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Desde que o mundo é mundo (pelo menos o mundo que me foi apresentado), ele tem dono, e

o dono dele é o homem! Não o Homo sapiens, o homem. Esse, com toda sua prepotência
individualista e impetuosa, age como uma besta endoidecida para afastar qualquer possível
ameaça. Então surge a mulher, que naturalmente possui uma capacidade avassaladora: a de
gerar vida, de propagar a espécie humana, o próprio homem. Esse dom que lhe foi ofertado pela
mãe natureza (ênfase na mãe), era, e segue sendo, tão almejado pelo homem, que, na tentativa
de uma revanche a essa inegável injustiça biológica, se viu na posição e no direito de se
sobrepor às mulheres. Sem dúvidas o método adotado por esses indivíduos, quando colocado
sob a luz da razão, chega a transpirar desespero. No entanto é inegável que foi muito eficiente,
visto que desde sempre até hoje, o patriarcado sustenta a consciência social, e pior, impregna a
cultura e a mentalidade, não só dos homens, como também das mulheres.
Essa cultura patriarcal basicamente se sustenta… em nada! Sua estrutura vazia e sem
sentido, por sua vez, se mascara pelo enganoso argumento de que o macho, simplesmente por
ser do sexo masculino e possuir um pênis, tem direito a ter mais direitos, mais poder e liderar.
Assim, aos poucos, esse pensamento, sem fundamento algum, passou a estruturar as relações
sociais, e foi se naturalizando de forma que num determinado momento, passou a ditar
despercebidamente a vida, o corpo e pior: os pensamentos das mulheres. Até porque, numa
sociedade em que todas as figuras de prestígio, seja Deus ou o Demônio, são homens, não cabe
a nós mulheres questionar, mas sim reproduzir o que foi ensinado e submeter-se à figura
masculina, tendo consciência ou não da gravidade da situação. Resta, assim, um corpo social
completamente fragilizado e contaminado por pensamentos misóginos e atitudes agressivas
impositivas, em que a vida feminina se torna refém de injustiças cotidianas e abusos de poder
desde o nascimento. Mas de que adianta entender esse padrão se não para mudá-lo? Posto isto,
o primeiro passo desse levante feminino ocorre dentro de nós, e diz respeito à aventura
descobrirmos qual o papel da identidade na luta por nossos direitos, e para começar essa
aventura, convido vocês a uma simples reflexão: quem sou eu?
Agora, para instigar um pouco mais esse debate, o recém lançado filme “Barbie”, de Greta
Gerwig, é um excelente ponto de partida. Nele nos é apresentado um mundo paralelo, o mundo
da Barbie, no qual a mulher por si só é a protagonista de sua história, e vive perfeitamente bem
com as outras Barbies. Já os Kens, são apenas os Kens, e não vivem perfeitamente bem, pois
vivem à sombra das Barbies. Como a própria Mattel definiu, temos “A Barbie E os Ken”, e não o
contrário. Toda vida, apesar de aparentemente normal, por que um mundo assim foi capaz de
gerar um estranhamento e incômodo tão profundo nos telespectadores? Como um filme,
aparentemente tão trivial e divertido foi capaz de causar uma revolução e virar a chave para uma
nova perspectiva na vida de tantas mulheres ao redor do mundo?
É simples: nós nos reconhecemos no filme, já que a ficção descreve perfeitamente a realidade
em que estamos inseridas, mas de maneira invertida, na qual as mulheres comandam o mundo.
Na nossa concepção da realidade, baseada numa estrutura patriarcal, esse cenário seria tão
absurdo e distante, que chega a ser fantasioso. À vista disso, resta usarmos desse efervescer
revolucionário para nos questionarmos o por que de aceitarmos e não combatermos vivida e
constantemente esse “transtorno” social.
É fato que a mulher se encontra constantemente, mas não por escolha própria, na posição
de submissão ao homem desde seu nascimento e em todos os seus convívios sociais. Afinal de
contas um modelo dominativo e que sistematiza o sofrimento feminino está enraizado nos
hábitos e costumes que regem a civilização. Em primeiro plano, essa imposição de poder ocorre
pela agressividade física e psicológica que, apesar de exacerbante, segue viva e disfarçada nas
mais despretensiosas situações. Isso fica muito claro na coletânea de contos “Olhos d`água”, de
Conceição Evaristo, o qual é um despertar para todos os leitores sobre a infeliz realidade vivida
por mulheres, sobretudo as marginalizadas na sociedade brasileira. Vale aqui ressaltar o conto
“Maria”. Ele narra um dia comum na vida de uma empregada doméstica, que, voltando de
condução para sua casa, vivencia um assalto a mão armada, que curiosamente era conduzido
por seu antigo companheiro. No entanto, o que chama atenção é a cena em que os outros
passageiros começam a xingar Maria, até que esta acaba morta pisoteada. Durante a confusão
ela é diversas vezes xingada de “puta safada”, de forma que é impossível como leitora mulher
não ler esse trecho e sentir empatia por Maria como se você estivesse ali, junto dela, vivendo
algo que vai tão além da agressividade, que não pode ser definido como violência, mas sim como
anulação e desumanização.
Não obstante, há um segundo fator relevante no que diz respeito às origens dessa estrutura
patriarcal, o qual eu me atrevo a alertar ser ainda mais perigoso e melindroso que a própria
violência. Desta vez o truque está na criação de uma uma confusão identitária entre as mulheres
pela similaridade sonora de dois conceitos: feminISMO e feminINO, que apesar de possuirem o
mesmo radical, não só são completamente diferentes, como também um é incapaz de anular o
outro. A começar pelo primeiro: ser feminino, primeiramente é um adjetivo, e em segundo lugar,
diz respeito a um traço de personalidade, tal qual a maldade ou a bondade. Sendo assim,
qualquer pessoa pode possuir ou desenvolver, independentemente do gênero ou orientação
sexual. Contudo o feminismo, que é um substantivo, vai muito, muito além, e apesar de muitas
vezes ser negado pelas próprias, toda mulher naturalmente é presenteada por ele. O feminismo
é uma força transcendente, que deve ser respeitada e desenvolvida ao longo da vida, mas que
primeiramente precisa ser conquistada, e esse processo se inicia quando descobrirmos a nossa
identidade e percebemos nossa independência enquanto sujeitos do nosso destino. No filme da
Barbie, inclusive, é normal que nós nos sensibilizemos com o Ken, e não com as Barbies. Não
coincidentemente, no filme ele representa a mulher e não o homem da realidade. Portanto ele é
quem vive na incessante busca de descobrir quem é ele sem a Barbie.
Não é à toa que nada tenha maior magnitude em nossas vidas do que sermos donos do nosso
próprio destino, não é mesmo?
Ainda dentro deste fluxo de consciência, Clarice Lispector foi capaz de expressar
perfeitamente a importância do autodescobrimento em seu livro “Uma aprendizagem ou o livro
dos prazeres”. Nele a personagem Lori, assim como Ken no filme, se encontra na posição mais
difícil de todas, sendo obrigada a enfrentar as fronteiras do seu ser interior e descobrir a ponte
entre quem é ela com Ulisses, sua paixão, e quem é ela por si só. Contudo, esse “por si só” não
deve ser entendido sob nenhuma circunstância como solidão, mas sim como um incessante
preenchimento de identidade e prazer daquele que está por descobrir um novo universo de
possibilidades e individualidades que estavam escondidos dentro de si.
Enfim, a questão central que deve ser destacada após toda essa reflexão não é se a mulher
viveria ou não sozinha, ou se biologicamente há uma diferença intelectual ou física entre os
diferentes gêneros, mas sim como deve ser o posicionamento feminino mediante uma cultura
secular de ódio. Isso apenas gera sofrimento à medida que suprime a potencialidade e força
feminina e gera uma sensação de total perda identitária, restando a nós termos o nosso lugar no
mundo ditado e contado por outras pessoas e seus interesses. Somente em posse de plena
consciência da magnitude de seu ser, a mulher é capaz de valorizar-se e enxergar seu corpo
com lentes de amor, vendo-o como uma fronteira, uma morada, um monumento que deve ser
mais que vivido: deve ser desfrutado.

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