privação afetiva total que

desenhos com figuras e traços, além da opção de preenchimento colorido, que vêm
acompanhados da escrita correspondente acima. É inspirado no sistema de cores
utilizado no Blissymbolics e mantém a convenção de dividir os símbolos do PCS em seis
categorias semântico-gramaticais, representadas por cores diferentes: pessoas
(amarelo), verbos (verde), sentimentos (azul), objetos (laranja), miscelânia (branco).
Além disso, esses símbolos são utilizados em pranchas de comunicação individuais, que
consistem em superfícies sobre as quais são dispostos os símbolos que serão indicados
pelos seus usuários. Não há uma eleição prévia de símbolos porque as pranchas de
comunicação são construídas junto com o paciente de acordo com o texto clínico. O
sujeito pode, então, apontá-los ou realizar uma varredura, olhando os símbolos e
confirmando o que deseja dizer através de meneios de cabeça ou outro gesto. Não me
deterei à explicação exaustiva dos Sistemas Suplementares ou Alternativos de
Comunicação porque meu foco nesse artigo é outro, apesar de utilizar a prancha de
comunicação na instituição. No entanto, há mais informações em Asha, 1991; Tetzchner
e Martinsen, 1992; Lloyd, 1985; Lloyd, Loncke e Arvidson, 1999; Chun, 1991;
Vasconcellos, 1999; Asha, 1991; Duarte, 2005; entre outros.
593

crianças sofrem no primeiro ano de vida quando crescem em abrigos,


longe da presença da mãe. Em minha prática percebo muitas
ocorrências de problemas como os mencionados por ele, como casos de
recusa alimentar, indiferença de estabelecimento de contato visual,
balanceios, manipulações de dedos, insônia, falta de apetite, entre
outros sinais característicos de isolamento. Muitas vezes a família
interna a criança na instituição e não retorna mais, ou demora muito a
retornar. Quando retornam há internos que não reconhecem mais os
pais ou familiares, não manifestando nenhum tipo de afeto por eles,
comportando-se como se os pais fossem estranhos. Isso vai ao encontro
do que descreveu Spitz e dá suporte à teorização que ele procura
avançar: a primeira relação objetal é decisiva na estruturação do sujeito.
Pode-se pensar que as instituições, necessárias que são, acabam sendo,
nos moldes como têm sido concebidas, estabelecimentos pouco
propícios à humanização (expressão de SPITZ, 1887-1978).
Nas instituições de longa permanência a noção de doença ronda o
tempo todo, abafando os espaços para o aparecimento do sujeito. Desse
modo, o fonoaudiólogo não deve, a meu ver, ir pelo mesmo caminho e
considerar apenas a patologia, com exercícios que irão distanciar o
paciente e o terapeuta, numa total assimetria. Trago aqui as palavras de
Vasconcellos: “o paciente não fala, mas escuta – o terapeuta fala, mas não
escuta” (1999, p.4). Trata-se de uma tarefa que é, de antemão, destinada
ao fracasso, a lesão, portanto, é um veredicto no caso de pacientes com
PC severa.
Em minha dissertação de Mestrado (DUDAS, 2009) teci
comentários sobre o recalcamento do doente na Medicina e sobre o fato
de que profissionais da Saúde, em sua grande maioria, adotam esse
ponto de vista. Não se é interrogado, nem mesmo, pelo fato de que,
muitas vezes, não haja coincidência entre sintomas e resultados
objetivos. Toma-se a direção da objetividade, invalidando a opinião do
doente em favor da realidade da doença. No caso de pessoas com
Paralisia Cerebral, que estão institucionalizadas, essa opção é notada de
594

várias formas. Esses cuidados, dirigidos aos sujeitos com PC, não levam
em conta suas queixas – são decididos pelos cuidadores.
Nessas instituições, a questão da clínica, que envolve demanda e
desejo, assume, como procurei indicar, um perfil bastante complexo.
Importa enfatizar que é improvável que aconteça uma entrevista com
familiares – frequentemente, o clínico, ao ingressar na instituição, lê
prontuários (muitas vezes antigos e escritos por algum funcionário que
teve algo a dizer sobre aquela pessoa). Fato é que ninguém se sente
responsável pelos internos. A pessoa com PC tem uma história que não
pode contar, uma queixa que não pode enunciar e uma demanda que
deve e precisa ser decifrada. Queixa e demanda que devem ser
apreendidas nos movimentos corporais dirigidos ao outro.
Nas instituições, ao lado das dificuldades impostas pela Paralisia
Cerebral, há ainda obstáculos acrescentados pelas características desses
estabelecimentos. Penso que menos do que ter como meta a realização
de um diagnóstico inicial, o aspecto mais importante é que ocorra uma
mudança de posição do clínico, que ele possa se deslocar para uma
posição que “dê voz e vez” à pessoa com PC. Trata-se de assumir uma
posição que não descrimine e não infantilize o paciente ou que o
homogeneíze na classe de “deficientes”. Trata-se de uma posição clínica
devotada à outra idéia de “cuidado”. Note-se que sugiro mudança, antes
de tudo, no clínico. Assim, sob efeito das críticas às instituições, com base
em minha experiência como “fonoaudióloga contratada” nesses
internatos, considero que o passo primeiro e mais essencial a ser dado
corresponda ao deslocamento de uma posição clínica cristalizada -
posição que foi circunscrita pela idéia de doença, de deficiência e de
incapacidade das pessoas com PC.
No caso de instituições, que abrigam pessoas com Paralisia
Cerebral, é forte, como disse, o peso da noção de patologia e de
anormalidade no imaginário de profissionais, cuidadores e voluntários.
A falta de semelhança em relação ao corpo do outro parece impor a idéia
de anomalia. Atribui-se, de imediato, portanto, uma condição de
fragilidade (generalizada) à pessoa que chega ali para morar. Não é,
595

igualmente, sem razão, que o modelo de funcionamento desses


estabelecimentos seja o hospitalar. Não há dúvida que essas pessoas
com PC sejam dependentes para a realização de rotinas de higiene,
alimentação e outras, que exijam habilidades motoras obstaculizadas
pela incidência dessa afecção neurológica. Essas instituições são
necessárias e cumprem até com eficiência as tarefas mencionadas. A
questão é que, guiadas por um raciocínio que é típico e próprio do
discurso organicista, a dependência motora, que os internos
inegavelmente têm do outro, ganha conotações e extensões indevidas.
“Dependência” se transmuta em “incapacidade cognitiva”, em
“impossibilidade de raciocínio”. Dito de outro modo, a fragilidade
motora se expande para o domínio subjetivo, para a esfera do sujeito.
De fato, sob a esfera de um pensamento organicista, parece que as
instituições ficam voltadas para o sofrimento causado por doenças, mas
não por outros sofrimentos, motivados por questões humanas: por
abandono, desamor ou desconsideração, por exemplo. A restrição ao
convívio familiar traz consequências mortíferas, mas considera-se que
elas são impossíveis de serem evitadas ou contornadas. Frente a elas
assume-se um sentimento de fatalidade. Talvez por isso, “vínculos”
devam ser evitados e por isso a instituição comumente assume esse
papel, rodiziando funcionários e não permitindo maior contato com este
ou aquele interno. Os vínculos são evitados no intuito de barrar
sofrimentos e sentimentos que, supõe-se que os internos não tenham e
espera-se que nem venham a experimentar. Essa surpreendente lógica
é a expressão maior da expansão da “fragilidade motora” no domínio do
psíquico.
A cegueira para manifestações do sujeito fica marcada nos
cuidados dedicados às pessoas com PC – são cuidados físicos e são
indiferentes aos gestos demandantes do sujeito. Procuro, acima de tudo,
sustentar uma direção argumentativa que me permita situar e sugerir
uma posição para o clínico de linguagem no ambiente institucional.
Trata-se mesmo, entendo, de uma posição (e não de estabelecimento
de procedimentos específicos) - uma posição que se define no
596

reconhecimento de que manifestações corporais da pessoa com PC são


significantes, ou seja, são passíveis de serem recolhidas pela
interpretação do clínico. Resumidamente: trata-se de uma posição
clínica que admita que, se há ausência de fala oralizada, há um corpo que
fala. O clínico de linguagem deve escutar fala mesmo quando ela não é
audível – ela está lá no corpo do sujeito. Só assim ele poderá sustentar,
mesmo em instituições, uma posição clínica. De fato, não seria
apropriado supor que circunstâncias ou estabelecimentos determinem
ou definam o que é um clínico. O que o faz um clínico é uma posição
singular de escuta para o outro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AMERICAN SPEECH HEARING ASSOCIATION (1991) Report:


augmentative and alternative communication. ASHA, v. 33.
ANDRADE, L. (2001) Os efeitos da fala como acontecimento na
clínica fonoaudiológica. Porto Alegre: Letras de Hoje. v. 36, n. 3.
______. (2003) Ouvir e escutar na constituição da Clínica de
Linguagem. Tese de Doutorado. LAEL/PUC-SP.
______. (2006) “Captação” ou “captura” – considerações sobre a relação
do sujeito à fala. In.: LIER-DeVITTO, M. F. & ARANTES, L. (org.)
Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem. São Paulo:
EDUC/FAPESP.
ARANTES, L. (1994) O fonoaudiólogo, esse aprendiz de feiticeiro. In:
LIER-DeVITTO, M. F. (org.) Fonoaudiologia: no sentido da linguagem.
São Paulo: Cortez.
______. (2001) Diagnóstico e Clínica de Linguagem. Tese de Doutorado.
LAEL/PUC-SP.
______. (2006) Sobre a instância diagnóstica na Clínica de Linguagem. In.:
LIER-DeVITTO, M. F. & ARANTES, L. (org.) Aquisição, Patologias e
Clínica de Linguagem. São Paulo: EDUC/FAPESP.
597

______. (2005) Impasses relativos ao encaminhamento de crianças que


não falam. In.: PAVONE, S., RAFAELI, Y. M.. Audição, voz e linguagem:
a clínica e o sujeito. São Paulo: Cortez.
ARANTES, L., ANDRADE, L., LIER-DeVITTO, M. F.. (2005) A clínica de
linguagem com crianças que não falam: diagnóstico e direção do
tratamento. In.: PAVONE, S., RAFAELI, Y. M.. Audição, voz e linguagem:
a clínica e o sujeito. São Paulo: Cortez.
CANGUILHEM, G. (1966/2007) O normal e o patológico. Rio de Janeiro:
Forense Universitária.
CARNEVALE, L. B. (2008) O falante entre cenas: descaminhos da
comunicação na deficiência mental. Tese de Doutorado. LAEL/PUC-SP.
CARVALHO, G. M. M., LIER-DeVITTO, M. F. (2008) O interacionismo: uma
teorização sobre a aquisição da linguagem. In.: FINGER, I. & QUADROS,
R. (org.). Teorias de Aquisição de Linguagem. Florianópolis: UFSC.
CATRINI, M. (2005) A marca do caso: singularidade e clínica de
linguagem. Dissertação de Mestrado. LAEL/PUC-SP.
CLAVREUL, J. (1978) A ordem médica. Poder e impotência do
discurso médico. São Paulo: Editora Brasiliense.
CONCEIÇÃO, L. N. (2004) Crianças e jovens portadores de
necessidades educativas especiais institucionalizados: um estudo
sobre suas interpretações em relação às práticas socioeducativas para a
reinserção social. Dissertação de Mestrado: BA.
CORIAT, E.. (1997) Psicanálise e clínica de bebês. Porto Alegre: Artes
e Ofícios.
DE LEMOS, C. T. G. (1982) Sobre a aquisição de linguagem e seu dilema
(pecado) original. Boletim da Abralin, v. 3, pp. 97-126. Recife: Editora
da Universidade Estadual de Pernambuco.
______. (1992) Los processos metafóricos y metonímicos como
mecanismos de cambio. Substratum, v.1, pp. 121-1336. Barcelona:
Meldar.
______. (2006) Uma crítica (radical) à noção de desenvolvimento na
Aquisição de Linguagem. In.: LIER-DeVITTO, M. F. & ARANTES, L. (org.)
598

Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem. São Paulo:


EDUC/FAPESP.
DELEUZE, G.N. & GUATTARI, F. (1992) O que é a filosofia. Rio de
Janeiro: editora 34.
DUDAS, T. L. (2009) Paralisia cerebral e institucionalização: efeitos
subjetivos e clínica de linguagem. Dissertação de Mestrado. LAEL/PUC-
SP.
FELMAN, S. (1980) Le scandal du corps parlant: don Juan avec Austin
ou la séduction em deux Langues. Paris: Éditions de Seuil.
FONSECA, S. C; LANDI, R. & LIER-DeVITTO, M. F. (2007) Vez e voz na
linguagem: o sujeito sob efeito de sua fala sintomática. In.: Revista
Kairós: Programa de Estudos Pós-graduados em Gerontologia. PUC-SP.
FOUCAULT, M. (1926-1984) História da loucura. São Paulo: Perspectiva.
______. (1980-2006) O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense
Universitária.
______. (1987) Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes.
FRAZÃO, Y. S.. (1996). Paralisia Cerebral na clínica fonoaudiológica:
primeiras questões sobre linguagem. Dissertação de Mestrado: PUC-SP.
GUATTARI, F. (1930-1992: 2005) Psicanálise e transversalidade:
ensaios de análise institucional. São Paulo: Idéias e Letras.
GOFFMAN, E. (2003) Manicômios, prisões e conventos. São Paulo:
Perspectiva.
KASSAR, M. de C. (1999) Modos de particularização e constituição de
sujeitos nas práticas sociais: a instituição de pessoas com deficiência
múltipla. Campinas: UNICAMP.
LIER-DeVITTO, M. F. (1994) Fonoaudiologia: no sentido da linguagem.
São Paulo: Cortez.
______. (1998a) Os monólogos da criança: delírios da língua. São Paulo:
Educ/FAPESP.
______. (2001a) Sobre o sintoma – déficit de linguagem, efeito da fala no
outro, ou ainda...? Porto Alegre: Letras de Hoje. v.36, n. 3.
______. (2001b) Sobre o sintoma na linguagem. Trabalho apresentado
no XXI InPLA. LAEL/PUC-SP.
599

______. (2002) Questions on the normal – pathological polarity. Revista


da Anpoll. São Paulo: Edusp.
______. (2003) Patologias da linguagem: subversão posta em ato. In.:
LEITE, N. (org.). Corpo e Linguagem: gestos e afetos. Campinas:
Mercado das Letras/FAEP/Unicamp.
______. (2004) Sobre a posição do investigador e do clínico frente a falas
sintomáticas. Letras de Hoje: Porto Alegre, v.39, n. 3.
______. (2005) Falas sintomáticas: fora de tempo e fora de lugar.
Cadernos de Estudos Lingüísticos. Campinas: Editora da UNICAMP. N.
47.
______. (2006) Patologias da linguagem: sobre as “vicissitudes de falas
sintomáticas”. In.: LIER-DeVITTO, M. F. & ARANTES, L. (org.) Aquisição,
Patologias e Clínica de Linguagem. São Paulo: EDUC/FAPESP.
LIER-DeVITTO, M. F. & FONSECA, S. C. (2008). Considerações sobre o
‘equívoco’ e o diálogo’ na Clínica de Linguagem. In Desafios da língua:
pesquisas em língua falada e escrita. Maceió: UFAL, 489: 492.
MARQUES, C. A. (1998) Implicações políticas da institucionalização da
deficiência. Campinas: Educação e Sociedade. V. XIX, n. 62.
MERISSE, A. (1997) Origens das instituições de atenção à criança: o caso
das creches. In.: MERISSE, A.; JUSTO J. S., ROCHA, L. C. & VASCONCELOS,
M. S. Lugares da infância: reflexões sobre a criança na fábrica, creche e
orfanato. São Paulo: Arte & Ciência.
MILNER, J. (1987) O amor da língua. Porto Alegre: Artes Médicas.
MILNER, J. (2002) Periplo estructural. Buenos Aires: Paidós.
SAUSSURE, F. (1916 – 1989) Curso de Lingüística Geral. São Paulo:
Cultrix.
SPITZ, R. (1887 – 1978) O não e o sim: a gênese da comunicação
humana. São Paulo: Martins Fontes.
SPITZ, R. (1887 – 1979) O primeiro ano de vida: um estudo
psicanalítico do desenvolvimento normal e anômalo das relações
objetais. São Paulo: Martins Fontes.
VASCONCELLOS, R. (1999) Paralisia Cerebral: a fala na escrita.
Dissertação de Mestrado. LAEL/PUC-SP.
600

______. (2006) Fala, escuta, escrita: a relação sujeito-linguagem no caso


de uma criança com paralisia cerebral que não oraliza. In.: LIER-
DeVITTO, M. F. & ARANTES, L. (org.) Aquisição, patologias e Clínica de
Linguagem. São Paulo: EDUC/FAPESP.
______. (2010) Organismo e sujeito: uma diferença sensível nas
paralisias cerebrais. Tese de Doutorado. LAEL/PUC-SP.
601

A CRIANÇA AUTISTA NA ENUNCIAÇÃO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A


CATEGORIA DE PESSOA

José Temístocles Ferreira Júnior


(CAPES/PROLING/UFPB)
Marianne C. B. Cavalcante
(CNPq/PROLING/UFPB)

RESUMO: Neste artigo, objetivamos lançar algumas possibilidades para


se tomar a relação entre patologia (especialmente, o autismo) e
aquisição de linguagem. Para tanto, tentamos (re)pensar alguns
postulados teóricos de Benveniste (1988 e 1989) acerca do sujeito na
enunciação e quais as implicações destes postulados para a aquisição de
linguagem, para, só então, analisar de que modo a(s) patologia(s) da
linguagem pode(m) revelar a singularidade do sujeito na língua.
Utilizamos para tanto dados de interação entre uma criança autista e
uma terapeuta da clínica de linguagem. Os resultados mostram que,
através da observação dos movimentos da enunciação, é possível
perceber a singularidade do sujeito autista na linguagem.

PALAVRAS-CHAVE: Aquisição da linguagem; enunciação; patologia da


linguagem; sujeito.

ABSTRACT: In this article we aim at launching some possibilities in


order to take some considerations regarding the relationship between
pathology (specifically, autism) and language acquisition. To do so, we
try (re) consider some of Benveniste’s theoretical postulates (1988 and
1989) about the subject in the enunciation and the implications of these
postulates for language acquisition, to consider, then, how the condition
(s) of language may reveal the uniqueness of the subject in language. We
have used the data for both the interaction between an autistic child and
a therapist from a clinic of language. The results show that, by observing
602

the movements of the enunciation, it is possible to understand the


uniqueness of the subject in autistic language.

KEYWORDS: Language acquisition; enunciation; pathology of language;


subject.

I – Considerações iniciais

Desde muito cedo, a relação que a criança estabelece com a


linguagem e com o outro é permeada por singularidades inscritas e
manifestas no próprio processo de aquisição da linguagem, seja em
crianças autistas ou não. No caso da instauração de um quadro autístico,
as idiossincrasias presentes no processo de constituição subjetiva por
que passa a criança ficam patentes e são levadas ao extremo, a ponto de
Birman (1997) e diversos pesquisadores afirmarem que o autismo
sempre se realiza e se materializa no plural “autismos” 1, assinalando as
particularidades existentes em cada criança diagnosticada autista.
Apesar das singularidades flagrantes em cada caso de autismo, um
traço bastante comum ao transtorno diz respeito à recusa de
explicitação subjetiva nas instâncias da linguagem: a criança autista
parece fugir, em graus diversos, aos índices de subjetividade disponíveis
na linguagem e às formas de interação que a coloquem à mostra para o
outro.
Em virtude disso, configura-se no autismo uma questão
particularmente intrigante para investigadores e leigos: qual a forma de
acesso ao mundo retraído das crianças diante da aparente ausência de
linguagem? Aliás, como afirmam Cavalcanti e Rocha (2001), a própria
existência do sujeito autista é posta em xeque já que, supostamente, não
haveria discurso.

1 Mesmo reconhecendo a pertinência da observação de Birman (1997), usaremos aqui a

expressão “autismo”, sob a advertência de que, metonimicamente, o singular deve


indicar o plural.
603

Por outro lado, tomando como base as considerações de


Benveniste (1988), é impossível compreender a enunciação do outro
sem ser afetado pela linguagem ou mesmo posicionar-se em relação a
ela. Tal perspectiva apresenta alguns pontos que devem ser levados em
consideração para o tratamento dos dados da linguagem na criança
autista: a) se a criança enuncia, em qualquer momento, deve-se
considerar o movimento de ocupação de um lugar nas instâncias da
linguagem para que o ato enunciativo seja possível; b) o que se pode
dizer do sujeito quando a linguagem se mostra latente?

II – A linguagem no autismo e a criança autista na linguagem

Desde os primeiros apontamentos de Kanner (1943) sobre o lugar


da linguagem no quadro autístico, diversos pesquisadores se voltaram
para descrições do comportamento comunicativo das crianças autistas.
Nesse contexto, as pesquisas destacaram no comportamento autístico
(incluindo-se aí a linguagem): movimentos esteriotipados (repetitivos),
indiferença à fala humana, ausência do gesto de apontar, falta de sinais
interativos (como sorriso, troca de olhares, balbucios etc.), mutismo
intenso, maior interesse por objetos que pela presença humana,
dificuldade de inversão pronominal (utilização dos pronomes de
terceira pessoa no lugar dos pronomes de primeira pessoa), fala
ecolálica (reprodução da fala do adulto), inabilidade para utilização do
código linguístico etc.. Nesse caso, a descrição da linguagem no autismo
se insere no quadro das atipicidades do comportamento verificável no
transtorno, sem haver pretensão de determinação do(s) nexo(s)
causal(is) subjacente(s) à sintomatologia autística.
Sem dúvida alguma, é difícil formular descrições sumárias de
comportamentos tão irregulares e, ao mesmo tempo, tão escassos. O
modo de ser da criança autista desafia os princípios que norteiam o
paradigma positivista e põe à prova qualquer tentativa de formulação
de axiomas universais com base em procedimentos homogeneizantes.
Por outro lado, o estudo da sintomatologia do autismo não deve se
604

limitar às manifestações ou tampouco encerrar as explicações no rótulo


de “desvio patológico”, sob pena de perder de vista os fatores envolvidos
no funcionamento singular da constituição da subjetiva no autismo.
No que diz respeito à linguagem, o quadro sintomático instaurado
no autismo demanda um deslocamento de perspectiva para o exame da
singularidade no sintoma, qual seja: de que maneira o uso singular da
linguagem pode revelar aspectos gerais envolvidos no seu
funcionamento? Ou ainda: o que o transtorno autístico pode dizer sobre
a relação entre linguagem e subjetividade?
De todo modo, do ponto de vista do sintoma, as faltas constantes
no comportamento da criança autista não devem fazer supor a ausência
de um funcionamento latente, seja se linguagem, de interação, seja de
subjetividade. Não são raros os relatos de familiares e pesquisadores
sobre crianças autistas que resistiam a qualquer tipo de interação e
pareciam mesmo não dispor de recursos linguísticos para comunicação
e, repentinamente, fizeram uso de palavras ou frases em contextos
situados. Os próprios registros de Kanner (1943) sobre as crianças que
descreveu dão margem à hipótese de um funcionamento latente da
linguagem. O caso 3, por exemplo, trata de uma criança (Richard) que
parecia bastar-se a si mesma e que não esboçava sinais de linguagem.
Certa noite, a babá de Richard escutou-o dizer, claramente, “boa noite”.
Em outros casos acompanhados por Kanner, há relatos de situações
semelhantes.
As manifestações da linguagem na criança (autista ou não) devem
ser vistas como efeito de um processo de interações sucessivas e
relacionais. Logo, é inviável pensar a determinação do ponto de início do
funcionamento da linguagem no indivíduo, pois sua explicitação supõe
um período de latência cujas proporções são indeterminadas. Não se
trata de uma inferência com base em uma avaliação de natureza
subjetiva, passível de questionamentos. Se a criança fala ou se, de algum
modo, é afetada pelos significantes da linguagem, em qualquer momento
que seja, é razoável considerar o período que antecede à explicitação
605

linguística em si. Cabe, então, questionar a suposta ausência da


linguagem no retraimento da criança autista.
Nesse sentido, se o silêncio da criança autista não deve indicar a
ausência de interação e se a interação está condicionada ao uso da
linguagem, é preciso lançar mão de uma perspectiva de linguagem que
inclua sua falta de manifestação e que suporte os sintomas singulares da
constituição do sujeito. Como questiona Birman (1997): o que é a
linguagem e o que é o sujeito para que o autismo seja possível? A
resposta a este questionamento investe na formulação de uma
gramática do impossível, e, nesse sentido, nossa pesquisa segue o rastro
da afirmação de Birman (Idem) sob o escopo de pensar uma parte dessa
gramática ligada ao apenso da língua.

III – A enunciação da criança autista

Apoiados em postulados teóricos de Benveniste (1988 e 1989),


segundo os quais a enunciação dispõe de mecanismos que demandam
continuamente do indivíduo uma tomada de posição como sujeito,
buscaremos analisar de que modo o transtorno autístico na linguagem
pode revelar a singularidade do sujeito na língua.
Benveniste (1988, p. 186)) afirma que “é na e é pela linguagem
que o homem se constitui como sujeito.” (os itálicos são nossos). A nosso
ver, a disposição preposicional nessa assertiva benvenistiana deve ser
lida em sua literalidade. Antes mesmo de enunciar, o homem é imerso
em uma rede de significantes propostos pelo outro. Estes significantes
inquirem o indivíduo a seguir um caminho sem volta: ocupar uma
posição na instância discursiva da linguagem. Trata-se do primeiro
movimento do sujeito em direção à enunciação: movimento de ocupação
enunciativa ou movimento na linguagem. Esse movimento leva a criança
ao movimento de proposição subjetiva pela linguagem: a experiência da
ocupação da estrutura enunciativa é seguida pela marcação dos papéis
subjetivos no discurso. A criança/locutor se apresenta como sujeito e
remete a si mesmo como eu e ao outro como tu de sua enunciação.
606

Esses dois movimentos não são exatamente explícitos, mas estão


implicados na colocação da linguagem em funcionamento. Para enunciar
ou mesmo para compreender a enunciação do outro é necessário que o
sujeito assuma as bases da linguagem condicionantes do ato
enunciativo, quais sejam: temporalidade, espacialidade e pessoalidade.
O ponto que nos interessa aqui diz respeito à categoria de pessoalidade.
Para entendermos as considerações de Benveniste a respeito da
categoria de pessoa, é necessário situarmos algumas noções subjacentes
à abordagem enunciativa desse autor. É interessante destacar, com
Normand (2009), que a teoria de Benveniste, ao mesmo tempo em que
retoma elementos da visão saussuriana de língua como sistema de
signos, amplia a perspectiva formalista dos estudos da linguagem: para
Benveniste a língua é, sim, um sistema formal, mas serve à enunciação.
Além disso, para compreender o modo com que se dá a relação
entre referência e enunciação em Benveniste é necessário levar em
consideração dois aspectos distintos no pensamento benvenistiano: o
primeiro deles diz respeito ao par significação e designação; e o
segundo, a relação entre referência e enunciação. Esse segundo ponto
suscita, no entender de Normand, a especificidade sui-referencial da
noção de pessoa para Benveniste, permitindo ao autor conjugar em seu
programa de teorização/descrição linguística os pontos essenciais da
Semiologia: o sujeito e o sentido.
No pano de fundo dessa discussão, encontra-se a preocupação de
Benveniste com as marcas de subjetividade presentes na língua. Se a
referência é determinada pelo uso da língua e a significação se
presentifica no a priori das relações do signo com os outros signos, há,
por outro lado, termos que possuem a particularidade de remeter
unicamente às instâncias do discurso em que estão inseridos. Nesse
sentido, o problema da relação entre referência e enunciação situa a
singularidade da Semântica de Benveniste, pois nele se encontra a
preocupação com a descrição de alguns tipos de enunciados com a
particularidade de não dissociar sentido e referência, ao mesmo tempo
em que instalam na língua o sujeito que nela enuncia.
607

Desse modo, Benveniste volta-se para o estudo dos indicadores de


pessoa na frase, formas disponíveis na língua utilizadas para convertê-
la em discurso, cujo emprego remete à enunciação. Trata-se, em outras
palavras, de formas linguísticas vazias de referência das quais o locutor
pode se apropriar para se atualizar no discurso. Esses indicadores
remetem, portanto, a uma realidade enunciativa e, por isso, devem ser
tomados em relação à instância discursiva em que estão inseridos. É
esse caráter sui-referencial dos indicadores de subjetividade que nos
leva a perceber que o sujeito está na língua e, por essa razão, deve ser
pensado em sua enunciação.
Assim sendo, sob a noção de indicadores de subjetividade estão
contempladas as categorias que indicam pessoalidade, espacialidade,
temporalidade, etc. Todas essas categorias possuem caráter subjetivo,
mas é a categoria de pessoalidade que nos interessa aqui. A noção de
pessoalidade pode se apresentar de diferentes modos e em diferentes
classes de palavras: nas desinências verbais, nos nomes e nos nomes
próprios, nos pronomes. Quanto a esses últimos, Benveniste é
categórico: “os pronomes pessoais são o primeiro ponto de apoio para
revelação da subjetividade na linguagem”. Os pronomes que remetem à
pessoa no discurso são eu/tu, e o ele destina-se à categoria de não-
pessoa. Benveniste estabelece também uma distinção de caráter
subjetivo entre as duas primeiras pessoas: a primeira pessoa possui
caráter subjetivo em oposição à segunda.
Com relação à categoria de pessoa (eu/tu), pode-se ainda afirmar
que há nela certa “polaridade”, uma vez que, ao proferir-se um “eu” nas
instâncias enunciativas, instala-se simultaneamente um “tu”, a quem o
sujeito dirige sua enunciação. Em Benveniste, porém, fica bem marcado
que essa polaridade não significa simetria, pois o “eu” vai sempre
exercer “uma posição de transcendência” com relação ao “tu”, muito
embora cada um desses termos não possa ser concebido sem o outro.
608

IV – Análise dos dados

Sob o aporte teórico que explicitamos acima, iremos analisar dois


fragmentos de cenas envolvendo crianças autistas diferentes. Nosso
corpus é formado por dados de interação entre uma criança autista, sua
mãe e sua prima (recorte 1) e outra criança autista e uma terapeuta da
clínica de linguagem. Os resultados mostram que, através da observação
dos movimentos da enunciação, é possível perceber regularidades e
singularidades da criança autista na linguagem.

Recorte 1 – Idade da criança: 18 meses.


Contexto: Clarissa está dançando na sala da sua casa, junto com uma
prima mais velha de cinco anos de idade. A mãe da criança filma a
situação. Na televisão passa um DVD de uma banda de forró eletrônico.

T* Gesto Fala Gesto Fala


(mãe) (mãe) (criança) (criança)
1 As duas criança
Clári, seguri não dançam na sala
ela. (rodando e
dançando)
2 chame ela,
Vanessa2. chame
ela, chame se não (sai do foco da
ela não vai filmagem)
3 criança maior bate
CLARISSA
as duas mãos
4 volta para a sala e
começa a dançar
imitando a prima
5 Clarissa se
Ah eu não vou aproxima da
filmar mais não, câmera e olha
ela não fica nu para ela. Sorri e Humm. Humm.
lugar certo. tenta pegar a
câmera com a mão
direita aberta.

2 Nome fictício.
609

6 Mãe pede que As duas crianças


Vanessa fique com Vá pra lá pra ela dançam e
Clarissa na sala ficar cum você rodopiam juntas
dançando na sala.
7 As duas crianças
rodopiam juntas.
Mãe pede para
Pare se não ela Clarissa rodopia
que a sobrinha
vai ficar tonta. com os braços
pare de rodopiar.
abertos, olhando
para o chão.
8 Clarissa para de
rodopiar, anda
Chame ela olhando para o
Vanessa chão, enquanto a
prima continua a
dançar.

9 Vá para
garagem, traga
ela para
garagem. Venha,
leve.

Como dissemos, todo uso da linguagem supõe a existência de um


arranjo necessário e condicionante para o ato enunciativo. Logo,
partindo dessa premissa, entendemos que, se a criança autista não se
mostra indiferente ao discurso do outro (no caso acima, esse outro está
representado pela mãe e pela prima da criança), de algum modo a
criança está na linguagem. Tal constatação ganha força se
considerarmos os gestos de dança, sorriso, troca de olhar etc., além de
respostas verbais (turnos 3 e 5).
Ora, superada a questão (“maniqueísta”) que buscou simplificar a
questão da linguagem no autismo em termos de “estar ou não estar”, a
discussão se volta para o modus operandi do funcionamento singular da
linguagem na criança autista e para os modos de subjetivação de uma
criança que busca a introspecção.
610

Percebe-se que nos gestos da criança há uma oscilação


considerável. A princípio, a criança parece estar à mercê das ações da
prima e das orientações da mãe, porém seus gestos começam a
denunciar o comportamento que assume diante das ações da prima. A
criança autista da cena acima, em nenhum momento, deixa transparecer
indiferença ao comportamento da mãe e da prima e suas ações
denunciam seu modo esquivo de se portar nas interações com o outro.
Mostraremos a seguir alguns dados de interação entre uma
criança autista e uma terapeuta, retirados de Maia (2007, p. 79) 3:

Recorte 2
Contexto interativo: A terapia é iniciada com a entrada da terapeuta e da
criança na sala. Há bolas coloridas espalhadas no chão. Ao entrar, Hugo
pega uma das bolas, e a terapeuta, outra.
Idade: 07 anos e 05 meses

Gesto (terapeuta) Fala (terapeuta) Gesto (criança) Fala (criança)


1 pega uma das bolas ((cantando)) ((aparentemente
e joga contra a jó:ga: bo:la’ indiferente à
parede não dê:xa caí’ terapeuta))
vou jogá: segura uma bola
bola(...) nas mãos e morde o
pito da
bola
2 pára de jogar e hu:gu:’ não continua mordendo o
olha para a podi butá a pito
criança bola na boca’ da bola
3 tira a bola da vô tirá’ sinão observa enquanto a
criança e remove você podi bola
o pito ingulí i si murcha
machucá’
4 aperta a bola, qui ventinhu continua
direcionando a bom’ né” olha observando a
saída de ar para u ventinhu’ bola murchar
o rosto da criança

3 Para ter acesso a uma leitura mais esmiuçada desses e de outros dados, recomendamos

ver: http://www.cchla.ufpb.br/posletr/Teses2007/Juliana.pdf, acessado em: 23 Fev.


2009.
611

5 depois que a bola ((cantando)) olha atentamente


esvazia, deixa-a no jó:ga: bo:la’ para a terapeuta
chão. Fica de frente não dê:xa caí’
para a parede e vou jogá:
recomeça o jogo de bola(...)
atirar a bola contra a
parede, usando outra
bola.
6 pega a bola murcha e ‘enchi ‘enchi
entrega-a à terapeuta
7 coloca uma mão na eu não sei
bola vazia e olha para inchê:’ vamu
a criança pedí a seu
edson’
8 olha para a terapeuta jó:ga: bo:la’
enquanto segura a bola não dê:xa
caí’ ((imita a
terapeuta))
9Continua olhando eu sei qui você
para a criança; qué jogá a
segura, junto com bola’ mas eu
ela, a bola vazia não consigu
inchê
10 alterna o olhar ‘enchi ‘enchi
entre a terapeuta
e a bola murcha

Podemos observar, na situação descrita acima, uma série de


comportamentos que nos fazem questionar a tese de que não há sujeito
no autismo. Percebe-se que nos gestos da criança uma oscilação
considerável. A princípio, a criança se mostra indiferente às ações da
terapeuta, mantendo sua atitude de morder a bola mesmo diante da
solicitação da terapeuta que pede para parar; já aí se vê uma opção da
criança em manter-se indiferente, mas não alheia, ao pedido da
terapeuta. Porém, logo em seguida, o garoto passa a trocar olhares com
sua terapeuta, chegando, inclusive, a entregar-lhe a bola que havia
murchado. Ora, estamos diante de um modo muito singular de se portar,
mas talvez seja errôneo pensar que não há nenhuma ação por parte da
criança. Do mesmo modo, podemos observar a singularidade das falas
do sujeito autista. No turno 08, verifica-se a ocorrência de uma fala
612

ecolálica em que a criança “imita” a terapeuta. As razões para esse


comportamento podem ser diversas e cabe ao terapeuta levantar
hipóteses sobre o fenômeno para entender a questão; nossas questões
com o autismo dizem respeito à fala, sobretudo para entender o modo
com que essa fala revela a singularidade do sujeito na língua; e, nesse
sentido, questiona-se: será que a criança recortou um fragmento
aleatório do discurso da terapeuta? Mesmo se afirmássemos isso (o que
seria bastante questionável), havemos de concordar que a criança
atribui uma entonação específica ao fragmento recortado e o atualiza em
uma situação adequada da enunciação. Se compararmos o número de
enunciados proferidos pela criança aos enunciados da terapeuta,
constataremos uma disparidade considerável, mas podemos também
pensar que a falta é sempre constitutiva do sujeito, seja ele dotado de
patologias ou não.
De fato, se tomarmos como parâmetro esta sessão, poderemos
dizer que nela há ausência dos indicadores de subjetividade apontados
por Benveniste, mas se a língua representa o aparelho formal da
enunciação e o fundamento da subjetividade está no exercício da língua,
ou seja, na enunciação, poderíamos pensar a singularidade do
movimento desse sujeito, que não faz uso dos primeiros pontos para
revelação da subjetividade na linguagem (os indicadores de
subjetividade), mas lança mão de outros dispositivos para se colocar na
língua. É fato que, tanto nesses fragmentos quanto em outras passagens
analisadas por Maia (2007), observa-se a ausência de indicadores de
pessoa na fala desse sujeito autista; tal fenômeno pode nos revelar algo
desse sujeito, que, ao perceber o caráter extremamente subjetivo desses
indicadores, prefere não fazer uso deles, esquivando-se da explicitação
de subjetividade ao mesmo tempo em que demonstra a peculiaridade de
suas produções enunciativas.
De fato, podemos perceber a especificidade das falas dessa
criança, mas parece improvável a afirmativa de que “não há sujeito no
autismo”, sobretudo se considerarmos suas produções à luz da
perspectiva enunciativa de Benveniste, como o fizemos aqui.
613

Infelizmente, a questão ainda carece de um olhar mais acurado e,


no campo da Aquisição da Linguagem, ainda são poucos os trabalhos que
têm se voltado para a investigação do modo de funcionamento da
linguagem e do sujeito no autismo, porém as pesquisas da área,
seguindo uma perspectiva linguístico-discursiva, tentam conceber o
sujeito autista não pela só falta (que lhe é tão marcada e, ao mesmo
tempo, constitutiva), mas pela singularidade de sua relação com a
linguagem.

V – Considerações finais

Há de se reconhecer que a entrada da criança autista nos sistemas


significantes é regularmente muito particular e que a ausência de uma
linguagem manifesta, nos moldes convencionais, constitui um dos
sintomas mais relevantes para terapeutas de diferentes inclinações
teóricas atestarem o delineamento do transtorno autístico. No entanto,
sob um ponto de vista linguístico-discursivo, cabe fazer alguns
questionamentos: será que o silêncio da criança autista indica sua
marginalidade na linguagem? O que dizer da linguagem quando esta
aparentemente falta no indivíduo? Ou ainda: o que dizer de um sujeito
marcado pela falta de explicitação de linguagem, de comunicação e de
interação? As respostas a tais questões podem ser dimensionadas sob o
ângulo da problematização daquilo que está implícito no ato
enunciativo.
A hipótese de um sujeito no autismo cede lugar à constatação de
que há pontos no processo de aquisição da linguagem e na constituição
subjetiva da criança que não são passíveis de observação, mas podem
ser vislumbrados a partir da enunciação. Se aceitarmos tal premissa,
seremos impelidos a reconhecer o caráter retroativo da presença da
criança na linguagem, pois para que cada locutor enuncie é preciso que
ele já ocupe um espaço na língua. Insistimos, pois, nesse aspecto
apriorístico que envolve o ato enunciativo: para ser ou para se propor
sujeito na enunciação, é preciso estar na linguagem. E na justa medida
614

em que o sujeito se constitui na linguagem, a linguagem descobre o


sujeito, expondo-o ao outro.
A linguagem “intima” a criança para a ocupação de um lugar nas
instâncias enunciativas. E é necessário sublinhar a natureza irreversível
dessa intimação, pois ela não admite recusa nem volta. Uma vez tocado
pela linguagem, o indivíduo não dispõe de condições para dizer não à
sua convocação, imerso que está em seu espectro significante. Buscando
a contrapartida dessa condição intimante da linguagem, a criança
autista investe na tentativa de não se mostrar ou mesmo não se propor
como sujeito. Nesse caso, a tentativa de recusa à linguagem e à sua
implicação subjetiva denuncia tão logo a singularidade com que a
criança autista está e se apresenta na linguagem. Em outras palavras, o
recurso à esquiva subjetiva acaba por denunciar a criança autista,
expondo o modo com que esta singularmente se constitui como sujeito
e se inscreve na enunciação.

REFERÊNCIAS

BENVENISTE, E. 1988. Problemas de Linguística Geral I. 2. Ed.


Campinas, SP: Pontes: Editora da Universidade Estadual de Campinas.
______. 1989. Problemas de Linguística Geral II. 2. Ed. Campinas, SP:
Pontes: Editora da Universidade Estadual de Campinas.
BIRMAN, Joel. Apresentação. In: CAVALCANTI, Ana Elizabeth; ROCHA,
Paulina Schmidtbauer (Orgs.). Autismos: construção e desconstruções,
São Paulo: Casa do psicólogo, 2001. 149 p.
KANNER, L. Os distúrbios autísticos do contato afetivo. In: CAVALCANTI,
Ana Elizabeth; ROCHA, Paulina Schmidtbauer (Orgs.). Autismos:
construção e desconstruções, São Paulo: Casa do psicólogo, 2001. 149 p.
MAIA, Juliana Costa. 2007. Um viés constitutivo do sujeito na terapia
de linguagem com uma criança autista. Dissertação de mestrado
inédita. UFPB.
NORMAND, Claudine. Benveniste: qual semântica? In: ______. Convite à
linguística. São Paulo: Contexto, 2009.
615

DISLEXIA, ESCOLA E EQUIPE MULTIDISCIPLINAR DE


TRATAMENTO

Diva Helena Frazão de Vasconcelos, UFPB

RESUMO: Este trabalho fundamentou-se na teoria sociointeracionista


de Vygostky e em trabalhos de pesquisadores como Kleiman (2007),
Perrenoud (2001), Ong (1998) e Marcuschi (2004). Objetiva
demonstrar os dados de uma pesquisa de Mestrado (UFPB), realizada
em 2011, sobre o nível de conhecimento dos docentes do 5º ano, de
Escolas Privadas e Públicas Municipais, de João Pessoa, PB, acerca da
Dislexia; as práticas pedagógicas desenvolvidas pela escola no
atendimento de alunos disléxicos; o apoio dado aos professores para
esse atendimento e a relação da escola com os membros da equipe
multidisciplinar de tratamento da Dislexia. Norteou-se pelo método
indutivo e se caracterizou como pesquisa básica, de enfoque qualitativo.
Como técnica, utilizou-se a entrevista com aplicação de questionários
estruturados, entre três grupos de participantes. O Grupo I composto
por vinte professoras de 5º do Ensino Fundamental I, de escolas
públicas e privadas; o Grupo II, por dez técnicos de escolas públicas e
privadas, e o Grupo III, formado pelos membros da equipe
multidisciplinar de tratamento da dislexia. A pesquisa apontou para um
nível de conhecimento deficitário sobre este distúrbio entre esse
segmento docente, motivado, principalmente, por inadequação
curricular nos cursos de formações acadêmica e continuada; para uma
relação estreita entre profissionais de saúde e a escola privada e sua
ausência entre aqueles e a escola pública. Pesquisas sobre a importância
da atuação do professor no acompanhamento de disléxicos são
praticamente inexistentes, apesar de toda a ênfase e informação
advindas de estudos sobre cognição apontarem para a importância da
mediação docente na superação de distúrbios dessa natureza no
processo de aquisição da lectoescrita.
616

PALAVRAS-CHAVE: Dislexia; Aprendizagem; Lectoescrita; Professor;


Equipe Multidisciplinar.

ABSTRACT: This work was based on Vygotsky’s interactionist theory


and researchers’ studies such as Kleiman (2007), Perrenoud (2001),
Ong (1998) and Marcuschi (2004). It aims to demonstrate the data of a
research to achieve the Masters degree (UFPB), held in 2011, among 5th
grade teachers in João Pessoa’s Private and Public Schools, Paraiba state
(PB). The research investigated teachers’ knowledge level about
Dyslexia; pedagogical practices developed by schools for dyslexic
students in attendance, the support given to teachers for this service
and the school relationship with multidisciplinary dyslexia treatment
team members. Guided by the inductive method, it was characterized as
a basic research with qualitative approach. The technique used was
interview with structured questionnaires among three groups of
participants. Group I consisted of twenty teachers of the elementary
public and private schools; Group II, ten technicians from public and
private schools, and Group III, formed by members of dyslexia
multidisciplinary treatment team. The research pointed to teacher’s
knowledge deficit about this disorder, due to inadequate curriculum
primarily; lack of this subject in post-graduation continued courses; for
a close relationship between health professionals and private schools
and its absence between them and the public ones. Research on the
importance of the teacher's performance in monitoring dyslexics are
almost nonexistent, despite all the emphasis and information from
studies on cognition point to the importance of teacher’s mediation to
overcome such disorders in the process of reading and writing
acquisition.

KEYWORDS: Dyslexia; Learning; Reading; Writing; Teachers;


Multidisciplinary Team.
617

INTRODUÇÃO

A Dislexia é um distúrbio associado a uma série de fatores como


déficit de atenção, impossibilidade parcial ou total de ler e escrever,
deficiência de memória e de aquisição da consciência fonológica, sendo
causa de fracasso e evasão escolar.
Esta pesquisa teve como fundamentação científica a teoria
sociointeracionista de Vygostky e trabalhos de autores contemporâneos
de mesma visão científica e relevância. Foram também utilizados
estudos sobre dislexia no âmbito da neurologia, psicologia,
fonoaudiologia e da psicopedagogia, teorias acerca da aquisição das
linguagens oral e escrita e trabalhos sobre a relação entre a escola e
profissionais dedicados a problemas de aprendizagem.
Para a coleta de dados, foram utilizados questionários dirigidos a
professores polivalentes, do 5° ano do Ensino Fundamental,
orientadores educacionais e psicopedagogos de escolas públicas e
privadas de João Pessoa, fonoaudiólogos, neuropediatras e fontes
bibliográficas.

A DISLEXIA DE DESENVOLVIMENTO

A dislexia é um distúrbio grave da aprendizagem, atinge um


grande número de indivíduos, mas é negligenciada no ambiente escolar
ou, na maioria das vezes, nem chega a ser identificada. Ocorre desde a
primeira infância, em crianças que não apresentam sinais de danos
cerebrais que justifiquem a presença das inaptidões características
desse distúrbio. Resulta daí que o disléxico é, errônea e comumente,
caracterizado como portador de uma menor capacidade intelectual, já
que a identificação do distúrbio ocorre geralmente nas salas de aula,
durante o processo de alfabetização e de outros letramentos formais.
De acordo com Valmaseda (2004, p. 78), em se falando sobre
dificuldades de linguagem, comumente se faz a diferença entre ‘atraso’,
que significa apresentar uma linguagem no nível de crianças mais novas,
618

e ‘transtorno’, que implica desajuste quantitativo e qualitativo no uso da


linguagem oral ou escrita.
Sob esse aspecto, é importante ressaltar que a dislexia não se trata
apenas de um ‘atraso’, mas de um ‘transtorno’. O disléxico, no ambiente
escolar, precisa de cuidados especiais, já que, nos portadores de
transtornos de linguagem, “os diferentes componentes linguísticos
(léxico, fonológico, morfológico, sintaxe) não apresentam um
desenvolvimento harmônico” (VALMASEDA, 2004, p.78). A
comunicação de qualidade e o estímulo ao uso da linguagem são atitudes
essenciais ao docente para que a criança supere seus problemas,
segundo a autora.
Apesar de detectada no interior da escola, a partir do contato com
a linguagem escrita, estudos e diagnósticos da dislexia “têm sido
elaborados com base em uma perspectiva que se afasta do
entendimento acerca do processo de construção dessa realidade
linguística”, pois sua descrição inicial “se mostra marcada
historicamente por um equívoco conceitual [...]”, por ter sido elaborada
pela área médica, distante do ambiente escolar. Este fato gerou,
certamente, essa dissociação entre o contexto escolar e a equipe
multidisciplinar de diagnóstico e tratamento (MASSI, 2007, p. 25-26).
A dislexia caracteriza-se, principalmente, por uma dificuldade de
leitura, escrita e soletração e também se confunde com outros distúrbios
da aprendizagem tais como dispraxia, déficit de atenção, disgrafia,
disortografia e discalculia, sintomas que podem fazer parte do quadro
disléxico ou aparecer isoladamente.

Dispraxia

A dispraxia é uma disfunção neuromotora, que afeta a execução


de movimentos ordenados. Não ocorrem lesões neurológicas, mas
alterações no esquema corporal e na orientação temporo-espacial que
interferem na aprendizagem, já que cérebro se organiza e se integra a
partir de experiências psicomotoras. A má lateralização e distorções
619

percetivo-espaciais são alguns dos sintomas da dispraxia, disfunções


cerebrais da organização proprioperceptiva que interferem na
capacidade de aprendizagem e na planificação de ações. “O problema
parece residir na parte entre o intelecto e o motor, entre o psíquico e o
motor” (FONSECA, 1995, p. 333-4).

Déficit de atenção

Déficit de atenção e hiperatividade são dificuldades que a criança


tem em ficar quieta, prestar atenção, distraindo-se facilmente por não
ser capaz de filtrar os estímulos. A criança está sempre em movimento,
fala muito, é impulsiva e, como não se fixa atenciosamente para olhar e
ouvir, apresenta baixos índices de aprendizagem. Wajnsztejn (2009)
explica que crianças e adultos podem ser afetados por quadros de
hiperatividade ou transtornos de atenção e que essas alterações são
diferentes da dislexia nos mecanismos de desenvolvimento, nos
sintomas e tipos de intervenção. Mas, vale ressaltar que 12 a 24% de
pacientes com dislexia (Interagency Committee on Learning Disabilities,
1987) também podem ser portadores desse transtorno.

Disgrafia

A disgrafia é uma alteração da escrita ligada a problemas


percepto-motores. Revela uma inaptidão na coordenação vísuo-motora
para a realização dos movimentos finos e precisos necessários ao
desenho das letras. A percepção espacial fica comprometida em relação
à folha de papel e à direção de cada grafismo da escrita, impossibilitando
o desenho das letras e, por conseguinte, a leitura do que foi escrito,
apesar de não existir erros ortográficos na sua composição (BOSSA,
[s.d.]).
Difere dos distúrbios próprios da dislexia porque a criança sabe
que letra usar, ou seja, domina a relação fonema/grafema, mas não
consegue construir o traçado próprio do símbolo. Não mantendo um
620

padrão gráfico, “o a que escreveu no início da palavra não é o mesmo do


fim” (BOSSA [s.d.]).

Disortografia

A disortografia define-se como um distúrbio da escrita, e os erros


são relativos à construção ortográfica da palavra, não a seu traçado, pois
a representação escrita de determinados fonemas ou grupos de fonemas
não foi assimilada. Difere da dislexia, mas pode estar associada ao
quadro do disléxico.
É um problema percepto-motor, por isso orgânico, em que a
memória visual é falha, ocorrendo dificuldade em acentuar palavras,
translinear, pontuar letras e frases, paragrafar, usar travessão, assimilar
e discriminar a forma, registrar e reproduzir a ortografia da palavra,
desenhos, figuras e também em descrever ambientes.
Em outras palavras, Bossa [s.d.] explica que a criança “vê, mas não
enxerga” e a regularidade dos erros na disortografia a distingue da
dislexia. A criança, orientando-se por pistas fonéticas, pode trocar,
regularmente, p por b, cujos pontos de articulação são os mesmos, ainda
n por u, devido à semelhança de orientação gráfica, mas não troca, por
exemplo, b por x, que não obedeceria a nenhum critério lógico ou
fonético, como ocorre na dislexia. Normalmente não aparecem
problemas ortográficos em palavras curtas e sílabas simples.

Discalculia

A discalculia, dificuldade em lidar com números, não é uma


doença nem caracteriza uma condição crônica. Em geral, está associada
à dislexia. Ocorre por falha, especificamente, “na conexão dos neurônios
localizados na parte superior do cérebro, área responsável pelo
reconhecimento dos símbolos”. O índice estimado de crianças em idade
escolar, portadoras de discalculia é de apenas 1% (SACRAMENTO,
2008).
621

Problemas com a escrita específicos da dislexia

A dificuldade em distingui-los é que alguns dos aspectos


característicos da disgrafia e disortografia também aparecem nas
construções gráficas produzidas pelos disléxicos. A especificidade é que,
na dislexia, não ocorre constância na produção da palavra nem na
escolha da letra representativa do fonema, ou seja, não havendo padrão,
a escolha da letra é arbitrária. Dessa forma, “a palavra jardim pode ser
escrita com g, j, f, t”, podendo resultar “tafig” (BOSSA, [s.d.]). A
inconstância no uso dos símbolos gráficos acontece com todas as letras,
impossibilitando a leitura.
As características específicas da dislexia são ausência de
regularidade no conjunto de letras, com eleição de conjuntos de
símbolos diferentes na produção da mesma palavra e de relação entre
grafema e fonema; uso aleatório das letras - as escolhas estão distantes
da ideal em forma e representatividade fonêmica, não havendo critério
lógico; ausência de padronização nos erros; ilegibilidade (BOSSA). Essa
inconstância ou impossibilidade de produção gráfica em relação à
padrão é uma característica fundamental num diagnóstico diferencial.
A impossibilidade de assimilar e manter o padrão significativo de
qualquer símbolo não acontece apenas com os da escrita. Segundo Bossa
[s.d], se estende a outros universos que exigem assimilação de
informações simbólicas. O disléxico terá dificuldade em interpretar
legendas, executar tarefas em jogos, como parar, avançar, pular casa, já
que não se concretiza a associação entre o símbolo e a operação a ser
realizada.

DISLEXIA E ESCOLA

Apesar de muitas sociedades contemporâneas, como a brasileira,


e seus sistemas educativos priorizarem a diversidade nos grupos-classe,
as vítimas de distúrbios de aprendizagem não recebem ainda o
622

tratamento adequado nas instituições de ensino, especialmente, nas


públicas.
A legislação brasileira trata do problema genericamente, e a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Lei Nº 9.394/96, embora não fale
especificamente sobre a dislexia, para que se protejam os portadores,
lhes dá suporte por estes se enquadrarem entre os que considera
“educandos portadores de necessidades especiais”.
Perrenoud (2006, p. 62) afirma que “a escolaridade é articulada
em sucessivos graus, e um plano de estudo global atribui a cada aluno
um programa que deve ser ‘suficientemente acumulado’ para autorizar
sua passagem para o grau seguinte”. Aquele aluno que não atinge esse
nível de assimilação é levado a repetir a série, juntar-se a colegas mais
novos, rever o mesmo programa, muitas vezes por diversos anos, fato
que leva o disléxico geralmente a optar pelo abandono escolar, por
reiteradas frustrações.
Apesar de, em algumas sociedades onde “um conjunto de classes
especializadas, de instituições e de clínicas acolherem crianças cujo
comportamento ou cujos distúrbios de desenvolvimento dificultam a
entrada ou continuidade nas classes comuns”, na imensa maioria, essas
crianças permanecem sem diagnóstico ou assistência ao longo da vida
escolar, ficando à margem do objetivo do sistema (PERRENOUD, 2006,
p.62).
No Brasil não é diferente. Sempre houve disléxicos nas escolas,
mas estas não foram feitas para eles, pois os objetivos, conteúdos,
metodologias, organização, funcionamento e avaliação nada têm a ver
com eles, embora em nenhum outro espaço, a dislexia e todas as
limitações se revelarem com tanta intensidade.

VYGOTSKY: LINGUAGEM E APRENDIZAGEM

Dissociar o pensamento da linguagem é uma tarefa impossível,


segundo Vygotsky (2008), e a inter-relação existente entre esses dois
processos constitui-se num dos problemas mais complexos da
623

Psicologia e muito ainda lhe é desconhecido. O autor considera o


significado um ato de pensamento, “no sentido pleno do termo”, e, sendo
parte inalienável da palavra, “pertence tanto ao domínio da linguagem
quanto do pensamento”, e nele vai ocorrer a unidade do pensamento
verbal, por ser este pensamento e fala (VYGOTSKY, 2008, p. 6).
O sistema de signos linguísticos permite a transmissão racional e
intencional de experiências e pensamento, sendo o mediador da
comunicação, da interação social, função principal da fala humana que é
o protótipo desse sistema mediador.
Muitos outros sistemas de símbolos, como os imagéticos, gráficos
e gestuais, permeiam os processos de comunicação. É de se conceber
que qualquer fator que interfira negativamente na transmissão/
percepção da fala ou da escrita leva a um problema de comunicação e,
consequentemente, de interação social e de aprendizagem.
Utilizando-se de símbolos gráficos, a linguagem escrita compõe
um poderoso sistema mediador da interação humana. Assim sendo, o
processo interativo autor/leitor, sofrerá a interferência negativa de
fatos que prejudiquem sua decodificação, ou seja, a adequada associação
do símbolo gráfico ao som ali representado, que promove a identificação
do significado da palavra, dificultando ou impedindo a formação do
pensamento verbal.
A dislexia, sendo um distúrbio de leitura, causado por percepção
deturpada de determinados fonemas e suas representações gráficas,
interfere demasiadamente na produção de sentido da linguagem escrita.
A associação inadequada entre símbolo gráfico e o som por ele
representado pode levar até a impossibilidade de sua produção, já que
pode resultar em elementos sonoros ou conjuntos fonêmicos que não
permitam a generalização, descrita por Vygotsky (2008) como “ato
verbal do pensamento”. Dessa forma, impedem a produção de sentido
(significado), por não fazerem parte da experiência do falante e não
refletirem “uma realidade conceitualizada” (ibid. 2008, p. 7) e, portanto,
incontextualizável.
624

Vygostsky (1934/1987), segundo Morato (2002), afirma que a


possibilidade de aprendizagem ou de pensamento sem linguagem
inexiste. Demonstra preocupação com sua aquisição e importância no
desenvolvimento dos processos cognitivos, concebendo-a como
mediadora na compreensão do real, cuja condição de sua aquisição é a
interação humana.
Considerando este fato, esta teoria nos dá subsídios para a
argumentação de que o papel do professor é fundamental no
acompanhamento e tratamento dos disléxicos, já que é na escola que os
processos interativos de aquisição do conhecimento são
necessariamente produzidos, as deficiências detectadas e onde residem
maiores possibilidades aplicação de métodos de adequação e superação.
Se a linguagem é mediadora por excelência na aquisição do
conhecimento e formação do pensamento interpretativo da realidade,
cabe ao professor o papel de principal mediador, no plano
sociointerativo, da aquisição da linguagem escrita. Este fato nos mostra
que não há sentido, consequentemente, em sua exclusão da equipe
interdisciplinar de acompanhamento dos disléxicos e torna essencial
seu conhecimento profundo acerca das dificuldades de aprendizagem,
em especial da dislexia.

A ESCOLA E OS PROFISSIONAIS DE SAÚDE

A equipe multidisciplinar que atende o disléxico é formada por


psicólogo, fonoaudiólogo e médicos, principalmente, das áreas da
otorrinolaringologia, oftalmologia e da neurologia.
Entre as áreas citadas, a Psicologia é a que mais perto se encontra
dos processos educativos, por ter os processos de desenvolvimento
psíquico e de aprendizagem e relacionamento humanos como objetos de
estudo. Aos fonoaudiólogos, apesar de se ocuparem da comunicação
humana, desenvolvendo métodos e técnicas que visam a minorar os
problemas de linguagem, não é permitido atuar no ambiente escolar. Os
625

médicos mantêm diálogo mínimo com a escola, sendo seu contato quase
que exclusivamente mantido com o paciente e com a família.

DADOS DA PESQUISA

A análise do quadro curricular de Licenciatura em Pedagogia da


UFPB mostrou que este abre caminhos, mas não prepara o aluno para
lidar efetivamente com um problema grave como a dislexia, quer seja
em relação aos fundamentos científicos, quer considerando processos
didáticos e de avaliação. Cabe ao docente, ao longo do exercício
profissional, aprofundar-se, caso seja de seu interesse ou exigência da
circunstância.
Nossa pesquisa ratificou não só o conhecimento insuficiente das
professoras acerca deste distúrbio, como também o fato de ser o pouco
caso que os cursos de graduação e de formação continuada fazem dos
problemas de linguagem a mais pertinente causa desse problema.
Os resultados mais consideráveis da pesquisa assim se mostram:

Grupo I: professoras polivalentes do 5º ano

Formou-se por dez professoras de escolas privadas e dez de


escolas públicas municipais.
Constatou-se que, nas escolas privadas, o conhecimento acerca de
dislexia de 80% dos professores coloca-se entre regular e insuficiente,
sendo o nível de insuficiência de 30%. Isto nos faz entender que não têm
condições bastantes para identificar um problema de aprendizagem
como dislexia, mas são capazes de distinguir entre atraso e distúrbio.
Nas públicas, o nível de desinformação sobe para 90%, variando
entre o não ter conhecimento algum até o nível regular. Mas o
percentual maior é de quase total desconhecimento, já que responde por
70%. Neste caso, não há como distinguir um atraso de um distúrbio.
Um dado significativamente negativo é que 40% das que se
colocam entre regular e insuficiente nas escolas privadas, e 60%, nas
626

escolas públicas, considerando seu nível de conhecimento entre não ter


conhecimento algum e regular, são egressas da UFPB.
Questionadas acerca do apoio recebido para o acompanhamento
de alunos disléxicos, percebemos que 100% das professoras das escolas
privadas afirmaram ter um corpo técnico atuante em contraste com os
resultados obtidos para as públicas.
Deve-se considerar, inclusive, que, para cada uma das instituições
de ensino público, existe apenas um Psicólogo para atender aos três
turnos, impossibilitando um atendimento contínuo devido à carga
horária prevista por lei. O mesmo acontece com Orientadores e
Supervisores.
Nas públicas, em 60% das respostas, percebe-se a ausência do
Orientador; 40% afirmam que a escola não tem Psicólogo e, em apenas
30%, constata-se a presença constante do Orientador. Este quadro gera
uma série de problemas para alunos e professores, e a falta de
assistência alimenta os baixos índices de rendimento e altos de evasão,
nas escolas públicas.
Em relação às práticas pedagógicas destinadas à superação de
problemas de aprendizagem, em especial à dislexia, nas escolas
privadas, 60% delas afirmam ser requisitadas e orientadas em relação
às práticas pedagógicas necessárias, e 30% dizem receber retorno das
informações referentes ao tratamento.
Na escola pública, 50% das professoras afirmam não serem
requisitadas nem orientadas em relação às práticas pedagógicas
necessárias e apenas 10% afirmaram receber orientação pedagógica.
As informações acerca do tratamento são também raras, visto que
os alunos, mesmo encaminhados a diagnóstico, não têm como fazer o
tratamento, já que não existe assistência pública para este fim. Alguns
professores recebem treinamento nas unidades de ensino onde
funcionam “salas de recursos”, mas estas se destinam a alunos com
dificuldades auditivas, visuais e motoras ou, generalizadamente, àquelas
apresentadas em sala, independente de diagnóstico médico.
627

Quanto à formação acadêmica, as professoras foram unânimes em


afirmar que os currículos acadêmicos têm déficits em seu conteúdo
programático no que concerne a dificuldades de aprendizagem.
Das vinte questionadas, 60% advêm na UFPB, e todas
confirmaram a deficiência do currículo acadêmico no trato das
dificuldades de aprendizagem. Isto torna a situação bem mais grave,
pois sabemos que é esta Instituição de Ensino Superior a responsável
pela formação da maioria de nossos professores polivalentes. O segundo
maior índice é o da UVA, com 20% das participantes da pesquisa.

Grupo II: corpo técnico

Foi composto por oito profissionais de escolas públicas, sendo


quatro Orientadoras Educacionais, três Psicopedagogas e uma Psicóloga
de escolas públicas, e duas de escolas privadas, uma Orientadora e uma
Psicopedagoga.
Questionadas sobre os entraves existentes para a superação das
dificuldades advindas da dislexia, 60% das participantes se referiram
diretamente à deficiente formação do professor, e 30% referiram-se
também à falta de diagnóstico.
O posicionamento das componentes do corpo técnico remete à
necessidade iminente de se formar melhor nossos docentes, já que, na
ausência de outro profissional, é sempre o professor o responsável pelo
acompanhamento dos alunos e pela solução de todos os problemas
presentes na sala de aula.
Este fato ratifica nosso posicionamento acerca dos currículos
acadêmicos e a responsabilidade de as Instituições de Ensino Superior
se voltarem, mais atentamente, às dificuldades de aprendizagem, já que
estas são comuns a todos os segmentos da sociedade,
independentemente de raça, faixa etária, condição social ou gênero.
Algumas, como a dislexia, simplesmente não têm cura, e seu portador
pode necessitar de ajuda por toda a vida. A falta de formação adequada,
além de privar o aluno da necessária assistência, leva, inclusive, a
628

generalizações que impedem, mais das vezes, seu encaminhamento para


uma necessária investigação.
Para a solução dos entraves à assistência do aluno em dificuldade,
foi sugerido pelas participantes das escolas privadas que as
coordenações, supervisão e gestão escolares devem ter informação
acerca de psicopedagogia e efetivar o treinamento dos professores; que
a escola deve oferecer ao professor formação continuada e condições de
trabalho adequadas, reduzindo o número de alunos por turma e
disponibilizando um professor auxiliar.
Em relação a este fato, as participantes da escola pública, por
unanimidade, referiram-se à formação docente como solução para o
problema. Este posicionamento demonstra o quanto os professores das
escolas públicas estão sozinhos na solução de seus problemas. Portanto,
formar bem este docente é condição básica para que se efetive um
mínimo de assistência aos portadores de dislexia e de outras
dificuldades de aprendizagem.
Em relação às medidas tomadas em presença de alunos em risco
de dislexia, as participantes de escolas privadas informaram que os
alunos são encaminhados para diagnóstico e que a escola dispõe de
atendimento diferenciado para os portadores de dificuldades em geral,
mas consideram o conhecimento do professor acerca da dislexia
insuficiente.
Quanto às escolas públicas, 100% das participantes afirmaram
não dispor de atendimento especial em suas respectivas escolas e
também classificaram o conhecimento do professor acerca da dislexia
insuficiente, ratificando os dados da pesquisa entre aquele grupo.

Grupo III: profissionais de saúde da equipe multidisciplinar

Nossa atenção se voltou para o órgão público oficial responsável


pela assistência aos portadores de necessidades especiais, em João
Pessoa, a Fundação Centro Integrado de Apoio ao Portador de
629

Deficiência (FUNAD), que atende os alunos advindos de escolas públicas


em geral.
Neste órgão, solicitamos que três Psicólogas, três Fonoaudiólogas
e duas Neurologistas respondessem a nossos questionários. Obtivemos
resposta de uma neurologista e duas fonoaudiólogas. As psicólogas não
acharam pertinente responder ao questionário visto este órgão oficial
não prestar atendimento terapêutico a portadores de dislexia,
Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) ou outras
dificuldades de aprendizagem que não estejam inseridas no que dispõe
o Decreto Nº. 6.571/2008, que normatiza o Atendimento Educacional
Especializado (AEE). A Assessoria de Educação Especial da FUNAD
informou que, em 2010, o Ministério da Educação e Cultura (MEC)
excluiu a dislexia e outras dificuldades de aprendizagem do programa
de assistência do Governo Federal e demais órgãos públicos.
Diante deste fato, vemo-nos diante de um problema ainda mais
sério que é o de incluir a dislexia no conjunto de necessidades especiais
amparadas pelo programa, pois a exclusão cria uma série de entraves a
todas as outras medidas sugeridas pelas participantes da pesquisa,
como mudança nos currículos acadêmicos e maior atenção nos cursos
de formação continuada às dificuldades de aprendizagem.
As fonoaudiólogas e neurologistas consideraram de fundamental
relevância a inclusão do professor na equipe de tratamento do disléxico,
por ele trabalhar a parte pedagógica do tratamento e influenciar seus
resultados, ratificando o posicionamento dos corpos técnico e docente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A dislexia é um transtorno de aprendizagem que pode atingir


níveis de leve a severo, que não tem cura e atinge um percentual alto da
população escolar, segundo dados da ABD. A inexistência de diagnóstico
e atendimento ou sua realização tardia leva o disléxico a desenvolver
uma série de outros problemas psicológicos, com consequências que
vão do fracasso e abandono escolar ao suicídio e à marginalidade.
630

Esse distúrbio de aprendizagem requer um atendimento


especializado e o professor, principalmente o do Ensino Fundamental,
tem um papel muito importante na identificação precoce do problema,
mas o conhecimento insuficiente acerca desse e de outros distúrbios
leva-o a ignorá-la ou confundi-la com preguiça, desatenção, desinteresse
e até incapacidade cognitiva. Nesse cenário, o aluno da escola pública é
a maior vítima, por falta de pessoal capacitado para a assistência nestas
instituições de ensino e pelo inexistente ou precário atendimento nos
serviços públicos de saúde e educação especial.
Outro dado significativo é que as escolas privadas mantêm uma
estreita relação com os profissionais de saúde da equipe
multidisciplinar de tratamento da dislexia, ao passo que os alunos das
escolas públicas mal têm quem identifique a situação de risco, o
diagnóstico nem sempre é realizado e, mesmo se confirmada a dislexia,
lhes é negado, por determinação de instrumentos legais, a garantia do
tratamento gratuito.
Se pretendemos que nossas instituições públicas de Ensino Básico
cumpram o papel a que social e legalmente se destinam, devemos, em
primeiro lugar, exigir que seus alunos, sem exceção, recebam o mesmo
tratamento assistencial para suas dificuldades e que os profissionais
educadores se capacitem para lhes ministrar práticas pedagógicas
adequadas a suas necessidades, a fim que não continuem sendo fonte de
exclusão social promovida por reiteradas frustrações e fracassos para
alunos e professores.
Incluir a dislexia no AEE e o professor na equipe multidisciplinar
de seu tratamento, fato que os levaria, obrigatoriamente, a uma melhor
capacitação, nos parecem ser atitudes bastante pertinentes para que os
disléxicos que não dispõem de recursos financeiros para estudar em
escolas privadas e/ou terem a assistência particular de saúde superem
suas dificuldades e possam se capacitar para o exercício pleno da
cidadania.
631

REFERÊNCIAS

BOSSA, Nadia A. Dislexia, disortografia e disgrafia. Coleção


Psicopedagogia: Transtornos de Aprendizagem. São Bernardo do
Campo, SP: Nitta’s Digital Vídeo. [s.d.]
FONSECA, Vítor. Introdução às dificuldades de aprendizagem. Porto
Alegre: Artmed, 1995.
MASSI, Gisele. Dislexia em questão. São Paulo: Plexus, 2007.
MORATO, Edwiges Maria. Linguagem e Cognição – as reflexões de L. S.
Vygotsky sobre a ação reguladora da linguagem. 2ª ed., São Paulo:
Plexus, 2002.
PERRENOUD, Philippe. A Pedagogia na Escola das Diferenças:
Fragmentos de uma sociologia do fracasso. 2 ed. SCHILLING, Cláudia
(Trad.). Porto Alegre: Artmed, 2001.
SACRAMENTO, Ivonete. Dificuldades de Aprendizagem em
Matemática: Discalculia. Salvador, 2008. Disponível em:
http://www.artigonal.com/educacao-artigos/dificuldades-de-aprendi
zagem-em-matematica-discalculia-860624.html/6/7/11. Acesso em:
7/7/2011.
VALMASEDA, Marian. Os problemas de linguagem na escola. In: COLL,
César et al. Desenvolvimento psicológico e educação: Transtornos de
desenvolvimento e necessidades educativas especiais. 2ed. Vol.3. Porto
Alegre: Artmed, 2004.
VASCONCELOS, D. H. F. Dislexia e escola: um olhar crítico sobre a
equipe multidisciplinar e sua relação com as práticas pedagógicas tendo
como foco o professor. 2011. 160f. Dissertação (Mestrado em
Linguística). UFPB/PROLING. João Pessoa. 2011.
VYGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. (trad.) Jefferson L. Camargo.
4ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
WAJNSZTEJN, Rubens. Avaliação, diagnóstico neurológico e achados em
neuroimagem nos distúrbios de aprendizagem e dislexias. In: ZORZI,
Jaime; CAPELLINI, Simone Aparecida (orgs.). Dislexia e outros
632

distúrbios de leitura – escrita: letras desafiando a aprendizagem. 2ed.


São José dos Campos, SP: Pulso, 2009.
633

RELEVÂNCIA E MARCAÇÃO DE NÚMERO: PROCESSAMENTO NA


INTERFACE GRAMÁTICA-PRAGMÁTICA, DIFICULDADE DE
APRENDIZAGEM E DÉFICIT ESPECÍFICO DA LINGUAGEM DE
ORDEM PRAGMÁTICA

Jacqueline Rodrigues Longchamps (PUC-Rio/LAPAL)


Letícia Maria Sicuro Corrêa (PUC-Rio/LAPAL)

RESUMO: Esta pesquisa visa investigar inferências baseadas em


contrastes gramaticais de definitude, codificados na categoria
funcional (D), como possíveis indicadoras do Déficit Específico da
Linguagem de ordem Pragmática (DEL-Prag) em crianças com
Dificuldades de Aprendizagem (DAp). Crianças com DAp e com DEL-
Prag compartilham dificuldades pertinentes à inferência e à
referência, sendo possível que as primeiras incluam as segundas. Esta
investigação fundamenta-se em um modelo de computação on-line –
que inclui uma interface gramática-pragmática (IGP) e princípios da
Teoria da Relevância – segundo o qual traços formais de categorias
funcionais codificam informação intencional relevante para
referência a entidades e eventos. A medida na qual tal informação é
codificada na produção e reconhecida na compreensão da linguagem
seria determinada pela habilidade das crianças em expressá-las e
reconhecê-las por meios gramaticais. A hipótese de trabalho é a de
que o DEL-Prag localiza-se na IGP e uma previsão é a de que crianças
com DEL-Prag teriam dificuldade em fazer inferências baseadas em
distinções intencionais relacionadas à referência. Um experimento foi
conduzido com crianças em idade escolar com o objetivo de verificar
se seriam capazes de tomar definitude e número como meio de inferir


O presente trabalho teve suporte da CAPES para 1a autora (bolsa de doutorado) e da
FAPERJ para a segunda (Projeto: DEL (Déficit Específico da Linguagem) e DAp
(Dificuldades de Aprendizagem): pontos em comum, especificidade no DEL e bases de
possíveis intervenções – FAPERJ CNE E_12/2011). O desenvolvimento do modelo on-
line aqui apresentado tem suporte da bolsa PQ-CNPq.
634

que haveria somente um exemplar de um item representado por um


DP definido singular e que o referente de um DP definido plural seria
o conjunto total de indivíduos de um dado tipo. Foi previsto que o
plural (ostensivamente marcado) seria de mais fácil identificação
para as crianças e que aquelas com DAp teriam particular dificuldade
em reconhecer tal informação pragmaticamente relevante na
morfologia de número. Os resultados foram compatíveis com as
previsões. A unicidade da referência (dependente de marcação
menos ostensiva: o traço [+definido] do artigo) foi difícil para todas
as crianças nesta idade, ao passo que a totalidade por meio da
morfologia do plural foi particularmente árdua para o grupo com
DAp.

PALAVRAS-CHAVE: Interface gramática-pragmática; Categorias funcionais;


Número; Déficit pragmático da linguagem; Dificuldade de aprendizagem;
Relevância.

ABSTRACT: This paper is concerned with inferences based on


grammatical contrasts of definiteness encoded by the functional
category (D) as a possible index of Pragmatic SLI (PraSLI) in a
population of Learning Disabled (LD) children. LD and PraSLI
children share difficulties in dealing with inference and reference,
being possible that the former includes the latter. This investigation
is grounded in a model of on-line linguistic computation – which
includes a grammar-pragmatics interface (GPI), and Relevance
Theory principles – according to which formal features of functional
categories encode intentional information that is relevant for
reference to entities and events. The extent to which this information
is encoded in language production and recognized in comprehension
would be determined by children’s ability to express and recognize
pragmatically relevant information by grammatical means. The
working hypothesis is that PraSLI is located at the GPI, and it was
predicted that PraSLI children would have difficulties in making
635

inferences grounded in grammatical intentional distinctions


pertaining to reference. An experiment was conducted with school
aged children aiming at verifying whether they would be able to rely
on definiteness and number as a means of inferring that there would
be only one token of the type presented by a singular definite DP and
that the referent of a plural definite DP would be the total set of
individuals of a given type. It was predicted that plural number
(ostensively marked) would be easier for children to rely upon, and
that LD children would have particular difficulty in recognizing such
pragmatically relevant information in the number morphology. The
results were compatible with the predictions. Uniqueness of
reference (dependent on a less ostensive marking: the [+definite]
feature of the article) was hard for all children at this age, whereas
totality identification by means of number morphology was
particularly hard for LD children.

KEYWORDS: Grammar-pragmatics interface; Functional categories;


Number; Pragmatic language impairment; Learning disability; Relevance.

INTRODUÇÃO

O presente estudo faz parte de um projeto mais amplo em que se


busca investigar a natureza do que se apresenta como um Déficit ou
Desvio Específico da Linguagem (DEL). Este é tomado como uma
síndrome, na qual habilidades linguísticas se veem afetadas em um ou
mais subdomínios (sintático, fonológico e lexical) sem que haja
comprometimentos cognitivos no domínio não verbal ou físico (tais
como déficits auditivos, disfunção do aparato fonológico, lesões
cerebrais, danos neurológicos, dificuldades emocionais, atraso global do
desenvolvimento, baixa inteligência não verbal, retardo mental e
desordens do espectro autista, dentre outros) (Leonard, 1998), que
possam explicar tais déficits/desvios. O DEL é diagnosticado via
critérios de exclusão (por meio de avaliações clínicas que excluem a
636

existência de quaisquer das condições acima descritas que possam


afetar o desempenho linguístico da criança como consequência) e de
inclusão (por meio de testes padronizados de habilidades linguísticas
empregados com o fim de identificar as áreas particularmente
problemáticas na linguagem infantil). Tal diagnóstico se mostra,
contudo, insatisfatório diante da multiplicidade de fatores que podem
estar envolvidos como, por exemplo, as comorbidades. Assim, a
pesquisa sobre o DEL visa a fornecer bases teóricas para que o DEL seja
previsível, possa ser entendido e que a possibilidade de comorbidades,
em função da especificidade de domínios ou de compartilhamento de
recursos cerebrais, seja considerada.

MAS, O QUE SERIA O DEL-PRAG?

Há diferentes posicionamentos teóricos relativos à especificidade


do DEL e à possibilidade de seletividade em suas possíveis causas e
manifestações:
DEL → como um déficit/desvio cuja especificidade está no fato de o
único tipo de problema apresentado pela criança ser de ordem
linguística, isto é, ela não apresenta nenhum problema de ordem
fisiológica ou cognitiva ou;
DEL → como um déficit/desvio específico do domínio da gramática
(especificidade de domínio), com manifestações seletivas nos próprios
subdomínios.
Considerando-se o segundo posicionamento acima mencionado,
Friedmann & Novogrodsky (2008; 2011), ao incluirem um DEL-Prag1
(Déficit Específico da Linguagem de ordem Pragmática) aos subtipos de
DEL, supõe-se que este estaria localizado na interface gramática-
pragmática. No entanto, o DEL-Prag é identificado pelas pesquisadoras
com o DPL (Déficit Pragmático da Linguagem), tal como caracterizado

1 Em inglês, PraSLI (Pragmatic Specific Language Impairment).


637

por Bishop (2000)2. Há que se considerar, contudo que na


caracterização do DPL, as dificuldades pragmáticas mostram-se mais
amplas, incluindo inferências e compreensão de metáforas, por
exemplo, o que vai muito além de uma interface gramática-pragmática.
De acordo com a literatura, tem-se, então:
Déficit Pragmático da Linguagem (DPL) (Adams & Bishop, 1989;
Norbury & Bishop, 2002; dentre outros).
Crianças capazes de produzir expressões bem formadas de um ponto de
vista sintático, embora inapropriadas para o contexto em que ocorrem.
Entre suas manifestações destacam-se dificuldade na elaboração de
inferências e na atribuição da referência (Norbury & Bishop, 2002;
Friedmann & Novogrodsky, 2008; 2011).
DEL-Prag = DPL (Friedmann & Novogrodsky, 2008, 2011).
Tal identificação entre DEL-Prag e DPL suscita alguns questionamentos
como, por exemplo: Por que renomear o déficit/desvio se se trata de
manifestações semelhantes? Seria possível identificar um distúrbio
localizado na interface gramática-pragmática? E em caso afirmativo,
seria tal distúrbio seletivo?
Na presente pesquisa, tem-se como hipótese de trabalho que o
DEL-Prag é mais restrito do que o DPL, ainda que este inclua aquele. O
DEL-Prag é aqui assumido como um comprometimento na interface
gramática-pragmática, cujas manifestações envolveriam, dentre outras
possíveis, dificuldade na elaboração de inferências dependentes de
contrastes gramaticais e na codificação gramatical e/ou no
reconhecimento de pistas gramaticais que expressam distinções
intencionais. Quanto ao DPL, considera-se este déficit/desvio mais
amplo do que seria o DEL-Prag e que o incluiria ou com ele faria
interseção.

2 Déficit Pragmático da Linguagem (DPL): “subtipo” ou “potencial subtipo” de DEL,


incorporando a noção de QI não verbal normal, ausência de etiologia orgânica e de
diagnóstico para o autismo em consonância com o critério de exclusão para o diagnóstico
do DEL (Leonard, 1998).
638

POSSÍVEIS CASOS DE DEL-PRAG

A identificação de crianças com DEL-Prag não é tarefa trivial.


Contudo, a população de crianças com Dificuldade de Aprendizagem
(DAp) pode incluir aquelas com DEL-Prag. Crianças com DAp exibem
uma discrepância significativa entre seu desempenho escolar e seu real
potencial, ainda que possuam capacidade intelectual média compatível
com sua faixa etária (Krull, Colvey & Jacobs, 1996). Dentre suas
dificuldades, podem-se citar a elaboração de inferências (Flanagan &
Harrison, 2005) e a atribuição da referência (Gerber, 1996). Tais
problemas são apontados também em crianças com DPL (Norbury &
Bishop, 2002; Friedmann & Novogrodsky, 2008; 2011). Diante desta
constatação, conclui-se que se a DAp incluir o DPL e o DEL-Prag for um
caso particular de DPL, então é possível que a DAp tenha como uma de
suas causas dificuldades de processamento na interface gramática-
pragmática. Este seria um primeiro critério para a identificação do DEL-
Prag.

A INTERFACE GRAMÁTICA-PRAGMÁTICA

A presente pesquisa fundamenta-se em um Modelo Integrado da


Computação On-Line (MINC) (Corrêa & Augusto, 2007; 2011), de base
minimalista (Chomsky, 2005), no qual a língua é vista como um sistema
cognitivo composto de um sistema computacional universal (conjunto
de operações recursivas responsáveis pela construção de estruturas
sintáticas) e de um léxico (composto de elementos, por sua vez,
formados de traços semânticos, fonológicos e formais) adquirido
mediante experiência linguística. É sobre os traços formais do léxico
(que detêm informações gramaticalmente relevantes) que o sistema
computacional universal opera.
O léxico encontra-se dividido em categorias lexicais e funcionais.
De acordo com o MINC, os traços semânticos e formais dos elementos
das categorias lexicais se relacionam aos sistemas conceituais, ao passo
639

que os mesmos traços dos elementos das categorias funcionais se


relacionam, mais diretamente, aos sistemas intencionais, responsáveis
pela constituição dos estados mentais que viabilizam as condições
iniciais para o estabelecimento adequado de referências a entidades e
eventos em uma situação de fala/escrita (Corrêa & Augusto, 2006;
2007). Assim, uma vez que as categorias funcionais são compostas
predominantemente de traços formais que codificam a
“intencionalidade” na língua, a representação resultante de uma
computação gramatical pressupõe uma Interface Gramática-Pragmática
(IGP). Logo, o uso da língua envolve a codificação linguística da intenção
do falante e da referência adequada à situação de fala/escrita.
A informação pertinente à referência se encontra codificada,
portanto, nos traços semânticos e formais dos elementos das categorias
funcionais do léxico como, por exemplo:

C (Complementizador) → codifica a força ilocucionária;


T (Tempo) → codifica a referência no tempo;
D (Determinante) → codifica a definitude;
Num (Número) → codifica a pluralidade.
...

Sendo as categorias funcionais D e Num de particular interesse no


presente trabalho.

COMPUTAÇÃO ON-LINE E TEORIA DA RELEVÂNCIA

O MINC assume que a computação em tempo real requer que os


itens lexicais sejam recuperados do léxico mental e este interage com os
sistemas conceituais e intencionais, conforme mencionado
anteriormente. Para a implementação de uma IGP no presente estudo,
adotou-se a integração de um componente cognitivo-pragmático ao
MINC, qual seja, a Relevância – Teoria da Relevância (TR) (Sperber &
Wilson, 1986/1995; 2001). Como pode ser observado na Figura 1
640

abaixo3, tal incorporação se dá pela inclusão da Relevância aos sistemas


intencionais que fazem interface com a língua:

Figura 6 – Interface gramática-pragmática.

Logo, os sistemas intencionais interagem com a Relevância e com


o conhecimento pragmático geral, como componentes cognitivos ou
módulos. É por meio do conceito de ostensão da TR, que é a propriedade
que um certo comportamento (verbal ou não) tem de externalizar uma
dada intenção, que uma articulação entre MINC e TR se torna possível.
A Relevância na IGP reside na codificação linguística da intenção, ou seja,
os traços formais das categorias funcionais do léxico codificam
propriedades pertinentes à referência. Têm-se, portanto:

Na produção:
 As distinções gramaticais veiculadas pelos traços formais são
compulsórias, na medida em que se encontram expressas na morfologia
da língua;

3Esta é uma representação simples baseada em Levelt (1989). O MINC, de fato, atua na
codificação gramatical, entendida no que diz respeito à computação sintática (notar a
árvore na área central da Figura 1).
641

 A morfologia marcada torna distinções gramaticais mais ostensivas,


sendo que ostensão adicional pode ser obtida por meios não gramaticais
(prosódia, gestos, etc.).

Na compreensão:
 O ouvinte deve reconhecer a informação morfológica pertinente à
intencionalidade e conduzir o processamento na IGP;
 O processamento na IGP é crucial para a obtenção do nível de
explicatura, isto é, um nível representacional dependente de
processamento inferencial, referência e enriquecimento.

PREVISÕES DECORRENTES DO MODELO MINC+TR

De acordo com o exposto, as previsões decorrentes da articulação


do MINC com a TR são as de que o DEL-Prag, déficit/desvio localizado
na interface gramática-pragmática, acarretaria dificuldades na
codificação gramatical de informação pragmaticamente relevante e/ou
no reconhecimento da informação morfológica pertinente à
intencionalidade na compreensão da língua. Em adição, na
compreensão, as crianças com DEL-Prag teriam dificuldade na
elaboração de inferências com base em distinções gramaticais
pertinentes à referência (construção da explicatura). No que concerne à
noção de ostensão, quanto mais ostensiva uma distinção gramatical,
mais fácil seria o processamento de inferências pertinentes à referência,
assim sendo, a morfologia marcada facilitaria a compreensão de
distinções gramaticais de ordem intencional. Do mesmo modo, o uso de
prosódia ostensiva facilitaria a compreensão de tais distinções.

UMA INVESTIGAÇÃO EXPERIMENTAL

Um experimento foi elaborado com o objetivo de verificar em que


medida crianças com DAp fazem inferências relativas à unicidade/
642

totalidade da referência, com base no traço [+definido] (em D) e


[+plural] (em Num) no DP.
As variáveis independentes foram: Grupo (DAp; CTRL) e Número
(singular; plural). Assim, um DP com traços [+definido; -plural] indicaria
que a totalidade corresponderia à unicidade do item em questão, ao
passo que um DP com traços [+definido; +plural] indicaria que a
totalidade corresponderia à pluralidade dos itens considerados. A
variável dependente foi o número de respostas SIM (respostas
esperadas tanto na condição singular como na condição plural).
Para a realização da tarefa, a criança precisaria ser capaz de
elaborar uma inferência conectiva baseada na informação verbal
correspondente a uma dada figura, como nos exemplos a seguir:

Condição singular:

Preâmbulo: Esse é Pedro e esse é o estojo escolar dele. Ele carrega um monte de coisas
nesse estojo. O que a gente normalmente carrega num estojo escolar? O que mais você
acha que pode ter aqui dentro? Agora, preste atenção. Pedro pegou uns objetos de seu
estojo. Ele pegou a régua4 e umas canetas.
Pergunta alvo: Ele pegou todas as réguas?

Pergunta de checagem da unicidade: Quantas réguas tinha no estojo?

4O traço [+ definido] de D implica que a régua é única no conjunto de itens dentro do


estojo.
643

Condição plural:

Preâmbulo: Esse é o José e essa é a gaveta da mesa de cabeceira dele. Mas olha quanta
coisa tem dentro! Que bagunça! O que você consegue ver? E o que mais você acha que
tem debaixo disso tudo? Agora, preste atenção. José tirou uns objetos da gaveta. Ele tirou
um chaveiro e os papéis5.

Pergunta alvo: Ele tirou todos os papéis?

Hipóteses e previsões:

Foi previsto que a morfologia ostensiva [+definido; +plural]


facilitaria a elaboração de inferências relativas à totalidade da
referência por parte das crianças e que, contrariamente, inferências com
relação à unidade da referência (exclusivamente dependentes do traço
[+definido]) seriam de difícil elaboração. Em outras palavras:

Inferir que: “Comeu as maçãs da caixa” implica que todas as maçãs


foram comidas seria mais fácil do que

5 O traço [+ definido] de D mais o traço [+plural] de Num implicam que a referência é


feita a todos os papéis na gaveta.
644

Inferir que: Havia apenas uma maçã na caixa com base em “Pegou a
maçã na caixa”.

Também foi esperado que essa dificuldade se mostrasse


acentuada no grupo com DAp.

MÉTODO:

Participantes:
22 crianças com idade variando entre 7;0 a 9;3, divididas em dois
grupos:
 DAp: 11 crianças com idade média de 8;1, sendo 6 meninos e 5
meninas;
 CTRL: 11 crianças com idade média de 8;1, sendo 6 meninos e 5
meninas.

Todas as crianças pertencem a famílias de baixa renda residentes


na Zona Sul do Rio de Janeiro.

Material:
 3 listas aleatorizadas com 16 estímulos, sendo 8 no singular e 8 no
plural, acrescidos de 8 distratores;
 3 arquivos PowerPoint com slides contendo as figuras
correspondentes a cada um dos estímulos e distratores;
 Um notebook Sony Vaio;
 Um gravador digital Panasonic, modelo RR-US511.

Procedimento:
Após uma breve fase de ambientação, as experimentadoras
diziam às crianças que estavam levando uma atividade para a escola
para ver se elas gostavam: um jogo com computador. Após o pré-teste,
tinha início a tarefa propriamente dita. As experimentadoras liam cada
estímulo e distrator (com preâmbulo e pergunta alvo) para as crianças
645

na presença de um slide contendo a figura correspondente. Tudo o que


as crianças precisavam fazer era responder SIM ou NÃO para cada
pergunta, sendo que na condição singular, as crianças precisavam
responder também à pergunta “Quantos(as)?” para checagem de sua
compreensão acerca da unicidade do item alvo. O tempo médio de
realização da tarefa, por criança, foi de aproximadamente 10 minutos.

Resultados e discussão:
Os dados foram submetidos a uma ANOVA 2 grupo (DAp; CTRL) X
2 número (singular; plural), na qual grupo foi um fator grupal e número,
um fator intra-sujeito. Foi obtido um efeito principal de número bastante
significativo (F(1,20) = 8,91 p < .007), demonstrando que a
compreensão da totalidade atrelada à referência mostrou-se mais
custosa na condição singular (cf. gráfico 1):

8,0

6,0
3,59
4,0
1,96
2,0

0,0
Singular Plural
Gráfico 1 – Médias de respostas SIM em função de
número (máx. score = 8)

Uma interação grupo-número significativa também foi obtida


(F(1,20) = 6,19 p < .02), indicando que não houve diferença entre grupos
na condição singular. Entretanto, o grupo controle tirou maior proveito
da marcação de número no que diz respeito à totalidade (t(20) = 2,11 p
< .05) (gráfico 2):
646

8,0

6,0 4,82
4,0 DAp
2,091,82 2,36
CTRL
2,0

0,0
Singular Plural
Gráfico 2 - Médias de respostas SIM em função da
interação grupo-número (máx. score = 8)

Análise dos vários padrões de respostas

Durante o levantamento dos dados, foram observados quatro


padrões de respostas fornecidos pelas crianças na condição singular,
conforme apresentados abaixo:

Pedro pegou uns objetos de seu estojo. Ele pegou a régua e umas canetas.
Ele pegou todas as réguas? → “primeira pergunta” (resposta esperada: SIM)
Quantas réguas tinha no estojo? → “segunda pergunta” (resposta esperada: 1)

Padrões de respostas:

a) SIM+(n=1) → resposta à segunda pergunta consistente com SIM. Este


é o par de respostas mais informativo com relação à compreensão da
unicidade da referência.
b) SIM+(n≠1) → resposta à segunda pergunta inconsistente com SIM.
Par de respostas pouco informativo com relação à compreensão da
unicidade da referência.
c) NÃO+(n=1) → resposta à segunda pergunta inconsistente com NÃO.
Contudo, este padrão de respostas pode ser informativo com relação à
unicidade da referência.
d) NÃO+(n≠1) → Ausência total de compreensão.
647

Diante de tais padrões de respostas, surgem os seguintes


questionamentos quanto às respostas mais informativas com relação à
unicidade:

1. Como seriam os resultados considerando-se apenas respostas


SIM+(n=1) na condição singular? Isto é, as respostas mais informativas
com relação à unicidade?
2. Como seria o desempenho dos grupos na condição singular tendo
como variável dependente as respostas “1” à segunda pergunta? Ou seja,
as respostas que demonstram um entendimento por parte das crianças
quanto à unicidade, mas não à totalidade?

Para responder ao primeiro questionamento quanto às respostas


mais informativas com relação à unicidade, os dados foram submetidos
a uma ANOVA 2 grupo (DAp; CTRL) X 2 número (singular; plural), na
qual grupo foi um fator grupal, número, um fator intra-sujeito e a
variável dependente foi o número de respostas SIM+(n=1). Não houve
efeito principal de grupo: este se aproximou do nível de significância
(p<.07). Foi obtido um efeito de número bastante significativo (F(1,20)
= 16,4 p < .0006), demonstrando que o número de respostas
consistentes na condição singular é pequeno, não havendo diferença
significativa entre os grupos (t(20) = 0,60 p < .56). Conclui-se que a
unicidade da referência não é inferida a partir do traço [+definido]
(gráfico 3):
648

8,0

6,0
3,59
4,0

2,0 1,14

0,0
Singular Plural

Gráfico 3 - Médias de respostas SIM+(n=1) em função


de número (máx. score = 8)

Para responder ao segundo questionamento quanto às respostas


mais informativas com relação à unicidade, os dados foram submetidos
a um teste t-student, no qual a variável independente foi grupo e a
variável dependente, o número de respostas “1” à segunda pergunta na
condição singular. Não houve diferença entre os grupos (p < .13, t =
1,18). Logo, a condição singular não pode ser tomada como informativa
em uma avaliação do DEL-Prag. Apenas a condição plural pode ser
tomada como índice de dificuldade na interface gramática-pragmática
(gráfico 4):

8,0

6,0
4,55
4,0 3,27

2,0

0,0
DAp CTRL
Gráfico 4 - Médias de respostas “1” à segunda
pergunta da condição singular em função de grupo
(máx. score = 8)
649

Conforme previsto, a morfologia marcada facilitou a compreensão


de distinções gramaticais de ordem intencional. Teria o uso de prosódia
ostensiva o mesmo efeito?

AVALIANDO O USO DE PROSÓDIA OSTENSIVA

Com o objetivo de avaliar em que medida o uso de prosódia


ostensiva poderia tornar a unidade/totalidade da referência de um DP
definido singular mais informativa, mais dois grupos de crianças foram
recrutados para a condição “com prosódia ostensiva”:

 DAp: 11 crianças com idade média de 8;1, sendo 8 meninos e 3


meninas;
 CTRL: 11 crianças com idade média de 8;1, sendo 6 meninos e 5
meninas.

Design:
Variáveis independentes: grupo (DAp; CTRL) e prosódia ostensiva
(sem, com), em que grupo e prosódia ostensiva foram fatores grupais.
Variáveis dependentes (seguindo o mesmo padrão de análise da
condição “sem prosódia ostensiva”):
a) número de respostas SIM;
b) número de respostas SIM+(n=1);
c) número de respostas “1” à segunda pergunta na condição singular.

Material:
A única diferença está no número de estímulos: 3 listas
aleatorizadas com 8 estímulos (os mesmos da condição singular do
experimento anterior), seguidos de 8 distratores.

Procedimento:
Idêntico ao da etapa anterior. A única diferença foi que, desta vez,
foi feito o emprego de marcação prosódica no determinante do DP alvo:
650

“Pedro pegou uns objetos de seu estojo. Ele pegou “a” régua e umas
canetas. Ele pegou todas as réguas? Quantas réguas tinha no estojo?”

Resultados e discussão:
Os dados foram submetidos a uma ANOVA 2 grupo (DAp; CTRL) x
2 prosódia ostensiva (sem, com), em que grupo e prosódia ostensiva
foram fatores grupais. Nenhum efeito ou interação foi obtido(a). Ao que
parece, nenhum dos dois grupos se beneficiou da marcação prosódica,
aqui tomada como uma informação ostensiva favorecedora da
interpretação da unicidade/totalidade dos itens em questão (cf. gráfico
5):
8,0

6,0

4,0 Sem
2,64
2,09 1,82
1,27 Com
2,0

0,0
DAP CTRL
Gráfico 5 – Médias de respostas SIM em função de
grupo nas condições sem e com marcação prosódica
(máx. score = 8)

DAp (sem prosódia ostensiva x com prosódia ostensiva) = t(20) =


0,56 p <.58
CTRL (sem prosódia ostensiva x com prosódia ostensiva) = t(20)
= 0,55 p < .59

Análise dos padrões de respostas mais informativos com relação à


unicidade

A marcação prosódica não favoreceu a intepretação da totalidade


de um conjunto unitário. Mas e quanto à interpretação da unicidade?
651

Repetiram-se, então, as análises relacionadas aos dois questionamentos


feitos na seção anterior quanto às respostas mais informativas
concernentes à unicidade.
Para responder ao primeiro questionamento (relacionado às
respostas SIM+(n=1)), os dados foram submetidos a uma ANOVA com
design experimental idêntico ao da análise anterior, isto é, 2 grupo (DAp;
CTRL) x 2 prosódia ostensiva (sem, com), em que grupo e prosódia
ostensiva foram fatores grupais. Novamente, não foi obtido nenhum
efeito ou interação significativo(a).
Para responder ao segundo questionamento (relacionado às
respostas “1” à segunda pergunta), os dados foram submetidos a uma
ANOVA com o mesmo design fatorial acima. Foi obtido um efeito
principal de grupo bastante significativo (F(1,40) = 11,1 p < .002),
particularmente devido ao fato de o grupo controle ter tirado maior
proveito da prosódia ostensiva na interpretação da unicidade (t(20) =
3,58 p < .002). Mais uma vez o grupo com DAp fica em desvantagem ao
grupo controle, uma vez que não parece atentar para a prosódia
ostensiva (gráfico 6):

8,0

6,0 5,41

4,0 2,91

2,0

0,0
DAp CTRL

Gráfico 6 - Médias de respostas “1” à segunda


pergunta da condição singular em função de grupo
(máx. score = 8)
652

Observa-se, portanto, que em se tratando de inferências de mais


difícil elaboração, quais sejam, aquelas dependentes exclusivamente do
traço [+definido], somente as crianças do grupo controle se beneficiam
da prosódia ostensiva como auxílio à compreensão.

CONCLUSÕES

O presente experimento revelou que a unicidade e a totalidade da


referência não são ostensivamente veiculadas na morfologia do
Português Brasileiro (PB). Em adição, foi verificado que a elaboração de
inferências com relação a tais noções com base no traço de definitude
mostra-se mais custosa na condição singular do que na plural.
Com relação a tais sutis distinções, conforme previsto, o
desempenho do grupo com DAp foi inferior ao do grupo controle. As
crianças com DAp se comparadas ao grupo controle, demonstraram
tirar menos vantagem da informação codificada no traço [+plural]
(marcado, portanto, mais ostensivo), prevista como facilitadora da
interpretação. Ademais, as crianças com DAp enfrentaram dificuldade
em levar em conta a prosódia ostensiva em auxílio à compreensão da
unicidade.
Em suma, as crianças com DAp se comportam de acordo com as
previsões feitas para o DEL-Prag, demonstrando dificuldades
relacionadas à interface gramática-pragmática e o modelo MINC+TR
permitiu que o fator ostensão/relevância fosse levado em conta na
caracterização de um possível comprometimento na mencionada
interface.
Contudo, para uma constatação sobre se a DAp pode incluir o DPL
e o DEL-Prag, uma próxima etapa será necessária, qual seja: investigar
se é possível distinguir crianças com dificuldade na interface gramática-
pragmática que não exibam dificuldades pragmáticas de outra ordem.
653

REFERÊNCIAS

ADAMS, C.; BISHOP, D. V. M. Conversational characteristics of children


with semantic-pragmatic disorder. I: Exchange structure, turntaking,
repairs and cohesion. British Journal of Disorders of
Communication, 24, p. 211-239, 1989.
BISHOP, D. V. M. Pragmatic language impairment: a correlate of SLI, a
distinct subgroup, or part of the autistic continuum? In: D. V. M. Bishop
and L. Leonard (Eds.). Speech and language impairments in children:
causes, characteristics, intervention and outcome. Psychology Press,
2000.
CHOMSKY, N. The Minimalist Program. MIT Press, Cambridge, Mass.,
1995.
CORRÊA, L. M. S.; AUGUSTO, M. R. A. Computação lingüística no
processamento on-Line: em que medida uma derivação minimalista
pode ser incorporada em modelos de Processamento? Texto para
discussão na sessão Inter-GTs (Psicolingüística e Teoria de Gramática)
do ENCONTRO NACIONAL DA ANPOLL, XXI., 19-21 de julho de 2006,
São Paulo, 2006.
______. Computação linguística no processamento on-line: soluções
formais para a incorporação de uma derivação minimalista em modelos
de processamento. Cadernos de Estudos Linguísticos. 49 (2), p. 167-
183, 2007.
______. Possible loci of SLI from a both linguistic and psycholinguistic
perspective. Língua, 121, p. 476-486, 2011.
FLANAGAN, D. P.; HARRISON, P. L. Contemporary intellectual
assessment: theories, tests and issues. 2.ed. Guilford Press, 2005.
FRIEDMANN, N.; NOVOGRODSKY, R. Subtypes of SLI: SySLI, PhoSLI,
LeSLI and PraSLI. In: A. Gavarró & M. J. Freitas (Eds.). Language
acquisition and development. Newcastle, UK: Cambridge Scholars
Press, 2008.
654

______. Which questions are most difficult to understand? The


comprehension of Wh questions in three subtypes of SLI. Língua, 121,
p. 367-382, 2011.
GERBER, A. Problemas de aprendizagem relacionados à linguagem:
sua natureza e tratamento. Porto Alegre, Artes Médicas, 1996.
KRULL, M.; COLVEY, K.; JACOBS, P. acobs, Paula. Learning disabilities
eligibility model: introduction and overview. California Assessment
System for adults with learning disabilities. Sacramento, CA,
California Community Colleges / PK Publications, 1996.
LEONARD, L. B. Children with specific language impairment. MIT
PRESS, 1998.
LEVELT, W. J. M. Speaking: From Intention to Articulation. Cambridge,
Mass.: MIT Press, 1989.
NORBURY, C. F.; BISHOP, D. V. M. Inferential processing and story recall
in children with communication problems: a comparison of specific
language impairment, pragmatic language impairment and high-
functioning autism. International Journal of Language and
Communication Disorders, vol. 37 (3), p. 227-251, 2002.
SPERBER, D.; WILSON, D. Relevance: communication and cognition.
Oxford: Blackwell, 1986/1995.
______. Relevância: comunicação e cognição. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2001.
655

DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO E DA LINGUAGEM DA


CRIANÇA COM SÍNDROME DE DOWN

Márcia Paiva de Oliveira 1 - UFPB


Liana da Costa Paiva2 - SINTEM
Graciara Alves dos Santos3 - UFPB
Rosilene Moreira Pantoja4 - UFPB

RESUMO: Este estudo analisa desenvolvimento do pensamento e da


linguagem de crianças com síndrome de down. A criança com a referida
Síndrome tem a linguagem oral com leve retardo, custando a iniciar a
verbalização oral, quando comparado à criança com desenvolvimento
típico. A linguagem humana se dá através de um processo complexo de
construção que tem forte ligação com o pensamento. Esse, a partir da
apreensão das informações, em contato com as capacidades mentais
superiores, como atenção, memória, percepção, sendo que os processos
centrais são modificações e combinações que ocorrem nas estruturas
cognitivas do indivíduo. Para um melhor entendimento desse processo,
discutimos alguns aspectos da reflexão vigotskiana sobre a linguagem.
Especialmente, interessa-nos refletir acerca das propriedades
semiológicas que Vigotski, em suas produções escritas, estabelece entre
linguagem e cognição. O objetivo geral é, portanto, identificar o nível de
desenvolvimento do pensamento e da linguagem de crianças com

1 Mestre em Educação pela Universidade Federal da Paraíba. Professora Assistente da UFPB,


do Curso de Graduação em Psicopedagogia. Pesquisadora e Extensionista Coordenadora do
GEFOPI - Grupo de Extensão em Formação de Professores e Inclusão. E-mail:
marciapaivaufpb@hotmail.com.
2
Especialista em Psicopedagogia, Licenciada em Letras. E-mail: lianapaiva@hotmail.com
3
Graduanda em Psicopedagogia pela Universidade Federal da Paraíba, Aluna Extensionista
e bolsista do Grupo GEFOPI - Grupo de Extensão em Formação de Professores e Inclusão. E-
mail: iarasilva@hotmail.com.
4
Graduanda em Psicopedagogia pela Universidade Federal da Paraíba, Aluna Extensionista
e bolsista do Grupo GEFOPI - Grupo de Extensão em Formação de Professores e Inclusão. E-
mail: rpantoja@hotmail.com.
656

síndrome de down apriori e aposteriori, a partir da intervenção


psicopedagógica. Trata-se de um estudo do tipo Pesquisa Ação, que não
só analisa o desenvolvimento da linguagem dos sujeitos da pesquisa,
mas intervém psicopedagogicamente para encontrar as respostas dos
indivíduos a partir de determinados estímulos. Verificamos que os
sujeitos do estudo que tiveram tratamento multidisciplinar de forma
precoce, tem a linguagem oral e escrita mais desenvolvida que os que
não tiveram a mesma oportunidade. Bem como, concluímos que todos
os sujeitos tiveram algum grau de desenvolvimento da linguagem e do
pensamento a partir das intervenções realizadas.

PALAVRAS-CHAVE: Linguagem. Pensamento. Cognição. Síndrome de


Down.

ABSTRACT: This study analyzes the development of thought and


language in children with Down syndrome. The child with the syndrome
that has oral language with a slight delay, costing initiate oral
verbalization, when compared to children with typical development.
Human language occurs through a complex process of construction that
has strong ties with the thought. This, from the seizure of information,
contact with the higher mental abilities, such as attention, memory,
perception, and the core processes are modifications and combinations
that occur in an individual's cognitive structures. For a better
understanding of this process, we discuss some aspects of Vygotskian
reflection on language. Especially, we are interested in reflecting on the
semiotic properties that Vygotsky, in their written productions, the
relation between language and cognition. The overall objective is
therefore to identify the level of development of thoughtand language in
children with Down syndrome priori and aposteriori from the
pedagogical intervention. This is a study of type Action Research, which
not only analyzes the development of the language of the subjects, but
intervenes psicopedagogicamente to find the answers of individuals
from certain stimuli. We found that the study subjects who had
657

multidisciplinary treatment at an early age, has spoken and written


language more developed than those who did not have the same
opportunity. And we conclude that all subjects had some degree of
development of language and thought from the interventions.

KEYWORDS: Language. Thought. Cognition. Down syndrome.

INTRODUÇÃO

Este estudo analisa o desenvolvimento do pensamento e da


linguagem de crianças com Síndrome de Down, no contexto do estágio
Supervisionado em Psicopedagogia da UFPB, em parceria com um
Projeto de Extensão do Departamento de Psicopedagogia que trabalha
com assessoria, intervenção psicopedagógica e formação de professores
para a escola pública inclusiva (PROEXT/PROBEX) e do PIVIC. Quando
optamos por realizar este estudo, que analisa o desenvolvimento do
pensamento e da linguagem de crianças com Síndrome de Down, o
fizemos em função do trabalho que as pesquisadoras já vêm
desenvolvendo com indivíduos com a referida síndrome, tanto
profissionalmente como academicamente no contexto do Estágio
Supervisionado do curso de Graduação em Psicopedagogia, como já foi
dito.
A opção específica pela Síndrome de Down se deu em função dos
comprometimentos de linguagem que tem essas pessoas e
especificamente a criança com a referida Síndrome, as quais tem a
linguagem oral com leve retardo, custando a iniciar a verbalização oral,
quando comparado à criança com desenvolvimento típico. Isso tem uma
explicação mais física que cognitiva, pois a anatomia da boca da pessoa
Down é diferenciada, uma vez que o céu da boca ou palato é mais
profundo que os normais e a língua é mais curta.
Portanto, o objetivo geral do estudo foi o de identificar o nível de
desenvolvimento do pensamento e da linguagem de crianças com
síndrome de Down a priori e a posteriori, a partir da intervenção
658

psicopedagógica. Os objetivos específicos foram: Identificar as


características do desenvolvimento da linguagem de crianças com
Síndrome de Down; Refletir acerca das propriedades semiológicas que
Vigotsky, em suas produções escritas, estabelece entre linguagem e
cognição; Analisar os possíveis benefícios da intervenção
psicopedagógica para o desenvolvimento da linguagem da criança com
síndrome de Down.

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo do tipo Pesquisa Ação, que não só analisa o


desenvolvimento da linguagem dos sujeitos da pesquisa, mas intervém
psicopedagogicamente para encontrar as respostas dos indivíduos a
partir de determinados estímulos. Para chegarmos aos dados almejados,
Interagimos com os sujeitos, de modo a verificar os níveis de linguagem
anteriores para compara-las posteriormente.
A Pesquisa-Ação busca o envolvimento dos pesquisadores e dos
sujeitos em análise, a partir da interação entre pesquisadores e
membros das situações investigadas. Thiollent (2011) define esse tipo
de pesquisa como pesquisa com base empírica, que seria concebida em
associação com a resolução de um problema coletivo de forma científica,
no qual os pesquisadores e os participantes estariam envolvidos de
modo cooperativo.
Foram realizadas oficinas psicopedagógicas coletivas para
verificar a linguagem dos sujeitos em interação com os seus pares e,
posteriormente, atendimentos individuais para confirmar os achados
anteriores.

A LINGUAGEM DA CRIANÇA COM SÍNDROME DE DOWN

A linguagem humana se dá através de um processo complexo de


construção que tem forte ligação com o pensamento. Esse, a partir da
apreensão das informações, em contato com as capacidades mentais
659

superiores, como atenção, memória, percepção, sendo que os processos


centrais são modificações e combinações que ocorrem nas estruturas
cognitivas do indivíduo, segundo estudos de Vigotsky.
Para um melhor entendimento desse processo, buscamos analisar
e discutir alguns aspectos da reflexão vigotskiana sobre a linguagem.
Especialmente, interessa-nos refletir acerca das propriedades
semiológicas que Vigotski, em suas produções escritas, estabelece entre
linguagem e cognição.
Segundo Vygotsky (2001), a linguagem receptiva está associada
ao plano semântico, enquanto a linguagem expressiva associa-se ao
plano fonético. Portanto, para que haja o desenvolvimento da linguagem
– característica das funções psicológicas superiores –, são necessárias
constantes interações sociais e verbais com os colegas, educadores e
familiares (VYGOTSKY, 2003).
O desenvolvimento da linguagem é dividido em duas áreas:
linguagem receptiva e expressiva. A linguagem receptiva é a
possibilidade de compreender palavras e gestos, enquanto que a
linguagem expressiva consiste na possibilidade de usar gestos, palavras,
símbolos escritos e outros signos para a comunicação. Devido à
trissomia do cromossomo 21, a criança com síndrome de Down tem
afetado o seu desenvolvimento na linguagem expressiva. No entanto,
durante a construção das habilidades linguísticas a criança com
síndrome de Down constrói a compreensão sobre o mundo ao seu redor,
porém, a manifestação desse entendimento por meio de palavras
faladas, exige mais tempo do que comumente acontece com as crianças
comuns. (GUNDERSEN, 2007).
O desenvolvimento da linguagem da criança com Síndrome de
Down (SD) se dá de forma diferenciada. Apesar dessas crianças com a
síndrome aprenderem o significado das palavras do mesmo modo que
as outras crianças, elas aprendem novas palavras e expandem seu
vocabulário mais lentamente. A maioria destas crianças tem
dificuldades de falar claramente, mostrando dificuldades fonológicas e
articulatórias, sendo necessário acompanhamento fonoaudiológico.
660

Para caracterizar melhor a SD, podemos dizer que a Síndrome de


Down é causada por uma anomalia genética (trissomia do cromossomo
21). Os infantes com Síndrome de Down têm um atraso no
desenvolvimento global, que se manifesta também na aquisição da
linguagem. O desenvolvimento da fala, bem como de todo o processo de
comunicação, depende de vários fatores orgânicos, ambientais e
psicológicos, que estão presentes desde os primeiros dias de vida.
O atraso na aquisição da fala e linguagem constitui um dos
maiores problemas encontrados pelos pais, cuidadores e especialistas
que lidam com crianças com Síndrome de Down. A assistência de um
profissional especializado nos problemas de comunicação
(fonoaudiólogo) é muito importante para auxiliar a família a verificar as
dificuldades da criança e orientar quanto à melhor forma de estimulá-la
em casa e na escola. É fato que muitos pesquisadores observaram que
os cuidados e a estimulação que a criança recebe no ambiente familiar
são muito importantes no aprendizado da fala, pois na maior parte do
seu tempo a criança está com a família. Contudo, as intervenções
precoces em ambientes que estimulem tal desenvolvimento são
indispensáveis. Entretanto, mesmo com a ajuda de profissionais e
estimulação no ambiente familiar, a criança com Síndrome de Down
necessita de um período bastante prolongado para comunicar-se com
um bom vocabulário e articulação adequada das palavras.
A habilidade dos bebês com Síndrome de Down para aprender a
falar pode ser afetada no seu primeiro ano de vida pela tendência de ter
habilidades comunicativas menos desenvolvidas e menor eficiência de
estabelecer situações de aprendizagem de linguagem com os adultos.
Isto significa menos experiência e menos oportunidades para começar a
entender o universo vocabulário da sua realidade. Mas, tudo é um
processo, e medida que a criança se desenvolve, ela começa a responder
aos gestos e palavras da mãe e de outras pessoas. Ela pode dar pegar,
mostrar e reagir aos objetos e pessoas. Dessa forma, a criança participa
do ambiente antes de ter o domino das palavras.
661

Com o passar dos meses, o bebê começa a emitir uma variedade


maior de sons, inclusive consoantes. Geralmente ele combina uma vogal
com uma consoante e acaba produzindo uma sílaba repetidamente
(bababababa). Esse período é denominado balbucio e é uma fase
importante no processo de desenvolvimento da linguagem dos bebes.
Através dessa ação, eles podem praticar o uso dos lábios, da língua e dos
músculos envolvidos na produção da fala, preparando-se para
realmente falar mais tarde.
Os bebês com Síndrome de Down são, aparentemente, menos
responsivos para as palavras ditas pela mãe e pelas pessoas do seu
cotidiano, assim como para estimulações não verbais, como sorrisos,
caretas, gestos. Normalmente eles sorriem e vocalizam menos do que os
outros bebês com desenvolvimento típico.
Entretanto, a partir de situações da fase pré-linguística, dos
gestos, aos poucos a criança começa a entender o significado da fala.
Para aprender a falar, a criança tem que perceber todos os sons feitos
pelos adultos e o significado de cada palavra. Assim, as palavras que ela
ouve mais frequentemente serão as que ela entenderá primeiro. Estas
palavras geralmente são nomes de pessoas, brinquedos e objetos que
são importantes na sua vida cotidiana. Nesse período em que a criança
se comunica através de uma palavra, é importante lembrar que no início
ela usa a palavra simplesmente para dar nome aos objetos, mas depois
passa a usar palavras únicas, querendo transmitir o significado de toda
uma sentença completa.
Depois que a criança passa pela fase de se comunicar através de
uma única palavra, ela começa a juntar duas palavras. Por exemplo,
carro – Davi (para designar que o carro é de Davi), comer – carne (para
pedir para comer carne), caiu – bola (para falar que a bola caiu), entre
outros. Contudo, não podemos precisar a época em que isso vai ocorrer,
depende dos estímulos, mas também do nível de comprometimento da
própria síndrome. Melhor explicando, quando a criança adquiriu um
vocabulário de mais ou menos 50 palavras, ela começa a utilizar duas
palavras-frase (duas palavras juntas significando uma frase). As
662

crianças com Síndrome de Down, embora usem o mesmo sistema de


construção de duas palavras, tendem a iniciar esta utilização quando
dominam um número maior de palavras isoladas (em torno de 100).
Elas também tendem a apresentar um vocabulário maior que as outras
crianças quando começam a utilizar frases com mais palavras. Mostram
mais dificuldades em “pegar” as regras gramaticais e sintáticas.
(MILLER, 1998).
Como parte do processo de desenvolvimento da linguagem, que é
variável de criança para criança, ela começa a usar sentenças maiores,
usado três, quatro e mais palavras. É nessa fase o domínio da linguagem
vai se tornando mais difícil para a criança com Síndrome de Down. As
dificuldades com a construção de sentenças e com uso de regras
gramaticais vão aumentando. Geralmente, ela entende muitos tipos se
sentenças interrogativas ou negativas, mas não consegue construí-las
sozinha. No tocante a alguns aspectos do desenvolvimento da fala, a
criança com Síndrome de Down é semelhante às outras crianças, porém
atingindo seu potencial um pouco mais tarde. Mas, geralmente, o
aparecimento da fala compreensível ocorre por volta dos dois anos de
idade.
Aos três anos, a criança começa a combinar as palavras para
formar pequenas frases, e mais tarde é capaz de organizar essas frases
em trechos maiores e mais compreensíveis. Mesmo quando há um bom
domínio da linguagem, ainda persistem dificuldades, quando é
necessário um nível de abstração mais elevado do diálogo.
É fato que a crianças com Síndrome de Down têm um
desenvolvimento variado e é grande a diferença em relação à linguagem.
Geralmente esse desenvolvimento é lento. Pois, muitos processos
complicados no cérebro estão envolvidos na habilidade para falar. Se o
cérebro não trabalha corretamente, aprender a falar torna-se uma tarefa
muito difícil. Uma vez que a criança inicia o domínio da linguagem,
começa a pensar em termos de palavras, pode raciocinar, relembrar e
fazer cálculos com palavras, tanto em voz alta como silenciosamente.
Pois, a memória de curto prazo é baseada em fala silenciosa e se
663

desenvolve à medida que a linguagem se desenvolve também. O


armazenamento e as lembranças da memória de longo prazo são
também dependentes da organização da informação com base nos
significados convertidos pela linguagem (agrupar itens em classes, por
exemplo).
É comum que as crianças com Síndrome de Down demonstrem
atraso cognitivo, que se caracteriza pela lentidão em adquirir
consciência do mundo, raciocínio e lembrar fatos. Este atraso cognitivo
pode ser consequência das dificuldades de aprendizagem da linguagem.
Qualquer atraso sério de linguagem resulta em aumento do atraso
cognitivo, pois a linguagem é uma importante ferramenta para aquisição
de conhecimento, entendimento, raciocínio e memória dos indivíduos,
com ou sem comprometimentos.
Todo esse complicador tem explicações: as crianças com
Síndrome de Down podem ter algumas características que as
predispõem às dificuldades na fala, tais como:
■ Hipotonia: a flacidez dos músculos faz com que haja um desequilíbrio
de força nos músculos da boca e face, ocasionando alterações na arcada
dentária, projeção do maxilar inferior e posição inadequada da língua e
lábios – com a boca aberta e a língua para fora. A criança respira pela
boca, o que acaba alterando a forma do palato (céu da boca). Esses
fatores, dentre outros, fazem com que os movimentos fiquem mal
coordenados e a articulação dos fonemas fique imprecisa e prejudicada.
■ Suscetibilidade às infecções respiratórias: essas infecções levam a
criança a respirar pela boca, aumentando a dificuldade para articular os
sons.
■ Pouca memorização de sequência de movimentos: a dificuldade para
aprender sequência de movimentos faz com que as crianças com
Síndrome de Down pronunciem a mesma palavra de vários modos
diferentes. Cada vez que dizem uma palavra é como se a estivesse
falando pela primeira vez.
Ao entrar na escola a criança com SD passa a ter maiores chances
de desenvolvimento da linguagem oral e da linguagem escrita. Mais
664

interações sociais são realizadas melhorando e aumentando o universo


vocabular. Já o uso da linguagem escrita produz uma variedade de
benefícios: símbolos e palavras podem ser usados para aumentar a
prática de produção falada e auxiliam a compensar os problemas de
memória auditiva.
Toda essa interação de linguagens na escola também auxilia a
aumentar o número das palavras articuladas e melhoram a habilidade
de produção espontânea de sentenças inteligíveis. As múltiplas
linguagens são benéficas para a melhoria da linguagem dos indivíduos,
independentemente de ser a criança com desenvolvimento típico ou
com dificuldades patológicas de linguagem, entre elas as com Síndrome
de Down. Mas, a escrita é uma ferramenta muito poderosa para ensinar
linguagem e produzir sentenças, gramática e sintaticamente corretas,
especialmente quando esse processo se dá de forma lúdica.
O uso do sistema de linguagem escrita produz uma variedade de
benefícios: símbolos e palavras podem ser usados para aumentar a
prática de produção falada e auxiliam a compensar os problemas de
memória auditiva mesmo nos primeiros estágios de aprendizagem de
leitura. Também auxiliam a aumentar o tamanho das palavras
articuladas e melhoram a habilidade de produção espontânea de
sentenças inteligíveis. A escrita é uma ferramenta muito poderosa para
ensinar linguagem e produzir sentenças gramática e sintaticamente
corretas, bem como para a ampliação das funções psicológicas
superiores.
As funções psicológicas superiores são caracterizadas como ações
que, a princípio, representam uma atividade que acontece e é
manifestada externamente através da utilização de signos.
Posteriormente, a ação é reorganizada e começa a acontecer
internamente na pessoa, atuando no desenvolvimento da inteligência,
da atenção, da memória e da linguagem.
Contudo, as crianças com SD são beneficiadas pela aprendizagem
da linguagem desde o nascimento. Os pais são os mais efetivos
professores de linguagem para as crianças. Eles devem ser encorajados
665

a fazer isto para, conscientemente, expandir o léxico da criança e, mais


tarde, a gramática e a sintaxe. As crianças que recebem intervenção
precoce, desde o nascimento, incluindo leitura e escrita nos anos
seguintes, podem ter melhor desenvolvimento cognitivo.
As crianças com Síndrome de Down, embora usem o mesmo
sistema de construção entre duas palavras, tendem a iniciar esta
utilização quando dominam um número maior de palavras isoladas (em
torno de 100). Elas também tendem a apresentar um vocabulário maior
que as outras crianças quando começam a utilizar frases com mais
palavras. Mostram mais dificuldades em “pegar” as regras gramaticais e
sintáticas. (MILLER, 1998).

ANÁLISE E DISCUSÃO DOS ACHADOS

Verificamos que os sujeitos do estudo que tiveram tratamento


multidisciplinar de forma precoce, tem a linguagem oral e escrita mais
desenvolvida que os que não tiveram a mesma oportunidade. Bem
como, concluímos que todos os sujeitos tiveram algum grau de
desenvolvimento da linguagem e do pensamento a partir das
intervenções realizadas.
Foram achados os seguintes dados:
• As crianças com Síndrome de Down do estudo demonstraram ter mais
dificuldades na gramática e sintaxe do que na aquisição do léxico.
• Observamos que a compreensão de vocabulário, gramática e sintaxe é,
usualmente, maior do que as habilidades produtivas sugerem.
• 82% das crianças com SD demonstraram melhoria na linguagem oral,
enriquecendo o vocabulário em até 68 %.

CONCLUSÃO

Verificamos que os sujeitos do estudo que tiveram tratamento


multidisciplinar de forma precoce, tem a linguagem oral e escrita mais
desenvolvida que os que não tiveram a mesma oportunidade. O que
666

denota a imperiosa necessidade de uma intervenção precoce, seja na


inclusão na Educação Infantil logo sendo, ou na busca de atendimentos
especializados.
A intervenção psicopedagógica é uma das ações
multidisciplinares que favorece o desenvolvimento da criança com SD,
entre outras, como a terapia fonoaudiológica. Constatou-se com esse
estudo que a intervenção psicopedagógica reduz as diferenças de
aquisição léxica.
Para estimular o desenvolvimento cognitivo e de linguagem,
podem ser necessárias intervenções diferentes em cada fase da criança.
No caso das crianças com síndrome de Down, a experiência clínica
mostrou que o desenvolvimento cognitivo foi mais eficiente do que o
desenvolvimento da linguagem. Além disso, durante o desenvolvimento
da linguagem, as crianças começam a entender antes de conseguir se
expressar com palavras, ou seja, a linguagem receptiva é mais lenta que
a expressiva.
Concluímos, portanto, que todos os sujeitos tiveram algum grau
de desenvolvimento da linguagem a partir das intervenções realizadas.
Quanto mais se estimule a criança com Síndrome de Down para superar
as dificuldades para aprender linguagem e fala, melhor equipada ela
estará para aprender e desenvolver suas habilidades cognitivas.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, F.; ALCHIERI, J.; LEITE, R.; LIMA, S.; SILVA, R. E SOUZA,
C. Síndrome de Down: estudo exploratório da memória no contexto de
escolaridade. Cien. Cogn. 14 (2), 35-46. (2009). Disponível em:
http://www.cienciasecognicao.org.
ALVES, Fátima. Para entender Síndrome de Down. Rio de Janeiro:
Wak, 2011.
ANDRADE, R. e LIMONGI, S. (2007). A emergência da comunicação
expressiva na criança com síndrome de Down. Pró-Fono Revista de
667

Atualização Científica, 19 (4), 387-92. Disponível em: http://www.


scielo.br/pdf/pfono/v19n4/en_a11v19n4.pdf.
DEMO, Pedro. Metodologia Cientifica Em Ciências Sociais. São Paulo:
Atlas, 1995.
FRANCO, M. A. S. Pedagogia da Pesquisa-Ação. Revista Educação e
Pesquisa, São Paulo, v.31, n.3, p.483-502, 2005. Disponível em: SCIELO
- Scientific Electronic Library On-line Disponível em: <http://www.
scielo.br>. Acesso em: 22 set. 2006.
GIL, A. C. Método e Técnicas de Pesquisa Social. 6ª ed. São Paulo: Atlas,
2008.
GUNDERSEN, K. (Org.). Crianças com Síndrome de Down: um guia
para pais e educadores. Porto Alegre: Artmed, 2007.
LAUNAY, C. e MAISONNY, S. Distúrbios da linguagem, da Fala e da Voz
na Infância. 2. ed. São Paulo: Roca, 1986.
TASCA, Stela Maura T. Reabilitação Aplicada à Deficiência Mental.
Campinas, SP: PUCC, s.d. (Apostila Curso de Fonoaudiologia).
THIOLLENT, Michel. Metodologia da Pesquisa-ação. São Paulo: Cortez,
2011.
TURATO, Egberto Ribeiro. Tratado da metodologia da pesquisa
clinico - qualitativa: construção teórico metodológica, discussão
comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas. 2 ed. Petrópolis:
Vozes, 2003.
VIGOTSKI, L. S. A Construção do Pensamento e da Linguagem. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
______. A Formação social da mente: o desenvolvimento dos processos
psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
668

MULTIMODALIDADE EM AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM:


PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante (UFPB/Cnpq)


Andressa Toscano Moura de Caldas Barros (UFPB/ CAPES)
Paulo Vinícius Ávila-Nóbrega (UFPB/UEPB)
Paula Michely Soares da Silva (UFPB/ CAPES)

RESUMO: Apresentaremos e discutiremos neste trabalho o conceito de


multimodalidade inserido nas pesquisas em aquisição da linguagem.
Entendemos, portanto, a multimodalidade como uma via de observação
e analise da língua(gem) através de elementos multimodais que
compõem esta (língua)gem, isto é, a fala, o gesto e o olhar
(CAVALCANTE, 1994; ÁVILA-NÓBREGA, 2010, BARROS, 2014).
Tomamos como base teórica para as análises multimodais a
classificação dos gestos proposta por McNeill (1985, 1992); a tipologia
prosódica de Barros (2012) e a discussão sobre envelope multimodal de
Ávila-Nóbrega; Cavalcante (2012). Além disso, discutiremos como
dispomos nossos dados para análise no software ELAN e
apresentaremos dados de uma díade mãe-criança analisados sob esta
perspectiva.

PALAVRAS-CHAVE: multimodalidade, aquisição da linguagem,


envelope multimodal, gesto, prosódia.

ABSTRACT: We aim at presenting and discussing the concept of


multimodality in language acquistion research. We understand
multimodality as a means of observation and analysis of language that
uses multimodal elements to form this language, which are speech,
gesture and gaze (CAVALCANTE, 1994; ÁVILA-NÓBREGA, 2010,
BARROS, 2014). We are based by the McNeill’s (1985, 1992) theoretical
perspective on gestures, Barros (2012) prosodic typology and the
concept of multimodal envelope proposed by Avila-Nóbrega (2010) and
669

Cavalcante (2012). Besides that, we discuss how we use the software


ELAN to analyse our data and also show data from a dyad using ELAN.

KEYWORDS: multimodality; language acquisition; multimodal


envelope; gesture; prosody.

1. INTRODUÇÃO

Neste artigo apresentaremos dados de aquisição da linguagem


analisados por um viés multimodal. Diante disto, é necessário destacar
que entendemos a linguagem como sendo multimodal, ou seja, é através
das modalidades de uso da língua (fala, gesto, olhar) coatuando na
produção linguística que teremos interação e consequentemente
comunicação. Assim, são muitos os trabalhos em aquisição que têm se
debruçado sob uma perspectiva multimodal de língua (CAVALCANTE,
1994; ÁVILA-NÓBREGA, 2010; BARROS, 2012; COSTA FILHO, 2011,
FONTE, 2011), tendo como objetos de a estudo atenção conjunta, os
gestos e a prosódia. Diante disso, faremos a seguir um apanhado teórico
de cada um desses elementos multimodais.

1.1 O GESTO COMO ELEMENTO MULTIMODAL

Antes de começar esta sessão, precisamos delimitar o que


chamamos de gesto. McNeill (1985, 2002) diz que a palavra gesto
recobre uma multiplicidade de movimentos comunicativos,
principalmente, mas não sempre, os de mãos e braços. Em um sentido
mais amplo, o gesto inclui não só movimento de mãos, mas também
expressão facial e troca de olhares (QUEK, et al, 2006). Para este
trabalho, privilegiaremos os movimentos de mãos e braços e assumimos
o risco de não ter uma análise mais rica e completa por deixar outros
fatores corpóreos de fora, embora assumamos que expressões faciais,
troca de olhar, e movimentos de cabeça componham, também, uma
gama variada de gestos.
670

Tendo dito isto, faremos agora um apanhado do que se tem na


literatura a respeito dos gestos, começando com a nomenclatura
proposta por Kendon (1982) e organizada por McNeill (1992, 2000) no
que ele chama de continuum de Kendon. São eles:

GESTICULAÇÃO – GESTOS PREENCHEDORES1 - EMBLEMAS –


PANTOMIMAS – SINAIS

A gesticulação é descrita como aqueles gestos que acompanham o


fluxo de fala. Sendo o tipo mais frequente no uso diário e cobrindo uma
gama de usos e variedades, é produzido principalmente com os braços e
as mãos, mas não é restrito a essas partes do corpo, a cabeça pode ser
usada e as pernas e pés também podem aparecer como um gesto. A
gesticulação combina tanto universais quanto traços linguísticos
específicos de uma comunidade.
Os gestos preenchedores são descritos por Mcneill como parte da
sentença. O termo ‘speech-framed gestures’ sugere um gesto que ocupa
um lugar na sentença, preenchendo um espaço gramatical, ao invés de
acompanhar o fluxo de fala, como a gesticulação. Já os emblemas são os
sinais convencionalizados, tais como a mão fechada com o polegar para
cima ou o sinal de OK. Estes são específicos da cultura, têm formas e
significado padrão e variam de lugar para lugar.
As pantomimas são gestos ou sequências de gestos que narram
uma história, simulam uma ação ou objeto, produzidos sem fala. E os
sinais, por sua vez, são palavras em uma língua de sinais como LIBRAS.
As línguas de sinais têm sua própria estrutura linguística, incluindo
padrões gramaticais, morfológicos, etc.
Temos, portanto, quatro instâncias no continuum: gesto-fala,
gesto-propriedades linguísticas, gesto- convenções (se o gesto está
presente ou não em dada cultura) e gesto-caráter semiótico (se o

1 Tradução nossa.
671

significado é determinado pelas partes ou pelo todo) como podemos ver


no quadro a seguir:

GESTICULAÇÃO GESTOS EMBLEMAS PANTOMIMAS SINAIS


PREENCHEDO
RES
Presença Presença Presença Ausência Ausência
Gesto-fala obrigatória de obrigatória de opcional de obrigatória de obrigatória de
fala fala fala fala fala
Presença de
Gesto- Ausência de Presença de Ausência de Presença de
algumas
propriedade propriedades propriedades propriedades propriedades
propriedades
s linguísticas linguísticas linguísticas linguísticas linguísticas
linguísticas
Gesto- Não Não Parcialmente Não Totalmente
convenções convencional convencional convencionais convencional convencional
Gesto-
Global e Global e Segmentado e Global e Segmentado e
caráter
sintético analítico sintético analítico analítico
semiótico

Tabela 1: Continuum de Kendon .

Ao mover da esquerda para direita pelo continnum vemos que a


obrigatoriedade de presença de fala diminui da gesticulação para os
sinais. Assim, a gesticulação é obrigatoriamente acompanhada da fala,
mas não tem propriedades linguísticas. Gestos preenchedores também
têm presença de fala obrigatória, mas se relaciona com a fala de uma
forma diferente, sequencialmente, ao invés de coocorrendo e tem papel
linguístico específico. Os sinais são obrigatoriamente ausentes de fala,
mas têm propriedades essenciais de uma língua.
A nomenclatura para gestos não termina no continnuum de
Kendon para McNeill. Em seus inúmeros trabalhos (1985, 1992, 200,
2002) ele também expõe uma nomenclatura sua (gestos icônicos,
metafóricos, dêiticos e beats2) para alguns gestos que estariam
delimitados como gesticulação ou preechedores no continuum.
Os gestos icônicos apresentam imagens de entidades e/ou objetos
concretos. Tido então, como um símbolo referencial. Já os metafóricos

2 A não tradução deste se dá pela falta de um termo que possua a mesma carga
semântica, pois a ideia que se tem é a de ritmo, batida, musicalidade.
672

não estão limitados à descrição de eventos concretos. Eles também


podem apresentar conteúdo abstrato. Em um gesto metafórico, um
significado abstrato é descrito como se tivesse forma ou ocupasse um
espaço. Os dêiticos são prototípicos e o mais conhecido é o apontar, que
identifica um objeto/ entidade em discussão. Os beats são assim
chamados porque a mão parece estar batendo ritmadamente, servindo
como marcador da fala. É interessante destacar que essas dimensões são
“fluidas” e podem ser achadas misturadas num mesmo gesto. Assim,
beats combinam com apontar e muitos gestos icônicos são também
dêiticos.
Tendo definido nossos dois objetos privilegiados para esta análise
(prosódia e gesto) nossa pergunta agora é: como é possível unir gesto e
fala numa mesma matriz de significação? É claro que eles pertencem a
modalidades diferentes de expressão, mas estão ligados em alguns
níveis e trabalham juntos para apresentar as mesmas unidades
semânticas. As duas modalidades não são redundantes, mas sim
coexpressivas, o que significa que elas dividem a mesma origem
semântica, mas são capazes de expressar informações diferentes (QUEK,
2002).
McNeill (1985,1992) diz que gesto e fala estão ligados a uma
mesma matriz de significação e que não podem se dissociar. Nossa outra
pergunta então é: por que não? Goldin-Meadow (2006) responde que
quando o gesto é produzido isoladamente e assume todo o fardo da
comunicação, ele toma forma de língua (como é o caso dos sinais no
continuum de Kendon). Entretanto, quando o gesto é produzido em
conjunto, dividindo o fardo da comunicação com a fala, ele toma uma
forma não-segmentada, imagística, transmitindo informação que não é
dita (na fala).

1.2 BREVE HISTÓRICO SOBRE OS GESTOS

Nesta seção faremos um breve levantamento sobre a história da


comunicação não-verbal discutidos por Mark Knapp e Judith Hall (1999,
673

p. 36-39). Este breve panorama nos apresentará o contexto de pesquisas


em que Adam Kendon esteve inserido, o que pode ajudar-nos a entender
melhor os pensamentos à época.
O interesse pela gestualidade emerge posteriormente à Segunda
Guerra Mundial, o que não significa que antes desse período não
houvesse interessados nesses estudos ou a produção de trabalhos a esse
respeito. Por exemplo, a obra Institutio Oratoria, de Quintiliano, é
considerada importante fonte a respeito dos estudos sobre os gestos e
foi escrita no século I.
O foco na comunicação não-verbal nunca foi interesse de uma
única área. Podemos encontrar menções sobre movimentos corporais,
ou até mesmo pesquisas aplicadas em obras como, por exemplo, A
expressão das emoções em homens e animais, de Charles Darwin, datada
de 1872. Além da biologia, outros estudiosos da antropologia,
linguística, filosofia, psiquiatria, psicologia, sociologia, ciência da
estética e outras manifestaram seus interesses para compreender os
sentidos que o corpo e seus movimentos podem apresentar.
Durante o início do século XX foram feitas análises isoladas da voz,
da aparência física, da vestimenta e da face. Pouca atenção era dada à
proxêmica, ao meio ambiente e à cinestesia e menos ainda se dava
interesse ao comportamento ocular e ao toque.
Em meados de 1950 houve um aumento significativo no número
desses trabalhos. Antropólogos como Ray. L. Birdwhistell e Edward T.
Hall foram responsáveis por aplicar alguns postulados da linguística aos
fenômenos gestuais atribuindo novos rótulos aos estudos do corpo e do
espaço e por iniciar um programa de investigação para cada área. Freud
e outros terapeutas já haviam se interessado, antes dos anos 50, por
sinais do corpo, das mãos e do rosto, mas a obra Nonverbal
communication: notes on the visual perception of human relations, do
psiquiatra Jurgen Ruesch e do fotógrafo Weldon Kees provavelmente foi
a primeira a usar em seu título a expressão “comunicação não-verbal”.
Essa publicação forneceu elementos teóricos adicionais quanto a
674

origens, uso e codificação do comportamento corporal e mais uma


extensa documentação visual do papel dos ambientes na comunicação.
Nos anos 1960 houve uma avalanche nos estudos na área e partes
específicas do corpo eram objeto de longos programas de pesquisa. Um
artigo de Paul Ekman e Wallace Friesen sobre origens, uso e codificação
do comportamento não-verbal parece ter sido a peça teórica clássica
desse período. O artigo em questão distinguia cinco áreas de estudo que
abrangem a maior parte da atual pesquisa desses autores: emblemas,
ilustradores, demonstrações de emoção, reguladores e adaptadores.
Na década de 1970 houve uma explosão de vendas de livros que
influenciavam o público americano com conclusões errôneas, segundo
Knapp e Hall (1999, p. 38), a respeito de como fazer uma venda, como
obter um parceiro sexual, perceber fingimento, afirmar superioridade
etc. Os leitores, com essas publicações, ficavam com a impressão de que
a leitura de sinais corporais e faciais era a chave do sucesso em qualquer
encontro humano e que nos tornaríamos totalmente transparentes se os
nossos sinais fossem desvendados. No entanto, apesar do modismo
americano desses estudos que se apresentavam no auge, estudiosos de
renome procuraram desenvolver pesquisas confiáveis a respeito do
comportamento corporal, ocular, facial, da pupila com o intuito de fazer
uma espécie de compêndio.
Já por volta de 1980 alguns estudiosos continuaram a
particularizar suas teses, enquanto outros se concentravam na
identificação das maneiras pelas quais uma variedade de signos não-
verbais atua em conjunto a fim de atingir objetivos comuns, como, por
exemplo, levar alguém a fazer algo por você, mostrar afeto, mentir etc.
Tornara-se claro que não poderíamos compreender inteiramente o
papel dos sinais não-verbais na obtenção desses objetivos se não
observássemos o comportamento verbal concomitante a esses sinais e
tentássemos desenvolver teorias sobre como diversos sinais verbais e
não-verbais interagem no processo interativo.
Sendo assim, após anos separando e isolando esses sinais
microscopicamente, os estudiosos gradualmente perceberam que esses
675

elementos funcionariam em um exercício conjunto. As pesquisas sobre


a comunicação não-verbal seguem sendo modificadas das seguintes
maneiras:
1 do estudo das situações não-interativas às interativas;
2 do estudo de uma pessoa a ambos os interlocutores;
3 do estudo de um único ponto do tempo a mudanças ao longo do
tempo;
4 de estudo de comportamentos únicos a estudos
multicomportamentais;
O novo perfil dos estudos sobre os gestos começa a amadurecer e
articular outras discussões, inclusive unificando outros elementos da
interação aos gestos. Nos Estados Unidos encontramos publicações de
alguns autores como David McNeill, quem discute a relação multimodal
da matriz gesto-fala, Charles Goodwin e seus trabalhos sobre gestos e
afasia, Cynthia Butcher e Susan Goldin-Meadow com seus estudos sobre
a produção de palavras com movimentos das mãos e Adam Kendon ao
discutir o sistema de funcionamento dos gestos e da fala.
Na Europa temos trabalhos na Suécia de John Laver e Janet Beck,
quem pesquisa a relação de elementos como voz, postura e gestos, na
França podemos encontrar trabalhos de Isabelle Guaïtella e Jacques
Boyer a respeito da relação da voz e dos gestos.
Um forte grupo também tem se fundamentado em estudos
multimodais e multissensoriais levando em consideração a interação
entre adultos, entre adultos e computadores e entre adultos e crianças.
O The MARCS Institute é desenvolvido na Universidade de Sidney e tem
como coordenadores Denis Burnhan, Kate Stevens, Chris Daves, André
van Schaik e Simeon Simoff.

2. MATRIZ GESTO-FALA EM AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM

Desde os anos de 1970 cientistas do desenvolvimento têm


investigado associações entre desenvolvimento linguístico e alguns
aspectos de atividades manuais, especialmente gestos comunicativos e
676

simbólicos (BATES, E. & DICK. F. 2002). Dessa forma, o estatuto do(s)


gesto(s) em aquisição de linguagem vem sendo discutido por diversos
autores (CAVALCANTE; 1994; ÁVILA-NÓBREGA, 2010; GOLDIN-
MEADOW, 2006, 2009; FONTE; BARROS; CAVALCANTE; SOARES, 2014)
e tem sido pauta de pesquisas atuais.
Para Goldin-Meadow (2009) gestos são atos comunicativos livres
para tomar formas que a fala não pode assumir, ou, para crianças nos
primeiros estágios de aquisição, formas que elas ainda não conseguem
articular no discurso. Em um momento do desenvolvimento em que as
crianças são limitadas ao que conseguem dizer, os gestos oferecem um
caminho adicional de expressão, expandindo a gama de ideias que elas
são capazes de expressar.
Sabemos que as crianças exploram a modalidade manual desde
muito cedo e, assim sendo, os gestos fornecem um caminho para as
primeiras palavras. É interessante perceber que as crianças raramente
combinam gestos com outros gestos, mas frequentemente combinam
gestos com palavras antes mesmo de começarem a combinar palavras
com palavras (GOLDIN-MEADOW & MORFORD, 1985).
Butcher e Goldin-Meadow (2000) observaram três meninas e três
meninos longitudinalmente durante a transição do estágio de uma
palavra para o de duas palavras. A ideia era explorar se gestos
comunicativos formam um único sistema em crianças, assim como
formam em adultos. O que acharam foi que inicialmente, os gestos
tendiam a ser produzidos sem palavras, e, em raras ocasiões, quando
produzidos com palavras, a fala era sem sentido e não sincronizada com
o gesto. No entanto, as duas características que definem a integração
gesto-fala em adultos, a coerência semântica e a temporalidade
sincrônica, foram achadas na comunicação infantil no momento e antes
do período de duas palavras. Essa pesquisa vem colaborar com a nossa
hipótese de que desde cedo gesto e fala estão unidos numa mesma
matriz de significação.
Portanto, tomamos a matriz gestuo-vocal como nosso objeto de
análise, por coatuar na linguagem engajando a criança na dialogia e
677

guiando-a para a aquisição. Propomos então uma tipologia prosódica,


considerando quatro momentos do funcionamento da fala na trajetória
linguística infantil: balbucio, jargão, primeiras palavras, holófrases e
blocos de enunciado (BARROS, 2012).
O balbucio é definido como a produção de sílabas que têm,
tipicamente, o formato consoante vogal, por exemplo [ma, da, ba]. tais
sílabas são muitas vezes repetitivas e ritmadas (LOCKE, 1995). Neste
artigo, consideramos o balbucio como uma produção vocal inicial da
trajetória linguística infantil.
Os jargões são definidos como longas sequências de sílabas que
contêm padrões de acento e entonação variados e variáveis, que
aparecem na fala infantil em torno dos 12 ou 13 meses de idade. Essas
produções vocais soam como enunciados completos que carregam
conteúdo de afirmações ou perguntas, ocorrendo, muitas vezes,
concomitantes a palavras reais. No entanto, os jargões não apresentam
conteúdo linguístico ou estrutura gramatical (DROMI, 2002).
Scarpa (2007) considera jargão quando o contorno entonacional
se estende a uma cadeia de sílabas ou um longo fragmento composto por
sílabas ininteligíveis. O balbucio tardio evolui para jargão quando a
entonação é considerada mais madura e os contornos são preenchidos
por sílabas tipicamente do balbucio, mas reconhecíveis como intenção
comunicativa pelos adultos, que sempre lhe atribuem significado de
uma frase ou sentença.
O terceiro momento do funcionamento da fala definido nessa
proposta é o das primeiras palavras reconhecíveis. Assim, consideramos
nesse período as produções infantis contendo enunciados de uma
palavra, que já nem são balbucios nem puramente jargões, visto que as
consideramos reconhecíveis na língua adulta e interpretáveis pelo
interlocutor.
As produções das primeiras palavras da criança indicam mudança
nos contornos entonacionais, que foram constituídos por mais variações
de altura. Essas variações de altura são reconhecidas como diferentes
intenções comunicativas: pergunta, afirmação, pedido, etc. e que são
678

recorrentes e produtivas e não mais ou menos efêmeras como os


balbucios e jargões. Nessas primeiras palavras, encontramos sequências
mais curtas em comparação às do jargão e um padrão silábico
reconhecido como fazendo parte de um léxico primitivo.
Definimos o período que chamamos de blocos de enunciado como
o momento em que a criança alterna a produção de holófrases com
enunciados completos. Notamos em nossos dados que nesse momento
do processo aquisicional a criança já é capaz de fazer pedidos, perguntas
e produzir respostas mais longas com significado completo, superando
os enunciados holofrásticos. Notamos que a partir de um ano e meio a
criança começa a arriscar-se nesses enunciados mais longos, juntando
duas ou mais holófrases.

3. METODOLOGIA DE TRANSCRIÇÃO E ANÁLISE NUMA PROPOSTA


MULTIMODAL

Para observamos os aspectos multimodais, utilizamos para nossas


transcrições e análise dos dados o programa ELAN (Eudico Linguistic
Annotator), que possibilita a criação de anotações, edição, visualização e
busca de anotações através de dados de vídeo e áudio simultaneamente.
Além disso, ele permite a transcrição e anotações das análises em linhas
denominadas de trilhas. A criação dessas trilhas e suas nomeações são
determinadas pelo pesquisador/transcritor. Essas trilhas permitem
fazer anotações de determinado registro no tempo exato, e se caso for
necessário fazer alguma alteração isso poderá ser feito sem nenhuma
perda de anotações anteriores ou subsequentes.
O ELAN é um Software que traz vantagens para qualquer pessoa
que necessite utilizá-lo, sendo ainda um software gratuito e que não
apresenta dificuldades no manuseio, além de apresentar vantagens no
processo de transcrição e organização de dados. Proporciona ainda ao
pesquisador a elaboração de novos quadros com mesclas das trilhas. As
trilhas geradas pelo programa a partir das transcrições podem ser
mescladas, criando novos quadros, denominadas neste trabalho
679

“quadros de mesclas”. As trilhas a serem mescladas são escolhidas de


acordo com a necessidade/foco da análise e permitem a visualização de
componentes multimodais de maneira concomitante.
Além disso, procuramos ilustrar via ELAN os momentos em que
os gestos e a produção verbal estão presentes nos momentos de
interação, corroborando assim com a base teórica deste trabalho.
Vejamos abaixo a ilustração do programa ELAN.

Para materialização da transcrição multimodal – o envelope


multimodal – exemplificamos com a criação de X trilhas: trilha da
produção gestual da mãe “Gest.MÃE”, trilha da produção verbal materna
680

intitulada no programa e no nosso trabalho como “Fala. MÃE”, criamos


também a trilha das produções gestuais da criança “Gest. BEBÊ” e trilha
da produção vocal da criança intitulada como “Fala.BEBÊ”. Segue abaixo
os exemplos os quadros de trilhas da mãe e do bebê:

PRODUÇÃO GESTUAL MATERNA

PRODUÇÃO VOCAL MATERNA


681

PRODUÇÃO GESTUAL DA CRIANÇA

PRODUÇÃO VOCAL DA CRIANÇA

Com a criação dessas trilhas é possível verificar a presença dos


gestos e da produção verbal em momentos de interação ressaltando o
papel indissociável da multimodalidade. O programa viabilizou a
exportação das transcrições gestuais e de fala presentes nas trilhas da
criança para a criação de um quadro geral, denominado ‘quadro de
mescla’, como já explicamos, em que foi possível apresentar o
cruzamento das trilhas e observarmos a ocorrência concomitante dos
gestos e da produção verbal constituindo a fluência multimodal em
momentos de interação. Vale ressaltar, que no quadro de mescla os
gestos ou a denominação do gesto aparecerão entre parênteses e a
produção verbal logo após os parênteses. Segue abaixo um quadro com
a trilha de mescla. Vejamos:
682

Esses componentes multimodais organizados em trilhas


compõem aquilo que denominamos de envelope multimodal, quando
ocorre a mescla das trilhas - gestos, produção vocal/oral, olhar, prosódia
– (ÁVILA NOBREGA; CAVALCANTE, 2012; 2013)

4. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Neste artigo apresentamos uma breve introdução aos estudos de


multimodalidade tendo como referência a matriz gesto-fala tal como
propõem Kendon (1982) e McNeill (1985; 2000), quando defendem o
caráter concomitante e sincrônico dessas instâncias multimodais. A
partir dessa noção basilar, construímos uma proposta de análise de
683

dados em aquisição da linguagem, em contextos interativos entre mãe e


criança, apresentando um modelo metodológico de transcrição e análise
que se compõem de trilhas de componentes/modalidades – gesto, olhar,
produção vocal, prosódia – que vão se estruturando como um envelope
multimodal e dando ritmo e cadência às interações entre o adulto e a
criança de modo a possibilitar um olhar mais acurado acerca do
fenômeno da aquisição da linguagem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ÁVILA-NÓBREGA, Paulo Vinícius. Dialogia mãe-bebê: a emergência do


envelope multimodal em contextos de atenção conjunta. Dissertação de
mestrado. João Pessoa: UFPB, 2010.
ÁVILA-NÓBREGA, Paulo Vinícius; CAVALCANTE, Marianne Carvalho
Bezerra. Aquisição de linguagem em contextos de atenção conjunta:
o envelope multimodal em foco. Revista Signótica. V. 24, N. 2. Jul-dez
2012. P. 469-491.
______. Aquisição de linguagem e dialogia mãe-bebê: o envelope
multimodal em foco em contexto de atenção conjunta. Revista
Investigações. V 25, N2. Jul – 2012. P. 157-183
BARROS, Andressa Toscano Moura de Caldas. Fala inicial e prosódia:
do balbucio aos blocos de enunciados. Dissertação de mestrado. João
Pessoa: UFPB, 2012.
BRANDÃO, Lavínia Wanderley Pinto. A fala materna dirigida ao bebê
surdo implantado: entre o “ouvinte suposto” e o “aprendiz de ouvinte”.
João Pessoa: UFPB, 2010. (tese de doutorado)
CAVALCANTE, Marianne Carvalho Bezerra. Rotinas interativas mãe-
bebê: constituindo gêneros do discurso. Investigações. Recife, 2009.
153-170.
FONTE, Renata Fonseca Lima da. O funcionamento da atenção
conjunta na interação mãe-criança cega. João Pessoa: UFPB, 2011.
(tese de doutorado)
684

KENDON, Adam. The study of gesture: some observations on its


history. Recherches Semiotique/Semiotic Inquiry 1982, 2 (1) 25-62.
______. Language and gesture: unity or duality? In: MCNEILL, D. (ed.)
Language and Gesture. Cambridge University Press. Cambridge, UK.
2000. 47-63.
KNAPP, Mark. L., HALL, Judith. A. Comunicação não-verbal na interação
humana. São Paulo: JSN, 1999.
LOPES, Juliana Costa Maia. Dinâmicas dialógicas singulares: a
multimodalidade na criança com autismo. João Pessoa: UFPB, 2011.
(tese de doutorado)
MCNEILL, David. So you think gestures are nonverbal? Psychological
Review. Vol 92 (3). 1985. 350-371.
______. Hand and mind: What gestures reveal about thought. Chicago:
University of Chicago Press (1992).
______. Introduction. In: MCNEILL, David (ed.) Language and gesture.
Cambridge University Press. Cambridge, UK. 2000. 1-10.
MCNEILL, David; QUEK, Francis; BRYLL, Robert; DUNCAN, Susan; et al.
Multimodal human discourse: gesture and speech. ACM Transactions
on Computer-Human Interaction, Vol. 9, No. 3, September 2002.
MELO, Ediclécia Sousa de. Gestos pantomímicos e produção verbal
na Aquisição da Linguagem. Monografia de Graduação. João Pessoa:
UFPB, 2014.
TOMASELLO, Michael. Origens culturais da aquisição do
conhecimento humano. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
SCLIAR-CABRAL, Leonor. Evolução das pesquisas em aquisição da
linguagem oral monolíngue no Brasil. IN: FINGER, I; QUADROS, R. M.
(org.). Teorias de Aquisição de Linguagem. Santa Catarina: Editora da
UFSC, 2008.
SILVA, P. M. S. Gestos e Produção Verbal: a fluência multimodal em
aquisição da linguagem. Dissertação de mestrado. João Pessoa: UFPB,
2014.
685

Você também pode gostar