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O ANALISTA E A MULHER1

Maria Inês Lamy

A afinidade e a tensão entre a psicanálise e a mulher vem de longa data, desde o


início do percurso freudiano. Foram as histéricas que, testemunhando no corpo que a
medicina não dava conta de seu mal estar, provocaram em Freud o ímpeto a inventar um
novo campo de saber. Também elas – Dora, a jovem homossexual e outras – o fizeram
tropeçar diante das questões da sexualidade feminina. Ao tematizar o complexo de
Édipo, Freud a princípio confessa sua ignorância em relação ao trajeto da menina e,
quando finalmente teoriza sobre o Édipo feminino, assume o impasse ao qual chegou: a
saída fálica não leva a uma identificação feminina. Conclui sugerindo ao leitor, caso
queira saber mais sobre a mulher, que consulte os poetas. Mais tarde, à princesa Marie
Bonaparte, Freud faz a observação que se tornou famosa: “A grande pergunta que
permaneceu sem resposta e à qual eu mesmo nunca pude responder, apesar de meus
trinta anos de estudo da alma feminina, é a seguinte: o que quer a mulher?” 2 Além de
portadora da reivindicação fálica, a mulher para Freud se mantém assim um elemento
estranho, enigma que ao mesmo tempo busca ser decifrado e preserva o mistério. No
belo texto sobre os três escrínios, ao retratar a terceira mulher, cuja escolha se faz
presente em vários mitos e histórias, Freud sublinha o silêncio da personagem e diz que
“nos sonhos a mudez é uma representação comum da morte” 3. Parece aí aproximar a
figura da terceira mulher ao ponto para o qual não há significantes.

Lacan tematiza o que Freud teria deixado para os poetas: a sexualidade feminina
‘não toda’ no falo, um gozo silencioso e enigmático. E, mesmo na vertente fálica, o
excesso de reivindicação histérica pode levar à infinitização e ao desvario. Além disso,
ao formular a oposição entre gozo fálico e para além do falo, Lacan franqueia a homens
e mulheres o acesso ao gozo feminino.

Podemos falar em mulher ou apenas em feminino? Quando se refere à mulher,


Lacan muitas vezes parece estar se referindo à “parte mulher dos seres falantes”, que

1 Publicado em: EBP-Rio, Arquivos da Biblioteca n. 9, agosto de 2014.


2 Jones, E. Sigmund Freud, life and work. Londres: The Hogarth Press, 1974.
3 Freud, S. “The theme of the three caskets” (1913). Em: The Standard Edition, vol. XII. Londres: The

Hogarth Press, 1958 , p. 295.


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inclui a relação com o falo e com o gozo a mais, e onde a maioria das mulheres tende a
se situar.

Nessa perspectiva, como podemos pensar o fato de encontrarmos um número bem


maior de analisantes mulheres do que homens? O que cada mulher busca na
psicanálise? Uma demanda insaciável de amor; relações devastadoras; perdição e
desvario; tropeços nas identificações; aflições em relação ao corpo; um supereu obsceno
e feroz, às vezes pouco referido ao ideal simbólico – estas são algumas questões que
levam as mulheres à análise. Apesar de os homens também serem atingidos pelo
sofrimento, talvez as mulheres tentem mais colocá-lo em palavras. Às voltas com a
ausência de significante que a defina, a mulher busca circunscrever seu lugar através da
fala, tecer uma borda ao que não se inscreve.

Também entre os analistas, a proporção de mulheres é bem maior. Freud dizia que
a única contribuição da mulher à cultura teria sido a arte da tecelagem. Ora, esta parece
uma boa metáfora para o ofício do analista, trabalho de tecer redes significantes em
torno de furos que não se fecham, o que ao mesmo tempo faz ressaltar os espaços.

Em suma, a afinidade entre a mulher e a psicanálise vem de longa data, desde o


início...

E quando o analista trabalha com crianças? Nesse campo a proporção de


mulheres, em relação aos homens, é maior ainda. O que está em jogo no encontro do
analista com a criança?

A história da psicanálise está repleta de casos de analistas que atenderam os


próprios filhos. E de mulheres analistas que tomaram os filhos, ou crianças da família,
como pacientes. O episódio mais escabroso é o de Hermine Hug Hellmuth, educadora
austríaca e discípula de Freud que, contrariando a vontade de sua irmã que falecera,
decide criar o sobrinho e o submete a interpretações, em uma espécie de psicanálise
selvagem e forçada. Visando agradar ao mestre, relata suas observações como se fossem
de um paciente que comprovasse as teorias freudianas sobre a sexualidade infantil. O
menino, que dirá mais tarde que se sentia uma cobaia, quando adolescente reage de
forma brutal e mata a tia sufocando-a com uma mordaça.

A loucura feminina envolve muitas vezes a criança. Esta pode ser chamada a
tamponar o mal-estar da mulher. Jacques Alain Miller chega a dizer que a questão da
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psicanálise com crianças é a questão da sexualidade feminina4. Lacan, que não atendia
crianças mas escutava mulheres5, diz que o filho, na relação com a mãe, “lhe dá,
imediatamente acessível, aquilo que falta ao sujeito masculino: o próprio objeto de sua
existência, aparecendo no real” 6. Mas tarde ele acrescenta que o homem toma a mulher
como objeto, mas que “ela se ocupa desses outros objetos pequeno ‘a’ que são as
crianças.”7

Cabe então ao analista não reduplicar o Outro em sua vertente de capricho e


devoração.

Se, como diz Lacan, as mulheres são as melhores analistas quando não são as
piores, as pioneiras da psicanálise com crianças pareciam saber disso. Por um lado,
atendiam os próprios filhos e interpretavam em excesso, o que as reafirmava num lugar
do Outro caprichoso que toma a criança como objeto e não suporta que algo lhe escape.
Mas, por outro lado, furaram os protocolos rígidos da época e subverteram o setting, se
abrindo a invenções. Aceitaram que a criança se movimentasse na sala; introduziram na
análise o brinquedo, esses “pequenos objetos” necessários, segundo Lacan, “para se
manter uma relação com a criança” 8; perceberam o valor do desenho, não só como
linguagem e associação, mas também como possibilidade de cifração do excesso de
gozo. E escutaram a criança, acreditando no saber que ela poderia produzir.
Compartilhavam assim da ideia de que o inconsciente sai da boca das crianças 9.

No Seminário 10 Lacan diz que a relação direta da mulher com o desejo do Outro,
que só passa secundariamente pelo falo, faz com que, “quando ela se dedica à nossa
nobre profissão, fique no lugar desse desejo numa relação que sentimos ser muito mais
livre”10. Antecipando o que desenvolverá mais tarde, Lacan sugere que a posição da
mulher ‘não toda’ no falo permite que ela se deixe guiar mais facilmente pelo desejo do
analista.

4 Miller, J. A. “La relation d’objet I”. Em: ECF, Lettre Mensuel n. 128, abril 1994.
5 Agradeço a Jeanne Marie de Leers Costa Ribeiro a observação.
6 Lacan, J. “Nota sobre a criança” (1969). Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p.

370.
7 Lacan, J. Seminário RSI, aula de 21 de janeiro de 1975. Inédito.
8 Lacan, J. “A direção do tratamento” (1958). Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p.

623.
9 “L’inconscient sort de la bouche des enfants” foi o tema da XXX Journée d’étude du Cereda, que se deu

em Paris, em maio de 2010.


10 Lacan, J. O seminário, livro 10: a angústia (1962-3). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 202
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Isso se percebe na clínica com crianças. Muito antes da concepção da ‘prática


entre vários’, já trabalhávamos entre muitos, lidando com pais, escola e outros
profissionais. Sem uma rede teórica que nos amparasse, nos guiávamos pela escuta e
pelo desejo do analista e, com base em Freud e Lacan, tentávamos inventar uma
fundamentação11. Se, a partir do vazio identificatório, a mulher lança mão dos
semblantes, talvez seja a possibilidade feminina de deslizar pelos diversos semblantes
que esteja na base do trabalho com os pais, ou que possibilite a interlocução com outras
áreas. Também nas sessões com as crianças, o recurso aos semblantes se evidencia, já
que somos convocados a jogar o jogo, às vezes literalmente, permanecendo ao mesmo
tempo no lugar de analista. Estar aberto às surpresas, aceitar não saber, se deixar guiar
ou mesmo barrar pela criança, acatar que devemos nos calar ou que não podemos, em
certos momentos, nem olhar para a produção delas – todas essas atitudes parecem ter
afinidade com a posição feminina no sentido do consentimento com o lugar de objeto.

As invenções, no entanto, não são da ordem do capricho, já que têm um norte,


uma orientação. Foi o que me lembrou uma analisante de sete anos que, vendo entre
meus livros um postal com uma foto de Freud já idoso, me perguntou: "quem é esse
velhinho no retrato?" Devolvi a questão, supondo que ela respondesse que seria meu pai
ou meu avô. Mas ela me surpreendeu concluindo: "acho que ele é o dono disso tudo
aqui". Indicou assim que sabe que somos causados por algo além de nós, não
exatamente por velhinhos no retrato – seja Freud ou Lacan - mas pelo que eles nos
legaram: o objeto da satisfação como impossível. E é isso que garante que nada ou
ninguém pode preencher o vazio.

Em suma, talvez seja fundamental cultivar tanto a afinidade quanto a tensão entre
o analista e a mulher: tirar consequências do que, nesse parentesco, favorece o trabalho,
mas sempre cuidando para que a função do analista não se esvaneça.

11Refiro-me aqui ao trabalho do CEPPAC (Centro de Estudos e Pesquisa em Psicanálise com Crianças),
coordenado por Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros, e às suas publicações (revistas Fort Da n. 1, 2,
3 e 4/5)

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