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CONGRESSO NACIONAL DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO 2011 UnB

“Henry Corbin e o Mundo do Avesso:


dos eventos no espaço da alma
ao exílio da alma no espaço mensurável”

Monica Udler Cromberg

Henry Corbin foi um dos principais e mais conhecidos hermenêutas da obra


do místico islâmico Ibn Arabi e da filosofia iraniana em geral. Foi diretor da cadeira
de Estudos Islâmicos da Sorbonne e fundador da cadeira de Filsosofia Iraniana na
Universidade de Teheran. Fez as primeiras traducoes ao frances das obras de
Heidegger e de Karl Barth. Duas grandes viradas marcam o trajeto deste pensador:
uma após a leitura de Ser e Tempo, de Heidegger, e outra após a leitura de
Sohravardi, o grande místico persa do século XII. Corbin foi responsável pela
reintroduçao da filosofia muçulmana.

Se levamos em conta a noção de interioridade que Corbin descobriu no


mundo da mística islâmica, ou seja, na mística sufi, abriremos uma fresta para uma
visao-de-mundo extremamente distinta à que estamos acostumados em nossa
consciencia ordinária tal como homens contemporaneos, para nao dizer inversa.
Parece que a consciencia ordinária – que poderá ser vista tanto como um estado de
consciencia individual quanto como o estado de consciencia cultural do homem
contemporaneo condicionado – faz com que acreditemos que a alma, ou a
subjetividade, esteja disposta, ou lancada no que chama de mundo e que o que nos
distingue enquanto homens dos outros seres e coisas deste mundo seja somente a
supremacia que alcancamos devido a nosso poder de pensar. A visao da mística
islâmica, no entanto, revela-nos uma outra maneira de se estar na existência,
diferente da maneira objetivante da modernidade. A alma para o místico é o
próprio lugar onde se dá a existencia humana. É dela que o homem emerge, é dela
que o ego emerge. O conceito de alma neste contexto é bastante sui generis e nao
é a toa que serve de base para a fundacao de uma linha de psicologia arquetípica
também bastante sui generis que é a de James Hillman, que se basea na obra de
Corbin para criar sua linha psicoterapeutica. Longe de referir-se a um conteúdo
puramente psíquico, o conceito de alma no universo de Corbin, aproxima-se muito
mais do de Ser, de Heidegger do que dos conceitos mais imanentes dos estudos da
psicologia arquetípica. O ser humano nao seria mais que uma das polaridades desta
alma, que habitaria sua contrapartida celeste, seu Si-próprio mais profundo e
transcendente, seu anjo, seu ser essencial. A mudanca de perspectiva, de uma alma
que habita o paraíso de seu próprio Ser para a de uma alma que foi arremesada fora
de seu Ser próprio e se assimilou à exterioridade, à Impessoalidade, ao espaco
público da Razao hegemonica, é o objeto de nosso estudo aqui. Interessa-nos saber
como foi possível a ocorrência de tal exílio e ver mais de perto o que haveria
levado a alma a esse exílio no espaco mensurável da exterioridade nao aqui a um
nível individual, mas a nível histórico e filosófico. Queremos investigar como
aconteceu e acontece essa inversao de perspectiva que faz com que o homem viva
no mundo e nao mais faca o mundo viver em si; saber como foi que ao mesmo
tempo que o homem vai adquirindo uma posicao cada vez mais dominante e central
no planeta, mais ele vai despovoando o mundo de si próprio enquanto
individualidade própria, concreta, singular, subjetiva e única, para, sem se dar
conta, ser vassalo de sabemos lá que poder. Tantos já denunciaram e denunciam
essa completa submissao a um Golem, a um poder projetado pelo próprio homem
que passa a adquirir vida própria. Para Eudoro de Sousa, esse poder foi forjado pelo
mito da modernidade: o “Homem”, que equivaleria ao que Agamben chama de
“máquina antropológica”. O Homem sem alma, o homem sem transcendencia,
homem absolutamente imanente e reificado. Heidegger fala da força da decadencia
que faz o Ser-aí submeter-se à Impessoalidade, à Inautenticidade. Garaudy também
fala de mitos fundantes da modernidade e desmarcara qual seria a religiao do
homem contemporaneo: o monoteísmo de mercado. Só por esses autores já nos
ocorre indagar quem estaria ali no trono, se o homem todo-poderoso que agora
domina a physis e a preside nao possui autenticidade nem subjetividade e rende-se
a uma identidade abstrata. Um homem sem alma, uma criatura apartada de seu ser,
ocupa agora o trono a espera de um novo Nietzsche que, como a criança do conto
que grita que o rei está nu, venha desmascará-lo gritando: “O Homem está morto!”

***

Se quisermos dar um passo na direção desse universo apresentado por Corbin,


é necessária uma completa inversão não só de valores como também de perspectiva
com relação ao nosso pensamento racionalista. O método para tal inversão – ao
contrário do que se possa pensar – não é um movimento rumo ao sagrado e ao
suprarracional, seja lá a forma com que isso se daria. Ele é, em primeiro lugar, uma
“virada do avesso”, uma inversão com relação às referências de interior e exterior
ao ser humano. Isto pode bem ser representado pela frase: No domínio da lógica
oriental, a alma não vive no mundo: é o mundo que vive na alma1 . A consciência
não está no mundo: o mundo é que está na consciência. Este fato, que para a
mística da cultura em questão é “de fato um fato”, está bem distante da visão
fisicalista de uma mente produto do corpo e do mundo físico, de uma psique

1
“Não viva no mundo: faça com que o mundo viva em você.” - Jallaluddin Rumi, mestre sufi do século XII..
Masnavi, Jallaluddin Rumi, Ed. Derwish, RJ, 1991.
resultante de conexões sinápticas e movida a proteína, de um determinismo
materialista e um evolucionismo já assimilado que explica tudo menos a consciência
humana.

O primeiro elemento a ser destacado em Corbin, seria, portanto, sua recusa


em aceitar a compreensão de nós mesmos e do mundo que domina na consciência
secular moderna, cujas bases são exclusivamente materiais e históricas e onde
“todas as formas de compreensão convergem para uma única visão da realidade.
História, sociologia, psicologia, biologia, medicina, física, engenharia – todas as
ciências humanas e as naturais – são diferentes versões de um único programa
reducionista. Todos eles estão calcados em leis de causalidade histórica num mundo
composto inteiramente de matéria no espaço”2 quantitativo; um mundo
incompatível com a existência de pessoas3 , no sentido pleno desta palavra. Husserl4,
que, juntamente com Heiddeger5 , é dos filósofos mais importantes para Corbin ou
para compreender Corbin, sempre aponta para o fato básico de que a ciência
moderna não integra o sujeito pensante e ignora o observador-idealizador. Os
cientistas esvaziam a ciência de seus próprios operadores e de seu contexto humano
6
. O mundo do qual se ocupam os cientistas não é o mesmo onde acordamos e
escovamos os dentes. Os fundadores/ precursores da fenomenologia chamaram o
nosso de “mundo-da-vida”. É extremamente fugidio, nunca permanece o mesmo,
cada hora possui um aspecto diferente, se manifesta para cada um e a cada
momento de uma forma distinta e possui um grande coeficiente de
imprevisibilidade. Os gregos chamavam-no de phýsis, o mundo do devir. O mundo
da ciência é previsível, regido por leis absolutas, e obtido por abstração: leis
gerais, matemáticas são abstraídas das realidades singulares, concretas e relativas e
(exclusivamente) dos aspectos mensuráveis das coisas da phýsis. Além de ter como
objeto um mundo matematizado e, portanto, idealizado, e não o mundo-da-vida –
que é o mundo da doxa, das “verdades de situação”7 , relativo e indeterminado, no
qual o homem efetivamente se vê inserido –, a ciência busca alcançar um “mundo
em si”, fazendo a assepcia de qualquer elemento subjetivo espúrio, sem dar-se
conta de que o que contamina sua visão do mundo é o véu cultural, matematizado e
idealizado, que lança sobre ele. São os elementos particulares, concretos,
2
Tom CHEETHAM , The World Turned Inside Out: Henry Corbin and Islamic Mysticism, Connecticut, Spring
Journal, 2003, p.
3
Henry Corbin, Le paradoxe du monothèisme p. 240 Ed. De l’Herne, Paris, 1981.
4
Edmund HUSSERL, Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die Transzendentale Phenomenologie. Haag,
M.Nijhoff, 1962, e etc
5
Influencia de husserl e heiddeger no pensamento de corbin – citação da pagina 15 Tom CHEETHAM , The
World Turned Inside Out: Henry Corbin and Islamic Mysticism, Connecticut, Spring Journal, 2003, p.5. “graças a
heidegger...”
6
Café Philo, As Grandes Indagações da Filosofia – in “A ciência sem consciência está condenada?” Artigo de
Edgar morin , Jorge Zahar Editor, RJ, 1999.
7
Edmund HUSSERL, Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die Transzendentale Phenomenologie. Haag,
M.Nijhoff, 1962, §9 Experiência e juizo §10
subjetivos, inconstantes, indeterminados e relativos, que constituem de fato o
mundo e que são o ponto-de-partida, o objeto pré-objetivo da ciência, a qual irá
realizar a partir dele um constructo estéril, abstrato e genérico. É como se os
cientistas fossem espectadores que procuram na coxia, nos bastidores, o roteiro da
peça que não estão assistindo e que deixaram lá para trás. A análise laboratorial do
cenário e adereços os fará entender a peça?

O conhecimento científico só é possível através da abstração: o sujeito deve


ser retirado de cena e o cientista deve fingir que não está lá. O voyeurismo
científico – ou seria uma necrofilia? – ficou abalado ao constatar, através da
revolução quântica, que a natureza não é tão morta assim e posa para ele. Ondas
tornam-se partículas quando observadas, energia se torna matéria sob o olhar do
homem, que cristaliza, objetiva e determina o que o rodeia – seja lá o que é isso
que o rodeia8 . Mas se a ciência consegue fingir que não há ninguém olhando e
interferindo no que é visto, e consegue ignorar que seus fundamentos estao
detonados, não será difícil fingir que a física quântica ou a filosofia da ciência nunca
existiu. Afinal, a ciência funciona, e é o que importa; enquanto ela for útil e estiver
a serviço da Tecnologia e da Economia, todo seu procedimento será justificado, por
mais frágeis que sejam seus fundamentos epistemológicos e por mais reduzido e
impessoal que seja seu enfoque. A mente e o mundo continuarão dois elementos
totalmente (e artificialmente) separados um do outro. O mundo continuará sendo,
na visão do mundo da ciência tradicional, matéria disposta no espaço vazio e os
homens meros acidentes da seleção natural que agora usufruem de seu domínio
sobre este mundo passivo e sem vida, mas que ignoram completamente a natureza
de seu ser enquanto subjetividade, sobre a qual não têm mais domínio algum.

Henry Corbin, como “cavaleiro do invisível”, vem-nos anunciar esse mundo


do ser e da subjetividade de uma forma inusitada e inesperada pelos habitantes do
mundo da materia no espaço. Para a alma que se encontra exilada neste mundo de
leis físicas, Corbin apresenta uma perspectiva que, se por um lado liberta da
hipnose racionalista e materialista, por outro, denuncia com cruel nitidez todas as
degenerescências por ela criadas.

Aquilo que chamamos de “ a aventura ocidental” é esta aplicação da


inteligencia aà investigação científica, de uma natureza dessacralizada que precisa
violentar para encontrar suas leis e subjugar suas forças à vontade do homem.
Nos levou aonde estamos: um prodigioso essor técnico transformando as
condiçoes de vida, não se pode negar; o mundo todo se beneficia. Mas ao mesmo
tempo nos leva a uma situação que chamariamos de antidemiurgica, no sentido de
que é a negação da obra criadora, pois que coloca a humanidade na posição (em
mesure) de destruir, de aniquilar seu habitat, esta terra de onde tira seu nome e
sua subsistencia. Obra de morte e de nadificação que precisa ser olhada
face­à­face para poder ser denunciada, da mesma forma como os sábios da antiga

8
“Há algo lá fora que se está transformando todo o tempo”. – Platão
pérsia foram os primeiros, se não os únicos, a olhar nos olhos do atroz Ahriman.9

***

Atribuem-se vários responsáveis pela disjunção entre matéria e mente. Renné


Descartes não teria separado irremediavelmente o cogito da res extensa, o
pensamento da extensão, se o Concílio de 869 d.C. não tivesse decidido abolir a
tríplice e clássica divisão da natureza humana, “corpo, alma e espírito”, em favor
da simples dualidade “corpo e alma”. O terreno para o dualismo cartesiano foi
também preparado pela “natureza” impessoal e matematizada de Galileu; é com
ele, segundo Husserl, que pela primeira vez “o único mundo que nos é dado pela
intuição é substituído pelo mundo das irrealidades” 10. A partir da instauração
generalizada desta polaridade insolúvel, a visão de mundo do ocidente começa a se
distanciar irreparavelmente da concepção tradicional de mundo, comum a todas as
demais culturas e épocas, oriente ou ocidente. Sim, pois, por mais diferentes que
sejam estas culturas entre si, jamais ocorrera a qualquer uma delas, em época
alguma, separar tão artificialmente o sujeito, a pessoa, a consciência, do meio em
que vive, do mundo em que está, despovoando-o de si próprio.

Corbin escreve sobre o concílio de 869:

A partir daquele momento, estava aberto o caminho que levaria ao dualismo


cartesiano de pensamento x extensão. Pois, a partir desse momento, tornou­se impossível
conceber­se Formas Espirituais no sentido plástico do termo, ou Substâncias verdadeiras,
que são inteiramente reais e possuem “extensão” embora separadas e distintas da matéria
densa e opaca deste mundo.11

Depois que Descartes instaura dois universos tão heterogêneos como o da


coisa pensante e o da coisa extensa, um dos dois teria de prevalecer. Não saberiam
fazê-los se relacionarem se não fosse reduzindo um ao outro. A era da técnica e do
conhecimento quantitativo, no desejo prometéico de descoberta do mundo
exterior, irrompe violentamente em detrimento do mundo da alma, que
anteriormente se extendia por todo o real e nele se reconhecia, e que passa a ser
vista apenas como um anexo do corpo, sujeita às mesmas regras e métodos da
mesma ciência cauterizante, e se recolhe agora para algum recanto sombrio do
cérebro. A pobre alma, esquecida pelos sujeitos elípticos, absolutamente separada,
9
Henry Corbin, Philosofhie Iranienne et Philosofhie Comparée, Académie Imperiale Iranienne de Fhilosofhie,
Tehéran, 1977, p. 47.
10
Edmund HUSSERL, Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die Transzendentale Phenomenologie. Haag,
M.Nijhoff, 1962, §9 exper e juizo &10 Husserl
11
Christopher BAMFORD, in “Esotericism today: the example of Henry Corbin” – Introduction of The Voyage
and the Messenger, Iran and Philosophy, Berkeley, North Atlantic Books, 1998, p.21.
solitária e desconfortável num mundo de objetos, num mundo de máquinas,
mercado e informação, só pode agora se manifestar num divã, num blogue ou numa
arma. Logicamente se vê então justificada também a ânsia por vida em outros
planetas: em algum deve haver, já que aqui não há.

Corbin recusa-se em aceitar o mundo da forma reificada como a


modernidade pretende vê-lo.

Coisas que estão separadas da alma na forma de “objetos”... que formam


“correntes” feito um rio. Daí emerge o dilema: jogar­se na corrente ou lutar contra
ela.12

Viver, experimentar a realidade do mundo exterior, segundo os místicos de


Corbin, é efetuar a interiorização de um fenômeno, e é, ao mesmo tempo, estar
diante de uma presença; é um encontro com um ser. O mundo do místico é
permeado de alma, e há alma e almas por toda parte. A visão de mundo
desencantada e despovoada do homem moderno, onde tudo, até as pessoas são
impessoais, está mais distante deste universo do que poderíamos conceber.

Mundo e sujeito sempre formaram uma unidade. Um nunca havia sido


extirpado do outro. A consciência sempre é consciência de algo e o mundo sempre
é percebido por um sujeito e é dele o meio. Nem mesmo os conceitos “mundo” e
“sujeito” haviam sido formulados com estas acepções antes das ciências européias
começarem o roteiro para sua crise. [Nem mesmo termos para isso havia no grego.
Phýsis referia-se a algo bem diferente, era a natureza em movimento e em
transformação proveniente de um fulcro eterno, imortal e imperecível, de onde
tudo brotaria e para onde tudo retornaria. Esse movimento e transformação, este
eterno devir, que tanto estarrecia os pré-socráticos, em especial Heráclito, é que
constituia a característica principal da phýsis.] No entanto, depois que as leis
naturais foram descobertas e passaram a representar a natureza, não havia mais por
que se ficar tão perplexo com o devir, e, como aponta Husserl, os elementos
subjetivos e relativos da phýsis migram para a psyché.

A alma está então exilada no mundo, no qual foi arremessada depois que a
alma passou a crer na matéria e prostrar-se diante dela. O mundo é virado do
avesso e deixa de vestir a interioridade para ser visto em si mesmo, a mostrar suas
costuras, pregas e arremates.

***
[Tempo e espaço também acontecem dentro da alma, segundo Corbin e seus
místicos islâmicos, levando em conta o conceito que têm de “alma”. Não estão fora
dela como objetos. Corbin afirma que eles “não são atributos das coisas exteriores,

12
Henry Corbin, Avicenne et le récit visionnaire, Lagrasse, Verdier, 1999, p.10.
mas atributos da própria alma”13 e promove um interessante casamento entre as
idéias da filosofia profética sufi e as da filosofia heideggeriana, explicando um pelo
outro, mas sempre afirmando o maior alcance do primeiro. Tanto em um como no
outro, Corbin coloca que tempo e espaço estão fundamentados em algo mais
profundo, que é o modo de presença que de alguma forma determina suas
características e que não é separável da maneira em que aparecem, em que se
apresentam à consciência. Aí, a análise de tempo e espaço não pode partir do
pressuposto de que eles sejam dados a priori, mas deve sim partir da investigação
do modo de presença através do qual eles são revelados. Corbin coloca que
precisamos perceber que não estamos no tempo e no espaço da maneira como
somos levados a crer. Com relação ao espaço, sua formulação é: Não estamos no
espaço; nós “espacializamos um mundo”. Espacializar um mundo ao redor de nós faz
parte de nosso modo de presença. Nossa orientação parte de nós mesmos; norte e
sul, leste e oeste, encima e embaixo não são objetos, e da mesma forma o futuro, o
passado, e não menos o presente em oposição ao passado e ao futuro.

Em seu livro sobre Corbin, Cheetham coloca:

“Se nos limitarmos ao espaço quantitativo da res extensa, não seremos capazes de
apreender a realidade objetiva de nenhuma outra espécie de extensão, de nenhum
outro tipo de espaço. O espaço limitado no qual a matéria dos cientistas existe, na
qual os objetos aparecem, é a mais limitada e restrita de todos os tipos de espaço que
existem. É o vasto domínio dos espaços espirituais e qualitativos que provê o espaço
para os eventos da alma.”14

Os eventos da alma são a única coisa que interessa ao homem interiorizado


da mística sufi. Eles não são destituídos de espaço nem ocorrem fora do tempo.
Trata-se no entanto de um tempo e um espaço muito mais originários.

Espaços que são medidos por estados interiores pressupõem essencialmente um


espaço qualitativo ou descontínuo, do qual cada evento interior é ele próprio a medida, em
oposição a um espaço que é quantitativo, contínuo, homogêneo e mensurável por medidas
constantes. Tal espaço é o espaço existencial, cuja relação com o espaço físico­matemático é
análoga à relação entre o tempo existencial e o tempo histórico da cronologia.15

[Em oposição à linearidade e idealidade do tempo pode-se encontrar tanto


na tradição semítica quanto na grega o conceito de tempo qualitativo. Os gregos
acreditavam que o tempo envelhecia, visão que considera o tempo como um
atributo do homem, como qualidade, e que, claro, é diametralmente oposta à de
um “tempo homogêneo e vazio”, exterior aos fatos que nele ocorreriam e à
consciência que o perceberia. O lugar da história não é o tempo linear e

13
Henry Corbin, En islam iranien, Paris, Gallimard, 1991, vol.1, p. 37.
14
Tom CHEETHAM , The World Turned Inside Out: Henry Corbin and Islamic Mysticism, Connecticut, Spring
Journal, 2003, p.66
15
Henry Corbin, Temple et contemplation – Essais sur l’Islam iranien. Paris, Flammarion, 1981. Réédition Albin
Michel, 2007
cronológico, mas o tempo descontínuo e repleto de presente e de presença. A
oposição estabelecida por Heidegger dos conceitos de “histórico” e “historial”
figura na raiz do trabalho de Corbin16:

Devo dizer que o curso de meu trabalho teve sua origem na incomparável
análise que devemos a Heidegger, que mostra as raízes ontológicas da Ciência
Histórica e dá evidências da existência de uma historicidade mais original, mais
primordial do que a que chamamos História Universal, a História dos eventos
exteriores, a Weltgeschichte, História no sentido comum do termo... A relação entre
historialidade e historicidade é a mesma que entre ontológico e ôntico, existencial e
existenciário. Este ponto foi para mim decisivo.
]

A percepção de que o espaço que “espacializamos em mundo ao redor de


nós” não é o espaço newtoniano objetivo, absoluto, uniforme e público, e que o
tempo que nossa presença constitui a partir de presentes não é o tempo linear e
inexorável dos relógio - essa percepção possibilita o início de um “combate
espiritual da mais alta ordem”. Através dele temos a oportunidade de não estar mais
a mercê desses dois feitiços, que constituem dois dos mais profundos e
recalcitrantes pressupostos de nosso tempo.

[Entretanto, reconhecer a possibilidade não é suficiente para libertar-nos do


espaço “homogêneo e vazio” e do tempo linear da história. É necessária a
modificação do modo de presença para que as estruturas ontológicas do tempo e do
espaço possam apresentar-se de forma diferente. E essa modificação envolve um
movimento do ser integral e exige “um desejo profundo, uma firme resolução e a
coragem do amor”17. Para Corbin, a objetividade só pode ser atingida através das
sutis realidades da alma, que revelam uma gnose, um conhecimento transformador.
Para Heidegger, este se dá através da conscientização do homem com relação a sua
estrutura de ser-em-direção-à-morte. No entanto, para Corbin, ao contrário, a
mortalidade do homem não é ontologicamente fundante, mas sim um elemento
também condicionado historica e culturalmente. O que seria uma estrutura fundante
do ser para ele, assim como para os filósofos e místicos que estuda, seria o
ser-em-direção-ao-outro-lado-da-morte. Esta é a conscientização que esta
visão-de-mundo requer e que leva a uma libertação geral, e, segundo Corbin,
também a uma libertação quanto à visão de mundo de Heidegger. O modo de
presença que o mundo espiritual islâmico exige está orientado para o Eterno, e os
mundos que essa espiritualidade torna visíveis são acessados somente a partir deste
modo de presença18. ]
16
Corbin, Henry Corbin, Ed. Jambet.
17
Henry Corbin En islam iranien, Paris, Gallimard, 1991, vol.1, p. 38.
18
Como vimos, o tempo histórico não é tão importante no Islam quanto o metahistórico – que revela o sentido
eterno dos eventos históricos. Mas também o espaço adquire prevalência sobre o tempo neste contexto
místico. “As formas são concebidas mais em um espaço do que em um tempo.” Diversas tradições
concordam ao dizer que, no final dos tempos, o tempo aumenta e o espaço diminui, ou que o tempo devora o
espaço. E é o que vemos acontecer, na medida que o mundo vai ficando cada vez menor e homogêneo e o
***

Chamaremos atenção ao fato de que Corbin não está falando de qualquer


fenômeno psicológico, no sentido comum desta palavra, da mesma forma como a
interioridade e a interiorização místicas nada tem a ver com noções psicológicas do
termo “subjetividade”. Segundo trecho de Corbin já citado, a idéia de
interioridade “despertaria em muitas pessoas somente a ideia do psicologismo ou
subjetivismo - que está completamente fora de questão para nossos pensadores
[místicos islâmicos]. Para eles, os mundos interiores são mundos espirituais, e
exigem com completo rigor ontológico uma objetividade sui generis, uma
19
objetividade certamente diferente daquilo que entendemos sob este termo.”
Importante reconhecer como se diferem o conceito de interioridade dentro do
contexto da espiritualidade abordada por Corbin do “interiorismo” psicologizante
da mentalidade ocidental moderna. Poderia valer-me aqui do conceito de
“subjetividade do sujeito”20 em Heidegger, e do de “Subjetividade
21
Transcendental” . É por isso que Corbin chama o Dasein de Heidegger de
“Presença”. E a Presença possui prioridade ontológica sobre a aparição de um
sujeito ou um ego, ou da restrita consciência humana; é anterior a qualquer outra
entidade, seja o sujeito ou o objeto, a energia ou a matéria, o fenômeno ou o
noumenon (coisa-em-si). Escapa-se assim de dualidades metafísicas inconciliáveis,
como idealismo-realismo ou pensamento e extensão.

A partir das noções de Dasein e de Subjetividade Transcendental, podemos


alargar o sentido do termo “alma”, de modo que a frase “a alma não vive no
mundo, o mundo é que vive na alma” não corra o risco de soar como convite ou
apologia à psicose. Esta alma não é o sujeito, o ego, o eu humano, que estaria nela
como um peixe no oceano. No entanto, é extremamente pessoal e única, sendo o
ego “cru” – que não foi cozido pela alma integral – normalmente um constructo
impessoal alienante, uma bricolage socio-cultural condicionada aos fatores externos
e “mundais”. Nesse caso, é o sujeito (ego / persona) desta vez o espelho do
mundo, e não o mundo o espelho da alma. O sujeito aqui é um mero reflexo do

tempo vai-se acelerando e tudo acontecendo muito rapidamente. Na experiência mística, ou soteriológica, que
é o reverso da experiência escatológica, o oposto se dá. O espaço é que devora o tempo, ou o tempo se
transforma em espaço. Tudo desacelera, o tempo passa a ser o Eterno Presente na Presença e o espaço
estende-se e é plenamente habitado pela alma. É o Jardim do Éden.
19
Christopher BAMFORD, in “Esotericism today: the example of Henry Corbin” – Introduction of The Voyage
and the Messenger, Iran and Philosophy, Berkeley, North Atlantic Books, 1998, p. xvi
20
Monica U. Cromberg, “Subjetividade do Sujeito na Primeira Seção da Preleção Introdução à Filosofia de
Martin Heidegger”, no prelo.
21
Para não incorrer nos mesmos perigos de idealismo que Husserl, para acentuar o vínculo do Ser, da
Subjetividade Transcendental, com a presença, com a existência historial, Heidegger fala-nos do Dasein – o
“Ser-aí”.
social e do histórico: “Pois, sem a Imaginação entendida como fonte proveniente
de uma fonte divina além do ego, os únicos desejos que podemos ter são os
impelidos a nós pela história.”22 Quando se fala, no contexto sufi ou corbânico, de
“alma” ou de “interioridade”, fala-se aí de “espiritualidade”. “Mundos interiores”
despertam normalmente idéias psicologistas ou confessionais. Para os pensadores
em questão, “mundos interiores são mundos espirituais, e não podem ser
confundidos com a realidade psíquica do sujeito condicionado.

***

[Corbin e os místicos em questão designam a individualidade arquetípica, ou


heceidade, com o termo “anjo”. “O Deus Pessoal, enquanto determinação
suprema do absoluto, pode apenas aparecer se for como e para uma Pessoa.” A
Pessoa, como pressuposto da experiência mística, torna problemática esta
categoria de experiência num mundo governado pela força do Impessoal.

A grande questão colocada por Corbin: “ A presença humana está presente


diante do quê?”, foi-lhe respondida pelas religioes do livro (mazdeismo,
judaismo, islamismo e cristianismo)23, que o levaram ao significado do Deus
pessoal. No cerne místico destas religioes, Corbin encontra que cada ser é
constituído de duas dimensões, uma celeste e outra terrestre, uma divina e uma
humana24 . Uma refere-se ao caráter criatural e outra ao Deus pessoal, ao nome
divino que funda a heceidade daquela criatura e o qual é manifestado por ela.
Segundo Corbin,

as duas dimensões referem­se sim a um mesmo ser, mas somente à totalidade deste
ser; elas se adicionam (...), elas não saberiam anular­se mutuamente, nem
confundir­se, nem substituir uma à outra.
Parece que esta bi­dimensionalidade, esta estrutura de um único ser com duas
dimensões, depende da noção de uma heceidade eterna (‘ayn thabita) que é o
arquétipo de cada ser individual do mundo sensível, sua individuação latente no
mundo do Mistério, que Ibn ‘Arabi designa igualmente como Espírito, quer dizer, o
“Anjo” deste ser.

O Anjo é o princípio transcendente de cada individualidade. Corbin, ao falar


na Conferência de Eranos25, sugere substituir-se a expressão “o homem e sua
alma” por: “ o homem e seu anjo”, para deixar clara a riqueza ontológica da

22
Tom CHEETHAM , The World Turned Inside Out: Henry Corbin and Islamic Mysticism, Connecticut, Spring
Journal, 2003, p. 79.
23
Henry Corbin, Histoire de la philosophie islamique (réédition de 1986-3). Paris, Gallimard, 1989
24
Henry Corbin, L’Imagination Créatice dans le Soufisme d’Ibn Arabi, Paris, Flammarion, 1976, p.161.
25
Henry Corbin, L’Homme et son Ange, Librairie Fayard, Paris, 1983.
dualidade da alma humana e do “mistério ontológico do Dois, que permanece
dois em um único.”

No momento em que a alma se descobre estrangeira, exilada e só num mundo que


antes lhe era familiar, uma pessoa aparece em seu horizonte, um personagem que
anuncia­se a esta alma pessoalmente, pois simboliza com as profundezas mais íntimas
da alma. Em outras palavras, a alma descobre­se sendo a contraparte terrestre de
outro ser com o qual ela forma uma totalidade, que é dual em sua estrutura. Os dois
elementos desta dualidade podem ser chamados o ego e o Si Mesmo, ou o Si mesmo
celeste transcendente e o si mesmo terrestre, ou por outros nomes ainda.

Corbin continua, deixando claro que a re-união das duas metades, se


realizaria através de uma individuação, que leva à uma realização da
singularidade cada vez mais estranha à razão pública do homem contemporâneo.

É deste Si Mesmo transcendente que a alma se originou, no passado da


Meta­história,; este si mesmo tornou­se estranho a ela, enquanto a alma adormeceu
no mundo da consciência ordinaria; mas deixa de ser estranha a ela no momento em
que a alma, por sua vez, sente­se ela própria uma estranha neste mundo. Eis por que a
alma requer uma expressão absolutamente individual de seu Si mesmo, que só
poderia ser amalgamada pelo reservatório comum da alegoria se a diferenciação
individual conquistada a duras penas, fosse reprimida, nivelada e abolida pela
consciência ordinária.

Mulla Sadra, filósofo persa do sec. xx, apresenta a Corbin uma verdadeira
ontologia da individuação. Se as essências eram colocadas como prioritárias e
imutáveis, Sadra dá prioridade à existência. Para ele é o ato de existir e o modo
de existir que determinam o que uma essencia é. “O ato de existir é capaz de
muitos graus de intensificação.” Corbin chama o pensamento de Sadra de
“fenomenologia do ato de existir”26. A fenomenologia das intensidades de
existência corresponde exatamente ao espaço qualitativo do mundus imaginalis,
pois é só ali, onde estas diferenças qualitativas, estas intensificações e
graduações do ser podem ocorrer. O grau de individuação daquela alma é que
determinará o quão próxima ela está do encontro com seu Anjo.]

!Se por um lado o mundo impessoal27 da modernidade tende a anular a


diferença qualitativa de cada individualidade e a mergulhá-la no anonimato, por
outro, ela, muito mais que em outras épocas, acirra a estranheza que a alma
pode sentir no mundo da matéria e a faz buscar uma contrapartida. O problema

26
Tom CHEETHAM , The World Turned Inside Out: Henry Corbin and Islamic Mysticism, Connecticut, Spring
Journal, 2003, p. 91.
27
A origem deste universo impessoal é retraçada por Corbin e não remete à Descartes mas a um momento
muito interior: a vitória da filosofia de Averroes em detrimento da de Avicena. O universo de Averroes não
possui a conexão pessoal entre a alma individual e seu arquetipo e está baseada na conexão abstrata entre
céu e terra que nega o papel cósmico da Presença, da individualidade, do conhecimento pessoal e revelatório.
Este embate, que possui consequências decisivas para o pensamento ocidental, deverá ser discutido em outra
oportunidade.
é não saber por onde começar, nem para onde nadar contra a corrente pode
levar. Melhor seria deixar-se levar às cegas pela corrente, para um destino bem
conhecido? Segundo Cheetham:

Se a possibilidade do encontro com o anjo é eliminada, o indivíduo


humano não tem mais um polo celeste, uma orientação, e assim, nenhuma direção
para sua bússola moral e nada que garanta seu ser único – “ já não haverá
pessoas”, somente unidades em um regime totalitário com uma forma ou outra. Seja
este regime político ou economico ou científico, o resultado é o mesmo. Estamos
sem poder, perdidos no anonimato, levados como a espuma da torrente, e
completamente a mercê do meio social, biológico e político28.

“O Homem está morto” dirá sim algum Nietzsche do futuro nao muito
distante. Mas assim como o anúncio da morte de Deus foi necessário para seu
enterro e para a superaçao da crença alienante em um Deus abstrato a serviço de
interesses humanos espúrios, também o da morte do homem nos permitirá perceber
a pestilência do ar em torno de seu cadáver desenterrado e sair em busca, ou
melhor dizendo, “entrar” em busca de um fundamento supra-humano de seu ser que
lhe seja tanto imanente quanto transcendente – nem que se tenha de encontrá-lo a
partir da sepultura ou da beira do abismo.

28
Tom CHEETHAM , The World Turned Inside Out: Henry Corbin and Islamic Mysticism, Connecticut, Spring
Journal, 2003, p.95 ,96.

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