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6º Congresso Internacional Abramd:

Drogas e Autonomia: Ciência, Diversidade, Política e Cuidado.

7 a 10 de novembro de 2017. PUC Minas, Belo Horizonte.

GT 06. Consumos e consumidoras:


pessoas que usam e produzem conhecimento sobre drogas.

"ALUCINAÇÃO CHAMA-SE LUZ": O PROIBIDO ESTUDO FINO DE SANTA MARIA E


DEMAIS SERES DE LUZ E CURAS NO SANTO DAIME.

Ubirajara Ferreira Júnior - Associação Psicodélica do Brasil (APB).

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Resumo:

A pesquisa traz delineamentos para as representações sociais da planta Cannabis


desenvolvidas pela religião do Santo Daime. Foram realizadas múltiplas ações
metodológicas: participação observante em 21 ritos de 9 igrejas na região Sudeste; 8
entrevistas semidirigidas com membros acima de 10 anos de participação; “análises de
conteúdo” de 224 “hinos” com a palavra-chave “Santa Maria” e das manifestações em redes
sociais dos anos de 2004 a 2010 e 2014 a 2016. Foram observados os processos
sociocognitivos de "ancoragem" e "objetivação" na formação das representações sociais
sacralizadas, com transferência dos valores sacros desenvolvidos à Ayahuasca ao novo
objeto Cannabis. Devido suas características intercambiáveis como “enteógenos” de
resultados positivos à “saúde física”, “relacionamento social” e “sentimentos de
espiritualidade”. Ou seja, a planta estabelece vias para manifestações de “Seres Divinos”,
como a entidade católica “Santa Maria”, de quem recebe o nome e objetiva suas
características. A planta, portanto, atua como “mãe amorosa” e “disciplinadora”, que
intercessora pela “salvação” ao oferecer suas “graças”. Manifestadas por “curas” e “luzes”,
percebidas nos “insights”, pelo “despertar espiritual” e melhoria das “mirações”. Promove
sentimentos de “amor” e “alegria”, e traz “conforto” e “proteção” contra as “tristezas, agonias
ou dores”. Sua posição de sacralidade obriga o desenvolvimento de liturgias que delimitam
tempos e espaços para seus “estudos”. No entanto, suas representações estão ocultadas
por conflitos com representações antagônicas ao mesmo objeto, por grupos hegemônicos.
Que promovem depreciação midiática e repressão Estatal contra seus devotos. Situação
que intensifica conflitos intragrupais, pois parte da religião rejeita a “droga” na identificação
de sua “Sagrada Família”. Identificação que traz reconfigurações teológicas e possibilita um
“panteão biorreligioso” em sua cosmologia. Contudo, a religião preserva mais de 40 anos de
resistência das práticas desenvolvidas para a Cannabis. Sendo observado posicionamentos
em defesa de sua sacralidade concomitante ao crescimento dos movimentos sociais e
científicos antiproibicionistas.

Palavras-chaves: Ayahuasca. Cannabis. Saúde.

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Apresentação:

O Santo Daime é uma religião originária do Estado do Acre da década de 30 do


século passado, que se expandiu para todo o Brasil e exterior. Eclética, tem variações
ritualísticas próprias de seu processo constitutivo, com elementos do curandeirismo
amazônico, do catolicismo popular, da umbanda, de tradições indígenas, caboclas,
movimentos “new age” e rastafári. Suas bases teológicas não são registradas, sendo
transmitidas oralmente dentro da estrutura de seus hinos devocionais executados durante
todo o calendário ritualístico.
Seu fundador, Raimundo Irineu Serra, nasceu em 1890 no Estado do Maranhão e
vivenciou a religiosidade popular local, o que estruturou seu modo de pensar e viver. Irineu
chegou no Acre em 1912 e com amigos visitou curandeiros indígenas que promoviam
“rituais satânicos” com uma bebida, segundo a crença local.
Das várias designações utilizadas na região, a bebida foi catalogada por
“Ayahuasca“ pelo etnobotânico Evans Schultes. Sua composição mais comum é a decocção
das folhas da “Psychotria viridis” e do cipó “Banisteriopsis caapi” e água. A Ayahuasca
provoca efeitos psicoativos como insights, fortes emoções e visões, chamadas por
mirações.
Irineu aprendeu a prepará-la e entoar “chamados”, sons para comunicação com as
entidades que ajudam os rituais. Suas primeiras experiências remetem para representações
cristãs das práticas da religiosidade popular. Em uma miração, Irineu vê uma entidade
feminina sobre a lua, que se aproxima e propôe que Irineu se embrenhe na mata por oito
dias sob uma “dieta” com uso de Ayahuasca, para que ela pudesse ensinar-lhe muitas
coisas. Irineu realiza a dieta e identifica a entidade por “Rainha da Floresta” ou “Nossa
Senhora da Conceição” e ela lhe entrega a missão de ser o “Mestre Império Juramidã”. Esta
e outras histórias são contadas pelos companheiros de Irineu, servem como bases
narrativas fundadoras da “Doutrina da Floresta”. As histórias contadas convergem para a
ocorrência de uma “revelação” e uma “conversão” da bebida (GOULART, 1996).
O uso de Ayahuasca junto de outras “plantas de poder” era comum entre os
indígenas. Irineu dizia que “o bom aoasqueiro usa tabaco”. Seus discípulos dizem que Irineu
soprava a fumaça de seu charuto sobre as cabeças e passava sua mão para retirar as
mirações (MOREIRA; MACRAE, 2014). A Ayahuasca foi logo batizada por “Daime” e quando
Irineu soprava fumaça de tabaco sobre a bebida, dava-se o nome de “daime curado”.
A região não apresentava cobertura médica e Irineu era procurado em sua
comunidade, o “Alto Santo”, por suas ações religiosas curativas. Sendo a “cura” um princípio

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fundamental da religião, a própria bebida também era utilizada para curar o corpo, mas eram
através das mirações que se revelavam as causas do “mal estar” e os remédios necessários
para sua cura (GOULART, 2004). Estes “remédios” podiam ser mudanças comportamentais,
sentimentais ou práticas como “infusões, compressas, urina (para beber ou passar), escalda
pés, pílulas e xaropes de farmácia ou até alguns recursos mais exóticos, como ossos velhos
ou prendas, dizeres com banho de Daime e dietas sexuais rígidas” (MOREIRA; MACRAE,
2014).
Irineu faleceu em 1971, aos 80 anos, mesmo ano em que ocorrera a 2ª “Convenção
sobre Substâncias Psicotrópicas” da ONU – ou “Convenção de Viena de 1971” - que impôs
ao mundo as normas proibitivas da “War on Drugs” (ONU, 1971). Irineu “recebeu” da
entidade “Nossa Senhora da Conceição”, um conjunto de 132 hinos religiosos, que são
cantados durante os rituais e servem de base doutrinária da religião.
Dentre os muitos que chegavam à comunidade religiosa atrás das possíveis curas,
destaca-se Sebastião Mota de Melo, filho de cearenses, nascido em 1920 no Estado do
Amazonas. Sebastião tornou-se curandeiro e na década de 1940 realizava ritos de “mesa
branca” junto da população ribeirinha, sendo conhecido por suas rezas e incorporações de
entidades médicas.
Sebastião adoeceu gravemente e “desacreditado” por médicos e outros curandeiros
procurou por Irineu no Alto Santo em 1965. Tomou o Daime, recebeu sua cura e converteu-
se à doutrina. Mesmo neófito, Sebastião “recebia” muitos hinos religiosos e teve mirações
que o identificam com a imagem do apóstolo cristão São João Batista.
Em 1974, poucos anos após a morte de Irineu, Sebastião desliga-se da comunidade
do Alto Santo e abre um novo registro jurídico para a religião. Foi este seguimento iniciado
por Sebastião que se expandiu pelo Brasil e exterior, o que faz com que as várias igrejas do
Santo Daime apresente seus desenvolvimentos para a doutrina.
Muitos jovens de classe média dos grandes centros urbanos, com imaginário
próximo aos movimentos “hippies” chegavam na comunidade de Sebastião, a “Colônia 5
mil”, e nela eram acolhidos. Em um dos ritos de Santo Daime na Colônia 5 mil, um dos
jovens convertidos apresentou sofrimentos devido ao seu sentimento de culpa por “fumar
maconha” e ainda plantá-la na igreja. No dia seguinte, com as plantas em mãos procura
Sebastião para confessar-se de seu “mal”. Sebastião ao ouvi-lo e ver as plantas lembra-se
de um sonho, em que uma entidade apresenta-lhe uma planta, dizendo: “esta é para curar!”
(MORTIMER, 2000). Na doutrina do Santo Daime os sonhos equivalem às mirações, podem
ser consideradas mensagens do mundo espiritual.

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Intrigado com a lembrança, Sebastião experimentou a planta com os demais devotos
e a levou para suas orações junto ao Daime. Logo, o curandeiro Sebastião acostumado
com diversas plantas, conclui:

"Deus é verdadeiro e ainda tem a história de Cristo Jesus. Hoje ele


pode muito bem se manifestar em qualquer pessoa por intermédio do
Santo Daime (Ayahuasca), e por intermédio da Santa Virgem
Soberana, através dessa erva “Santa Maria” (Cannabis)" (Sebastião
Mota in ALVERGA, 1998).

A lembrança do sonho do curandeiro demarca o mito fundador do culto de Santa


Maria e destaca sua função de “cura” no Santo Daime. Ao experimentar o “pito” de “mari-
juana”, Sebastião atesta que aquela planta também podia conectá-lo ao mundo espiritual,
além de ser um “ser de sabedoria” e com “poderes de curas”. Por similitudes, a planta “mari-
juana” revelou-se para Sebastião especificamente como a planta que trazia os ensinos e as
graças de “Maria, a Mãe do Mestre Jesus”, ou mesmo, de “Joana, a Mãe do Mestre Irineu”
(MORTIMER, 2000; FERREIRA JUNIOR, 2017).
Diante da revelação, iniciaram reuniões de estudo da mari-juana, agora batizada por
“Santa Maria”. Com consagrações da planta em regime de meditações, preces e cânticos,
com ou sem o Daime.
Logo foram estabelecidas regras que diferenciavam seus usos sagrados e demais
usos profanos. Para o “feitio” de Santa Maria, as germinações eram realizadas na lua nova,
as plantações traçavam símbolos do Santo Daime e as colheitas eram realizadas durante as
luas cheias. Seguidos de seu preparo com limpeza e separação por seu grau de força, como
já faziam no feitio do Daime (SILVA, 1983 in MACRAE, 2005).
Sebastião compreendeu que carregava a responsabilidade de resgatar aquela planta
de cura das bocas dos demônios e devolvê-la para a espiritualidade. Os estudos com Santa
Maria passaram a ocorrer junto das “orações diárias” ao anoitecer, por volta das 18h.
Rezava-se três “Aves Marias” e três “Pai Nossos”, a “oração do Padrinho” e seguiam em um
longo silêncio. Sua consagração era feita com um “benzimento” pessoal (comumente o sinal
da cruz), três tragadas por vez, sendo oferecidas ao Sol, à Lua e às estrelas e passada ao
devoto ao lado direito até ser totalmente consumida. Também haviam os estudos específicos
de “cura” com a consagração da bebida Santo Daime ou apenas do pito de Santa Maria.
Santa Maria trazia suas graças espirituais, como as melhorias na harmonia e saúde
coletiva da comunidade. Passando logo a ser usada no tratamento de resfriados, febres, má
digestão, hemorroidas, vômitos, dores de cabeça, hérnias, fadigas, tonturas, insônia,
pressão alta, asma e depressões. Antisséptica e cicatrizante, também foram feitas pomadas

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para micoses, úlceras, eczemas, machucados, tumores ou furúnculo, além de uso na
diminuição das cólicas menstruais e espasmos (SILVA, 1983 in MACRAE, 2005; FRÓES,
1983).
Com a revelação, novos estudos com outras possíveis “plantas sagradas” foram
realizados pelos novos devotos, o que estabeleceu um novo modus teológico na doutrina do
Santo Daime, a abertura para um “panteão biorreligioso” (FERREIRA JUNIOR, 2017).
Sebastião dizia que: “(...) todos os remédios são tirados das ervas santas, e ai não tem
nenhuma que não tenha um valor profundo, o difícil é conhecer” (SEBASTIÃO MOTA in
FRÓES, 1983).
Novas leituras e interpretações em relação à natureza foram desenvolvidas e novas
entidades foram reconhecidas em seus respectivos elementos na natureza (FERREIRA
JUNIOR, 2017). Sebastião, em sua bioteologia, defende o uso cuidadoso dos seres da
natureza, que de origem divina, “não devem ser abusados”, mas “torná-los amigos pelo
estudo atento”, reduzindo seus possíveis perigos ou danos:

“Sou filho da terra, nasci no Amazonas, nela me criei. Tenho meus


direitos como os índios tem, que eu também sou o mesmo índio. Por
que não posso ter as minhas defesas e usar as minhas plantas? (…)
Aqui nós usamos essas plantas sagradas dentro dos nossos
trabalhos, para espantar o espírito mal, para calma, tirar a doidice do
cara, para ele voltar a ser ele novamente” (SEBASTIÃO MOTA in
ALVERGA, 1992).

No entanto, em 1981, logo após uma “apreensão de maconha” com um devoto em


Rio Branco no Acre, a Colônia 5 Mil sofreu uma intervenção militar. A comunidade foi
obrigada a interromper seus rituais, o que levou ao ocultamento de sua devoção e cultos
com a planta Santa Maria. Sebastião Mota morreu da doença de chagas em 1990 no Rio de
Janeiro, após um ritual de cura com Santa Maria e Santo Daime na noite de festejo para
São Sebastião (MORTIMER, 2000).

Metodologia:

A pesquisa seguiu desenho metodológico de parâmetros múltiplos, todos sob as


bases epistemológicas das pesquisas em representações sociais. A opção se deu devido a
rara literatura acadêmica acerca do objeto de pesquisa, pelas disputas semióticas acerca da
representação da Cannabis e das constantes ações persecutórias judiciais e midiáticas
contra a religião.

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O autor da pesquisa é membro do grupo Santo Daime há mais de 10 anos e como
membro de qualquer outra religião, há de se levar em consideração as diferenciações de
pertença. A posição de proximidade permitiu maior acesso aos ritos e seus ensinos, mas no
entanto, gerou exigências de condutas e atitudes próprias desta identificação.
Especificamente para esta pesquisa foram feitas 21 participações em ritos com
observações etnográficas, foram realizadas em nove diferentes igrejas do Santo Daime na
região Sudeste, entre os meses de agosto de 2016 a janeiro de 2017.
Alguns membros foram comunicados da pesquisa, sendo que 8 membros foram
escolhidos para a realização de entrevistas semiestruturadas acerca do tema Santa Maria.
Os entrevistados tinham mais de 10 anos de fardamento e desempenham funções
burocráticas ou ritualísticas na religião.
Foram coletados 100 hinários e destes, apenas 54 hinários continham hinos com
referências à palavra-chave “Santa Maria”. Além destes hinos com a palavra-chave “Santa
Maria” foram incluídos todo o conjunto de hinos dos hinários “Chaveirinho”, “recebido” pelo
“daimista mariano” Glauco Villas Boas e do “Hinário de Santa Maria”, confeccionado pelo
“daimista mariano” Alfredo Mota. Ambos hinários foram destacados em campo como os mais
importantes ao culto de Santa Maria. Portanto ao todo foram selecionados 224 “hinos
marianos” para análise.
Os “hinos marianos” foram submetidos à “análise de conteúdo” de base qualitativa,
por desenvolvimento de “categorias temáticas” (BARDIN, 1977). Assim, foram identificadas
as “unidades de registro” (UR), localizações de unidades com significação textual para
codificações e geradas categorias de classificação, para a constituição das condições da
análise. A partir das URs encontradas, desenvolveu-se classes temáticas correspondentes
que, analisadas no discurso, possibilitaram a averiguação dos resultados com as inferências
e interpretações cabíveis junto aos demais dados levantados.
Os demais dados levantados foram, além das entrevistas semidirigidas, as análises
de conteúdo de base qualitativa dos textos escritos por seus membros na internet sobre a
Cannabis coletados em sites de relacionamento. Foram coletados 264 comentários em
“comunidades” (fóruns) no site de relacionamentos “Orkut” realizados dos anos 2004 a 2010
e 429 comentários em “páginas” (fóruns) no site de relacionamentos “Facebook” dos anos
2014 a 2016.
Os dados combinados possibilitaram a identificação de 4 categorias temáticas
determinantes ao fenômeno Santa Maria na religião do Santo Daime: suas funções de
“graças e curas”; suas práticas em “ritos e disciplinas”; seu desenvolvimento teológico ao
“panteão biorreligioso”; e as dinâmicas relacionais entre ”daimistas marianos e sociedade”.

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As 4 categorias temáticas serviram como base para as análises e resultados sobre as
representações sociais desenvolvidas no Santo Daime para o objeto Cannabis.

Resultados:

As estruturas das representações sociais religiosas não se diferem das construções


representacionais seculares. Seu processo se encontra na função de familiarizar o
ambiente, de lhe atribuir sentidos e razões de causalidade que nos permitem lidar com a
vida social. Segundo Jodelet (2001) as representações sociais são um sistema grupal de
interpretação dos objetos do mundo e que orientam condutas, uma “forma de conhecimento,
socialmente elaborada e partilhada, com um alcance prático, e que contribui para a
construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2001).
Há dois processos que nos ajudam na identificação da formação das representações
sociais: a ancoragem, que é quando o objeto antes desconhecido se insere nas categorias
sociocognitivas já existentes; e a objetivação, que é o fenômeno de transformação de um
objeto abstrato em sua percepção como algo concreto, quando algo não tangível passa a
ser reconhecido concretamente pelo pensamento (MOSCOVICI, 2003).
Por ancoragem, o novo objeto Cannabis é compreendido a partir do quadro de
referências já estabelecidas pelo Santo Daime, ao qual este já se “ancora”. Consolida-se ao
ponto que a planta “mari-juana” é renomeada e então reconhecida por “Santa Maria”.
Passando a ser o novo objeto também instrumentalizado dentro de um referencial de
conhecimentos já estabelecidos, com um valor funcional próprio de interpretações e
organização daquele ambiente (JODELET, 2001).
A objetivação por sua vez, é o processo que transforma os conceitos abstratos, como
“Mãe de Deus”, em algo concreto. Faz com que o que era imaterial passe a ser além de
ancorado em um sistema de reconhecimento, também constatado no mundo tangível. Os
conceitos abstratos são passíveis de serem exprimidos através de uma realidade natural,
para isto, há uma seleção cognitiva entre os aspectos do conceito e o objeto elegido. As
características referidas à entidade “Santa Maria” são reconhecidas e combinadas com os
sinais do objeto “mari-juana”, possibilitando então conexões entre o conceito e seu aspecto
material. É a objetivação que vai completar a defasagem entre uma representação e o que
ela representa (MOSCOVICI, 2012).
Em campo, verificou-se que a “consagração” ritualística da Santa Maria no Santo
Daime é um encontro direto com a deificação estabelecida na religiosidade popular antiga
(FERREIRA JUNIOR, 2017). Precisamente, a Santa Maria no Santo Daime ancora as

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representações da religiosidade popular católica, que a representam como uma “Mãe”, que
possiu características de intercessora, misericordiosa, fonte dos prazeres, batalhadora,
disciplinadora etc. Mas com um aspecto singular de transmutação e fundamental para este
processo de ressignificação, que encontra-se no hibridismo do curandeirismo amazônico, ao
qual se firma o Santo Daime. Ou seja, a de que Santa Maria, para além de uma pessoa,
como na tradição católica, é uma pessoa que pode manifestar-se como planta e que quando
“consagrada” no Santo Daime, apresenta-se em sua plenitude. Pois a objetivação garante
não ser mais possível estabelecer qualquer diferenciação entre os conceitos ancorados à
entidade Santa Maria e o objeto que passa a representá-los na religião (FERREIRA
JUNIOR, 2017).
Como a “atividade cognitiva apenas desloca para um objeto novo os procedimentos
geralmente empregados no conhecimento corrente, para o qual todos os elementos do
capital cultural são muitas vezes equivalentes e intercambiáveis” (JODELET, 2001). É
determinante a influência do catolicismo popular na configuração da Santa Maria no Santo
Daime, e como observado, este quadro deve-se ao berço cultural de seus fundadores na
religiosidade popular. Na expressão popular do sagrado o ser divino ganha intimidade com o
devoto. Uma relação de proximidade, em que o sagrado se manifesta nos objetos
correspondentes à sua devoção e atua seguindo suas funções sociais.
O processo de “divinização” da entidade Santa Maria presente no catolicismo, que
ganha sentido nas práticas populares, é reforçada no Santo Daime. Através de suas “graças
e curas” compreende-se as ações funcionais deste encontro com a divindade Santa Maria.
Ela estabelece interações com o devoto, que a reconhece como a fonte de “luz”, “amor e
alegria”, “proteção” e “conforto”, como apontado pelos hinos religiosos no Santo Daime.
(FERREIRA JUNIOR, 2017).
Como na concepção católica popular, ela se apresenta como a própria “luz”. Por luz,
engoblam-se os “insights” em sua consagração, considerados como os “ensinos” de Santa
Maria até a percepção de melhorias nas mirações em seu uso conjunto ao Daime, ou
mesmo o retorno das mirações, em consagrações privadas de Santa Maria fora dos
trabalhos com o Daime (FERREIRA JUNIOR, 2017).
Santa Maria como luz ao “caminho do bem” traz novas idéias ou compreenções para
as questões cotidianas. Santa Maria portanto provoca transformações sociais, alterações na
forma de perceber as ações com os outros, promovendo o bem-estar das relações
interpessoais das comunidades: “A vida não é fácil dentro da natureza, Santa Maria é um
conforto, um bem-estar, ela traz equilíbrio, sem tanta disputa, correria com tanta coisa para

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fazer, stress, dívidas, filhos, escola, trabalho, igreja, então é pelo amor de Deus, o conforto
da Mãe, um remédio” (entrevista n.7 in FERREIRA JUNIOR, 2017).
Sua consagração traz dádivas de bem estar físico e emocional, incluindo as
melhorias das enfermidades e as representações de “amor e alegria” percebidas em sua
interação com a comunidade daimista. Também é neste encontro com Santa Maria que se
dá todas as espécies de curas e até mesmo milagres, como encontrado nos depoimentos de
seus adeptos (FERREIRA JUNIOR, 2017).
São estes fatores encontrados no lócus simbólico da representação da “Mãe”,
presente no catolicismo popular. A personagem que pode interceder como uma advogada
ante o julgamento do “Pai”, pela salvação de seus filhos que rogam. Ou seja, não só a
melhoria da saúde ou suas “curas”, mas toda espécie de dádivas divinas são esperadas de
Santa Maria quando consagrada junto ao Santo Daime. Ela aparece nos hinos como a
“bondosa” para quem é “firme” e se “humilha” em oração. A bebida “Santo Daime” também
se emparelha à idéia de “Pai Divino”, em contrapartida da “Mãe Divina” emparelhada à
“Santa Maria” (FERREIRA JUNIOR, 2017).
Os “balanços” ou “peias” são incômodos reais que ocorrem para o retorno ou
manutenção do fiel ao “caminho do bem”. Nos hinos marianos são destacados em termos
de “dores”, “agonias” e “tristezas”, mas que por intervenção de Santa Maria, a
misericordiosa, “luz que dissipa as trevas”, é possível o retorno do devoto ao equilíbrio, o
que nos hinos marianos é destacado em termos como “proteção” e “conforto”. Santa Maria é
convocada aos trabalhos ritualísticos e ao culto diário para que o devoto suporte e vença os
momentos de “balanço” ou “peias”, ao passo que recebe em si a “luz divina” (FERREIRA
JUNIOR, 2017). “Ali estava o nosso Mestre, dentro de uma sacristia, com todo seu
resplendor, no brilho da Santa Maria, é o Daime é o Daime, toda natureza em si, suavizando
o sofrimento, e dá até pra divertir” (Hino 22º – Eu saí trabalhando – “recebido” por Luis
Mendes).
A representação de Santa Maria como “Mãe”, também apresenta-se colada a idéia
de “disciplinadora”. Pois distribui suas graças e curas, mas estabelece ensinos aos
caminhos certos a serem seguidos. As curas são eficazes quando seguidas por ordenações,
que conferem o poder do sacramento: “Buscamos isto, tomar a disciplina, e ganha é outra
coisa: Conforto, consolo, sensação de paz, de comunhão... Como se estivesse
comungando, ali na igreja é hóstia, tomando Daime e tomando Santa Maria. Se luta para ter
isto!” (entrevista n.8 in FERREIRA JUNIOR, 2017). As consequências da “desobediência” as
determinações causam uma ruptura de sua “proteção” e consequente punição pelo Santo
Daime, que gera o “mal-estar”.

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Consagrar Santa Maria requer ordenações, com repertório próprio de ritos e
disciplinas. Práticas que norteiam o fiel em seus usos privados da planta, colocando-o em
um tempo e um espaço sagrado próprio de sua busca para o contato com sua entidade.
Assim, observou-se que o anterior “uso de maconha” pelo devoto faz com que Santa
Maria também seja reconhecida como a “colhedeira”, quem “desperta em seus filhos a
espiritualidade”. Esta característica foi narrada por quase todos os “daimistas marianos”
entrevistados: “Foi por meio da Cannabis que eu conheci o Santo Daime. Eu já me
interessava pelo uso religioso, já vinha pesquisando sobre plantas de poder e expansão da
consciência, mas aí quando eu aprendi do uso de Santa Maria, fui conhecer o Santo Daime”
(entrevista n.3 in FERREIRA JUNIOR, 2017).
O “usuário de maconha” para melhor aproveitamento de sua nova forma de se
relacionar com Santa Maria no Santo Daime, deve então passar por um “rito de purificação”.
O rito desenvolvido por Sebastião Mota requer que o neófito fique dois dias sem consumí-la
para voltar a usá-la somente no 3º dia, depois novamente aguardar mais seis dias para pitá-
la no 7º, sucessivamente com intervá-los de 14 dias, de 20 e de 30 dias. Ao realizar todo o
rito de 77 dias, o neófito deverá estar mais apto para consagrar, reconhecer e receber as
graças de Santa Maria, por maior proteção das “obsessões de espíritos viciados”
(FERREIRA JUNIOR, 2017).
Com tais “dietas” ou pausas programadas em seu consumo, o devoto tende a
identificar demais variáveis que controlam seu comportamento de “fumar”. Juntamente são
inseridos significados sacralizados ao ato, que irão controlar os cuidados necessário para o
consumo de Santa Maria antes negligenciados. Espera-se que o daimista mariano tenha
controle sobre eventuais “vícios”, que reconheça possíveis problemas decorrentes de
“obsessores”, que usam o seu “aparelho” (corpo) e que podem “confundir seus
pensamentos” (comunicação, 2016 in FERREIRA JUNIOR, 2017).
Irineu Serra e Sebastião Mota reconheciam em suas plantas mais do que “remédios”
para o corpo, estas também serviam como vias para manifestação do “mundo espiritual”, e
que portanto, requeriam códigos próprios ou ritos específicos para seu trato. Com maior
cuidado esperava-se estabelecer melhores resultados de graças ou curas com as
experiências nesta região sagrada e desconhecida.
Na consolidação da revelação de Santa Maria para Sebastião Mota no Santo Daime,
estabelecendo ritos com uma outra planta para além das duas que compõem a Ayahuasca
ou Daime, há uma ampliação das possibilidades de manifestações e contato com o sagrado
por seus elementos na natureza. O que enseja reelaborações na compreensão teológica do
grupo.

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Assim, Sebastião Mota também busca conhecer outras entidades por sua presença
na natureza, porém não tendo o conhecimento de quais eram seus mistérios ou ritos
próprios e percebendo até mesmo danos por suas utilizações incorretas, passa a
desaconselhá-los aos membros da comunidade daimista. Acreditava que deviam ter mais
conhecimento acerca destas substâncias para seu consumo e como utilizá-las melhor para
as diversas curas (FERREIRA JUNIOR, 2017).
Apenas a consagração de Santa Maria foi ritualizada, o que não impediu uma
absorção não ritualística dos outros elementos da natureza como “seres divinos da corte
celestial” com seus poderes específicos de curas ou capacidade semelhante de
“transcender”. Elementos naturais em uma rede hierárquica que vai desde uma concepção
de “Sagrada Família” colada à união entre a Santa Maria e o Daime até os demais “Seres
Divinos da Corte Celestial” (FIGURA 1). Que com identificações variadas e difusas, podem
englobar além do panteão cristão católico, outras divindades ameríndias, africanas e até
orientais. A religião tem uma formação eclética que se mantém e permite que seus símbolos
continuem vivos, em transmutações dialogais com seus membros, por seus processos
sócio-históricos (FERREIRA JUNIOR, 2017).

FIGURA 1: Verso de hino sobre placa em jardim de boldo

Fonte: Imagem Utopia.

No entanto, a história mundial ocidental difunde por quase um século, propagandas


com representações sociais de grupos hegemônicos que “demonizam” os usos da planta
“Cannabis” e demais plantas com propriedades psicoativas. Portanto, o uso de plantas que
podem alterar a compreensão dos “mundos” tem nas representações hegemônicas

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contemporâneas colada a ideia de que são objetos promotores de crimes e psicopatias,
além de terem usos exclusivamente “hedonistas”.
O curandeiro Sebastião Mota já “firmado” aos saberes estabelecidos por seu guia
Irineu Serra, repudiava a classificação médico-psiquiátrica de “alucinações” para os efeitos
psíquicos de seus sacramentos:

“doutor que falar isto é um vagabundo, não é um doutor, porque eu


dou prova à ele aqui dentro, (…). Alucinação chama-se luz, não é
nada demais! O doutor que faz isto ou aquilo... uma história
comprida... porque esta vendo a hora de ficar sem o “tutu” dele, mas
eu não quero isto de ninguém!” (SEBASTIÃO MOTA in Documento
Especial, 1988).

Tal configuração de antagonismo em que se encontra as representações da Santa


Maria no Santo Daime em relação a sociedade mais ampla, faz com que seus cultos e
estudos com plantas permanecessem ocultados aos não-iniciados na religião por mais de
40 anos. Observa-se ainda uma pequena participação dos daimistas em ações pró-
legalização das “drogas”, ou pela “liberdade” de Santa Maria. Entretanto, devido ao
crescimento da visibilidade dos movimentos anti-proibicionistas, o interesse sobre “políticas
de drogas” encontra-se em ascenção por parte dos “daimistas marianos”.

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