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ALÉM-ÉDIPO: UMA REVISÃO DA LÓGICA BINÁRIA E HETERONORMATIVA A

PARTIR DO CASO CLÍNICO O HOMEM DOS RATOS

Ligia Maria Durski1


Miriane Elisabeth de Souza Pereira2

Resumo: Sigmund Freud, ao que biógrafos e psicanalistas interessados pelo caso O Homem dos
Ratos denunciam, parece ter ocultado inúmeros aspectos referentes à mãe de seu paciente quando
da escrita do caso. Trata-se de uma importante informação dentro do campo psicanalítico, pois
aponta para certa intencionalidade de Freud em excluir elementos referentes à mãe que
possivelmente desestabilizariam sua concepção acerca do “papel da mãe e do feminino” na trama
edípica. Este trabalho apresenta tal denúncia especificamente a partir de comentários do psicanalista
brasileiro Renato Mezan e do biógrafo e psicanalista britânico Patrick Mahony. Com isso, ensaia-se
um questionamento sobre as possíveis consequências desse ocultamento, uma vez que este fato
sugere uma manipulação – consciente ou não – de Freud para validar sua concepção acerca do
Complexo de Édipo. Com esse exemplo, tentamos tornar mais clara a faceta ficcional desta
construção freudiana. Construção que, ao se pretender universal, encoberta, assim como a mãe
ocultada no caso o Homem dos Ratos, leituras e modalidades outras de sexuação para além de uma
lógica binária e heteronormativa.

Palavras-chave: Gênero. Psicanálise. Homem dos Ratos. Complexo de Édipo.

Introdução
O psicanalista Renato Mezan (1998) e o biógrafo Patrick Mahony (1991) indicam que Freud
ocultou de seu famoso caso clínico O Homem dos Ratos (1909) importantes informações que se
referem à figura da mãe do paciente analisado. Informações estas que, se consideradas, teriam como
consequência uma revisão interpretativa de Freud sobre um ponto essencial: o papel e função da
mãe na sintomatologia da neurose obsessiva e, subentendido a isso, na elaboração e conceituação
freudiana acerca do Complexo de Édipo.
Como será aqui demonstrado, esse fato nos leva à questão: é possível uma clinica
psicanalítica além-Édipo? Com isso, vale acrescentar que nos utilizaremos deste caso e do fato da
ocultação da figura da mãe no texto O Homem dos Ratos para abrir nosso debate, atendo-nos,
somente em um segundo momento, em textos que se situam no fim da obra freudiana, entre os anos
de 1923 e 1937, e que se referem ao feminino, à feminilidade e ao Complexo de Édipo
propriamente dito.

1
Psicóloga/Psicanalista, Doutora em Psicanálise pela Universidade de São Paulo (USP) – Curitiba/Brasil.
2
Psicóloga/Psicanalista, Mestre em Psicanálise pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) – Curitiba/Brasil.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Questionaremos, por fim, se não é justamente nessa possibilidade de um além-Édipo que se
encontra alguma ampliação da perspectiva psicanalítica frente a outras modalidades de subjetivação
que não se inscrevam em uma lógica binária, cisnormativa e heterossexual – guardando, deste
modo, uma postura ética que evite práticas excludentes e patologizantes.

A mãe do Homem dos Ratos


É a partir das transcrições do caso clínico O Homem dos Ratos, sessão a sessão, que Renato
Mezan (1998) percebe um recorte de Freud no que se refere à questão da mãe. No fim da
transcrição já da primeira sessão, uma frase chama atenção: “(...) Depois de eu lhe ter indicado
minhas condições [honorários e frequência], [Ernst Lanzer] diz que precisa falar com sua mãe, volta
no dia seguinte e aceita.” (FREUD apud MEZAN, 1998, p. 133/134). Ora, então era a mãe do
paciente quem decidia sobre a possibilidade do paciente iniciar a análise? Pelas indicações de
Mezan (1998), especialmente no que se refere ao âmbito financeiro, era mesmo a mãe de Ernst
Lanzer uma importante figura de poder na dinâmica familiar.
Um ponto curioso é que exatamente esta frase final fora omitida no texto publicado e Mezan
(1998) supõe que a retirada dessa informação se deve ao recorte que Freud decidiu fazer do caso –
um recorte nada aleatório, do nosso ponto de vista, posto que O Homem dos Ratos é conhecido
como um caso clínico que evidencia a sintomatologia da neurose obsessiva. Sintomatologia que,
por sua vez, centraliza-se nas questões referentes à rivalidade paterna, desejo e culpa pelo
assassinato do pai, empecilhos e caminhos salutares que levam a identificação com o pai,
necessidade de abandono da mãe como objeto de amor e de substituição do objeto amoroso por
figuras substitutivas, submissão ao pai como detentor desse objeto amoroso interditado, etc. Deixa-
se, com isso, o campo do materno, da mulher e das personagens femininas em um lugar de
importância secundária, mero objeto de escambo e mudança de proprietários que a ela teriam
usufruto ou a ela seriam interditados. No entanto, neste caso, era justamente a mãe do paciente a
detentora do controle financeiro da família e, como correntemente anunciam os psicanalistas:
dinheiro, fase anal e neurose obsessiva guardam importantes conexões.
Temos, em suma, que o Homem dos Ratos traz questões referentes ao fato do dinheiro
significar domínio e poder em sua família, entretanto a figura materna, justamente a detentora do
dinheiro, quase não aparece no relato do caso. Para Mezan (1998):

A mãe autoriza, por assim dizer, a análise [de Ernest], e a sombra dela paira sobre essas páginas
[do caso clínico]. Curiosamente, ela foi expurgada na sua quase totalidade do caso publicado;
lendo-o, mal se imaginaria que esse paciente teve uma mãe. Fala-se da dama, do pai e de outras

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coisas, mas a figura da mãe não tem muita importância na exposição definitiva de Freud (MEZAN,
1998, p. 149/150).

Em sincronia com esses fatos, o biógrafo Patrick Mahony (1991) afirma que uma possível
justificativa para essa supressão da figura da mãe seria manter o sigilo de informações que
pudessem levar à identificação do paciente. No entanto, ainda sim, considera tal explicação
insuficiente e admite: “(...) a mulher, nos casos principais de Freud, aparece como uma caricatura,
como uma “mulher estranha” fora do tempo e lugar” (MAHONY, 1991, p.50). Com isso, Mahony
(1991) propõe considerarmos o momento histórico em que Freud escreveu o caso, sendo comum em
seu tempo e em seu contexto sócio-político-cultural um papel secundário relegado à mulher.
Um fator quantitativo interessante nesse contexto é o fato de que Mahony (1991)
contabilizou nas transcrições freudianas do caso o mesmo número de referências à mãe e ao pai do
paciente. Ou seja, no texto publicado – naquilo que Freud recorta e sintetiza a partir das transcrições
propriamente ditas – reafirma-se o apontamento de Mezan (1998) de certa parcialidade de Freud
nesse exercício de centralizar no pai e nos dilemas psíquicos que tangenciam o campo paterno, os
fatores que determinam a então denominada neurose obsessiva e, por consequência e de maneira
subentendida, a conceituação do Complexo de Édipo.
O que essa parcialidade de Freud acerca do caso do Homem dos Ratos nos ajuda a fazer
perceptível é o caráter ficcional do Édipo em suas elaborações teóricas. Ou seja, se for de fato uma
ficção, como tentaremos mostrar mais detidamente adiante, o Édipo significa então uma construção
narrativa que guarda a própria possibilidade de desconstrução, reconstrução, ampliação,
ressignificação, etc. – não é estável, fixo e ou factual. Tal afirmativa, se considerada, desestabiliza a
tendência a pensarmos o Complexo de Édipo como universal, além de obrigar psicanalistas a
reverem olhares, escutas e interpretações de seus casos clínicos quando restritos ao modelo de
subjetivação subentendido na trama edípica proposta por Freud.

O Édipo freudiano sustenta uma perspectiva machista e misógina?


Acrescida dessa informação sobre certa ocultação e parcialidade no texto O Homem dos
Ratos, é justamente o “papel da mãe e do feminino” na trama edípica que nos leva inevitavelmente
a pensar se existe ou não uma clínica psicanalítica além-Édipo, posto que, mesmo que muitos casos
clínicos de fato possam se inscrever e trazer dilemas psíquicos contemplados pelas proposições
edípicas freudianas, outros tantos escapam a esse modelo.
Sabe-se que a questão da mulher, do feminino e da feminilidade em Freud é espinhosa e
polêmica. Como sua obra abrange uma extensão temporal que parte do final do século XIX e se

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encerra aproximadamente no ano de 1938 - sendo mais de 50 anos de escritos, formulações teóricas
e reformulações que Freud constrói sempre paralelamente às suas reflexões clínicas - é preciso
situar que escolhemos realizar, portanto, um recorte temporal e temático de textos entre os anos de
1923 e 1937. Com isso, neste momento da discussão, a argumentação será baseada naquilo que
Freud estabelece em um período já maduro da obra, com formulações já fundamentadas na segunda
teoria pulsional e na segunda tópica. Os textos selecionados para explicitar a parcialidade e
ficcionalidade freudiana acerca do Édipo e a partir dos quais podemos, então, afirmar haver uma
tendência machista e misógina na leitura freudiana sobre o humano e sobre a clínica são,
especificamente: O Eu e o Id (1923); A Organização Genital Infantil (1923); O Problema
Econômico do Masoquismo (1924); A Dissolução do Complexo de Édipo (1924); Algumas
Consequências Psíquicas da Distinção Anatômica entre os Sexos (1925); Sexualidade Feminina
(1931); Conferência XXXIII – Sobre a Feminilidade (1932), e; Análise Terminável e Interminável
(1937).
Ponderando novamente o contexto histórico no qual Freud viveu nesses anos de produção
intelectual: na Viena do século XX, contexto no qual o papel clássico delegado à mulher era de
mãe, esposa e dona de casa, sendo esta uma norma naturalizada e praticamente inquestionável, pois
nem mesmo o direito ao voto, no inicio do século XX, havia sido conquistado pelas mulheres.
Podemos, então, compreender melhor porque Freud ecoa em sua obra, se utilizando de justificativas
biológicas, que caberia à mulher o papel “natural” de tornar-se mãe e esposa. Sendo, para ele, o
desfecho de casar-se e de ter um filho aquilo que possibilitaria à mulher o acesso à feminilidade, tal
como ele a pensava.
Dentro desse contexto da feminilidade, um importante ponto que o pai da psicanálise não
abandona e que fica estabelecido em sua obra nos anos de 1925 é a necessária passagem do prazer
clitoriano para o prazer vaginal. Freud defendia que para tornar-se mulher, a menina deveria
abandonar a satisfação clitoriana – por ele nomeada de masturbatória, fálica e masculina, pois para
Freud o clitóris era pensado como um pequeno pênis. Esse abandono era necessário para dar acesso
ao prazer vaginal – esse, sim, feminino. Em suas palavras:

(...) pareceu-me que a masturbação está mais afastada da natureza das mulheres que da dos homens e a
solução do problema poderia ser auxiliada pela reflexão de que a masturbação, pelo menos do clitóris,
é uma atividade masculina, e que a eliminação da sexualidade clitoridiana constitui precondição
necessária para o desenvolvimento da feminilidade. (FREUD, 1925, p. 152).

Freud insiste nessa perspectiva do “tornar-se mulher” ao situar que a menina tende a
abandonar sua “masturbação masculina”, fálica e clitoriana, por consequência da inveja do pênis:

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Não posso explicar a oposição que por esse modo é levantada pelas meninas à masturbação fálica,
exceto supondo existir algum fator concorrente que faça a menina voltar-se violentamente contra essa
atividade prazerosa. Esse fator está bem à mão. Não pode ser outra coisa senão seu sentimento
narcísico de humilhação ligado à inveja do pênis, o lembrete de que, afinal de contas, esse é um ponto
no qual ela não pode competir com os meninos, e que assim seria melhor para ela abandonar a ideia de
fazê-lo. Seu reconhecimento da distinção anatômica entre os sexos força-a a afastar-se da
masculinidade e da masturbação masculina, para novas linhas que conduzem ao desenvolvimento da
feminilidade. (...) Agora, porém, a libido da menina desliza para uma nova posição ao longo da linha -
não há outra maneira de exprimi-lo - da equação ‘pênis-criança’. Ela abandona seu desejo de um pênis
e coloca em seu lugar o desejo de um filho; com esse fim em vista, toma o pai como objeto de amor.
A mãe se torna o objeto de seu ciúme. A menina transformou-se em uma pequena mulher. (FREUD,
1925, p. 152).

Outro ponto questionável no que Freud traz sobre o tema da sexualidade feminina seria certa
inferioridade moral/intelectual das mulheres pelo fato de não conquistarem facilmente um
“superego forte”, ao qual, na perspectiva freudiana, os homens seriam mais propensos:

Não posso fugir à noção (embora hesite em lhe dar expressão) de que, para as mulheres, o nível
daquilo que é eticamente normal, é diferente do que ele é nos homens. Seu superego nunca é tão
inexorável, tão impessoal, tão independente de suas origens emocionais como exigimos que o seja nos
homens. Os traços de caráter que críticos de todas as épocas erigiram contra as mulheres - que
demonstram menor senso de justiça que os homens, que estão menos aptas a submeter-se às grandes
exigências da vida, que são mais amiúde influenciadas em seus julgamentos por sentimentos de
afeição ou hostilidade - todos eles seriam amplamente explicados pela modificação na formação de
seu superego que acima inferimos. (FREUD, 1925, p. 153).

Aqui, vemos Freud propagando a ideia de que mulheres tenderiam a ser “excessivamente
emotivas e sensíveis”, o que as impossibilitaria um adequado senso crítico.
Também Freud, agora já em 1931, faz a seguinte afirmação:

Na situação edipiana, porém, a menina tem seu pai como objeto amoroso, e espera-se que no curso
normal do desenvolvimento ela haverá de passar desse objeto paterno para sua escolha objetal
definitiva. Com o passar do tempo, portanto, uma menina tem de mudar de zona erógena e de objeto -
e um menino mantém ambos. Surge então a questão de saber como isto ocorre: particularmente, como
é que a menina passa da vinculação com sua mãe para a vinculação com seu pai? ou, em outros
termos, como passa ela da fase masculina para a feminina, à qual biologicamente está destinada?
(FREUD, 1931, p.82, o grifo é nosso).

Ora, vemos aqui um autor insistentemente arraigado: 1º. Numa perspectiva de família
composta pela triangulação mãe/pai/filho; 2º. Supondo uma hetero-cisnormatividade no que nomeia
de pai e mãe e, ainda; 3º. Sustentando sua argumentação em um biologicismo superficial e mal
explicado. Além disso, como parece conter essa última citação, a menina começaria a construção de
sua sexualidade, por assim dizer, assim como o menino. Porém, no caso da menina, haveria um
duplo trabalho nesse abandonar a mãe, identificar-se com ela e ter o pai como objeto de amor. Ou
seja, pergunta-se: caso não fosse essa “forçassão” de barra desse duplo trabalho, todos os bebês se
constituiriam aos moldes do dito bebê masculino freudiano?

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Não cabe aqui evidenciar os pontos que na obra freudiana deixam clara a associação entre
masculino/ativo/agressivo e feminino/passivo/amável – outro tema de sua obra que se encontra
impregnado de preconceito. Nem dar mais detalhes sobre a dita “inveja do pênis” que assolaria
crianças que, porventura, ao nascerem com o chamado aparelho genital feminino, venham a querer
e/ou poder se constituir sob o julgo de “mulher”. Também não faremos alusão ao chamado
masoquismo feminino, que em Freud parece ser o ônus do tornar-se mulher, no sentido de uma
supressão necessária da agressividade – supressão que possibilitaria a esses seres o nascimento de
um “ser feminino”. Apenas cabe aqui perguntar: já não passamos da hora de, como psicanalistas,
questionar e ultrapassar uma prática clínica sustentada pelo modelo normativo edípico freudiano?

Édipo: uma ficção


Parece tão óbvia a violência e a parcialidade dessas normas de gênero nas liberdades
individuais e, infelizmente, muitos psicanalistas ainda pautam-se nessas arbitrariedades, endossando
violências. Afinal, tal atitude efetivamente condiz com a ética da psicanálise? É preciso ultrapassar
diversos postulados psicanalíticos que se sustentam em concepções e interpretações supostamente
inquestionáveis por basearem-se no dimorfismo sexual, pois, embora Freud defenda suas ideias
acerca do Complexo de Édipo, ele também considera que não nascemos com um Eu a priori, que o
Eu tem antes que ser construído e, sendo assim, haveria um “espaço” aberto entre a materialidade
do corpo e o que é a apropriação, percepção, interpretação, modificação, adaptação e uso desse
corpo.
Em outros termos, se o Eu é uma construção que compila os itens que tornam inteligíveis ao
indivíduo sua noção de identidade, então essa identidade é aberta, é em devir – o que significa certa
flexibilidade e fluidez a partir da qual traços antigos podem ser revistos, novos traços podem ser
incluídos, etc. Uma rigidez identitária apontaria, portanto, para efeitos totalizantes na forma como
dado individuo consegue organizar a maneira como vive as relações consigo mesmo e com o outro,
deflagrando uma possível inflexibilidade e intolerância frente a manifestações não condizentes com
sua visão e expectativas de mundo.
Assim, embora Freud sustente que o princípio de prazer é como que o “centro regulador” da
sexualidade humana, por assim dizer, e que não há uma identidade ou reconhecimento de si
garantidos e/ou intactos em termos da possibilidade de identificar-se como homem ou mulher, ele
parece hesitar em levar essas duas ideias a consequências mais radicais, pois parece ausente em sua
obra a problematização das mais diversas modalidades e experimentações do corpo e da

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sexualidade que, endossadas a partir da ideia de que não existe um Eu a priori, ultrapassam a
exclusividade do modelo heterossexual como único pertencente ao campo do “desejável”,
“normal”, “natural” e/ou “saudável”.
Nesse sentido, vale trazer na íntegra uma citação de Judith Butler (1990):

Se o sexo não limita o gênero, então talvez haja gêneros, maneiras de interpretar culturalmente o
corpo sexuado, que não são de forma alguma limitados pela aparente dualidade do sexo.
Consideremos ainda a consequência de que, se o gênero é algo que a pessoa se torna – mas nunca
pode ser -, então o próprio gênero é uma espécie de devir ou atividade, e não deve ser concebido como
substantivo, como coisa substantiva ou marcador cultural estático, mas antes como uma ação
incessante e repetida de algum tipo. Se o gênero não está amarrado ao sexo, causal ou
expressivamente, então ele é um tipo de ação que pode potencialmente proliferar-se além dos limites
binários impostos pelo aspecto binário aparente do sexo. (BUTLER, 1990, p.163).

Importa aqui, portanto, chamar a atenção para muitos dos postulados psicanalíticos que
fortalecem ideais normativos problemáticos. É válido acessarmos mais uma citação esclarecedora
sobre a questão da performatividade, tema central na argumentação de Butler, posto que a ideia de
performatividade corrobora justamente com a questão de que não temos um Eu a priori, de que ele é
uma construção:

Entretanto, se os atributos de gênero não são expressivos, mas performativos, então constituem
efetivamente a identidade que pretensamente expressariam ou revelariam. A distinção entre expressão
e performatividade é crucial. Se os atributos e atos do gênero, as várias maneiras como o corpo mostra
ou produz sua significação cultural, são performativos, então não há identidade preexistente pela qual
um ato ou atributo possa ser medido; não haveria atos de gênero verdadeiros ou falsos, reais ou
distorcidos, e a postulação de uma identidade de gênero verdadeira se revelaria uma ficção
reguladora. O fato de a realidade do gênero ser criada mediante performances sociais contínuas
significa que as próprias noções de sexo essencial e de masculinidade ou feminilidade verdadeiras ou
permanentes também são constituídas, como parte da estratégia que oculta o caráter performativo do
gênero e as possibilidades performativas de proliferação das configurações de gênero fora das
estruturas restritivas da dominação masculinista e da heterossexualidade compulsória. (BUTLER,
1990, p.201, o grifo é nosso).

Em paralelo à ideia butleriana de performatividade, podemos tensionar o Complexo de


Édipo freudiano exatamente naquilo que ele pressupõe de uma naturalidade e normalidade acerca
do feminino e do masculino e do que é desejável em termos do “ser homem” e “ser mulher”,
pressuposições arbitrárias e sustentadas em uma determinação bi-sexuada inequívoca. O Complexo
de Édipo é, portanto, também uma ficção reguladora. Criticar os pressupostos edípicos não
significa, contudo, invalidá-los ou dizê-los inexistentes, significa, antes, relativizá-los e propor a
possibilidade de coexistência de arranjos outros não condizentes com o ideal heterocisnormativo e
de suposta coerência entre sexo-gênero-desejo-prática sexual, pressupostos subentendidos à trama
edipiana freudiana.

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Há um grave perigo no excesso de submissão relativo ao potencial normativo do Complexo
de Édipo para a clínica psicanalítica. A gravidade do sofrimento envolvido no estabelecimento de
normas e padrões arbitrários, externamente impostos ao sujeito e que podem levá-lo a padecer por
sentir a vida como irreal, por sentir que não pertence à própria vida, por não sentir a vida como
significativa e/ou digna de ser vivida é de extrema relevância para a ética da psicanálise. Na
construção teórica de Donald. W. Winnicott, importante psicanalista inglês, esse tipo de
padecimento se refere a uma “não-conquista” ou à perda da apercepção criativa da realidade,
mecanismo esse que permitiria ao sujeito a ilusão (em um sentido positivo do termo) de que ele
também cria a realidade, concomitante ao fato de ser criado por esta:

É através da apercepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que o individuo sente que a vida é
digna de ser vivida. Em contraste, existe um relacionamento de submissão com a realidade externa,
onde o mundo e todos os seus pormenores é reconhecido apenas como algo a que ajustar-se ou a
exigir adaptação. A submissão traz consigo um sentido de inutilidade e está associada à ideia de que
nada importa e de que não vale a pena viver a vida. Muitos indivíduos experimentaram
suficientemente o viver criativo para reconhecer, de maneira tantalizante, a forma não criativa pela
qual estão vivendo, como se estivessem presos à criatividade de outrem, ou de uma máquina. (...) De
uma ou de outra forma nossa teoria inclui a crença de que viver criativamente constitui um estado
saudável, e de que a submissão é uma base doentia para a vida. (WINNICOTT, 1971, p.95, o grifo é
nosso).

Portanto, Winnicott atenta à violência de uma submissão excessiva do sujeito aos ditames do
meio - quando isso ocorre, não há uma transposição entre o objetivamente percebido e o
subjetivamente concebido, ocorre como que uma morte em vida, uma solidão indizível, uma não-
comunicação tantalizante. Nesse sentido, é na possibilidade de contato entre a psique individual e a
realidade externa - na área que ele nomeia de espaço potencial, uma área intermediária, transicional,
nem totalmente interna, nem totalmente externa, mas paradoxalmente de “dentro” e de “fora” ao
mesmo tempo – que pode haver um campo de experimentação, com claro caráter lúdico, que
possibilita ao indivíduo a esperança e a vivência de sentir-se realizado. Quando do excesso de
submissão, é justamente essa área intermediária que é afetada e, então, construções tais como
“apropriar-se do próprio corpo”, “sentir-se amado e pertencido”, “fruir a própria criatividade”, etc.
são inviabilizadas.
Em termos da ética em psicanálise, o que, afinal, justificaria uma clínica dirigida no sentido
de patologizar expressões de sexualidade que não se enquadram nos pressupostos edípicos? Nessa
direção patologizante, inevitavelmente, fica implícito um modelo ideal de expressão de si e de
relação com o mundo que contradiz e encerra a abertura ao devir.

Considerações finais

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Ao que parece, se a psicanálise quiser sobreviver à saturação de inúmeros pressupostos
normativos problemáticos decorrentes dos ideais normativos edípicos, ela terá que depurar-se,
abrindo mão de concepções ainda hoje em voga e consideradas como “naturais” e “evidentes”.
Não podemos, portanto, evitar o confronto com aquilo que Freud propôs acerca das questões
de gênero e sexualidade – encarando, sem pudor ou medo de ferir o pai da psicanálise, aqueles
pontos nos quais o erro, o preconceito e a desinformação perpassam sua obra. Caso não
consigamos, dentro do próprio movimento psicanalítico, rever tais pontos, facilmente estaremos
fadados a ver a psicanálise morrer por problemas que a afetam desde dentro.
Com isso, vale ressaltar que estes questionamentos não se deram sem considerar que Freud e
sua obra são produtos de um tempo histórico e de um contexto sociocultural específicos. Em outras
palavras, não podemos exigir de Freud mais do que ele conseguiu oferecer. No entanto, quando se
fazem claros os pontos frágeis de sua obra, nessa especificidade temática sobre gênero e
sexualidade, atingimos um pilar da psicanálise: o Complexo de Édipo. Fato que traz novamente a
pergunta: a psicanálise sobrevive à revisão do Édipo?
Como conclusão, a partir das questões aqui discutidas, evidencia-se o fato da obra freudiana
facilmente (re)produzir discursos e práticas que ferem o potencial criativo humano, restringindo a
existência humana a um único modelo de subjetivação sustentado por uma matriz heterossexual e
cisnormativa. É preciso sublinhar as advertências aqui pontuadas para evitar que psicanalistas
tornem-se meros guardiões de uma moral sexual “civilizada” que controla, regula e vigia
existências que fogem à heteronorma – tendência que se direciona na contramão de uma abertura ao
devir e da emergência de processos criativos.

Referências

BUTLER, Judith P. (1990) Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução,


Renato Aguiar. - 5ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

FREUD, Sigmund (1909) Observações Sobre um Caso de Neurose Obsessiva [“O Homem dos
Ratos”], uma recordação de infância de Leonardo da Vinci e outros Textos. Rio de Janeiro: Cia das
Letras, Vol. IX, 2013.

FREUD, Sigmund (1923) O Eu e o Id. In: Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Vol. XIX Editora:
IMAGO,
São Paulo-SP, 1996.

FREUD, Sigmund (1924) A Organizacao Genital Infantil. In: Obras Psicológicas de Sigmund
Freud. Vol.XIX, Editora: IMAGO, São Paulo-SP, 1996.

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FREUD, Sigmund (1924) O Problema Econômico do Masoquismo. In: Obras Psicológicas de
Sigmund Freud. Vol.XIX, Editora: IMAGO, São Paulo-SP, 1996.

FREUD, Sigmund (1924) Dissolução do Complexo de Édipo. In: Obras Psicológicas de Sigmund
Freud. Vol. XIX São Paulo: Imago, 1996.

FREUD, Sigmund (1925) Algumas Consequências Psíquicas da Distinção Anatômica entre os


Sexos. In: Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Vol. XIX São Paulo: Imago, 1996.

FREUD, Sigmund (1931) Sexualidade Feminina. In: Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Vol.
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FREUD, Sigmund (1931) Conferência XXXI – Sobre a Feminilidade. In: Obras Psicológicas de
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FREUD, Sigmund (1937) Análise Terminável e Interminável. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XXIII. Editora; IMAGO, Rio de Janeiro, 1996.

MAHONY, P. (1991) Freud e o Homem dos Ratos. São Paulo: Escuta, 1991.

MEZAN, R. (1998). As primeiras sessões. In: ______ Escrever a Clínica. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 1998.

PORCHAT, Patrícia (2007). Gênero, Psicanálise e Juditth Butler– do transexualismo à política.


Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Área de
Concentração: Psicologia Clínica. Orientadora: Prof. Dra. Miriam Debieux Rosa.

WINNICOTT, Donald Woods (1971) O Brincar e a Realidade. Editora: IMAGO, Rio de Janeiro,
1995.

Beyond Oedipus: a review of the binary and heteronormative logic that the clinical case The
Rat Man announces.

Abstract: Sigmund Freud, which biographers and psychoanalysts interested in the case of The Rat
Man denounces, seems to have hidden numerous aspects regarding the mother of his patient in the
writing of the case. This is an important information within the psychoanalytic field, since it points
to some Freud's intentionality in excluding elements referring to the mother that would possibly
destabilize his conception of the "role of the mother and the feminine" in the Oedipus drama. This
paper presents this pointing specifically from comments by brazilian psychoanalyst Renato Mezan
and british biographer and psychoanalyst Patrick Mahony. In this way, a question is raised about the
possible consequences of this concealment, since this fact suggests a manipulation - consciously or
not - of Freud to validate his conception about the Oedipus Complex. With this example, we try to
make clear the fictional facet of this freudian construction. Construction that, if it is intended
universal, conceals, as well as the mother concealed in the case The Rat Man, readings and other
modes of sexuation that could go beyond the binary and heteronormative logic.
Key words: gender. Psychoanalysis. The Rat Man. Oedipus Complex.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

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