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A NEUROSE OBSESSIVA

TEXTOS FEMININA HOJE*

Roland Chemama* *

Tradução: Francisco Settineri

RESUMO
A partir da constatação de um acréscimo no número de mulheres obsessivas
em relação ao de mulheres histéricas, a proposta deste texto é procurar e
aprofundar as razões que a justifiquem. Através da abordagem de um caso de
uma neurótica obsessiva, sempre perpassado por uma reflexão comparativa à
histeria, o autor trabalha temas cruciais à clínica das neuroses: a atualidade de
uma estrutura clínica, a transferência e a estrutura, a compulsão, o fantasma,
o falo, a inveja do pênis numa mulher, a forclusão do falo, o significante fálico e
a condução do tratamento.
PALAVRAS-CHAVE: neurose obsessiva feminina; compulsão; transferência;
falo

ABSTRACT
From the finding of an increase in the number of obsessive women in relation to
hysterical women, the proposal of this text is to search and enhance the reasons
behind it. Through the study of a case of obsessional neurosis in a woman,
always crossed by a comparative consideration with hysteria, the author
approaches crucial themes to the clinic of neuroses: the actuality of a clinical
structure, transference and structure, compulsion, phantom, phallus, penis envy
by a woman, phallus forclusion and the direction of treatment.
KEYWORDS: feminine obsessional neurosis; compulsion; transference; phallus

*
Este texto é uma tradução do trabalho apresentado na conferência em Caxias do Sul, em 12/08/
99, uma dentre as realizadas pelo autor no Rio Grande do Sul, reunidas sob o título Um
questionamento lacaniano na atualidade, e promovidas pela Associação Psicanalítica de Porto
Alegre, UNISINOS e Espaço de Estudos Psicanalíticos (Ijuí).
**
Psicanalista, membro da Association Freudienne Internationale, autor de Dicionário de Psi-
canálise Larousse (POA, Artes Médicas, 1995) e Eléments lacaniens pour une psychanalyse
au quotidien (publicação da A.F.I., Paris, 1994).
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A ntes de mais nada, é preciso, por certo, falar um pouco sobre a própria idéia de se
interrogar sobre a atualidade de uma estrutura clínica. Será que estruturas como a
fobia, a histeria, a neurose obsessiva e a perversão não conservam sempre os mesmos
traços, a mesma realidade?
Não o creio. E, por exemplo, para mostrá-lo a vocês inicialmente a partir de
uma questão que não é a da neurose obsessiva, parece-me que vocês compreendem
facilmente que a histeria possa não assumir, em todos os tempos e lugares, a mesma
forma e o mesmo sentido. Dizemos freqüentemente que a histérica, que colocamos
com bastante freqüência no feminino, a histérica, pois, interpela o mestre. Ela o inter-
roga sobre seu poder e seu saber, ela sublinha seus limites, em suma, ela procura um
mestre sobre quem reinar. Concebe-se então que isso pressupõe, precisamente, a exis-
tência de mestres que não sejam desacreditados de saída. Ora, em nossos dias, em um
número crescente de países democráticos, a desconfiança legítima que se pode ter
contra a opressão se transforma em crítica de toda posição de exceção, de maestria, de
autoridade. Isso é sem dúvida devido ao peso crescente do discurso da ciência, a ciên-
cia que substitui os discursos que, até aqui, precisamente, constituíam a autoridade,
mas que os substitui ao excluir, pelo menos aparentemente, toda posição de maestria.
No limite, um enunciado científico parece mesmo poder dispensar a dimensão da
enunciação. De qualquer modo, é claro que nessa nova configuração não encontrare-
mos mais na mesma escala uma histeria comparável à que Freud conheceu. Bem, não
falarei de histeria, mas vejam bem que a questão que vou propor está ligada a esta. Se
me interesso mais particularmente pela neurose obsessiva feminina, é porque, há al-
guns anos, acredito ter recebido um pouco menos mulheres histéricas e um pouco
mais mulheres obsessivas. Essa era também a impressão de muitos colegas, quando
das jornadas que tivemos há um ano em Paris, e cada um, à sua maneira, tentou com-
preender o porquê. É esse trabalho que vou procurar prolongar e aprofundar.
Minha segunda observação, antes de me engajar no essencial do assunto, é a de
que hoje evidentemente dispomos de numerosos textos sobre a neurose obsessiva, que
valorizam aspectos diferentes. Há os textos de Freud, sobretudo os centrados em histó-
rias de casos, em particular o “Homem dos Ratos”. Há os “Escritos” e sobretudo os
“Seminários” de Lacan, dado que este se ocupou muitas vezes da neurose obsessiva. E
depois, dentre todas as elaborações ulteriores, é certo que atribuo um valor particular
à que Charles Melman trouxe. Há, pois, coisas o bastante, e o risco, por certo, seria o
de querer reunir tudo, o risco seria o de dar uma apresentação totalizante, impecável
do ponto de vista teórico, mas eu diria tão obsessiva quanto o objeto que ela pretende-
ria descrever. É difícil, de fato, não falar da neurose obsessiva em termos obsessivos.
O obsessivo, como se sabe, tenta articular séries de enunciados que obedeceriam a
regras estritas de inferências. Ele procura, de uma certa forma, evitar toda ruptura
naquilo que diz, e, ao mesmo tempo, toda expressão de sua subjetividade. Pois bem, o

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risco seria o de repetir, no nível teórico, uma empresa desse tipo. O risco é o de propor
a vocês um discurso fechado, auto-suficiente, sem falha. Espero que suas observações,
suas reservas, eventualmente suas críticas possam assegurar-me de que não tenha sido
assim.
Por outro lado, para evitar um efeito desse gênero, não pretendo, de fato, res-
peitar totalmente o título que foi anunciado. Em vez de falar da neurose obsessiva
feminina como se falasse de um universal – todas as mulheres neuróticas obsessivas –
irei falar a vocês sobretudo de um caso que segui durante muitos anos. Nunca é sim-
ples, nem que seja por razões de discrição, falar de um caso. Entretanto é certamente
muito importante para nosso trabalho. Então, como falo aqui, longe de Paris, onde
atendi a pessoa de quem vou lhes falar, autorizo-me a falar dela um pouco mais em
detalhe e a tentar articular algo a partir desse caso. Serei levado, certamente, durante
este trajeto, a falar do obsessivo em geral, mas tentarei não perder de vista que falo
disso a partir de um caso singular.
Trata-se de uma mulher com cerca de quarenta anos – chamá-la-ei de Floria –,
que tinha vindo consultar-me depois de ter feito uma primeira análise com uma psica-
nalista, uma mulher psicanalista. Essa primeira análise tinha sido determinada pelo
seguinte fato: um dia em que Floria ia doar sangue, a pessoa a quem ela se dirigiu lhe
disse que ela não devia ter vindo. De fato, segundo seu dossiê, haviam-lhe indicado,
na vez precedente, que não se podia aceitar seu sangue, que ele estava contaminado.
Ela sabia bem que isso não era verdade, que nunca tinham rejeitado seu sangue, e
pôde, aliás, ter a certeza, dirigindo-se a outro lugar, de que não estava em absoluto
contaminada. Isso não impediu que, a partir desse dia, ela não cessasse de duvidar de
si mesma. Não teria havido, mesmo assim, alguma coisa desse tipo? Não poderia ser
que ela mesma tivesse esquecido algo desse gênero? Estaria doente? Ela não podia
afastar esse tipo de idéias.
Parece que seu primeiro tratamento teve, pelo menos, o efeito de acalmá-la.
Não obstante, não estava muito satisfeita com ele. Percebia bem, de fato, que sua
psicanalista se apressava demais em dar-lhe explicações, que esta lhe havia proposto,
de modo rápido e artificial, interpretações que ela teve dificuldade em integrar. Por
exemplo, para explicar por que a história do sangue tinha sido tão obsessiva, a psica-
nalista indicara que se tratava sem dúvida de uma questão edípica, porque é com os
pais que se partilha o mesmo sangue.
De fato, Floria não apresentava um quadro sintomático muito impressionante.
Salvo uma compulsão particular, de que irei falar longamente, pode-se dizer que o
resto era bastante banal.
Floria rapidamente me põe a par de sua neurose infantil: ela se recorda de ter
sido uma criança com muito cuidado em respeitar, além mesmo daquilo que se lhe
pedia, as regras que lhe eram prescritas, em particular as regras religiosas. Por exem-

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plo, tinham-lhe proibido beber antes de uma cerimônia religiosa. Ela tinha ampliado
esse interdito. Não apenas não devia beber, mas não devia engolir sua saliva. E, quan-
do ela mesmo assim o fazia, sentia-se impura. Por essa idade, ela acusava suas bonecas
de se sujarem fazendo pipi e as punia. Mais tarde, ela se tornou muito escrupulosa,
sempre ansiosa diante da idéia de ter feito algo que não devia. Por outro lado, ela sofria
daquilo que chamamos de fobia de impulsão. Ela se sentia compelida, quando se depa-
rava com um bebê, a jogá-lo pela janela e temia não poder impedir-se disso. Mas, com
mais freqüência, seus escrúpulos referiam-se a coisas menores da vida quotidiana. Por
exemplo, ela era professora e, quando distribuía doces, devia cuidar para não prejudi-
car ninguém. Em suma, não irei demorar-me em todos esses pormenores.
Seria conveniente, em contrapartida, que nos detivéssemos um pouco mais
longamente sobre seu estilo na transferência. Antes de mais nada, é a partir disso que
podemos colocar da melhor maneira, para cada uma das pessoas que se endereçam a
nós, a questão da estrutura. Sabemos assim que, na histérica, a questão do desejo do
Outro está sempre muito viva. Isso se traduz, no tratamento, por uma atenção constan-
te aos significantes que podem vir do psicanalista. Uma histérica não cessa de interpe-
lar seu psicanalista, de interpretar seus atos e suas palavras, e é nessa forma de diálogo
que se dá o tratamento. Seu modo de se defender do encontro com sua própria falta é
perscrutar a falta no Outro. Por sua vez, o obsessivo tem antes a tendência a anular a
dimensão do Outro. Parece-me que é por isso que ele tenta fazer entrar tudo em sua
lógica, em seu discurso bem organizado. Esse era o caso de Floria. Acrescentemos
que, quando, apesar de tudo, algo um pouco vivo se arriscava a ser dito, ela procurava
anulá-lo, mostrando indiferença em relação a seu psicanalista, em relação ao trata-
mento e a tudo o que se poderia dizer no tratamento.
Gostaria, por outro lado, de acrescentar uma observação quanto ao estilo de
diversos obsessivos no tratamento. Tornou-se banal se oporem os obsessivos às histé-
ricas, no que concerne à regularidade, o respeito dos horários, etc. Porém, como uma
outra jovem obsessiva me dizia um dia, se ela respeitava a regra é porque, no fundo,
não acreditava em absoluto que a regra pudesse valer para ela própria. Era sem dúvida
assim, no caso de Floria.
Chego, entretanto, àquilo de que Floria mais falou durante seu tratamento. Ela
o chamava de seu fantasma. Era, de fato, uma compulsão a fazer algo, compulsão da
qual se defendia, mas à qual ela cedia com muita freqüência. É preciso aliás reconhe-
cer que a passagem ao ato é mais freqüente na neurose obsessiva do que às vezes se
acredita. Quanto ao termo de fantasma, ele não era, no fundo, tão mal escolhido. Digo
isso não no sentido em que ele fosse feito de um cenário imaginário que proporcionas-
se um certo gozo, mas porque se organizava em formulações que eram bastante próxi-
mas daquilo que chamamos de fantasma fundamental, ou seja, ele permitia isolar a
relação do sujeito com o objeto causa de seu desejo.

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De que se tratava? Floria sentia-se periodicamente compelida a se tornar gor-


da. Ela punha sob suas roupas fraldas ou absorventes higiênicos ou ainda outras coi-
sas. E depois ela se olhava no espelho, e encontrava um estranho gozo em olhar seu
corpo assim deformado. A partir disso, o cenário podia transformar-se um pouco. No
começo, tratava-se sobretudo de ir comer, exageradamente, em um restaurante popu-
lar, sob o olhar zombeteiro de operários da vizinhança. Mais tarde, o cenário se fixou
um pouco sob uma forma diferente. Ela devia ir às lojas, endereçar-se a vendedoras
um tanto idosas e pedir para provar roupas visivelmente pequenas, em relação ao ta-
manho que ela se tinha conferido. Também aí ela devia provocar ou supor um olhar
zombeteiro. É em relação a este último cenário que ela havia verdadeiramente passado
ao ato, aliás com bastante freqüência.
O que dizer dessa compulsão? E, sobretudo, o que a própria Floria chegou a
dizer disso? Pode-se, por comodidade, evocar inicialmente o evento desencadeador
dessa compulsão. Ela se sentira, em sua infância, muito enamorada por um irmão que
lhe dizia, de brincadeira, que a desposaria. Esse irmão, não obstante, tinha encontrado
uma amante, ela própria um tanto gorda, e Floria tivera a ocasião de vê-la de cinta, o
que permanece como lembrança investida de uma precisão particular. Ao mesmo tem-
po, essa lembrança se liga ao momento em que essa jovem, com quem seu irmão não
era casado, engravidou. A jovem, entretanto, abortou, e Floria percebeu que havia
nela sentimentos muito ambivalentes. Essa criança carregada no ventre, mas também
o próprio ventre da jovem, tornam-se símbolos do desejo, diremos que eles assumem
um valor fálico. Desse modo, são investidos ao mesmo tempo de amor e de ódio.
Quando Floria faz para si uma barriga grande, é como se ela endossasse a imagem
fálica de sua cunhada de cinta; mas ela veio também a pensar que a criança que gosta-
ria de jogar pela janela é a criança que seu irmão fez para uma outra.
Irei evocar pela primeira vez a questão do falo. É claro que é uma questão que
vai organizar toda esta observação, mas eu diria que é bem complexa, que pode assu-
mir formas bem diferentes.
Fiquemos um momento sobre esse falso ventre que Floria faz para si. Reservo
para logo mais certos desenvolvimentos sobre a significação peniana que estão em
jogo aqui. O falo masculino está de qualquer modo presente, já que se trata da questão
do desejo do irmão. Porém, vê-se que há também, por completo, o lugar daquilo que
Freud já designava como transposições das pulsões. O grande ventre, que evoca a
gravidez, permite a substituição do falo pelo bebê. Por outro lado, os absorventes
higiênicos e sobretudo as fraldas que Floria utiliza remetem-na a um objeto anal, ou
uro-anal, muito investido na infância. Ela, aliás, foi enurética e não se lembra mais se,
quando de uma visita a uma amiga, por volta dos doze anos, temia ainda manifesta-
ções de enurese ou um escorrimento menstrual. Não esqueçam, por outro lado, sua
compulsão a punir as bonecas que se sujavam, e que por certo a representavam. Pode-
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se pensar que as zombarias que é preciso suscitar estão de início em relação com esse
tema. Ele está, aliás, bastante presente, a ponto de voltar claramente em certos sonhos.
Tudo isso, entretanto, não basta , por certo, para entender o essencial daquilo
que estava em jogo nas espécies de exibições às quais Floria se via compelida. Vocês
irão ver que esses comportamentos são bastante sobredeterminados, que não é fácil,
em todo caso, dar-lhes um sentido. É uma pena, aqui também, ter de apresentar de
modo necessariamente um tanto ordenado o que veio de maneira bem descosida, no
fio das sessões.
Foi evidentemente a personagem da mulher idosa, da vendedora, que guiou
Floria na direção de sua mãe. Isso nos permitirá situar como tudo isso poderia ser
apresentado em uma perspectiva edipiana, digamos, na perspectiva de Lacan quando
ele formaliza, em seus primeiros seminários, o édipo freudiano.
Floria sabia bem que tinha uma relação difícil com sua mãe. Esta jamais parou
de tentar controlar sua vida, ela lhe pedia para ser perfeita. Um objeto perfeito, dizia
Floria, que não estava longe de notar de que objeto poderia tratar-se.
Ela pôde assegurar-se disso melhor e estabelecer um laço com seu sintoma, por
ocasião de um de seus sonhos. Tratava-se, nesse sonho, de ir uma vez mais provar
roupas em um magazine. Mas, nesse dia, havia algo de particular. Sua mãe estava mais
claramente presente, mais ou menos confundida com a vendedora. E estava em ques-
tão dar-lhe um vale ou haver 1 .
Quando, na França, um cliente tem de devolver uma roupa que comprou, mas
que não lhe convém verdadeiramente, quando se aceita essa restituição mas não se
pode fazer imediatamente a troca do artigo, dá-se a ele o que se chama de vale ou
haver (avoir). É um documento pequeno – um pedaço de papel – que lhe permitirá,
mais tarde, adquirir um outro objeto. Mas haver, o verbo haver, faz equívoco também
com o verbo ver. Posso mostrar algo a alguém, dar-lhe alguma coisa a ver.
Foi então que decidi intervir. Disse a Floria: você dá a ver a sua mãe, o que
incluía dar um haver e dar a ver2 .
Foi a partir de um tratamento de mulher obsessiva, apresentado por Maurice
Bouvet, que Lacan voltou, durante vários anos consecutivos, ao tema da interpretação
da inveja do pênis. Com muita freqüência, mostra, reduzimos uma boa parte do dis-
curso da paciente à inveja de ser um homem, ou ainda de ter um pênis. Ora, fazendo
isso, deixamos a paciente pensar que se trata, para ela, de assumir essa inveja, que a
solução para suas dificuldades se encontra nesse plano. Ora, ocorre que em casos
desse tipo o sujeito, no término do tratamento, não está verdadeiramente mais avança-

1
Em francês, avoir, que pode significar ter ou haver. Nota do tradutor.
2
Em francês, vous donnez avoir à votre mère. Em francês, o jogo de palavras não tem a falha
provocada pela tradução. Nota do tradutor.
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do, pois se identifica em uma posição de reivindicação que ele não poderá ultrapassar.
O que se trata, antes, de lhe fazer entender é de que maneira ele pôde ser o falo do
Outro, ser, sobretudo, o falo de sua mãe. Aqui o ter (avoir), ter o falo, corresponde à
mãe. Floria, para que sua mãe o tivesse, teve ao mesmo tempo que sê-lo e dá-lo a ver.
Foi dessa posição que a análise teve de ajudá-la a sair, o que produziu um apazigua-
mento, não apenas relativo às compulsões, mas também em relação às mulheres de seu
trabalho, com quem tinha relações muito complicadas. Notemos que uma só interpre-
tação não foi suficiente. Ela reconstituiu por si mesma, por exemplo, o discurso de sua
mãe, que periodicamente a recriminava por ser mole demais. Vejam que a questão se
tornava bem clara.
Entretanto, além do que aparece ali, há um segundo esclarecimento, que me
parece igualmente necessário e que nos permitirá, sobretudo, refletir mais precisa-
mente sobre a idéia de uma atualidade da neurose obsessiva feminina.
Floria, quando se sentia compelida a se exibir, sentia ao mesmo tempo uma
culpa. Nessas circunstâncias, mas às vezes mesmo fora delas, sofria de uma idéia ob-
sessiva que considerava absurda, a de ser um homem violador. A imprensa havia rela-
tado, por esse anos, algumas histórias de violação de crianças, e ela não podia impedir-
se, dizia, de se situar do lado do criminoso.
É aí que é preciso relatar um evento de sua infância, um desses eventos que
chamamos de traumas. Este, em todo caso, tinha-se passado nas formas que Freud
indicou para o obsessivo. Sabe-se, de fato, que Freud destaca que, quando a criança se
torna obsessiva, é geralmente porque participou com prazer, e de maneira ativa, para a
sedução do adulto. Por certo, Freud irá relativizar em seguida o lugar do próprio trau-
ma no determinismo da neurose. Aqui, em todo caso, um vizinho tinha dado a ver seu
pênis a Floria, e sem dúvida tinha obtido dela algumas carícias. Mas o que ela não
pode esquecer é que voltou lá no dia seguinte. Certamente, na idade adulta, ela conde-
na as ações desse homem. Mas, como disse a vocês, toda essa história a conduz a
experimentar a idéia de que ela se encontra no campo dos violadores. Por exemplo,
quando não fala, é invadida pela idéia de que eu vou supor que ela violou crianças e
que procura dissimulá-lo.
Então, tudo isso faz com que Floria se diga anormal. E é preciso acrescentar
então que ela não está longe de entender énorme mâle3 (enorme macho). Quando ela
se torna gorda, pode experimentar que se transforma em um homem ameaçador, como
a espécie de gigante um tanto bêbado com quem ela sonhava quando criança. Ela não
está mesmo longe de sentir que, quando se fantasia, é todo o seu corpo que se torna um

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Há um jogo de palavras entre anormal e énorme mâle, que são parônimos em francês. Nota do
tradutor.
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enorme falo. “Ela está gorda” (em francês, o órgão sexual masculino é muitas vezes
designado por um termo no feminino, eventualmente até mesmo apenas pelo pronome
ela).
Teríamos voltado então à idéia de uma identificação masculina e até mesmo ao
desejo de ter um pênis? De fato, as coisas são mais complicadas do que isso.
Inicialmente, no nível dos fantasmas, Floria desenvolve igualmente o de ser
violada. É apenas quando consegue desenvolver bastante esse fantasma – ligado a
outros fantasmas de prostituição, de envilecimento – que pode experimentar o prazer
no ato sexual com seu marido. De outro modo, é preciso dizê-lo, o desejo circula
muito mal entre eles.
E depois, por certo, se tomarmos o ventre grande como símbolo fálico, é claro
que as zombarias que se trata de desencadear não têm apenas o sentido de dissimular
um desejo de ter um pênis. Elas têm um valor próprio. Ridicularizam o falo. Ora, esse
ridículo vem afetar, por diversas vezes, os homens que a rodeiam, desde o pai, que
aparentemente interessava pouco para a mãe, até o analista.
Charles Melman chegou a falar recentemente, a propósito da neurose obsessi-
va, não apenas de anulação do falo, mas de forclusão do falo. É uma concepção inte-
ressante, que não é sempre fácil de compreender, tanto mais que o próprio Melman diz
que aquilo que o obsessivo tenta forcluir não deixa de voltar. É como se, diz ele, um
canal de evacuação de águas servidas estivesse entupido e a coisa não cessasse de
refluir. Vejam, então, que isso viria muito bem aqui. No essencial, a prescrição fálica
– digo uma prescrição fálica porque é ela que comanda nossa sexualidade – é anulada,
como se vê, aliás, nas relações distantes que Floria mantém com seu marido. Ela só
pode voltar – essa prescrição – sob uma forma derrisória, em que o objeto fálico tende,
por outro lado, a se confundir com o objeto anal.
Mas é também a partir disso que gostaria, mesmo assim, de dizer algo sobre a
atualidade da neurose obsessiva.
Há um tema que, creio, voltará muitas vezes: é o de uma forclusão contempo-
rânea do falo, de uma forclusão do falo no discurso social.
Não sei o que isso evocará quanto ao que vocês conhecem no Brasil. Mas vocês
pensarão, por exemplo, no que se desenvolveu, inicialmente nos Estados Unidos, em
matéria de luta contra o assédio sexual. Sabe-se que, pouco a pouco, foram condena-
das muitas condutas como sendo de assédio, até o ponto em que, em certos setores da
sociedade, os homens não sabem mais que comportamento adotar. Em outros lugares,
por exemplo na França, sob o pretexto de lutar contra a pedofilia, institui-se um con-
trole minucioso que faz com que muitos educadores fiquem inquietos por saber se um
gesto bastante banal não será interpretado e denunciado como perverso. Mais funda-
mentalmente, a partir do momento em que um homem pronuncia uma fala em que
manifesta um desejo um tanto afirmado ou ainda uma tentativa de afirmar uma autori-
dade, ele é facilmente desvalorizado como machista. Sabe-se, aliás, que em nossas
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civilizações contemporâneas tende-se cada vez mais a homogeneizar o papel do pai e


o da mãe e, além disso, a anular a diferença dos sexos. Em suma, o falo não pode mais
ser um significante que orienta o desejo sexual. Ele se torna, em vez disso, um objeto
perigoso – pensemos, por exemplo, no tema da contaminação –, ou ainda um objeto
degradado. Pois bem, eu diria que a neurose obsessiva feminina deve muito bem ser
situada, hoje, em relação a essas coordenadas. O que me surpreende, não apenas nesse
tratamento, mas em alguns outros, é até que ponto o tema do falo insiste de uma ma-
neira paradoxal. São mulheres que freqüentemente estão muito longe de uma realiza-
ção sexual satisfatória. E, ao mesmo tempo, os fantasmas sexuais invadem seu pensa-
mento ou seus sonhos, sobretudo sob uma forma sádica. É como se essas mulheres
retomassem por sua própria conta uma significação fálica que o homem não pode mais
assumir, mas dando a ela uma dimensão de ridicularização.
Insistamos um pouco sobre tudo isso. Podem-se apresentar as coisas de um
modo um pouco diferente.
O significante fálico desempenha no discurso, ordinariamente, um papel de
corte. Permite evitar que tudo seja equivalente, permite distinguir o mesmo e o outro.
Vocês sabem que, nesse sentido, há tanto valor para uma mulher quanto para um
homem. Isso pode, aliás, exprimir-se de maneira sintomática, como se vê na histeria, à
qual há pouco fiz alusão. O que se passa, quando o significante declina, de algum
modo, no discurso social? Ele não desempenhará mais seu papel de corte. Para uma
mulher, sobretudo, pode-se conceber que isso possa engajá-la de uma maneira muito
diferente. Digamos que isso marcará seu próprio estilo. O discurso tenderá a se reduzir
a cadeias de razões, em que nada vem constituir um ponto de parada. Ora, esta é a
própria definição do estilo obsessivo. Concebe-se que haverá, senão forçosamente
uma multiplicação das neuroses obsessivas femininas, mas, pelo menos, uma espécie
de obsessionalização do discurso feminino.
Pode-se, então, ir um pouco mais longe. Em um obsessivo, quer seja homem ou
mulher, esse discurso sem corte vem de algum modo excluir o próprio sujeito, como se
toda afirmação subjetiva tivesse alguma coisa de indecente. Mas sabe-se que, a partir
disso, no pensamento e até mesmo na fala do obsessivo, as piores indecências, as
piores obscenidades, irão fazer irrupção. Ora, encontrei isso em numerosos tratamen-
tos femininos. É por isso que me parece que, se há em Floria uma espécie de degrada-
ção da instância fálica, ela é bastante representativa de algo que se encontra hoje cada
vez mais.
Bem, é certo que falei a vocês de um caso, um caso singular. Há certamente
formas bem diferentes dessa neurose, formas que não evocarei para não misturar tudo.
Se eu tivesse, entretanto, de acrescentar uma observação no plano clínico, seria esta:
falei a vocês de uma dimensão sobretudo bastante destruidora em relação ao falo.
Parece-me que, se formos um pouco mais longe a partir disso, poderemos situar o

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parentesco entre essa estrutura e o que se desenvolve hoje do lado das patologias da
oralidade. Com efeito, quando uma mulher centra toda a sua questão sobre a comida
que ela absorve e que rejeita, isso já pressupõe – é uma evidência, mas é preciso
lembrá-lo – que a questão de seu desejo não esteja tomada na relação com o desejo
masculino. Neste sentido, essas patologias que hoje se desenvolvem parecem-me estar
bem mais no fio da neurose obsessiva que no da histeria.
Enfim, gostaria de terminar por uma observação metodológica. Vocês viram
que o que é central na paciente de que lhes falei, esse fantasma ou essa compulsão,
revela-se sobredeterminado. A própria Floria, aliás, podia falar de tudo isso com uma
grande inteligência, mas – como dizer? – com, igualmente, uma maneira muito obses-
siva de racionalizar tudo o que podia descobrir. O sintoma, assim como aliás a própria
palavra, pode certamente ser entendido sempre de modo polissêmico. Mas, enquanto,
na histérica, a dimensão de surpresa é freqüentemente preservada, na neurose obsessi-
va, ela se arrisca sempre a ser reabsorvida. O sujeito reconhece que um mesmo sinto-
ma pode ter sentidos muito diferentes, mas isso é sobretudo para tornar toda idéia
semelhante a uma outra, para manter-se bastante cético em relação a tudo o que pode-
ria ser dito. Em suma, as idéias podem acrescentar-se umas às outras, podem-se mes-
mo fazer sínteses bastante hábeis delas, mas isso bem prova que elas não valem grande
coisa. Devemos pensar nisso na condução do tratamento. Em vez de validar demasia-
do depressa as idéias que surgem, temos, aí mais do que em outros casos, de jogar com
o corte, de parar as sessões sobre alguma coisa que se integra mal ao que o analisante
tenta dizer. É, em todo caso, o que tentei fazer no tratamento de Floria. Evidentemen-
te, é bem difícil dar conta disso, mas me parece que foi isso que permitiu não se fechar
em certas significações, que teriam sido muito redutoras. Espero que vocês tenham
entendido que, além daquilo de que posso dar conta, não está em questão explicar
tudo. É preciso sempre sustentar que o real dos tratamentos de que falamos não é
inteiramente simbolizável. É preciso que reconheçamos bem que nossa teoria não sim-
boliza completamente o real, ao passo que, no fundo, o perigo de todas as nossas
elaborações seria o de nos fazer esquecer disso.
Eis, pois, o que eu queria dizer a vocês esta noite, a partir de um caso que me
ensinou muito, porque, de saída, provocou muitas questões.

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