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Análise Psicológica (1995), 1-2 (XIII): 5-11

Mais ou Menos Mulher (*)

LUÍS ROBERT (**)


M A VILDE MODESTO (* * *)
MANUELA PACHECO (****)
CRISTINA VAZ JOÃO (* * * * *)
FILIPE DUARTE (******)

((Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,


Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou Patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século XVIII, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire.))'

O que é a mulher? Formulada assim, esta per- no caso de haver uma tal definição, ela não po-
gunta remete para uma definição: algo que con- deria ser negativa, dizendo, por exemplo, que a
viria a todo o sujeito mulher e só a ele. Um atri- mulher não é o homem.
buto exclusivo. Uma natureza feminina. Uma No entanto, mal abrimos um dicionário co-
essência universal e necessária. Além do mais, mum, tudo se complica. Homem: ser humano em
geral, mamifero bípede dotado de inteligência e
linguagem articulada. Mulher: a fémea da es-
~
pécie humana, pessoa do sexo feminino, depois
(*) Trabalho efectuado no quadro do Seminário da da puberdade, esposa. Há mais, mas esse mais é
((Antena do Campo Freudiano)) animado pelo Profes- irrelevante, pois não acrescenta nada de novo h
sor Doutor José Martinho, com participação de Luis impressão inicial: a mulher ((define-se)), não por
Robert, Mavilde Modesto, Manuela Pacheco, Cristina
Vaz João e redacção de Filipe Duarte. uma suposta identidade, que a tornaria igual a si
(**) Psicólogo. mesma, mas por uma diferença. E não se trata de
(***) Economista. uma diferença, como poderíamos crer, entre gé-
(****)Aluna, ISPA. nero e espécie (base, segundo Aristóteles, de
(*****) Aluna, ISPA. uma definição). Quer dizer: a mulher não é um
(*,*****) Docente em Filosofia. género nem uma espécie, é uma ((diferença)) no
' Alvaro de Campos (1985), «Tabacaria», in Poesias
de Alvaro de Campos, Mem Martins: Publicações que faz género ou espécie.
Europa- América. Mesmo assim, o problema mantém-se. Per-

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guntar pelo que é uma mulher, pressupõe ainda, culada por Freud, de que «todos os seres huma-
no horizonte subentendido da pergunta, uma nos, como resultado da sua disposição bissexual
definição. Uma mulher é... o quê? um x. Um x e da sua hereditariedade, combinam em si ca-
cuja natureza o tempo se encarregaria de trazer a racterísticas tanto masculinas como femininas9,
luz. Não é esta, porém, a via seguida por Lacan então, haveria que explicar como é que dessa
Na continuidade da reflexão freudiana, estaria bissexualidade original cada um dos sexos se
mais de acordo a seguinte formulação: o que posiciona subjectivamente como homem ou mu-
quer a mulher? (was will das weib?)2,estaria - lher. Este posicionamento subjectivo é, a nosso
disse bem - se o «das» da pergunta freudiana ver, fundamenta1,e reenvia-nos a ideia de que
não fosse um artigo definido, logo uma defini- assumir-se como homem ou mulher não é um
ção, embora sub-reptícia, da mulher. Este enun- dado natural, biológico. É mesmo o que nos per-
ciado tem a vantagem de colocar o acento tónico rnite entender o fenómeno da homossexuali-
no «will» (no querer), mas tem igualmente a dade ou do transexualismo, por exemplo, ou, de
desvantagem, pelo menos para Lacan, de não ser forma ainda mais contundente, como mostrará
mais, na verdade, que uma petição de princípio Lacan nos anos finais do seu ensino, a possibi-
velada, como se a mulher não fosse ela mesma 13 lidade de um gozo a que o homem poderia ter
problema e houvesse legitimidade, por isso, enn acesso na condição de posicionar-se subjectiva-
fazer a pergunta: o que quer ela? O próprio mente do lado feminino.
Freud não parece muito inclinado para aí, ao Mas continuemos. Haverá, no meio de tantas
designar a mulher como um «dark continent)). vicissitudes por que passa o desenvolvimento da
sexualidade, algum factor nuclear e estruturante?
«Creio - diz Freud - que encontrámos esse
O CONTINENTE OBSCURO factor especifico (...), pois reside no complexo de
castração. D~
Na ausência de uma definição, a mulher apa- Já antes, num texto de 1925, Freud havia sa-
rece como um enigma. É isso mesmo que re- lientado a importância deste factor em articu-
conhece Freud quando diz, num artigo de 1933: lação com um outro o complexo de Édipo: «No
«Através de toda a história, as pessoas saíram: que diz respeito a relação entre os complexos de
desnorteadas, na tentativa de decifrar o enigma Édipo e de Castração, há um contraste funda-
da natureza da feminilidade.))' mental entre os dois sexos. Enquanto que no me-
Este desnorteamento, esta falta de orientação nino o complexo de Édipo .4 destruido pelo com-
no que concerne a feminilidade, não impede, os plexo de castração, nas meninas é tornado pos-
homens nomeadamente, de lançar a pergunta sivel e provocado pelo complexo de castração.»'
sobre o que querem elas. E é também o que per- É portanto o complexo de castração que vem
mite a Freud o estabelecimento de uma genealo- instalar a menina no complexo de Édipo. Como
gia, onde procura inventariar os momentos fun- é que isto acontece? Segundo as palavras de
damentais da constituição da feminilidade. «Põe- Freud, ((o complexo de castração das meninas
-se então a questão de saber - diz ele - como é (...) começa com a visão dos orgãos genitais do
que a rapariga passa da mãe para a vinculacão outro sexo. Notam imediatamente a sua dife-
ao pai? Ou, por outras palavras, como passa da
sua fase masculina para a fase feminina (...)?4
Poderia ser outra ainda a formulação da questão. S. Freud (1989), Algumas consequências psíquicas
Se tomarmos como ponto de partida a ideia, veí- da diferença anatómica entre os sexos, in Textos
Essenciais de Psicanálise, Mem Martins: Publicações
Europa-América, p. 154.
* Carmen Gallano, Qué quiere Ia mujer lacaniana?, '' S. Freud (1989). A Feminilidade, in Textos Essen-
Correo de1 Campo Freudiano en Andalucia, 13, Fev. ciais de Psicanálise, Mem Martins: Publicações Eu-
1993. ropa-América, p. i 67.
' S . Freud (1989), A Feminilidade, in Textos Essen- ' S. Freud (1 989), Algumas consequências psíquicas
ciais de Psicanálise, Mem Martins: Publicações Eu- da diferença anatómica entre os sexos, in Textos
ropa-América, p. 157. Essenciais de Psicanálise, Mem Martins: Publicações
' Idem, p. 162. Europa-América, p. 153.

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rença (...) e também a sua importância. Sentem- imaginário (a identificacão a mãe, a boneca),
se seriamente prejudicadas, declarando muitas mas no registo da equivalência simbólica (em
vezes que também querem “ter uma coisa como que o bebé toma o lugar do falo) que deve situar-
aquela” e caem vítimas da inveja do pénis.»X -se a problemática da feminilidade. Segundo: é
Mas isto, dito assim, pode iludir-nos. Na essa equivalência simbólica que constitui e
verdade - e Freud sabe-o - a questão fulcral não ordena o desejo da mulher no sentido do que
reside na privação do pénis, do lado da menina, Freud considera ser a feminilidade normal. Ter-
mas antes no reconhecimento, por parte desta, de ceiro: esta feminilidade normal traduz-se numa
que a mãe não o tem. «O seu amor - diz Freud - equação: mulher = mãe.
era dedicado a mãe fálica. Com a descoberta de Deste modo, o círculo fechar-se-ia. Estaria
que a mãe é castrada, torna-se possível desistir completo o quadro: mulher = mãe. A pergunta
dela como objecto, de modo que os motivos para sobre o que quer uma mulher «normal», respon-
a hostilidade, que de há muito se vinham acumu- der-se-ia: ser mãe. Mas nem mesmo Freud pare-
lando, ganham preponderância. Isto significa, ce estar muito convencido desse happy end ou
portanto, que em resultado da descoberta da fal- porque a «via normal», como ele a denomina,
ta de um pénis nas mulheres, estas baixam de não é exclusiva, deixando em aberto a possibili-
valor aos olhos das meninas...»‘ E, um pouco dade a outras vias (neurose, complexo de mascu-
mais a frente, acrescenta Freud «O desejo que linidade), além de que ser mãe nunca é uma coi-
faz com que a menina se volte para o pai é sem sa linear e pacífica (como Freud demonstra) ou
dúvida e originalmente o desejo de um pénis que porque, sobre a questão da mulher, é tudo «in-
a mãe lhe recusou e que agora espera receber do completo e fragmentário»: «Se os senhores que-
pai. No entanto - e isto, no nosso entender, é que rem saber mais - conclui Freud - a respeito da
deve ser sublinhado - a situação feminina é feminilidade, estudem as experiências da vossa
apenas estabelecida se o desejo de um pénis f o r própria vida, ou dediquem-se aos poetas, ou
substituído pelo desejo de um bebé, isto é, se de esperem até que a ciência vos possa dar uma
acordo com uma (...) equivalência simbólica, o informação mais profunda e coerente.»”
bebé tomar o lugar do pénis. Não esqueçamos
que a menina j á anteriormente desejara um
bebé, na fase fálica não perturbada; era esse, A MULHER NÃO EXISTE
claro, o significado de ela brincar com bonecas.
Mas essas brincadeiras não eram de facto a ex- Por certo, Freud não quer dizer, com o seu
pressão da sua feminilidade; serviam como iden- repto, que devemos esperar por um avanço da
tificação com a mãe (...) Ela desempenhava o ciências biológicas ou psicológicas para lançar
papel da mãe e a boneca era ela própria: podia uma nova luz sobre a feminilidade. Tal suposi-
fazer com o bebé tudo o que a mãe costumava ção é inconsequente. Além de que não encontra
fazer com ela. Só com a emergência do desejo de eco nas palavras de Freud, que diz, peremptoria-
um pénis é que a boneca bebé se transforma mente: «E agora os senhores j á estão prepara-
num bebé filho de seu pai, e a partir dai, o alvo dos para ouvir dizer que também a psicologia é
mais forte do desejo feminino.»“ incapaz de solucionar o enigma da feminili-
Transcrevemos grande parte deste parágrafo dade.)>‘’
porque ele é esclarecedor, em muitos aspectos, Deste modo, Freud livra-nos de uma tentação
do que pensamos ser o núcleo duro da reflexão - tão vulgar e na moda, hoje em dia - de querer
freudiana em torno da feminilidade. Primeiro: reduzir as questões relativas A sexualidade a
não é num registo propriamente real (o pénis) ou uma explicação - e normalização - bio-psico-
lógica. O que ressalta disto é a diferença, nítida,
entre a psicanálise e tudo o resto.
Entendamos assim o repto freudiano: o que
’ S. Freud (1989), A Feminilidade, in Textos Essen-
ciais de Psicanálise, Mem Martins: Publicações Euro-
pa-América, p. 168.
Idem, p. 169. II Ibidem, p. 177.
‘ O Ibidem, p. 17 i . l2 Ibidem, p. 160.

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pode dar-nos uma informação mais profunda I: medida em que a mãe deseja o Falo, que o Nome
coerente, no sentido de poder logificar a expe- do pai, como significante fundamental, pode
riência, é um novo ponto de vista: o ponto de entrar no discurso materno, obstando assim a
vista da estrutura. relação especular entre a mãe e o filho. A mãe
surge aqui como um «nome da castração)). É
A partir do axioma fundamental de que «O in- pelo seu desejo que se põe em funcionamento o
consciente está estruturado como uma 1ingua.- processo da metáfora paterna (o significante do
g e m , Lacan desenvolve o que decorre logica- Nome do pai substituindo-se ao Desejo da mãe),
mente desse axioma: a teoria do significante e, o processo que funda o sujeito sob a lei paterna.
com ela, o realce - e mesmo a constituição - de Mas não é tudo A questão da mulher - e da
um novo registo (o Simbólico), a atar ao Real [: própria mãe - não fica solucionada exclusiva-
ao imaginário. É com esta ((ferramenta)) que mente a partir desta função do desejo. Como diz
Lacan promove um ((retorno a Freud)). Marie-Hélène Brousse, «as mulheres não são
Poderíamos pontuar esse «retorno» com base “toda-mãe” e a mãe não é toda desejo mater-
na articulação de três termos introduzidos por O que há mais, ainda? O gozo. O gozo
Lacan: o Desejo da Mãe, Nome-do-pai e Falo. materno, na relação da mãe com o filho, enquan-
Com eles, Lacan, ao mesmo tempo que forma. to objecto dessa ((perversão legal)), como Ihe
liza os conceitos freudianos (nomeadamente CI chama Marie-Hélène Brousse. «Que ocorre -
complexo de castração e o complexo de Édipo), pergunta Lacan - para o objecto que é o filho.?
permite avançar um pouco mais, na medida erri Acontece que neste caso o que intervém não é a
que traz a luz o que estava implícito nesses função “Desejo da Mãe”; não é a função cas-
conceitos. Como sublinha Marie-Hélène Brous-. tração; é a função gozo, o que implica que falta
se), «nesta formalização do complexo de Édipo precisamente a barreira do desejo pelo f l l h o . A
há um passo mais, em relação a Freud, que é LI barreira - que é o desejo materno -pelo filho.
redução da mãe ao seu papel no simbólico. Não se trata necessariamente de mulheres
Quer dizer, no processo de constituição do psicóticas. Trata-se (...) de mulheres em todos os
sujeito do inconsciente como tal. Do sujeito co- tipos de estrutura clínica.»1sMas há também o
mo efeito do significante. Dito de outra maneira. gozo propriamente feminino, que, para j á ,
é um processo de purificação do significante dcl permanece um mistério. O gozo de que aqui se
que é a mãe na experiência psicanalítica. Temor: fala, não é um complemento (não completa), mas
uma mãe da qual fala o analisante: mãe real ou um «suplemento». Já Freud tinha percebido esta
da realidade, mãe imaginária e mãe simbólica. dimensão de suplência quando diz, no artigo de
A formalização por Lacan de Édipo consiste pre- 1933, que as mulheres «são levadas a dar aos
cisamente em reduzir a mãe a função desejo. O seus encantos uma compensação tardia para a
que implica a sua definição em termos de cas- sua inferioridade sexual original»‘6.
tração. Então temos uma equivalência: “a mãe 6: Temos, então, duas equações fundamentais: a
a função do desejo no ordenamento subjectivo primeira introduzida por Freud (mulher = mãe),
do desenvolvimento da criança e é equivalente ii a segunda introduzida por Lacan (mãe = desejo).
função castração. ’5)’’ E temos ainda uma proposição algo enigmática:
O ponto de partida estrutural, proposto por a mulher mão-toda)). Não toda mãe, naturalmen-
Lacan, é a castração da mãe, enquanto introduz CI te. É o que se pode inferir das considerações
sujeito na prova do «desejo do Outro)), do Outro anteriores.
materno, que não tem. Mas subsiste uma questão: se a mulher entra
A equivalência estabelecida por Freud entre a no Simbólico como mãe (e não como mulher -
mulher e a mãe vem acrescentar-se uma outra:
mãe = Desejo da Mãe = função castração. E é na.
l4 Ibidem.
ls Citado por M.H. Brousse no mesmo artigo.
” M. H. Brousse (1993), Madre o mujer, in Correo ‘(i S. Freud (1989), A Feminilidade, in Textos Essen-
de1 Campo Freudiano en Andalucia (número supra- ciais de Psicanálise, Mem Martins: Publicações Eu-
citado). ropa-América, p. 174.

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daí Lacan insistir na ausência de um significante acrescenta: «Parece que as mulheres fizeram
da mulher, um significante, como tal, abolido do poucas contribuições para as descobertas e
Simbólico), então pode concluir-se, talvez de invenções da história da civilização; há, no en-
modo escandaloso para alguns, que «a mulher tanto, uma técnica que possivelmente foram elas
não existe». «Isto não significa - como realça que inventaram - a técnica do entrançamento e
Jacques-Alain Miller - que o lugar da mulher da tecelagem. Se tal é verdade, somos tentados a
não exista, mas que este lugar está vazio. E que adivinhar o motivo inconsciente que levou a esse
este lugar esteja vazio não impede que nele se feito. A própria natureza parece ter dado o mo-
encontrem máscaras, que são máscaras do na- delo que essa realizacão imita, fazendo crescer
da.»” É isso que faz correr os homens e os na maturidade os pêlos púbicos que escondem
poetas, atraídos pela miragem que não cessa de os orgãos genitais. O passo que faltava dar era
lograr. Se Goethe pode concluir o seu Fausto fazer com que os fios se unissem uns aos outros,
com estas palavras - «O eterno feminino/Atrai- enquanto que no corpo estão fixos na pele e ape-
-nos para si» - é porque essa Mulher que se nas se emaranham.»“
busca, que ( m ã o pára de não se escrever))., é Independentemente da pregnância ou não da
impossível. O que o homem encontra não é a hipótese de Freud, parece-nos existir, no míni-
mulher, mas o que vela a sua ausência: a másca- mo, um equívoco, não no sentido do que é enun-
ra. O simulacro da mulher. (4que chamamos ciado, mas no lugar mesmo, da enunciação: a
simulacro (semblant)? - pergunta J.A.Miller. - pretensa origem orgânica.
O que salta imediatamente a vista são os im-
Simulacro é o que tem por função velar o nada.
passes, e mesmo os paradoxos, da reflexão freu-
O véu, neste sentido, é o primeiro dos simula-
diana, que parece vacilar constantemente entre
cros. Por isso se preocupam em velar as mulhe-
uma recusa do modelo biológico, por um lado, e
res. Há uma grande preocupacão na cultura em um deslize, ainda que involuntário, para esse
como se devem velar as mulheres; também pelo modelo explicativo, por outro. O resvalo do
que se deve velar nelas. Se se cobre as mulheres
pensamento freudiano deve-se menos, estamos
éporque a mulher não se pode descobrir, há que em crer, a um propósito explícito e deliberado do
inventá-la»lx (Sublinhado nosso). que a ausência, ela sim determinante, de uma 1ó-
E cada época inventa a sua «mulher». Tudo gica heuristicamente fecunda, ou seja, de um
depende de como e quando se vela o quê. O modelo, que não estando hipotecado a biologia,
manejo do véu pode «falo-cizar)) qualquer parte pudesse dar conta, não só da disjunção «ter ou
do corpo. Não há aqui nenhuma determinação não-ter», mas igualmente, e sobretudo, dessa ou-
orgânica, ou, pelo menos, a existir uma tal deter- tra disjunção: «ter ou sem. É o que se pode con-
minação, ela não é fundamental. O que é inves- cluir das palavras de J.-A. Miller: ((Parece-me
tido e desinvestido resulta essencialmente do que Freud - sublinha ele - ao colocar como pon-
deslocamento do véu. As partes do corpo que de- to de partida o não ter corporal, acentuou a po-
vem mostrar-se e ocultar-se dependem desse sição feminina do lado do ter. E há que investi-
movimento. E por isso variam historicamente. gar a solução do lado do ser. Solução que não é
Freud, em duas passagens do artigo já várias a de colmatar a brecha, mas a de metabolizá-Ia,
vezes citado, procura fundar, a título de hipótese, de dialectizá-Ia, de ser a brecha.P
certas manifestações da feminilidade (como o Há que investigar, como diz Jacques-Alain
pudor, por exemplo) numa privação orgânica. Miller, do lado do ser. Mas há que ir um pouco
Diz ele: (4vergonha (...) tem por propósito, mais além. «Porque a posição feminina pode
cremos, esconder essa deficiência genitaln. E chegar B experiência do não ser, ser o nada.»*‘
Se, de acordo com a disjunção interrogada por

” J.- A. Miller (1993), Conferência de Clausura de


I’ S. Freud (1989), A Feminilidade, in Textos Essen-
Ias IX”s Jornadas de1 Campo Freudiano en Espana, in ciais de Psicanálise, Mem Martins: Publicações Euro-
Correo de1 Campo Freudianoen Andalucia (níimero pa-América, p. 174.
supracitado). 2” J.- A. Miller, artigo citado.
IR Idem. 2 1 Idem.

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Freud (não ter ou ter), a posição feminina, pelo «Creio que Lacan - frisa a este propósito J-A.
menos no seu desenvolvimento habitual, apare- Miller - denomina uma verdadeira mulher
cia ligada a maternidade (o que traduzimos numa quando a função mãe não colmatou a brecha do
equação: mulher = mãe), mediante a introdução, sujeito; quando se revela neste sujeito que está
por Lacan, da lógica do significante, tudo se al- preparado para o sacrifício de todos os bens,
tera. E poderíamos mesmo afirmar que «a mu- para o sacrifício do ter: (...) Uma verdadeira
lher se mede pela sua distância a mãe - quanto mulher é a incarnação da castração, pois (...)
mais mãe, menos mulher»22.A mulher, enquanto intenta ferir o homem no que ele tem de mais
mãe, coloca-se do lado do ter. «Mas - segundo precioso.»25
Lacan - não há solução para a mulher do lado É o que faz Medeia - essa figura da mitologia
do ter: E, quando há, são soluções falsas ou ino- invocada por Lacan como um testemunho
centes. Se há uma solução, ela necessitaria da paradigmático do que é uma verdadeira mulher
presença, da incidência, de um não ter assumi- «O acto duma verdadeira mulher tem sempre a

do.))” ver com a estrutura do acto de Medeia. Tem a


Talvez não fosse, por isso, inteiramente des- ver com o sacriJício do que se possui de mais
cabido sobrepor Hamlet a Freud e colocar í i precioso, para abrir no Outro uma brecha que
questão «ser ou não ser?» não possa colmatar-se.»26
São ilustrativas, a este respeito, certas passa-
gens da tragédia homónima, tal como Eurípides
MAIS ALÉM a fez chegar até nós. Quando a Corifeia pergunta
a Medeia se ela ousará matar os seus dois filhos,
Ser ou não ser o falo? Mas também: ser ou esta responde: ((É isso que sobretudo despeda-
não ser uma verdadeira mulher? çurá o coração do meu marido.» Ou quando diz
Por agora, isto é enigmático. Na medida em a Jasão: ((Compenetra-tedisto: a minha dor é
que procurámos mostrar que a mulher, como uma vantagem se de mim nãoficares rindo.))OU,
substância ou atributo, isoláveis e definíveis, não finalmente, quando, respondendo a pergunta de
Jasão - ((Porqueos mataste?))-, ela diz: «Para
existe. Tal não impede, contudo, de posicionar 0:;
seres falantes segundo duas modalidades de go-
causar a tua infelicidade.»”
Com isto, Medeia ((utilizaa sua própria cas-
zo: o gozo todo ou não-todo fálico. Trata-se, n:i
tração para produzir no Outro uma brecha que
verdade, de posições e não de entidades substan-
não possa colmatar-se». E, assim, incarna a
tivas ou autónomas. A ((posição feminina)) pode
própria morte. É por isso que ela é insuportável.
ser ocupada tanto por «homens» como por «mu-
O que permite a Jasão dizer, colérico: ((Oh,
lheres)). ((Quandoum ser falante se alinha sob u
monstro! Oh, mulher odiosa entre todas aos
bandeira das mulheres - diz Lacan - elefunda-
deuses e a mim e a raça inteira dos homens!»
se por ser não todo a situar-se na função fálica.
Esta mulher, com o seu acto, vai mais além do
É isto que define justamente a mulhec só que A gozo fálico e do princípio de prazer. Mais além
mulher, isto só se pode escrever barrando-se o do conhecido e dos limites traçados pela deusa
,d Não há A mulher, artigo definido para de- Justiça. Ela funda uma nova episteme, um novo
signar o universal. Não há A rnulhel; pois, (...) saber: «O mais além significa que uma verdadei-
na sua essência, ela não é toda.»24 ra mulher explora com o seu acto uma zona
O A barrado ($) permite-nos entender um desconhecida que hoje ultrapassa os limites e
pouco melhor o que é, para Lacan, uma «verda- que tem como efeito, como dizia Lacan, algo de
deira)) mulher: não a que tem (a mãe), ou a que i extraviado. Explora uma região sem frontei-
(a mulher com «postiço», ou máscara), mas a rus...»*’
que assume decididamente o não ter e o não ser.

25 J.-A. Miller, artigo citado.


22 Ibidem. 26 Idem.
23 Citado por J.-A. Miller. 27 Euripedes, Medeia, Lisboa: Editorial Inquérito.
24 J. Lacan (1975), Encore, Paris: Seuii, p. 68. *’ J.-A. Miller, artigo citado.

I0
Para além de Medeia, que se posiciona do impossível materialmente: faltam as palavras. É
lado da morte e da destruição, poderíamos dar justamente por esse impossível que a verdade
outro exemplo, diverso sem dúvida, mas que tem provém do real.»’4
com este a seguinte afinidade: vai mais além do
falo. Trata-se da mística.
«O testemunho essencial dos místicos - acen- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
tua Lacan - é dizer que eles o experimentaram
[o Outro gozo], mas não sabem nada dele.»”’ Áviia, Santa Teresa de (1 988). Moradas. Lisboa: Assí-
rio & Alvim.
Há um aforismo de Wittgenstein, no final do Brousse, M.-H. (1993). Madre o mujer. Correo de1
Tratado Lógico-Filosófico, que vai precisamente Campo Freudiano en Andalucia, 13.
ao encontro dessa ideia. Diz ele: «Existe no en- Cruz, S. João da (1990). Poesias Completas. Lisboa:
tanto o inexprimivel. E o que se revela, é o Assírio & Alvim.
místico .)P’ Eurípedes (1 990). Medeia. Lisboa: Editorial Inquérito.
Freud, S. ( 1 989). Algumas consequências psíquicas da
O gozo místico é um gozo mais além do falo. diferença anatómica entre os sexos. In A. Freud
Mas é também um gozo mais além do saber e da (Ed.), Textos Essenciais da Psicanálise, Vol. 11.
palavra. Como diz S. João da Cruz: ((Grandes Mem Martins: Publicações Europa-América.
coisas entendihão direi o que senti/ que me Freud, S . (1989). A Feminilidade. In A. Freud (Ed.),
quedei não sabendo/ toda a ciência transcenden- Textos Essenciais da Psicanálise, Vol. 11. Mem
Martins: Publicações Europa-América.
do.. .)P1
Gallano, C. (1993). Qué quiere Ia mujer lacaniana?.
O caso de S. João da Cruz é exemplar. Ele dá Correo de1 Campo Freudiano en Andalucia, 13.
corpo a ideia, expressa por Lacan no Seminário Lacan, J. ( 1 974). Télévision. Paris: Seuil.
((Encare)), de que «não se é forçado, quando se é Lacan, J. (1975). Le Séminaire, livre XX, «Encare».
macho, a colocar-se do lado do todo P x &I. Paris: Seuil.
Miller, J.-A. (1993). Conferencia de Clausura de Ias
Pode-se também colocar do lado do não-todo
IXas Jornadas de1 Campo Freudiano en Espana.
F x a].» Assim, quer sejam homens ou mu- Correo de1 Campo Freudiano en Andalucia, 13.
lheres, «eles experimentam a ideia de que deve Pessoa, F. (i985). Tabacaria. In Obra Poética ZZ:
haver um gozo que esteja mais Poesias de Alvaro de Campos. Lisboa: Círculo de
Leitores.
O que seria afinal uma verdadeira mulher? Wittgenstein, L. (1 989). Tratado Lógico-Filosójko.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Seria a que, não ocultando o não ser que a cons-
titui - tal como a qualquer outro sujeito - se RESUMO
torna, infinitamente Outra para si mesma, nesse
movimento d’alma que a palavra «ex-tasis» re- Trata-se de explicar porque é que o aforismo la-
caniano «A mulher não existe», é a consequência
flecte bem. Como diz Santa Teresa: «Vivo sem lógica dos enunciados freudianos sobre o enigna da fe-
viver em mim/ e tão alta vida espero/ que morro minilidade.
por não rnorrer.)P
Com isto, podemos fundar estruturalmente o ABSTRACT
impasse freudiano. Se o enigma da mulher in- This paper explains why the lacanien sentence
siste, é porque ela não é toda, e só pode, assim, «The woman doesn’t exist)) is the logic conclusion of
dizer-se parcialmente. Tal como a verdade: (por- the freudien’s purposes about the mistery of femi-
que dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é njnjty.

RESUME
I1 s’agit d’expliquer pourquoi I’aphorisme lacanien
*” J. Lacan, Encore, ibid, p. 71. «La femme n’existe pas» est Ia conséquence logique
I” L. Wittgenstein (1989), Tratado Lógico-Filosó-
des énoncés freudiens concernant I’énigme de Ia
fico, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian feminité .
” Citação incluída no ((Documento de Trabajo)), das
X”s Jornadas do Campo Freudiano em Espanha.
” J. Lacan, Encore,,ibid, p. 70.
li Santa Teresa de Avila (1 988), Seta de Fogo, Lis- ” J. Lacan, Televisão, S. Paulo: Jorge Zahar Editor,
boa: Assírio & Alvim. p. 11.

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