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“Não viva no mundo: faça com que o mundo viva em você.” - Jallaluddin Rumi, mestre sufi do século XII..
Masnavi, Jallaluddin Rumi, Ed. Derwish, RJ, 1991.
resultante de conexões sinápticas e movida a proteína, de um determinismo
materialista e um evolucionismo já assimilado que explica tudo menos a consciência
humana.
8
“Há algo lá fora que se está transformando todo o tempo”. – Platão
pérsia foram os primeiros, se não os únicos, a olhar nos olhos do atroz Ahriman.9
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A alma está então exilada no mundo, no qual foi arremessada depois que a
alma passou a crer na matéria e prostrar-se diante dela. O mundo é virado do
avesso e deixa de vestir a interioridade para ser visto em si mesmo, a mostrar suas
costuras, pregas e arremates.
***
[Tempo e espaço também acontecem dentro da alma, segundo Corbin e seus
místicos islâmicos, levando em conta o conceito que têm de “alma”. Não estão fora
dela como objetos. Corbin afirma que eles “não são atributos das coisas exteriores,
12
Henry Corbin, Avicenne et le récit visionnaire, Lagrasse, Verdier, 1999, p.10.
mas atributos da própria alma”13 e promove um interessante casamento entre as
idéias da filosofia profética sufi e as da filosofia heideggeriana, explicando um pelo
outro, mas sempre afirmando o maior alcance do primeiro. Tanto em um como no
outro, Corbin coloca que tempo e espaço estão fundamentados em algo mais
profundo, que é o modo de presença que de alguma forma determina suas
características e que não é separável da maneira em que aparecem, em que se
apresentam à consciência. Aí, a análise de tempo e espaço não pode partir do
pressuposto de que eles sejam dados a priori, mas deve sim partir da investigação
do modo de presença através do qual eles são revelados. Corbin coloca que
precisamos perceber que não estamos no tempo e no espaço da maneira como
somos levados a crer. Com relação ao espaço, sua formulação é: Não estamos no
espaço; nós “espacializamos um mundo”. Espacializar um mundo ao redor de nós faz
parte de nosso modo de presença. Nossa orientação parte de nós mesmos; norte e
sul, leste e oeste, encima e embaixo não são objetos, e da mesma forma o futuro, o
passado, e não menos o presente em oposição ao passado e ao futuro.
“Se nos limitarmos ao espaço quantitativo da res extensa, não seremos capazes de
apreender a realidade objetiva de nenhuma outra espécie de extensão, de nenhum
outro tipo de espaço. O espaço limitado no qual a matéria dos cientistas existe, na
qual os objetos aparecem, é a mais limitada e restrita de todos os tipos de espaço que
existem. É o vasto domínio dos espaços espirituais e qualitativos que provê o espaço
para os eventos da alma.”14
13
Henry Corbin, En islam iranien, Paris, Gallimard, 1991, vol.1, p. 37.
14
Tom CHEETHAM , The World Turned Inside Out: Henry Corbin and Islamic Mysticism, Connecticut, Spring
Journal, 2003, p.66
15
Henry Corbin, Temple et contemplation – Essais sur l’Islam iranien. Paris, Flammarion, 1981. Réédition Albin
Michel, 2007
cronológico, mas o tempo descontínuo e repleto de presente e de presença. A
oposição estabelecida por Heidegger dos conceitos de “histórico” e “historial”
figura na raiz do trabalho de Corbin16:
Devo dizer que o curso de meu trabalho teve sua origem na incomparável
análise que devemos a Heidegger, que mostra as raízes ontológicas da Ciência
Histórica e dá evidências da existência de uma historicidade mais original, mais
primordial do que a que chamamos História Universal, a História dos eventos
exteriores, a Weltgeschichte, História no sentido comum do termo... A relação entre
historialidade e historicidade é a mesma que entre ontológico e ôntico, existencial e
existenciário. Este ponto foi para mim decisivo.
]
tempo vai-se acelerando e tudo acontecendo muito rapidamente. Na experiência mística, ou soteriológica, que
é o reverso da experiência escatológica, o oposto se dá. O espaço é que devora o tempo, ou o tempo se
transforma em espaço. Tudo desacelera, o tempo passa a ser o Eterno Presente na Presença e o espaço
estende-se e é plenamente habitado pela alma. É o Jardim do Éden.
19
Christopher BAMFORD, in “Esotericism today: the example of Henry Corbin” – Introduction of The Voyage
and the Messenger, Iran and Philosophy, Berkeley, North Atlantic Books, 1998, p. xvi
20
Monica U. Cromberg, “Subjetividade do Sujeito na Primeira Seção da Preleção Introdução à Filosofia de
Martin Heidegger”, no prelo.
21
Para não incorrer nos mesmos perigos de idealismo que Husserl, para acentuar o vínculo do Ser, da
Subjetividade Transcendental, com a presença, com a existência historial, Heidegger fala-nos do Dasein – o
“Ser-aí”.
social e do histórico: “Pois, sem a Imaginação entendida como fonte proveniente
de uma fonte divina além do ego, os únicos desejos que podemos ter são os
impelidos a nós pela história.”22 Quando se fala, no contexto sufi ou corbânico, de
“alma” ou de “interioridade”, fala-se aí de “espiritualidade”. “Mundos interiores”
despertam normalmente idéias psicologistas ou confessionais. Para os pensadores
em questão, “mundos interiores são mundos espirituais, e não podem ser
confundidos com a realidade psíquica do sujeito condicionado.
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as duas dimensões referemse sim a um mesmo ser, mas somente à totalidade deste
ser; elas se adicionam (...), elas não saberiam anularse mutuamente, nem
confundirse, nem substituir uma à outra.
Parece que esta bidimensionalidade, esta estrutura de um único ser com duas
dimensões, depende da noção de uma heceidade eterna (‘ayn thabita) que é o
arquétipo de cada ser individual do mundo sensível, sua individuação latente no
mundo do Mistério, que Ibn ‘Arabi designa igualmente como Espírito, quer dizer, o
“Anjo” deste ser.
22
Tom CHEETHAM , The World Turned Inside Out: Henry Corbin and Islamic Mysticism, Connecticut, Spring
Journal, 2003, p. 79.
23
Henry Corbin, Histoire de la philosophie islamique (réédition de 1986-3). Paris, Gallimard, 1989
24
Henry Corbin, L’Imagination Créatice dans le Soufisme d’Ibn Arabi, Paris, Flammarion, 1976, p.161.
25
Henry Corbin, L’Homme et son Ange, Librairie Fayard, Paris, 1983.
dualidade da alma humana e do “mistério ontológico do Dois, que permanece
dois em um único.”
Mulla Sadra, filósofo persa do sec. xx, apresenta a Corbin uma verdadeira
ontologia da individuação. Se as essências eram colocadas como prioritárias e
imutáveis, Sadra dá prioridade à existência. Para ele é o ato de existir e o modo
de existir que determinam o que uma essencia é. “O ato de existir é capaz de
muitos graus de intensificação.” Corbin chama o pensamento de Sadra de
“fenomenologia do ato de existir”26. A fenomenologia das intensidades de
existência corresponde exatamente ao espaço qualitativo do mundus imaginalis,
pois é só ali, onde estas diferenças qualitativas, estas intensificações e
graduações do ser podem ocorrer. O grau de individuação daquela alma é que
determinará o quão próxima ela está do encontro com seu Anjo.]
26
Tom CHEETHAM , The World Turned Inside Out: Henry Corbin and Islamic Mysticism, Connecticut, Spring
Journal, 2003, p. 91.
27
A origem deste universo impessoal é retraçada por Corbin e não remete à Descartes mas a um momento
muito interior: a vitória da filosofia de Averroes em detrimento da de Avicena. O universo de Averroes não
possui a conexão pessoal entre a alma individual e seu arquetipo e está baseada na conexão abstrata entre
céu e terra que nega o papel cósmico da Presença, da individualidade, do conhecimento pessoal e revelatório.
Este embate, que possui consequências decisivas para o pensamento ocidental, deverá ser discutido em outra
oportunidade.
é não saber por onde começar, nem para onde nadar contra a corrente pode
levar. Melhor seria deixar-se levar às cegas pela corrente, para um destino bem
conhecido? Segundo Cheetham:
“O Homem está morto” dirá sim algum Nietzsche do futuro nao muito
distante. Mas assim como o anúncio da morte de Deus foi necessário para seu
enterro e para a superaçao da crença alienante em um Deus abstrato a serviço de
interesses humanos espúrios, também o da morte do homem nos permitirá perceber
a pestilência do ar em torno de seu cadáver desenterrado e sair em busca, ou
melhor dizendo, “entrar” em busca de um fundamento supra-humano de seu ser que
lhe seja tanto imanente quanto transcendente – nem que se tenha de encontrá-lo a
partir da sepultura ou da beira do abismo.
28
Tom CHEETHAM , The World Turned Inside Out: Henry Corbin and Islamic Mysticism, Connecticut, Spring
Journal, 2003, p.95 ,96.