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O ANALISTA E A MULHER1
Lacan tematiza o que Freud teria deixado para os poetas: a sexualidade feminina
‘não toda’ no falo, um gozo silencioso e enigmático. E, mesmo na vertente fálica, o
excesso de reivindicação histérica pode levar à infinitização e ao desvario. Além disso,
ao formular a oposição entre gozo fálico e para além do falo, Lacan franqueia a homens
e mulheres o acesso ao gozo feminino.
inclui a relação com o falo e com o gozo a mais, e onde a maioria das mulheres tende a
se situar.
Também entre os analistas, a proporção de mulheres é bem maior. Freud dizia que
a única contribuição da mulher à cultura teria sido a arte da tecelagem. Ora, esta parece
uma boa metáfora para o ofício do analista, trabalho de tecer redes significantes em
torno de furos que não se fecham, o que ao mesmo tempo faz ressaltar os espaços.
A loucura feminina envolve muitas vezes a criança. Esta pode ser chamada a
tamponar o mal-estar da mulher. Jacques Alain Miller chega a dizer que a questão da
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psicanálise com crianças é a questão da sexualidade feminina4. Lacan, que não atendia
crianças mas escutava mulheres5, diz que o filho, na relação com a mãe, “lhe dá,
imediatamente acessível, aquilo que falta ao sujeito masculino: o próprio objeto de sua
existência, aparecendo no real” 6. Mas tarde ele acrescenta que o homem toma a mulher
como objeto, mas que “ela se ocupa desses outros objetos pequeno ‘a’ que são as
crianças.”7
Se, como diz Lacan, as mulheres são as melhores analistas quando não são as
piores, as pioneiras da psicanálise com crianças pareciam saber disso. Por um lado,
atendiam os próprios filhos e interpretavam em excesso, o que as reafirmava num lugar
do Outro caprichoso que toma a criança como objeto e não suporta que algo lhe escape.
Mas, por outro lado, furaram os protocolos rígidos da época e subverteram o setting, se
abrindo a invenções. Aceitaram que a criança se movimentasse na sala; introduziram na
análise o brinquedo, esses “pequenos objetos” necessários, segundo Lacan, “para se
manter uma relação com a criança” 8; perceberam o valor do desenho, não só como
linguagem e associação, mas também como possibilidade de cifração do excesso de
gozo. E escutaram a criança, acreditando no saber que ela poderia produzir.
Compartilhavam assim da ideia de que o inconsciente sai da boca das crianças 9.
No Seminário 10 Lacan diz que a relação direta da mulher com o desejo do Outro,
que só passa secundariamente pelo falo, faz com que, “quando ela se dedica à nossa
nobre profissão, fique no lugar desse desejo numa relação que sentimos ser muito mais
livre”10. Antecipando o que desenvolverá mais tarde, Lacan sugere que a posição da
mulher ‘não toda’ no falo permite que ela se deixe guiar mais facilmente pelo desejo do
analista.
4 Miller, J. A. “La relation d’objet I”. Em: ECF, Lettre Mensuel n. 128, abril 1994.
5 Agradeço a Jeanne Marie de Leers Costa Ribeiro a observação.
6 Lacan, J. “Nota sobre a criança” (1969). Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p.
370.
7 Lacan, J. Seminário RSI, aula de 21 de janeiro de 1975. Inédito.
8 Lacan, J. “A direção do tratamento” (1958). Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p.
623.
9 “L’inconscient sort de la bouche des enfants” foi o tema da XXX Journée d’étude du Cereda, que se deu
Em suma, talvez seja fundamental cultivar tanto a afinidade quanto a tensão entre
o analista e a mulher: tirar consequências do que, nesse parentesco, favorece o trabalho,
mas sempre cuidando para que a função do analista não se esvaneça.
11Refiro-me aqui ao trabalho do CEPPAC (Centro de Estudos e Pesquisa em Psicanálise com Crianças),
coordenado por Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros, e às suas publicações (revistas Fort Da n. 1, 2,
3 e 4/5)