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Ligações melindrosas
Uma reflexão a respeito da sociologia aplicada ao direito

Maria Guadalupe Piragibe da Fonseca

Este seminário, com a proposta aparentemente singela de realizar um balanço do ensino


da Sociologia nas faculdades de direito, na verdade, coloca em questão um tema – a
Sociologia Jurídica (ou Sociologia do Direito?) - não só polêmico do ponto de vista
teórico, como fonte de desconfianças recíprocas entre os “donos do pedaço científico”,
os sociólogos, e os bacharéis em direito, considerados de certo modo, intrujões nessa
seara. Atualmente, em face da obrigatoriedade da matéria Sociologia no currículo de
graduação em direito, o diálogo entre as duas áreas precisa ser estimulado, apesar das
diferenças, com o objetivo de se discutir aspectos ainda obscuros relativamente, não só
ao conteúdo da(s) disciplina(as) sociológica(s) que integrariam o currículo jurídico,
como também, à metodologia a ser adotada, capaz de compatibilizar as duas óticas: a
técnico-jurídica e a jurídico-sociológica .

Não é de hoje, no campo do direito, em especial no âmbito do ensino jurídico, que


algumas vozes isoladas alertaram para a necessidade de se submeter o direito à
abordagem sociológica. No Brasil, há cinqüenta anos, a palavra de Santiago Dantas 1 em
favor da sociologia aplicada ao direito, embora muito aplaudida, não foi levada à sério
pelos seus contemporâneos, por isso mesmo, permaneceu nas atas e nos anais, mas não
tanto na memória das subseqüentes gerações de professores e demais profissionais do
direito. Todavia, não há muito o que se estranhar, pois, desde Tobias Barreto, a
Sociologia - incluída a Jurídica - vem sendo objeto de opiniões no mínimo ambíguas,
senão diretamente hostis.2 Não foi por acaso que, há quinze anos passados, Joaquim
Falcão recomendou ao sociólogo do direito disposição para conviver com a crítica
(Falcão,1984:59). A crítica, de fato, vem dos dois lados: do campo jurídico, onde,
comumente, se entende como perda de tempo a dedicação aos estudos sociológicos
pelos futuros bacharéis, quando o que interessa para a sua formação é um forte
conhecimento técnico, com o qual enfrentarão o exercício profissional do direito,
incluídos os concursos para a magistratura, ministério público dentre outros; do campo da
sociologia onde, também com freqüência, não se vislumbra a possibilidade de pesquisas
conseqüentes, com métodos das ciências sociais, realizadas por bacharéis em direito,
afeitos que são a um raciocínio lógico formal e não propriamente científico. As ligações
entre direito e sociologia não chegam a ser perigosas, mas são melindrosas.

1
Discurso proferido por ocasião da abertura dos cursos da Faculdade de Direito, na década de 50.
2
Para Tobias Barreto a Sociologia como ciência de todos os fenômenos da ordem social não é possível.
“Sociedade humana não passa de frase, ou simplesmente a soma dos mil e quatrocentos milhões de
terrícolas. No sentido jurídico, moral, religioso, político e até econômico ou comercial mesmo, não tem
valor nenhum” (1966:136/7).
2

O interesse dos juristas pelas abordagens sociológicas, a partir de meados do século XIX,
se deu, aparentemente, a reboque de análises críticas da dogmática jurídica. Naquele
momento, tendências várias, umas mais arrojadas que outras, surgiram na área da
hermenêutica jurídica com o objetivo de contestar a eficácia do método da Escola da
Exegese, dominante desde a promulgação dos primeiros códigos civis. Não obstante as
diferentes referências teóricas, os movimentos renovadores da interpretação do direito –
Jurisprudência de Interesses, Livre Pesquisa Científica, Direito Livre, Jurisprudência
Sociológica - tinham em comum a convicção de que, mais importante do que as técnicas
tradicionais de interpretação e aplicação das leis, era a vida mesma, no sentido de
conjunto de valores implícitos nas relações e práticas sociais, consideradas pelos seus
defensores como as verdadeiras fontes do direito. Contra a visão conceptualista com
propósitos cognitivos apenas, redutora das peculiaridades dos fatos e ações humanas do
cotidiano; contra as técnicas de dedução do geral (fato tipo) para o particular (situação
concreta), acentuando os esquemas de padronização da realidade social, difundiu-se a
idéia da determinação do significado das expressões jurídico-normativas como critério
da decisão judicial correta e justa. A novidade maior residiu, entretanto, na idéia de
procurar o sentido das normas na interseção do direito vigente com outros planos sociais
– cultural, econômico, político, ético. A aplicação do direito positivo legislado segundo
a avaliação dos seus fins (concepção teleológica), estaria condicionado pelo conjunto de
fatores vitais representados pelos interesses, valores, usos sociais, ou como se quiser
chamar a realidade diversificada no interior da qual o direito é produzido e aplicado.
Entretanto, essas manifestações, denominadas ou autodenominadas sociológicas, não
chegaram a problematizar a teoria do direito, não se insurgiram propriamente contra a
teoria jurídica dominante, apenas propuseram bases novas para se pensar a função da
hermenêutica jurídica na sociedade crescentemente conflituada e contraditória.

A ingerência do pensamento sociológico no espaço da hermenêutica jurídica, de meados


de século XIX em diante, não teve a pretensão de substituir a dogmática jurídica. Com
efeito, mesmo a tese de Eugen Ehrlich, propondo como verdadeira ciência jurídica a
sociologia do direito, estabeleceu uma ruptura entre o que o autor chamou de
jurisprudência prática e a ciência do direito, algo semelhante à distinção feita por
François Gény, anos antes, entre ciência e técnica3. Nenhum dos dois autores chegou
a admitir a ordem jurídica como dado sócio-histórico, com vigência de fato, reconhecido
como vinculante pela comunidade. Pelo contrário, está implícita nas duas teorias a
separação entre validade normativa e validade fática. A razão desse entendimento reside
na concepção positivista sociológica de ambos juristas, consturas que vale a pena
considerar para efeito do que nos propomos nesta rápida reflexão: a) a de Ehrlich,
segundo a qual a ciência sociológica do direito é uma ciência dos fatos subjacentes ao
direito, aos quais se acede através de método indutivo; b) a de Larenz, que nas pegadas
de Max Weber, adota um conceito de sociologia compreensiva, ou seja, sociologia que se
importa com o sentido subjetivo da conduta individual e social, diferente do sentido
objetivamente válido, como o que procuram as ciências dogmáticas (o direito, por
exemplo). Daí optar Larenz por uma Sociologia do Direito “como uma entre as várias
ciências que se ocupam do direito” (Larenz,1983:78); c) uma posição contemporânea,
como a defendida nos textos de Luciano de Oliveira e Eliane Junqueira, que partindo da
distinção entre Sociologia do Direito (ramo da sociologia) e Sociologia Jurídica, entende
3
Em Science et Téchnique, François Gény diz que pertence ao domínio da ciência o conhecimento objetivo
das realidades sociais. A esse material dado, o jurista aplica a sua técnica específica, com a finalidade de
adaptar o direito às exigências concretas das relações sociais. Gény, contudo, nunca afirmou a
superioridade dos fatos sobre o direito estatal, nem a superioridade de uma concepção sociológica sobre a
concepção dogmática do direito.
3

esta última como disciplina didática que “objetiva introduzir uma visão sociológica na
análise do direito, despertando no aluno uma consciência crítica em relação à ordem
jurídica” (Junqueira, 1993:56).

A reflexão que aqui apresento tem por base as considerações acima, os resultados da
pesquisa sobre o ensino da Sociologia Jurídica, realizada por Eliane Junqueira e Luciano
de Oliveira4 e a minha particular experiência no ensino do direito, na pesquisa e na
extensão jurídica. Nunca lecionei a disciplina Sociologia Jurídica, contudo, ao ministrar
cursos de Introdução ao Estudo do Direito, Metodologia Jurídica, Introdução à Pesquisa
Jurídica, dentre outras, mas, principalmente, ao elaborar e executar projetos de pesquisa
sócio-jurídica, com levantamento e análise de dados empíricos, sempre me ocorreu que o
pano de fundo dessas atividades deveria ser a busca de novas bases para o conhecimento
do direito5. Mais ainda, que esses fundamentos novos precisam ser buscados nas práticas
sociais, mediante recursos metodológicos das ciências sociais. Nesse sentido portanto,
me considero integrante do rol dos “insatisfeitos com o saber jurídico dominante”
(Falcão, 1984:60) e convicta de que os caminhos da crítica passam pelas abordagens
sociológicas. Todavia, uma outra questão, a meu ver, se impõe, principalmente quando
relacionada à atividade de ensino. A questão é a seguinte: a dogmática jurídica é a teoria
do direito que existe e que precisa ser conhecida suficientemente para o exercício eficaz
de qualquer das profissões jurídicas. Teoria crítica do direito é uma força de expressão
para designar o interesse de pesquisadores juristas em descobrir e estabelecer
metodicamente critérios justificadores de uma nova teoria explicativa do direito, tarefa
necessária que exige bastante empenho e criatividade e com a qual o ensino e a pesquisa
do direito precisam estar comprometidos. Nessas condições, diria que o ensino do direito
acha-se, hoje, condicionado pela tensão entre a transmissão de um saber dogmático e a
crítica desse saber. Contudo – e este é o aspecto que desejo enfatizar neste texto - tanto
a transmissão do saber dogmático, pela via das clássicas disciplinas profissionalizantes,
quanto a sua análise crítica, realizada fundamentalmente pela pesquisa, podem e devem
ser, ambos estudos, objetos de um olhar sociológico.

Para tornar a exposição mais organizada, o argumento será desenvolvido em duas partes.
A primeira, reflete sobre a dogmática jurídica, não no que se refere a sua dinâmica
interna, mas no que concerne a sua função social, principalmente em países como o
Brasil, com disparidades sociais acentuadas, situação esta que contribui para diversificar
os conflitos e problematizar a solução dos mesmos. A segunda parte, aborda a pesquisa
aqui denominada de sócio-jurídico-crítica, com o propósito de questionar a possibilidade
de trabalhar dados empíricos (práticas sociais) confrontando-as com o direito
institucionalizado (teorias, leis, jurisprudência) para efeito de, nessa ida e volta das
práticas para a teoria e desta outra vez para as práticas, identificar elementos sociais
novos que permitam repensar as bases do direito, em termos teóricos e práticos.

4
Oliveira, Que (e para quê) sociologia ?; Junqueira, Geléia geral: a sociologia jurídica nas faculdades de
direito, Cadernos do IDES, Série Pesquisa, no.8, maio de 2000.
5
Ver a esse respeito a Introdução Geral do Direito , vol. II de Luis Alberto Warat, que trata da
epistemologia jurídica da modernidade, como, também, o capítulo 2 – Para uma concepção pós-moderna
do direito em Crítica da Razão Indolente de Boaventura de Souza Santos. Não se trata tanto de concordar
ou não com as propostas desses autores, quanto de analisar as razões que apresentam para a necessidade de
se tentar hoje redefinições do direito, em face de circunstâncias novas.
4

A dogmática jurídica, sob a influência de uma perspectiva dialética do direito, de matriz


filosófico-marxista sobretudo, tem sido alvo de críticas mais ou menos demolidoras 6.
Essa análise desempenhou, na década de 70 e inícios de 80, um papel importante no
sentido de mostrar defasagens graves entre a ciência dogmática do direito - base do
direito estatal - e a realidade social, marcada pelo conflito, e onde a divisão de classes
dá origem ao pluralismo de normas. A concepção dialética do direito e da sociedade,
defendida por Roberto Lyra Filho, estaria respaldada numa sociologia jurídica crítica
capaz de auxiliar na explicação do direito como fator de mudanças. Mais tarde, na
década de 90, o movimento do direito alternativo, surgido nos estados do sul do país,
acrescentou uma perspectiva crítica, voltada preferentemente para a atuação do juiz,
preconizando, desde a superioridade do sentimento de justiça sobre o texto da lei, até a
possibilidade de renovação do sentido das normas vigentes à luz de fatos novos. Aliás, as
questões que continuam a motivar os juristas e que servem de desaguadouro das suas
críticas e sugestões de mudança estão ligadas à interpretação e à aplicação do direito,
como vimos acima. Os movimentos surgidos no Brasil acompanharam essa tendência,
reforçada e renovada, nos últimos anos no Brasil, pelas propostas teóricas de autores de
influência anglo-saxônica, tais como Herbert Hart e Ronald Dworkin7.

Na verdade, a chamada ciência dogmática do direito não existiu sempre, pois foi
conseqüência da realidade de uma época8. Há algumas décadas essa ciência é
considerada “em crise” em face de exigências sociais, políticas e econômicas emergentes,
afetando, não apenas a capacidade explicativa e normativa das categorias e institutos
jurídicos, que se tornam insuficientes como padrões compreensivos dos fatos, mas
atingindo, até mesmo, os próprios fundamentos de validade dos conceitos e teorias
jurídicas. A crise repercute negativamente na prática da argumentação e decisão dos
conflitos do cotidiano. As tentativas de renovação da dogmática jurídica têm surgido no
âmbito da Filosofia do Direito que reagiu contra a visão tecnicista predominante.
Surgiram, também, como já foi dito, no campo da hermenêutica jurídica, com ênfase nos
aspectos sociológicos e culturais dos litígios que chegam aos tribunais. Atualmente, a
crítica aponta a extrema complexidade e especialização do sistema jurídico, que
evidencia a necessidade da dogmática interagir com outros setores do conhecimento9.

Diria que o enfoque dos estudos dogmáticos precisa mudar. Em lugar de privilegiar os
dados históricos com a intenção de justificar as construções jurídicas do presente e de
reduzir o estudo ao aspecto sistemático do direito, no sentido de dirigir a sua aplicação

6
Ver Roberto Lyra Filho, Para um direito sem dogmas (1980) e O que é direito (1983) e também Michel
Miaille, Uma introdução crítica ao direito (1979), nomes representativos da visão crítica do direito na
década de 70.
7
Ver O Conceito de Direito de H. Hart, e O Império de Direito de R. Dworkin, no que se refere à tentativa
de ambos autores , mas principalmente do segundo, de superar o positivismo jurídico dogmático por meio
da reflexão sociológica.
8
Ver Ferraz Junior em Introdução ao Estudo do Direito (1988), no que se refere ao histórico do
desenvolvimento da dogmática jurídica no século XIX.
9
Exemplifico essa situação com o fato detectado por pesquisa sobre o comportamento da Justiça Federal
em face das ações judiciais sobre a privatização de estatais, que realizei com José Ribas Vieira em 1994.
Verificou-se a dificuldade dos juizes para proferir decisão diante de argumentações envolvendo
conhecimentos técnicos da área da economia, e também, sem condições (ou disposição ?) para avaliar as
conseqüências sociais do seu julgamento.
5

através de técnicas preestabelecidas, valeria mais centrar os estudos na função social da


dogmática jurídica para a realidade contemporânea.

O sistema jurídico é um sistema social na medida em que é constituído no interior de


uma cultura, onde valores, princípios e normas estão estabelecidos e são representados
pelo imaginário social como obrigatórios relativamente ao comportamento individual e
coletivo. A dogmática jurídica empresta a sua racionalidade e tecnicidade a esses
elementos sociais, prévios a sua intervenção (Ferraz Jr., 1988:228). Esse papel, não
constitutivo mas regulador, que a dogmática jurídica desempenha precisa ficar claro no
ensino das disciplinas do currículo de graduação em direito, com destaque para as
disciplinas profissionalizantes.

Quais as vantagens e quais as desvantagens que essa função da dogmática acarreta ? As


desvantagens se relacionam com o distanciamento da realidade que decorre da
padronização das relações sociais, a partir do princípio de que o tratamento igualitário
das pessoas em face da lei leva à realização da justiça (justiça possível ?). Esse caráter
da dogmática jurídica tem sido a causa da maioria das críticas de que é alvo. As
vantagens residem exatamente na especificidade que a dogmática atribui aos conflitos
jurídicos, tornando-os interpretáveis e decidíveis segundo procedimentos bem definidos e
postos com anterioridade. A questão, diria, está em avaliar o equilíbrio das perdas e dos
ganhos para a prática do direito. Não apenas isso, mas também e principalmente, avaliar
se a decisão dos conflitos jurídicos exige essa neutralização asséptica relativamente aos
aspectos sócio-político-econômicos que envolvem a disputa de interesses em qualquer
sociedade.

No que diz respeito ao ensino jurídico das disciplinas profissionalizantes é preciso, em


primeiro lugar, que esse caráter da dogmática jurídica fique bem explicitado. Tal
abordagem não é feita. O estudo dos diferentes “ramos” do direito à luz da fonte estatal
lei, considerada primeira e única, obscurece, ou simplesmente ignora, que a raiz da lei e
de toda a produção técnico-jurídica se encontra na rede de significados que permeiam
as relações sociais. Essa lacuna na informação enseja duas concepções polarizadas: ou
um entendimento legalista rígido, muitas vezes servindo comodamente de fachada para
atitudes de descompromisso com os fatos, ou então toda sorte de subjetivismos em
nome da adaptação do direito à realidade, dando lugar à posturas voluntaristas, não
menos perniciosas. Portanto, identificar com clareza o que significa a racionalidade
formalista do direito e quais as suas origens históricas, de onde vem o mito da lei,
desvendar as contradições reais, disfarçadas pelo trabalho teórico da construção dos
conceitos, relacionar a institucionalização do direito com os fatores políticos e
econômicos é meio caminho andado para a compreensão adequada da importância
maior ou menor da dogmática jurídica e para a identificação dos pontos de referência da
crítica que precisa ser feita, de modo que, estas se tornam inteligíveis, persuasivas e
eficazes.

Em segundo lugar, caberia transformar em tema especial a análise da conveniência de,


por meio de recursos técnicos, a dogmática jurídica separar o conflito dito estritamente
jurídico de todas as suas demais facetas sociais, políticas e econômicas. Essa não é uma
questão simples. Não por acaso, Eugen Ehrlich separou a ciência sociológica do direito
da jurisprudência prática, como se essa estratégia tivesse o condão de salvar uma e outra
instâncias do saber jurídico. A primeira, voltada para o verdadeiro conteúdo do direito, a
outra, relacionada aos problemas inerentes à realização prática do sistema de normas e
6

instituições jurídicas. Mas essa ruptura não resolve o problema, pelo contrário confunde
ainda mais. Para que serve um saber sociológico do direito, um ramo especial da
sociologia, que apenas descreve uma matriz normativa que muito pouco ou nada tem a
ver com as transformações conceptuais a que são submetidas pela ciência dogmática do
direito? Quem sabe a sociologia do direito não tenha interessado os sociólogos (Oliveira,
2000:04; Junqueira, 1995:11) porque estes não conseguem ver vínculos relevantes das
suas análises com os estudos dogmáticos, tal como se estivessem diante de um objeto
completamente diferente daquele que os juristas trabalham. E, de fato, são objetos
distintos (o direito sob forma de comportamento espontâneo e o direito sob forma de
conceitos), mas não necessariamente divorciados. Por outro lado, a sensação de
“estranhamento” a que se refere Luciano de Oliveira (Oliveira, 2000:08) quando leciona
Sociologia para alunos de direito ou o “constrangimento” relatado por Eliane Junqueira
(Junqueira, 1999a:35), em iguais circunstâncias, ilustram bem a distância entre a reflexão
sociológica e a argumentação jurídica, a ponto dos autores se perguntarem: qual a
utilidade do conhecimento sociológico para os bacharéis em direito ?

Dworkin (1999:488) diz que o direito é um conceito interpretativo e que a determinação


do sentido das leis não é obra de um único intérprete, mas de um intérprete coletivo: a
comunidade personificada, detentora de uma concepção coerente de justiça e de
equidade. O juiz ao decidir não expressa suas próprias opiniões, mas as da comunidade
da qual ele é o intérprete . Dworkin ilustra sua concepção de interpretação do direito com
uma metáfora: a de um romance escrito a várias mãos, que não obstante a intervenção de
autores diferentes, guarda uma unidade, como se tivesse sido escrito por uma só pessoa.
O mesmo ocorre, segundo Dworkin, com a unidade do direito: um texto escrito por um
só autor que manifesta uma concepção coerente de justiça, concepção que incorpora
valores da sociedade a qual ele mesmo pertence. Essa é uma tese, no espaço da
dogmática jurídica, que deixa uma larga margem para a reflexão sociológica. Toda a
produção jurídica, teórica ou jurisprudencial, é derivada de valores e pontos de vista
coletivos sobre a justiça, e não de deduções racionais. O sentido das normas vigentes não
está dado de uma vez por todas, de acordo com técnicas de determinação de uma
pretendida vontade do legislador, mas se constitui e evolui graças à concepção comum de
justiça. A partir dessas idéias, um programa de sociologia jurídica poderia ser proposto
tomando como eixo a questão da validade do direito, condicionado pelos valores e
representações sociais prevalecentes em dada comunidade. Ou, ainda, um programa que
privilegiasse as dimensões da cultura jurídica – cultura jurídica institucionalizada
(contida na teoria, nas leis e nas decisões judiciais) e cultura jurídica da comunidade
(integrada pelo senso comum jurídico). O equilíbrio entre as duas dimensões garantiria a
legitimidade do direito10 . A eficácia do direito, isto é, a aceitação espontânea das normas
está diretamente ligada às expectativas da sociedade, aos seus valores e princípios éticos,
aos seus interesses e conveniências.

A partir dessas ponderações, minha proposta para a inserção da Sociologia nos cursos
de direito considera que, não obstante se deva conservar no currículo a Sociologia
Jurídica como disciplina específica e autônoma, é necessário algo mais. É preciso que as
abordagens sociológicas atravessem o estudo profissionalizante do direito, na perspectiva
que vem sendo denominada de transdisciplinar. Receio que, se essa estratégia não vier a

10
Pesquisa sobre Cultura jurídica e eficácia normativa realizada na OAB/RJ em convênio com a
Faculdade de Direito da UFF, com apoio do CNPq, detectou coincidências e disparidades entre os sentidos
que os operadores do direito atribuem às normas jurídicas e os sentidos atribuídos às mesmas normas e aos
princípios por pessoas sem nenhum conhecimento especifico sobre o direito.
7

ser discutida seriamente, com critérios definidos de aplicação, o conhecimento da


sociologia para os bacharéis em direito corre o risco de se transformar em adereço
intelectual vistoso mas inútil ou ser totalmente esquecido, frustando os sofisticados
ideais que nortearam a Portaria 1886/94. Tenho tentado, na minha experiência do
magistério de disciplinas jurídicas, gerais (Introdução ao Estudo do Direito, Metodologia
Jurídica, Hermenêutica Jurídica) e profissionalizantes (Direito Constitucional e Direito
Civil), realizar essa dupla abordagem. Uma sugestão visando implantar esse diálogo é a
disciplina profissionalizante modulada, com a participação de professores de direito e
de sociologia, ou ainda, com aulas conjuntas, onde ambos professores abordassem um
especial tema pelas duas óticas, a jurídica e a sociológica. Essa experiência foi feita no
Curso de Especialização em Direito da Administração Pública da Faculdade de Direito
da UFF, continuada neste semestre letivo que terminou, no Curso de Mestrado
Interdisciplinar em Ciências Sociais (Direito e Sociologia) da UFF. Essa mesma
experiência foi feita, com resultados positivos, nos cursos de especialização do Núcleo
Interdisciplinar de Direito e Sociedade da UFRJ, em 1988. Uma outra experiência bem
sucedida foi o curso de atualização de 120 horas sobre Gestão Urbana, realizado pela
Escola Superior de Advocacia, em 1999, que reuniu docentes das áreas do direito, da
economia e da arquitetura. A turma também era interdisciplinar, reunindo advogados,
arquitetos urbanistas, administradores e um engenheiro.

II

A segunda parte desta reflexão diz respeito à pesquisa jurídica. Estou segura de que
qualquer avanço no sentido da identificação das deficiências da teoria jurídica
relativamente a realidades novas, depende de conhecimento dessa realidade através de
investigação empírica. As críticas que têm a dogmática jurídica como alvo são, na maior
parte das vezes, procedentes, contudo, seriam mais incisivas e convincentes se
respaldadas em dados concretos e na sua análise.

A pesquisa empírica não tem tradição no campo do direito, devendo aqui serem
ressalvadas as investigações desse tipo que vem sendo realizadas há aproximadamente
vinte anos por juristas quase sempre com outra formação na área das ciências sociais 11.A
pesquisa bibliográfica, jurisprudencial e legislativa, praticada por profissionais do
direito, não possui potencial renovador maior, porque permanece no círculo do saber
constituído, ou quando faz observações críticas estas muitas vezes estão pautadas em
críticas já feitas por autores estrangeiros, não necessariamente ou não comprovadamente
coincidentes com a realidade brasileira. Há que se levar em conta a dificuldade da
pesquisa empírica no direito. Começa pelo fato do direito não ter sido, pelo menos no
Brasil, objeto de estudos sociológicos continuados. Na verdade, a Sociologia do Direito
nunca ocupou um espaço significativo como especialização da sociologia. Nos últimos
anos, os sociólogos vêm demonstrando alguma curiosidade relativamente à estrutura e
funcionamento de instituições jurídico-politicas, especialmente o Poder Judiciário, sem
questionar, contudo, a racionalidade própria dos atores, especialmente juizes, no que diz
respeito ao exercício da função principal: julgar, ou a racionalidade que atravessa a
argumentação jurídica que os advogados experientes manejam com habilidade. Entendo
que o ideal seria, mas acho que algo utópico, a realizaçã
11
Eliane Junqueira vem promovendo o resgate dessa produção, publicada na Série Memória dos
Cadernos do IDES.
8

e esclarecer as metas a serem alcançadas pela pesquisa sócio-jurídica e adequar a estas


os modos de acessar a realidade. As metas da pesquisa sócio-jurídica são diferentes dos
objetivos de uma investigação sociológica. A primeira etapa de um projeto de pesquisa
sócio-jurídica deve visar a descrição da realidade, sem dúvida, mas não é só isso. Os
dados obtidos, sistematizados e analisados constituem um material para a fase mais
importante do trabalho, que é a articulação do material obtido e analisado com a teoria
jurídica. Explicando melhor, os dados coletados, ou práticas sociais, revelam modos de
conduzir relações e negócios jurídicos, modos de preencher omissões ou imprecisões do
direito vigente, revelam valorações, sentidos, opiniões a respeito do direito, dos seus
operadores e das instâncias públicas de decisão que, quando bem analisados, podem
servir de base para críticas objetivas, não apenas do ordenamento jurídico vigente, mas
sobretudo, da teoria, ou teorias jurídicas consagradas. A especificidade, portanto, da
pesquisa jurídica está no seu potencial crítico. Não se destina a descrever somente, mas à
coletar elementos pertinentes e a tecer argumentos convincentes a respeito da
necessidade de mudanças ou transformações no nível teórico do direito. Por esse motivo,
tenho denominado esse estilo e motivação para a pesquisa no campo do direito de sócio-
jurídico-crítica. Não há grandes novidades nisso, a não ser a intenção de atentar para o
que há de peculiar na reflexão jurídica quando esta se volta para a pesquisa, e avaliar em
que medida os conhecimentos da sociologia são indispensáveis, hoje mais do nunca, para
fazer avançar um conhecimento crítico da dogmática jurídica.

Luciano de Oliveira (2000: 11) cita uma pesquisa junto a integrantes de tribunais do juri
na cidade do Recife, para concluir sobre a contribuição que muitas vezes a sociologia
pode dar ao operador do direito (no caso, saber como reagem homens e mulheres diante
da atitude do réu do julgamento) no sentido de torná-lo mais competente no exercício do
sua profissão. Mas afirma, a seguir, que não é esse o tipo de competência que se espera
da inclusão da sociologia nos currículos dos cursos de direito. Certamente não é. A
sociologia jurídica desempenharia um papel bem medíocre caso fosse entendida apenas
como auxiliar da ciência do direito em sentido estrito: sociologia como fonte de
informações para os operadores se conduzirem com eficiência (em benefício de quem ?),
para a política legislativa alcançar um nível satisfatório (para quem ?) de eficácia, para
fortalecer (em função de que ?) o auto-conhecimento dos juizes. A sociologia aplicada
ao direito precisa, sim, ser utilizada como ferramenta posta a serviço do questionamento
e das propostas de mudança na teoria jurídica, nas técnicas procedimentais de
encaminhamento e solução de conflitos, na estrutura, composição e funcionamento dos
órgãos públicos decididores, notadamente, o Poder Judiciário. Certa vez, em conversa
com um sociólogo bastante conhecido e conceituado expus essa idéia e ele disse apenas
“mas isso é muito complicado”. Concordo, e me dei por satisfeita por ele não ter dito
“isso é impossível”.

A pesquisa jurídica com o perfil exposto precisa envolver o alunado, para se tornar
integrante do aprendizado. A experiência que tenho com bolsistas de iniciação científica
é decididamente positiva. Nunca houve um caso de desligamento da pesquisa por
desinteresse. O aproveitamento em termos de competência para contextualizar o jurídico
positivado, para discernir o jurídico dito “não oficial”, para avaliar resultados de
interpretação jurídica, dentre outras habilidades, mas principalmente para perceber o
compromisso do operador do direito em face das suas próprias argumentações e decisões
tem sido bastante positivo. Na sua atuação prática, os bacharéis que tiveram a
oportunidade de participar desse tipo de estudo, são mais “antenados”, digamos assim,
para o que ocorre a sua volta, e mais éticos no sentido da avaliação do seu papel social.
9

Contudo, participar de pesquisa nas faculdades de direito – seja ela de que tipo for –
ainda é um privilégio, dado o número exíguo, para não dizer ridículo, de bolsas
oferecidas pelas agências públicas (CNPq, FAPERJ) para alunos de graduação 12. Não é o
lugar aqui para discutir esse problema, mas vale registrar que esse é um fator inibidor da
pesquisa nos cursos de graduação em direito, não diferente, afinal, do que ocorre em
outras áreas do ensino superior. As estratégias que tenho adotado, visando proporcionar
aos demais alunos alguma inserção na execução dos projetos de pesquisa que coordeno,
é convidá-los a participar de algumas das suas etapas (aplicação de questionários,
levantamento de bibliografia, por exemplo) e socializar os resultados parciais e finais da
pesquisa por meio de colóquios ou eventos similares, permitindo a intervenção oral ou
escrita de todos. Essa participação tem sido computada como atividade complementar.

Um aspecto digno de nota é o caráter crítico (adjetivo quase lugar-comum no entender


de Oliveira, 2000:11), que, no meu entender tem que presidir a formulação e os
objetivos de uma pesquisa nos termos em que a entendo. Nesse ponto, estou de pleno
acordo com o entendimento de Sociologia Jurídica como abordagem que viabiliza essa
crítica e com a intenção de fazer do direito “um instrumento da justiça”. Afinal, se o
direito não servir como veículo da justiça, para que servirá ? Não só no Brasil essa deve
a meta prioritária da aplicação do direito, como em qualquer outro lugar. Não apenas da
justiça aplicada pelo Judiciário, mas da justiça obtida via procedimentos não-judiciais de
solução de conflitos, potencialmente mais eficaz e satisfatória, e menos onerosa. Mas,
voltando ao tema da visão crítica como inspiradora da pesquisa jurídica, e da participação
da sociologia jurídica nessa tarefa, volto a insistir no que disse acima a respeito da
abordagem sociológica perpassando os temas jurídicos. Se o pano de fundo de um
projeto de pesquisa for a justiça social, ou a democratização do Poder Judiciário, ou a
reforma do Estado, ou a cultura jurídica, dentre outras preocupações, a primeira
providencia é levantar uma ou mais hipóteses de trabalho fundadas em situações do
cotidiano, como por exemplo, o crescimento do trabalho não regulado (biscateiro,
ambulante); o aparente autoritarismo dos juizes e seu reflexo na solução de conflitos; as
leis do inquilinato à luz do uso da propriedade urbana e tantas outras. Essa medida evita
de se cair na armadilha da discussão de temas abstratos, como a democracia, a cidadania,
a função social desta ou daquela instituição, sem critérios adequados que só as pesquisas
empíricas podem fornecer. E a sociologia ? Esta entra com a metodologia. Para tanto a
assessoria de especialistas sociólogos é importante, por vezes indispensável. Mas, insisto
ainda em que a parceria entre sociólogos e pesquisadores da área jurídica, para ser
producente, precisa ser entendida como uma troca, porque, não esquecer que a pesquisa
não é sociológica , mas sócio-jurídica, caracterizada pelo tema – jurídico – e pela
finalidade do conhecimento jurídico – conhecer para agir, para tomar decisões, para
propor medidas.

Dito isto deixo aqui algumas sugestões para o debate em torno, não propriamente do
conteúdo de uma disciplina específica com o nome de Sociologia Jurídica, mas de
estratégias de combinação das perspectivas jurídicas e sociológicas nos espaços das
disciplinas profissionalizantes e da pesquisa sócio-jurídica.

1. disciplinas profissionalizantes moduladas nos termos expostos acima, com a


participação de docentes juristas, sociólogos, economistas etc.;

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Na UFF, o programa PIBIC não libera mais de duas bolsas, por ano, para projetos de pesquisa cujo
coordenador possua o título de doutor. O pedido de auxílio diretamente ao CNPq, para os projetos ditos
integrados, ultimamente não tem sido contemplados com mais de duas ou três bolsas.
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2. bibliografia diferenciada para as disciplinas profissionalizantes, além dos textos


específicos, outros, tais como, relatórios de pesquisa, relatórios e estudos nas áreas
econômica (caso não sejam escritos em “economês”), da ciência política, da
sociologia, pertinentes aos temas tratados;

3. ênfase nas áreas mais novas da regulamentação jurídica, como direito do


consumidor, direito urbano, direito ambiental, direito da criança e do adolescente,
campos que apresentam problemas novos ainda não dominados totalmente pelo
saber dogmático e, portanto, permeáveis à argumentações mais livres e às
indagações que vão além do nível técnico-jurídico;

4. ênfase nos direitos coletivos e interesses difusos, pelas mesmas razões mencionadas
no item anterior e, também, pelo fato da emergência do coletivo representar um
elemento de notável importância para uma reflexão sobre as bases da legitimidade
do direito contemporâneo.

5. pesquisa sócio-jurídica realizada por equipes interdisciplinares;

6. encontro entre docentes para discutir questões metodológicas, com a participação de


docentes de outras áreas.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

HART, Herbert, Conceito de Direito, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986.

DWORKIN, Ronald, O Império do Direito, São Paulo: Martins Fontes, 1999.

FERRAZ JR. Tércio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito, São Paulo :Editora
Atlas, 1988

JUNQUEIRA, Eliane, Geléia Geral: A sociologia jurídica nas faculdades de direito, Rio
de Janeiro: Cadernos do IDES, Série Pesquisa no.8, 2000.

OLIVEIRA, Luciano de, Que (e para quê) Sociologia ?Rio de Janeiro: Cadernos do
IDES, Série Pesquisa, no.8, 2000.

LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983.

FALCÃO, Joaquim, Uma proposta para a Sociologia do Direito, em Crítica do Direito


e do Estado, Rio de Janeiro, Graal, 1984.

LYRA FILHO, Roberto, Para um Direito sem Dogmas, Porto Alegre: Sérgio Antonio
Fabris Editor, 1980.

_______ Desordem e Processo: um Pósfácio Explicativo, em Desordem e Processo,


Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1986.
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ERLICH, Eugen, Fundamentos da sociologia do direito, Brasília: UNB, 1986.

BARRETO, Tobias, Estudos de Filosofia, tomo II, Rio de Janeiro: Instituto Nacional do
Livro, MEC, 1966.

MIAILLE, Michel, Uma Introdução Crítica ao Direito, Lisboa: Moraes, 1979.

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